Dizem os doutos dicionários, incluindo o do meu patrício Houiass, que “instar” – verbo de regência múltipla, aceitando as preposições ‘a’, ‘para’ e ‘por’, conforme reza a santa gramática – significa pedir com instância, com insistência; solicitar reiteradamente; encorajar com veemência, sem que se caia no movediço, capcioso e insidioso terreno movediço da ordem e da proibição. Ao contrário da aspereza dos tiranos ou da hirsutez dos déspotas – que impõem sem apelo nem agravo –, aqueles que instam somente manejam uma arte diplomática, como quem exorta sem esbofetear, persuade sem subjugar e clama sem escândalo. Tudo dentro dos limites gramaticais, sem jamais instar contra a sintaxe.
Instar é um verbo delicado, refinado, polido pelo tempo e pela retórica das cândidas almas prudentes. É verbo que não manda, que não obriga, que não legisla: apenas sugere, somente recomenda, só aconselha, embora com um leve toque de urgência. Como é belo o instar! Quase uma arte, de certeza um bailado semântico onde o poder se insinua sem jamais descer à vulgaridade de um édito ou de uma censura declarada.
E que seria da civilização moderna e democrática sem todos aqueles que instam os outros?
Desde tempos imemoriais, os grandes beneméritos da ordem e da moral compreenderam que uma liberdade desenfreada seria um perigo, porquanto os homens, deixados à sua própria sorte, acabariam sempre por enveredar por caminhos inconvenientes. Por isso, por bondade e paciência, por desvelo tutelar e zelo pedagógico, pontífices do alheio arbítrio e esclarecidos curadores da humanidade assumiram o labor de instar os distraídos, os indisciplinados e os inconvenientes a reverem os seus caminhos.
O primeiro grande instador da História foi, sem dúvida, Sócrates – e vejam no que deu! Passou a vida a instar os atenienses a pensar por si próprios, a questionar os deuses e as leis, até que os instados, fartos de tanta insolência, decidiram instá-lo de volta a tomar uma taça de cicuta. Os seus discípulos aprenderam a lição: Platão, por exemplo, compreendeu que a maiêutica não se conduz com perguntas incómodas, mas com regras bem estruturadas, instigadas com tacto para satisfazer não a inquietação da verdade, mas o consolo de certezas reconfortantes.
Roma, essa magnífica forja de leis e impérios, aperfeiçoou o instar com tal maestria que haveria de perdurar pelos séculos. O Senado, essa excelsa reunião de precavidos varões, instava os generais a serem leais, instava os tribunos a não abusarem da palavra, instava os cidadãos a confiarem cegamente na lei e na ordem. E se, por acaso, algum recalcitrante resistisse ao instar senatorial, então um pretor ou um legatus estaria sempre pronto a instá-lo com um exílio ajustado.
A Idade Média, uma extraordinária era de fé e temperança, também compreendeu a utilidade da arte do instar. A Santa Igreja, com a sua inexaurível paciência e magnânima caridade, coadjuvada pelo Santo Ofício, modelo de prudência e equilíbrio, nunca impunha, apenas incentivava. Vá lá, exortava com vigor evangélico. Jamais obrigava alguém a crer, muito longe disso. Apenas instava fraternalmente os hereges a reconsiderarem os erros, sob a gentil persuasão de um ligeiro aquecimento pirotécnico nas estacas de um auto-de-fé. E o povo, essa turba sempre tentada pelo demo, sujeita a ocasionais lapsos doutrinais, aprendia célere de que instar era sempre um generoso convite, cuja desnecessária recusa, embora tecnicamente possível, trazia consigo umas modestas repercussões térmicas, tão eficazes na purificação da alma como na combustão da carne.
Mas nenhuma época desenvolveu de forma tão primorosa a arte do instar como a modernidade. No tempo dos monarcas absolutos, instava-se com elegância: “Meu caro duque, seria uma grande tristeza para Sua Majestade se tivésseis de vos retirar para a vossa propriedade rural por tempo indefinido…”.
No tempo das revoluções, instava-se com mais fervor: “Cidadão, os princípios da Revolução exigem a vossa adesão. Resisti? Pois então, a guilhotina hás-de instar-vos com mais veemência.”
No tempo do liberalismo triunfante do século XIX, instava-se com polidez parlamentar: “Caro súbdito, ninguém vos obriga a aceitar as bênçãos do progresso, mas convém lembrar que, sem a devida deferência à ordem estabelecida, certas portas podem fechar-se, e certos favores administrativos podem tornar-se… nulos.”
Ao longo do século XX, com as ideologias a florescerem, instava-se com um misto de idealismo e pragmatismo: “Camarada, o futuro radioso do proletariado depende da vossa lealdade inquebrantável. Discordais? Ah, compreendemos, mas um breve retiro para reeducação talvez vos ajude a ver a luz… caso contrário, sempre há outras formas de instar-vos a cooperar.”
Mas se há um domínio onde o instar atingiu a perfeição, é na política das democracias. Os grandes regimes, aqueles que compreendem a delicada mecânica da obediência voluntária, sabem que a censura bruta já não é eficaz. O velho decreto, a proibição escancarada, a perseguição direta – tudo isso caiu em desuso. O segredo está em instar através de entidades ditas independentes.
As democracias liberais, mestres na arte do parecer sem ser, compreenderam que o poder funciona melhor quando não parece poder. Assim, os governos já não censuram os jornais, apenas instam a imprensa a ser responsável. As autoridades já não impõem, apenas encorajam boas práticas. Os tribunais já não condenam opiniões, apenas instam os cidadãos a serem cuidadosos com as palavras.
E é neste contexto de delicada repressão que, em Portugal, se tem em funções a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), esse augusto organismo de imparcialidade e elevação moral, cuja única missão é instar os jornalistas a conduzirem-se com responsabilidade. Aqui, valha-nos Deus e a Constituição da República Portuguesa, não há censura – que ideia! Abrenúncio! isso era coisa da Outra Senhora. Apenas há uma mão suave sobre o ombro, somente um sussurro paternal: “Caro jornalista, talvez devêsseis ponderar esse tom… Afinal, há valores a preservar, equilíbrios a manter, sensibilidades a respeitar…”.
Insta-se, diz a Entidade Reguladora para a Comunicação Social…
Se, por acaso, o jornalista for de natureza bravia e insistir em desafiar a doce mão reguladora, então não há problema. Quer dizer, instar-se-á de novo, com mais convicção. E mais uma vez, e outra, e mais outra, até que a resistência do instigado se dissolva num silêncio prudente. Gota a gota, até que a pedra ceda. Primeiro, um pequeno processo – um gesto simbólico, claro, para reafirmar os princípios. Depois, uma leve advertência – apenas um lembrete amigável de que certos trilhos são escorregadios. Em seguida, um subtil sinal de que talvez fosse mais sensato recalibrar a bússola editorial. E, por fim, sem pressas nem atropelos, o somatório de tantas generosas instigâncias resultará em proscrição pública, sem que ninguém se atreva a chamar-lhe censura. Afinal, ninguém proibirá nada – apenas se instiga à prudência, com a delicadeza de quem sabe que a liberdade ordenadamente conduzida é sempre mais saudável para todas as partes.
Sublime estratégia. Instar hoje é, na verdade, a censura do século XXI, mas vestida de seda e perfumada com ares de respeito democrático. É a rédea dourada que guia sem parecer prender. É a sombra tutelar que cobre sem parecer sufocar.
Se atentardes com o devido discernimento, talvez devêsseis, dilectas donzelas e respeitosos cavalheiros, agradecer à ERC e às suas congéneres por esse zeloso ofício. Pois, convenhamos, o homem livre é um perigo para si mesmo. O jornalista que escreve sem ser instado pode acabar por dizer verdades inoportunas, ferir susceptibilidades perigosas, questionar consensos laboriosamente construídos. Como pode um Estado responsável permitir tal coisa?
Não, minhas senhoras e meus senhores, a liberdade, para ser usufruída em plenitude, não pode ter excessos, e convém ser conduzida, balizada, orientada com gentileza e firmeza. E, por isso, que método mais eficiente do que este instar persistente, essa mão invisível que nunca proíbe, mas sempre condiciona?
Portanto, deixemos os reguladores continuarem a instar. Deixemos que os jornalistas aprendam a ser instados com a devida humildade. E deixemos que o público, pouco a pouco, se habitue a um jornalismo instado, sentado e resignado, onde tudo se pode dizer desde que dentro dos limites do conveniente. Só assim o instar – nobre mecanismo purificador e instrumento de aperfeiçoamento cívico – cumpre o seu glorioso destino: sem matar a liberdade, ensina-a a comportar-se. E com o tempo, a liberdade, ensinada e aprimorada, deixará de ser instada: adestrada, amansada e castrada, instar-se-á sozinha.
N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Minhas dilectas donzelas e meus estimados cavalheiros,
A cidade de Lisboa, velha senhora de colinas e mistérios, viu-se envolvida num enredo digno das melhores tragédias clássicas, ou, quiçá, das melhores farsas. Não se trata de conspirações palacianas como outrora, quando Sebastião José, chamado o Carvalhão, tramou contra fidalgos incautos, nem de revoluções tempestuosas, como as que agitaram o vosso país no século passado – e nem me refiro ao 25 de Abril.
Não, desta feita, a matéria revela-se mais subtil, mais refinada, mais engenhosa: entrelaçada com os usuais casos de corrupção activa e passiva, abuso de poder e prevaricação – um tutti-frutti de meras trivialidades no panorama judicial lusitano –, desvela-se o modus operandi da distribuição estratégica de candidatos merdosos, um exercício de precisão aritmética destinado a assegurar um equilíbrio harmonioso entre os partidos na governação das juntas de freguesia.
Sim, os merdosos! Essa casta vilipendiada, esses proscritos do olfacto público, a quem amiúde se aponta o dedo com desdém e que, contudo, carregam consigo uma filosofia altíssima, uma metafísica escatológica e uma liberdade que só os espíritos verdadeiramente elevados podem compreender.
Vejam como, em Lisboa, nos ofereceram tão bela arquitectura política! Segundo consta, nos idos de 2017, o muito ilustre e prudente presidente da Câmara, Fernando Medina, qual exímio xadrezista, sondou as peças no tabuleiro das juntas de freguesia e, com a perícia de um verdadeiro estadista, concedeu, ao que parece, aos adversários do Partido Social Democrata, umas quantas antecipadas vitórias estratégicas, assegurando, em contrapartida, a devida reciprocidade. Assim, não seria a competência a decidir as eleições, mas sim um minucioso cálculo de incapacidades. E como se fez? Ora, lançando o Partido Social Democrata uma casta classificada de “gajos merdosos”, condenados a priori à derrota, enquanto outros tantos adversários, cavalheiros de igual espírito do Partido Socialista, fariam o mesmo noutras freguesias. Ah, a política, no seu esplendor!
Não sejamos ingénuos: esta prática longe está de ser capricho moderno. O Império Romano, que se autodenominava a mais perfeita expressão da civilização, já entendia que nem todos os senadores deveriam brilhar – bastava que estivessem presentes, aplaudissem nos momentos certos e sustentassem a ilusão de ordem. Similar se passou na Inglaterra vitoriana, onde a política era uma dança coreografada entre a aristocracia e os chamados rotten boroughs, onde se elegiam parlamentares cujo único mérito era a maleabilidade ao jogo das conveniências.
Se me acusardes de cinismo, digo-vos que a necessidade dos merdosos não é um acaso da democracia – é um princípio estruturante. Imaginemos, por um instante, um parlamento exclusivamente composto por mulheres e homens de talento, de espírito irrequieto e de integridade inflexível. Seria o caos! Quem negociaria os compromissos? Quem se deixaria corromper pela brandura? Quem aceitaria ser um peão para que os verdadeiros estrategas pudessem operar?
Bem sei que os impertinentes do Ministério Público, céleres em bisbilhotar esta partilha de benesses, anotaram, indignaram-se… mas, no fim, e muito bem, reconheceram que tal prática não era juridicamente censurável. Convenhamos, outro jamais poderia ser o veredicto. De facto, como seria a governação das nações sem os merdosos? Como se poderiam garantir acordos, equilíbrios e favores sem essa valiosa mercadoria humana que é o político inócuo, maleável, de ambições justas – nem excessivas, nem sofríveis, mas nulas – e de uma flexibilidade moral que rivaliza com os bambus do Oriente?
É pois neste contexto, tão relevante para a estabilidade das nações, que mais do que vos convidar a uma reflexão profunda, traço a pena para resgatar do opróbrio e da eventual injúria uma classe de cidadãos a quem a História, essa velha caturra, deveria conceder o devido lustre.
Escrevo assim esta carta apologética em favor e defesa dos merdosos, porque andam por aí, a passos largos, uns ingénuos e bem-intencionados a censurar a venerável prática da seleção meticulosa desse corpo de homens e mulheres de qualidade peculiar. Não compreendo como pode um espírito esclarecido indignar-se perante a concertação, a troca, o ajuste e a benemérita distribuição de fracos candidatos, se tudo isso não passa de um exercício magistral da democracia…
Direi, portanto, de início, que um merdoso é um estóico. Qualquer outro homem geme, revolta-se, se rebela, mas o merdoso aceita o fado. Aprende, desde os primeiros anos, que a existência é um acúmulo de odores e humores, que o mundo se divide entre os que exalam e os que repugnam, e que, no fundo, todos somos pó – ou matéria orgânica em diversas fases de putrefacção.
Ora, quem mais próximo está da Natureza senão o merdoso? O homem civilizado envenena-se de essências artificiais, cobre-se de águas-de-colónia, sufoca-se em alfazema. Já o merdoso permanece fiel à essência primária do ser. Ele não trai o cheiro que lhe foi confiado. Poderá alguém acusá-lo de falta de autenticidade? Jamais. Não é ele o verdadeiro herdeiro do naturalismo, um Rousseau das latrinas, um Thoreau das vielas esquecidas?
Por outro lado, um merdoso também é um asceta. Não busca glórias nem deseja honrarias nem tem ilusões de grandeza. Ele vive à margem do olfacto social, habituado a olhares torcidos e exclamações de repulsa. Aprende, com a paciência dos mártires, que a vida é um longo cortejo de narizes franzidos, mas mantém-se impávido, senhor do seu próprio aroma.
Mais ainda: o merdoso é um mestre da convivência. Vive no mundo sem exigir que o mundo se adapte a ele. Não pede privilégios nem reclama direitos nem exige quotas de aceitação. O merdoso simplesmente é. E essa aceitação incondicional do próprio estado deveria ser, ela mesma, uma lição para todos nós.
Os gregos, tão ciosos da invenção da democracia, dir-me-ão que jamais conceberam tal estratégia, mas não me enganam! O próprio Clístenes, ao desenhar o seu admirável sistema, terá ponderado que, para o bem comum, alguns incompetentes precisavam ser estrategicamente colocados para que outros, mais argutos, pudessem brilhar. Mesmo Maquiavel, de cuja pena escorre em simultâneo a malícia e a lucidez, teria aplaudido semelhante artifício, pois, como ensina ‘O Príncipe’, um governante hábil deve saber dosear os venenos e distribuir as incompetências – deve ter sido qualquer coisa assim.
Sei que há quem imagine, tolamente, que a política se faz de grandes homens, de patriotas destemidos e de luminares irrepreensíveis. Puro delírio! A política exige, sim, um exército bem treinado, com muitas figuras modestas no talento, mas generosas na obediência; figuras cuja limitada ambição serve para lhes garantir um assento sem maiores perturbações. São esses personagens que permitem o equilíbrio das nações, porquanto um excesso de grandeza seria tão nocivo quanto um excesso de mediocridade. O segredo está na dosagem, e eis a sublime ciência dos nossos políticos contemporâneos: sabem, como hábeis boticários, misturar os elementos certos.
Daí que me regozije ao ler as palavras de alguns desses ilustres artífices do jogo eleitoral, esses modernos Metternichs, que, num rasgo de lucidez – aplicando os três princípios fundamentais do poder, a saber: a legitimidade, o equilíbrio do poder e a intervenção – compreenderam a necessidade de lançar candidatos “merdosos” para beneficiarem da existência de outros candidatos “merdosos”. Ora, meus senhores, isto não é corrupção – longe disso. É simetria! Não é um crime – longe disso. É harmonia!
Ademais, convenhamos, não é fácil fazer apurar um bom merdoso.
De entre todas as artes, a arte de ser um político merdoso exige qualidades intrínsecas. Vejamos algumas:
A insigne habilidade da nulidade activa, pois o verdadeiro merdoso deve pairar no espaço público como um fantasma, sem projectos próprios nem ideias inoportunas, vivendo de frases vagas e gestos ocos.
A docilidade do cordeiro, pois o verdadeiro merdoso jamais deve manifestar ímpetos de independência, considerando ser sua função não governar, mas sim permitir que outros governem através dele.
A flexibilidade moral inquebrantável, pois enquanto um político de estatura pode ser traído pelos seus escrúpulos, o verdadeiro merdoso deverá estar imune a essas debilidades, nunca hesitando em seguir a linha que lhe indicam.
A resistência a qualquer resquício de vergonha, pois se o homem comum, ao perceber-se um joguete nas mãos alheias, pode corar e rebelar-se; o verdadeiro merdoso, dotado de grandeza no servilismo, permanece impassível.
Não penseis, especiosíssima leitora e meu distinctíssimo leitor, que, apesar das dificuldades em se reunir numa só pessoa tais atributos, se esteja perante espécimes raros. Não, nanja – felizmente, a presença dos merdosos não se restringe ao domínio das juntas de freguesia, nem ao exíguo tabuleiro da política municipal. Não! A sua presença e acção é transversal e vital.
Estão eles por todo o lado, como se juntos fossem Omnipresentes, mesmo se, pelas suas naturezas, sejam ‘Omni-nescientes’ e ‘Omni-impotentes’. Porque, vejamos bem, um merdoso bem colocado sempre facilita acordos, silencia debates incómodos e garante a estabilidade do grande jogo de cadeiras. A História nos ensina que sem um corpo de mediocridade funcional, os regimes tombariam em convulsões perigosas.
Se me permitem um derradeiro conselho, digo-o com a solenidade de quem já viu muito e pouco se espanta: devemos proteger os merdosos! A sociedade deve reconsiderar o seu julgamento precipitado sobre estes seres. Se o mundo valoriza a autenticidade, a naturalidade, a resistência impertérrita e o despojamento de vaidades supérfluas, não será afinal o merdoso o mais digno dos cidadãos?
Eles são, vos garanto, um bem simultaneamente abundante e precioso. Certo é que o Ministério Público português, e os certos jornais, quais zeladores de um moralismo anacrónico, acham moralmente censurável este expediente sublime. Por isso, cabe a vós, sapientíssimas cidadãs e esclarecidos cidadãos, continuar a garantir a perpetuação dos merdosos.
Porque, no fundo, o grande segredo da política jamais estará na capacidade de governar, mas sim na habilidade de preencher os espaços certos com os homens certos. Ou, no caso presente, com os homens merdosos, errados mas no sítio certo.
N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Se há Arte maior do que todas as demais em que os homens mais se aperfeiçoaram ao longo da História, não é a da Guerra – que me desculpe Sun Tzu, mestre da estratégia e do ardil –, nem a da Ciência – que me perdoe Galileu Galilei, esse mago do conhecimento –, nem sequer a da Poesia – que me indulte Homero, o arquitecto da épica. A Arte das Artes, o ápice do engenho humano, é a Arte de Governar – ou, melhor dizendo, a Arte de se Governar – e, dentro desta, uma superclasse, uma Arte ainda mais refinada: a Arte de seduzir aqueles que devem ser governados. Pois o poder raramente se conquista pela excelência, mas quase sempre pelo engano, e quase nunca se exerce pela sabedoria, mas antes pelo carisma de um artífice que convence o povo de que ele próprio é quem governa.
Já Platão – julgo ter sido ele –, na sua República – julgo ter sido nela –, nos advertia contra o perigo de se entregar o Governo a quem melhor soubesse agradar às massas, comparando a democracia a um navio onde o capitão não é o mais sábio, mas sim aquele que melhor engana a tripulação. Em tempos mais modernos, Schopenhauer notou que os homens não buscam a verdade, mas sim a ilusão que melhor os consola. Gustave Le Bon, por sua vez, demonstrou como as multidões são volúveis, emocionais e susceptíveis à manipulação, tornando-se presa fácil de líderes que lhes oferecem o espectáculo da autoridade. E ainda em tempos mais recentes, Ortega y Gasset alertou para o triunfo do homem-massa, aquele que, na sua ignorância satisfeita, repele o saber e aclama a superficialidade.
Se estas lições se aplicam universalmente, entre os portugueses encontram pasto fértil, pois sempre foi povo talhado tanto para a saudade como para a desilusão, tão apto para a melancolia como para o deslumbramento fácil, suspenso entre o fatalismo sebastianista e o entusiasmo de última hora. E onde mais se poderia observar tal tendência senão no ritual cíclico da eleição presidencial, onde se gera um frenesi em torno da escolha de um novo Chefe de Estado que, no regime semi-presidencialista português, desempenha, na prática, um papel de monarca republicano sem coroa e de mestre-de-cerimónias sem vara de comando?
Bem sei que a Presidência da República confere ao ungido pelo povo uma aura de poder porque lhe permitem ratificar tratados, promulgar decretos e vetar diplomas, embora estes possam ser aprovados de novo sem grande alarde – uma coreografia institucional que sugere mais um protocolo de Estado do que um verdadeiro exercício de autoridade. E assim, entre discursos de apelo à estabilidade e a solene garantia de que “não deixará de exercer as suas competências”, se tem perpetuado, entre bolos-rei comidos de boca aberta e beijoquices sem fim misturadas em selfies, a ilusão de que, algures nos corredores palacianos de Belém, repousa um timoneiro atento ao rumo da Nação.
E, portanto, apesar de as eleições serem apenas em Janeiro do ano vindouro, os candidatos, os protocandidatos e os demais aspirantes a salvadores da lusa Pátria já se agitam no tabuleiro político, contorcendo-se em sugestões discretas, serpenteando-se em insinuações calculadas, deslizando por silêncios cheios de promessas vagas, ensaiando declarações grandiosas, pisando estrategicamente os salões mediáticos e lançando olhares sedutores ao eleitorado.
Têm, portanto, os portugueses ao seu dispor, por ora, um rol de pretendentes à suprema magistratura da Nação, sendo o mais badalado o almirante Gouveia e Melo, cujo único feito político conhecido foi ter-se revelado um diligente distribuidor de vacinas – o que, em tempos de miséria de referências, parece bastar para que a imprensa o entronize como um moderno Lucius Quinctius Cincinnatus, chamado do seu repouso naval para salvar a pátria, apesar de ninguém lhe conhecer um simples pensamento digno sobre a res publica, nem sequer se saber se nutre alguma afeição por esse conceito.
Depois, desfilam os habituais profissionais do carreirismo, que sempre os há e nunca escasseiam. Por agora, destaca-se Marques Mendes, cuja estatura política rivaliza apenas com a sua estatura física, mas de insuficiente estatura para ser porteiro da Sonae – e cujo comentário dominical, imbuído de um oracularismo de feira, lhe granjeou um peculiar estatuto de profeta do óbvio, quando não se enganava ou mentia, sempre num tom de quem acaba de desvendar os mistérios de Delfos.
Também se fala em António Vitorino, paradigma do político que ascendeu mais por astúcia de bastidores do que por grandeza, habilidoso na arte de estar sempre à mesa sem nunca precisar de pegar nos tachos… Nos tachos? Bem, talvez esta metáfora não me tenha saído particularmente feliz, porquanto o significado em terras lusitanas desse utensílio de cozinha melhor se aplica à cómoda estabilidade das sinecuras, prebendas, benesses, mordomias e demais privilégios, remunerados ou não, mas sempre de pouco ou nenhum trabalho.
Ainda surge, no limbo das memórias eleitorais, António José Seguro, esse espécime raro de político que fez carreira a demonstrar que é possível ter ambição sem que ninguém perceba exactamente para quê – um homem que, em tempos, poderia ter sido primeiro-ministro, mas pareceu sempre ligeiramente surpreendido por o levarem a sério, ao ponto de ter entregado o ‘ouro ao bandido”, ou seja, ao camarada António Costa que lhe cobiçou o posto.
Gouveia e Melo.
E não falta, naturalmente, André Ventura, cuja ânsia de protagonismo se mostra proporcional à sua versatilidade ideológica: ora populista de colarinho aberto, ora inquisidor de gravata justa, ora direitista a roçar a extrema, ora liberal travestido de Robin dos Bosques em collants verdes (quiçá para sugerir preocupações ambientalistas), prometendo tirar aos ricos para dar aos pobres – desde que os injustiçados e os criminosos sejam categorias maleáveis ao sabor do discurso do dia. Seja qual for a máscara da ocasião, uma constante: está ele sempre pronto para a cruzada do momento – desde que lhe renda tempo de antena e votos.
E, claro, ainda se tem os candidatos que se aventuram pela folia do pleito, os figurantes de serviço que, em cada eleição, satisfazem um capricho pessoal de inscrição na História, ou se arremetem para garantir uns minutos de antena ao partido ou, simplesmente, para alimentar a ilusão de que o sufrágio democrático é um vasto mercado de ideias e não apenas a montra dos habituais vendedores. Sem qualquer hipótese real de deixar marca no destino do país, contentam-se com a efémera glória de um nome impresso nos boletins e, quiçá, uma nota de rodapé num almanaque de curiosidades.
No meio deste cenário de pequenez, onde o tédio parece ser a única ideologia comum, surgiu-me um rumor, um sussurro vindo dos confins do infoentretenimento, uma hipótese remota, mas irresistível: Cristina Ferreira, apresentadora multifacetada e autora de vasta bibliografia, onde pontifica ‘Pra Cima de Puta’, best-seller de Novembro de 2020.
Ora, descartando todos os predicados da ‘princesa da Malveira’, predisponho-me a analisar a sua obra acima referenciada, cujo título, em apenas quatro palavras, traz um verbo de superação, uma preposição de impulso e um substantivo de impacto. É a síntese perfeita para uma era em que os tratados políticos foram substituídos por sucessos editoriais de empoderamento, e a governação se mede ao ritmo dos aplausos de um auditório de horário matinal.
Cristina Ferreira.
Não me interpretem mal. Os tempos mudam, e se outrora carne tive e hoje mal ossos me restam, aceito que se Maquiavel nos legou ‘O príncipe’, a evolução possa caminhar para uma Cristina Ferreira a publicar ‘A Rainha’, onde se ditarão as máximas e os mandamentos do estrelato, para que, sem coroa, mas com patrocínios; sem exércitos, mas com seguidores; sem ideologia, mas com um discurso de seda, se molde o gosto do povo.
Confesso eu, defunto autor, que se já vi muitos absurdos na vida e ainda mais na morte, que me deixo embalar pela perspectiva de assistir ao nome de Cristina Ferreira nos vossos boletins de voto da Presidenciais. Não que acredite nessa possibilidade, mas porque o possível não é o que move o espírito humano – é o desejável, mesmo se improvável, que o faz vibrar. Na verdade, se a felicidade da política não pode vir do desenvolvimento, pode vir ao menos do entretenimento. E se Portugal não pode ser grande pela obra, que o seja pela festa – como o meu Brasil que tem um Carnaval de quatro dias que vale pelo ano inteiro.
Convenhamos: se a política é um teatro e o governo uma ópera cómica onde raramente o maestro sabe manusear a batuta, por que não entregar a função de Maître de cérémonie a quem, ao menos, sabe entreter?
Dir-me-ão, escandalizados, que a política não pode ser reduzida a um palco publicitário, que a chefia do Estado da República Portuguesa exige gravidade e sentido institucional, que um Presidente da República não governa, mas arbitra, representa, e, em momentos críticos, é o derradeiro garante da estabilidade. Concedo, mas sejamos honestos: por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa era um exímio exegeta constitucional, um jurisconsulto de apuradíssima filigrana hermenêutica, mas tal não o demoveu de esquartejar a Constituição durante a pandemia. E quantos, nas últimas décadas, desempenharam esse papel sem antes terem passado pelo crivo de um casting mediático? A diferença, se acaso existe, é que agora já nem se disfarça a natureza do espectáculo.
Marcelo Rebelo de Sousa.
A verdade é que Belém de Portugal já teve, por inquilinos, generais sem guerras, professores sem discípulos e economistas sem contas certas. Assim, entre um submarinista cujo destino natural é a profundidade e uns advogados cujo maior talento foi ascender sem notabilidade, há algo de deliciosamente lógico na ideia de uma Presidente que, pelo menos, sabe vender um produto – ainda que o produto seja ela própria, mais o seu Pipy.
E nem temam que Portugal se torne alvo de risota no seio internacional. Pior está o meu amado país, que há muito deixou de ser levado a sério e, no entanto, persiste, com a loucura dos estoicos, em sucessivos devaneios, convencido de que o mundo o observa com reverência em vez de condescendência.
Se Portugal se espanta com Cristina Ferreira, que direi eu de um país que já elegeu Collor de Mello, o caçador de marajás caçado na própria esperteza; que já elegeu FHC, o príncipe dos sociólogos que traiu ideais para se reeleger; que já elegeu Lula, o operário que passou de salvador da pátria a réu, para depois regressar como o protagonista reincidente de uma telenovela política interminável; que já elegeu Dilma, a musa involuntária da dialéctica tropical, a filósofa da gramática alternativa, a arquitecta de labirintos sintácticos onde até o sujeito, coitado, se perdia na busca do predicado; e que já elegeu Jair Bolsonaro, o messias tropical que trocou o palácio pelo palanque e transformou o seu Governo num circo de arminhas, motociatas e excentricidades inenarráveis.
Mas o problema nem advém da lusofonia. O mundo inteiro abraça a política como um derivado do entretenimento. Trump está de volta, e governa como sempre governou: entre um comício inflamado e uma ordem executiva às três da manhã entre hambúrgueres e telefonemas para Elon Musk.
Na França, Macron, com o seu ar de banqueiro iluminista, desfila com a convicção de um Napoleão sem exército para batalhar, sem império para expandir, mas com a certeza inabalável de que a sua retórica e a pose bastam para que o povo o tolere – ou, pelo menos, não o derrube antes da próxima reforma impopular. Na Itália, tem-se Giorgia Meloni, uma populista que cita O Senhor dos Anéis como se a Europa estivesse a ser explorada por orcs, e o mundo fosse um decadente teatro romano.
E não nos esqueçamos dos autocratas! Putin, sempre entre um ensaio de guerra e uma sessão fotográfica montado num urso inexistente, parece sempre desejar reencenar o czarismo sem precisar de troikas, mas sim de drones. Ou Xi Jinping, o imperador digital, que já nem precisa de discursos inflamados – governa com algoritmos e aplicações, como o DeepSeek, que garantem que o seu nome seja sempre a única resposta certa. E ainda Zelensky, o improvável chefe de guerra que trocou os palcos da comédia pelo palco da geopolítica, mas que, mesmo cercado de ruínas, nunca perde a mise-en-scène cinematográfica – uma estrela em performance permanente, garantindo que a sua tragédia seja convertida em milhões, enquanto o sangue ucraniano tinge as telas da moral ocidental e a inflação asfixia os povos europeus
E, portanto, seguindo assim o meu Brasil e o demais mundo, que mal adviria de se ter Cristina Ferreira como Presidente da República Portuguesa? Se alguém pode ser eleito Presidente por saber distribuir vacinas, por que não por saber compor frases motivacionais? Se a governança já se dá por meio de narrativas, ao menos que seja uma bem escrita e com boa iluminação.
No fim, se em vez do Almirante, sair uma Princesa da Malveira, é certo que o colapso de Portugal sempre, de forma inevitável, se concretizará. Mas será um afundamento mais espectacular e coreografado, um naufrágio meticulosamente encenado para o aplauso das câmaras.
Em vez de uma submersão no cinzentismo de Gouveia e Melo, Portugal, com Cristina Ferreira, terá direito a um afundanço épico, mais grandioso do que o do Titanic, repleto de música, luzes, fogo de artifício e uma transmissão em directo, com a apresentação do Manuel Luís Goucha e da Teresa Guilherme, com ângulos meticulosamente estudados, lágrimas estrategicamente posicionadas e um documentário inevitável – ‘A Coroa e o Abismo’ –, produzido por Daniel Oliveira da SIC, onde a tragédia nacional será reciclada num enredo de superação, de luminárias e acordes a preceito para consumo popular. E se necessária for encenação mais demótica, ou plebeia, contrate-se, pois, o Filipe La Féria, e pague-se-lhe com dinheiros do Programa de Recuperação e Resiliência.
N.D. – A ilustração que acompanha este texto foi produzida com recurso a inteligência artificial.
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Não há fenómeno mais fascinante do que a alma humana quando entregue à sua ânsia de encantar. Sim, há os poetas e os prosadores, há os pintores e os músicos, há os escultores e os coreógrafos, há os oradores e os cronistas, mas há uma classe superior a todos estes; aquela que se dedica à glorificação do trivial, à apoteose do irrelevante, ao endeusamento do prosaico, à sublimação da mediocridade, ao enaltecimento do banal, à fabricação de heróis que não marcharam para Troia nem enfrentaram os ciclopes. Esta classe, naturalmente, não luta com espada e escudo, não talha com martelo e escopro, mas com adjectivos e interjeições, com estilete e lira. São os escribas do espanto, os vendedores ambulantes de frases feitas, os alquimistas da insignificância.
Entre estes artífices do grandioso, há mestres, mas um só, em Portugal, se pode arvorar de Magister Magnificus, de escultor do vazio: Luís Osório. Com os golpes da sua pena, como um Michelangelo Buonarroti do panegírico e entalhador do épico em madeira de pinho, transfigura qualquer mortal num Ulisses, qualquer vida num épico homérico, qualquer sofrimento numa tragédia digna de Esquilo.
A sua pena não é meramente descritiva; é taumaturga, transubstanciadora. Apanha um homem comum, um profissional como tantos outros, e – zás! – surge um herói! Pega num caso humano, dramático, mas igual a tantos outros, e – zás! – eis uma tragédia grega! Toma um feito banal, um gesto sem história, e – zás! – vira epopeia! Coloca-se diante de um facto corriqueiro, um episódio sem substância, e – zás! – emerge um épico shakespeariano! Quando lhe faltam os factos, não há problema: as palavras servem para fabricar realidades alternativas, e se a realidade é banal – pois bem pior, para ela, a realidade.
Mas há um pequeno detalhe, um pormenor que escapa aos incautos leitores: aquilo que distingue Luís Osório dos demais, verdadeiramente, nem sequer é a capacidade de exaltar o próximo – esse seria um ofício como outro qualquer –, mas sim a arte de enaltecer-se a si mesmo no próprio acto de elogiar. Luís Osório não constrói somente heróis – ele constrói-se a si próprio. O seu verdadeiro talento é, com efeito, e por defeito, a alquimia da auto-elevação. No preciso momento em que descreve os feitos de um outro, é a sua própria sombra que se projecta sobre a cena. A emoção derramada, a palavra entornada, a compaixão transbordada, a ternura emanada – tudo isso, bem vistas as coisas, não serve para Luís Osório erguer o venerado, mas para Luís Osório se esculpir a si mesmo como venerando, merecedor de ainda maior veneração.
E quando este fenómeno se dá sobre alguém que já se tinha voluntariado para o martírio público, então temos um casamento perfeito entre a fome e a vontade de comer. E é aqui que vos apareceu ontem, no Postal do Dia de Luís Osório, um hiperbolário laudatório a Gustavo Carona, um anestesiologista que soube construir a sua imagem, primeiro, à custa de uma histeria higienista no pandemónio pandémico, e, posteriormente, à custa da sua própria tragédia pessoal. Carona não poderia ter arauto mais perfeito para a sua saga. Osório, por sua vez, encontrou em Carona um manancial inesgotável de frases emocionadas, um altar ideal para o seu próprio incenso.
O resultado? Pois bem, um texto que merece ser dissecado com o afinco de um cirurgião viciado em bisturis, para que se perceba como se fabricam hagiografias de gente viva e como, no fim de contas, o santo da narrativa é, afinal, aquele que segura a pena. Porque, na verdade, Luís Osório não é apenas um Magister Magnificus – é o primo inter pares dos mestres da bajulação, é o Magister Primus. Ao início, poder-se-ia pensar que escreve ele para erguer monumentos ao mérito alheio; depois, percebemos que esses monumentos são apenas pedestais para o seu próprio reflexo. Ele diz contar histórias de heróis, mas no fim o herói é ele – ele, o narrador sublime, o confidente dos grandes feitos, o escriba das dores indizíveis.
Apesar disto, Luís Osório, Magister Primus da loquacidade, senhor absoluto da pena laudatória moderna, não atingiu ainda a nobreza estilística dos grandes panegiristas barrocos, nem tampouco a finura dos novecentistas, mestres no bordado das metáforas e no cinzelamento das hipérboles. Embora devota, a sua verve ainda carece de maior fausto para uma bajulação perfeita que, ao invés de o denunciar como farsante, se imponha como arte.
Convenhamos: o elogio sem aparato é como rei sem coroa; pode ter a pose, mas sem o ouro. Os barrocos, esses magos do incenso, sabiam como elevar um medíocre homem à condição de semideus, ornamentando-o com perífrases tão longas que, ao fim de uma frase, o leitor já o via ascendendo aos céus num carro de fogo. Os novecentistas, por sua vez, manejavam o exagero com a destreza de um ourives, talhando imagens de uma beleza tal que até a banalidade lhes parecia sublime.
Já Luís Osório, coitado, lança-se ao encómio com o desatino de um novo-rico da palavra, despejando emoção sem a devida alquimia, confundindo a exaltação com sofreguidão. Falta-lhe, pois, um polimento barroco, um verniz dos meus tempos, uma sofisticação que torne a bajulação menos óbvia e mais majestosa.
E é com esse espírito de benemérito da elegância que empreendo uma análise crítica e detalhada da sua ode ao Carona, propondo soluções para que a sua beijice atinja patamares de gesta sublimíssima, pois se é para embonecar a realidade, que seja então com a dignidade de um Luís de Camões a louvar um rei, e não com a pressa de um sargento a bajular um marquês.
Sigamos, pois, com generosidade crítica, certos de que a arte da vassalagem literária merece, como qualquer outra, o seu aprimoramento. Escalpelizemos então esta Ode ao Sofrimento.
1.
“Gustavo Carona é muito jovem, mas os seus olhos já viram o mundo do avesso”, Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A juventude e a experiência formam um contraste interessante, mas falta impacto. Não basta ver o “mundo do avesso”; ele deve mergulhar nas suas entranhas, enxergar horrores indescritíveis, tocar o caos com as próprias mãos.
Sugestão de reescrita: “Gustavo Carona, qual jovem sibila de Delfos reencarnada em corpo médico, ostentando duas ânforas de pranto e clarividência, já contemplou horrendos mundos, trazendo na íris os reflexos das ruínas, das febres e dos gemidos sufocados pelo destino.”
2.
“Nasceu com a ideia de que o mistério estava no bem e foi por esse caminho que entrou, o caminho dos que fazem o melhor possível para ser úteis aos outros, a todos os outros, a todos os que precisam.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A frase tem um tom nobre, mas falta a inevitabilidade messiânica. Gustavo não “escolheu”, ele foi escolhido. Não nasceu como a totalidade dos restantes, pobres mortais. Ele nasceu já imbuído de um propósito messiânico, e a sua alma encontra-se moldada pelo éter celestial dos grandes beneméritos.
Sugestão de reescrita: “Desde o ventre materno, Gustavo ouvia cânticos de querubins tracejando-lhe o destino, sussurrando-lhe um hino de redenção e sacrifício para a salvação dos aflitos, assim selando cada passo seu, cada gesto seu, cada olhar seu como mercês e bálsamos para uma humanidade sofredora.”
3.
“Licenciou-se em medicina, tornou-se anestesista e a vida encarregou-se de o encaminhar para cuidar dos doentes que necessitam de cuidados intensivos.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A “vida” simplesmente “encarregou-se”? Isso é redutor. Gustavo deveria ser arremessado ao seu destino pela força da tragédia grega e do desígnio cósmico.
Sugestão de reescrita: “Não foi Gustavo que escolheu a medicina, mas foi Hipócrates que o reclamou como seu filho dilecto, empurrando-o, inexoravelmente, para o teatro da aflição, onde cada pulsar de um ventilador é um embate entre a esperança e a finitude, onde cada gemido abafado se torna um apelo mudo à providência, onde cada olhar ansioso dos familiares aguarda, suspenso, a sentença do seu poder.“
4.
“Muito jovem, ainda mais do que é hoje, dedicou-se à medicina humanitária. Aproveitou quase todas as férias, quase todas as folgas acumuladas no Hospital Pedro Hispano, para ajudar nos lugares mais esquecidos por Deus.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: O sacrifício precisa de maior grandeza e uma renúncia absoluta. Quase todas as férias? Quase todas as folgas? O mundo exige um mártir, não um profissional de turnos!
Sugestão de reescrita: “Enquanto os hedonistas se entregavam, nos ternurentos dias, aos prazeres e à preguiça, Gustavo consagrava cada instante à medicina humanitária, recusando-se a dobrar os joelhos ao egoísmo mundano. E assim, trocando os salões de lazer pelos escombros da calamidade, fez-se peregrino da compaixão.”
5.
“Esteve no Congo, na Síria, em Gaza, na República Centro-Africana, no Afeganistão, no Sudão, no Iémen, no Iraque, em todo o lado.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A enumeração é forte, mas precisa de apoteose. Onde há pólvora, Gustavo deve lá estar; onde há ruínas, lá está Carona; onde há pranto, de lá ressoará a serena voz de Gustavo Carona.
Sugestão de reescrita: “Gustavo não foi a um ou dois lugares – ele foi a todos. Onde a poeira das bombas ainda não assentara, onde a fome era um espectro sempre à espreita, onde os gritos de dor perfuravam a indiferença global, ali estava ele, uma presença quase mitológica, cruzando desertos, atravessando oceanos, levando na bagagem apenas o seu bisturi e a sua obstinação.”
6.
“Os seus olhos viram muito, as suas mãos fizeram muito, salvaram muitas vidas.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A frase precisa de mais peso e maior dramaticidade. As mãos de Gustavo não “fizeram muito”, elas alteraram os destinos da humanidade!
Sugestão de reescrita: “Os seus olhos decifraram o código da dor, as suas mãos redesenharam os contornos da existência, arrancando vidas ao olvido com a perícia de um escultor, que talha o mármore da própria morte, com a destreza de um Prometeu cirúrgico, roubando fagulhas à eternidade, com a solenidade de um Fídias moldando carne na pedra, e com a audácia de um demiurgo que, sem temer os deuses, reescreve os desígnios da finitude.”
7.
“Tirou bebés da barriga de mães desfeitas, resgatou de comas, travou gangrenas, deu esperança no último sopro de penitentes.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A frase até tenta elevar Gustavo Carona, mas fica tímida. Enfim, louvável, mas ainda modesto para um verdadeiro semideus da medicina!
Sugestão de reescrita: “Entre os escombros fumegantes da tragédia, onde a esperança se dissolvia em pranto, veio Gustavo, entre as entranhas da desolação materna, trazer ao mundo infantes que, ao primeiro choro, lhe agradeceram a existência; das profundezas do coma, resgatou almas errantes; das trevas da gangrena, arrancou membros à voragem do apodrecimento; aos penitentes do último suspiro, concedeu-lhes o alívio do milagre terreno, adiando a travessia do Letes com a destreza de um Orfeu que canta à morte, impondo-lhe silêncio; aos corpos vencidos pelo destino, insuflou-lhes um sopro divino, redimindo-os da queda.”
8.
“E durante a pandemia andou na primeira linha.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Dizer somente que Gustavo Carona “andou na primeira linha” durante a pandemia é de uma modéstia quase insultuosa. Não, ele não esteve apenas na linha da frente – esteve em todas as linhas, em todas as frentes, em todas as batalhas. E se houvesse um flanco oculto, lá estaria ele; se existisse uma trincheira secreta, era ele quem a cavava. Na Economia do Heroísmo, limitar-se à primeira linha é uma absurda subavaliação de activos tangíveis e sobretudo intangíveis.
Sugestão de reescrita: “Durante a pandemia, Gustavo Carona não se restringiu a operar na linha da frente. Esteve na linha da retaguarda estratégica, onde se planeia, coordena e antecipa cenários; na linha logística e operacional, que garante suprimentos e organização para que a batalha continue; na linha moral e psicológica, sustentando o ânimo dos combatentes; na linha narrativa e simbólica, assegurando que a memória da luta não se dissolvia no esquecimento; na linha política e diplomática, onde se influenciam decisões e políticas públicas; na linha científica e inovadora, que desenvolvia novos métodos e soluções para enfrentar a crise; na linha pedagógica e formativa, preparando novos combatentes e disseminando conhecimento; na linha da memória e do legado, que se ocupava da fixação dos feitos para a eternidade; na linha do sacrifício pessoal, onde abdicava de tudo em nome da missão; e, ainda, na linha transcendental, onde a ação humana se mistura com o destino, a moral e a metafísica da luta. Se Gustavo Carona esteve em todas elas, então não foi mero protagonista – foi a omnipresença operativa da pandemia.”
9.
“Tornou-se uma espécie de anjo que nos protegia ou apaziguava – a juventude e a força de Gustavo ofereciam-nos esperança e quando o ouvíamos, quando o líamos, não era justo que desistíssemos ou não fizéssemos a nossa parte.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Dizer que Gustavo Carona foi apenas “uma espécie de anjo” é um insulto à dimensão cósmica do seu papel. Um mero anjo? Como assim? Um simples querubim da esperança, um ser etéreo menor, um ajudante celestial de segunda linha? Não, não, não! Isso é subestimar a magnitude da sua presença. Um anjo qualquer não basta – é preciso inscrevê-lo nos grandes escalões da hierarquia celestial!
Sugestão de reescrita: “Não foi Gustavo Carona um mero anjo, mas um Arcanjo Médico, investido pelo próprio Demiurgo, não para observar, mas para intervir. Entre os mortais, caminhou como um Aeon da Cura, um emissário da Plenitude Celestial, onde cada gesto seu reverberava nos Arquétipos do Mundo Superior. Não foi um simples guardião da carne, mas um Serafim da Vida, cujas asas flamejantes dissipavam as sombras da desesperança. Como um Metatron da Medicina, traduziu os desígnios ocultos da Providência em actos, reescrevendo destinos na Árvore das Esferas. Quando os aflitos tremiam à porta do Abismo, Gustavo erguia-se, não como um curador vulgar, mas como um Príncipe do Hesed, um Thronos da Misericórdia, aquele que, como Miguel diante do Dragão, impunha à morte o fardo da sua própria derrota.”
10.
“Aquele médico do Porto, com ligeira e bonita pronúncia do Norte, ouviu vezes sem conta os doentes jurarem-lhe que o céu lhe estava reservado ou que era um santo ou qualquer coisa do género.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: O elogio é tímido, quase acanhado, reduzindo Gustavo Carona a um médico que, por um acaso, possui uma pronúncia encantadora. Como se a sua grandeza estivesse num detalhe regional e não na sua missão messiânica. Claramente insuficiente. A encomiástica exige mais audácia, mais esplendor, mais grandiosidade – não basta um santo de ocasião, mas sim um arauto da salvação humana, uma entidade redentora vestida de bata branca. E jamais usar “qualquer coisa do género” como complemento.
Sugestão de reescrita: “A sua voz, moldada pelas brumas do Douro e pelos ventos atlânticos, soava aos ouvidos dos moribundos como um cântico primordial, um hino celeste entoado na fronteira entre a vida e a eternidade. Não foi um mero médico – era o Ungido, o Eleito das Esferas Superiores, o Arauto da Luz, cuja presença dissipou o medo como o Sol dissolve as sombras na alvorada do terceiro dia.
Quando cruzava o umbral do quarto de um enfermo, o tempo suspirava e o próprio ar oscilava, como se a matéria rendesse tributo à iminência do sagrado. No limiar do sofrimento, quando o corpo vacilava à beira do abismo, a sua pronúncia nortenha não era já um simples eco terreno, mas um cântico litúrgico transposto das esferas celestes, um salmo que os coros angélicos sussurravam entre os véus do infinito – como se o próprio Metatron, num ímpeto de clemência, houvesse decidido interceder na língua dos homens.
E assim, muitos – que digo! – todos se salvaram. Isto, claro, se possuíssem a fé dos justos, se não resvalassem na heresia da dúvida, se não fossem, Céus nos valham, negacionistas e réprobos, pois a estes esteve reservado o destino dos tíbios – não o alívio, mas a danação eterna. E assim, ao fundo do corredor, não se ouviam apenas monitores cardíacos e respirações ofegantes, mas, dizem os mais atentos, o eco longínquo de trombetas, como se do Juízo Final anunciassem que o tempo da escolha chegara, e que a salvação ou a perdição jaziam numa fronteira mais fina do que uma lâmina de bisturi.”
11.
“O caminho que escolhera na infância tinha-se concretizado e ele não podia sentir-se mais feliz e recompensado.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A felicidade? Isso é trivial demais. Precisamos de um sentimento cósmico de dever cumprido, quase uma ascensão espiritual.
Sugestão de reescrita: “O caminho que trilhava não foi uma escolha; foi uma profecia consumada, um desígnio esculpido nas tábuas do destino antes mesmo do seu primeiro alento. A cada vida que salvava, a sua própria essência se fundia com o etéreo, como se o Universo, em sussurros inaudíveis aos comuns mortais, lhe confirmasse a sua missão sagrada. E assim, não era apenas felicidade que sentia – era a plenitude dos eleitos, a exaltação dos ungidos, uma ascensão para além da carne, onde o dever cumprido jamais se apresentava como uma realização, mas antes como uma Revelação, como um rito de comunhão com o próprio mistério da existência.”
12.
“Mas a vida pode ser incompreensível.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A vida não é apenas incompreensível. Ela é cínica, cruel, uma entidade sarcástica que desdenha dos justos.
Sugestão de reescrita: “Mas eis que a vida, essa deusa caprichosa e impiedosa, cega ao mérito e surda ao sacrifício, urdiu nas suas teias tenebrosas um cruel desfecho, provando que mesmo os mais virtuosos não escapam ao escárnio de um maldoso destino.”
13.
“Gustavo começou a sentir-se cansado e com dores ciáticas que associou a uma vida demasiado intensa… só que não.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Dizer que Gustavo começou a sentir-se cansado e com dores ciáticas é de uma prosaica indigência que arruína qualquer pretensão épica. Ora, jamais alguém escreveria que Cristo, ao carregar a cruz, sentiu dores ciáticas. Ninguém há-de dizer que os mártires, ao abraçarem o suplício, se queixaram de lombalgias ou que os titãs da História precisaram de alongamentos matinais para suportar o fardo da grandeza.
Sugestão de reescrita: “O peso da sua missão começava a reclamar-lhe o corpo. Não era mera fadiga, nem dor trivial; eram lagas e chagas dos que se sacrificam, dos que ardem para que outros permaneçam na luz. Sentia-se exaurido, sim, mas não como um homem comum; a sua carne desfazia-se como a dos santos, submetida à provação, ao preço inevitável de quem aceita carregar o fardo da esperança alheia.
Jamais se pode dizer que eram mundanas dores ciáticas, ou causadas por um vírus, ou provocadas pelas generosas doses de vacina contra a covid-19 – abrenúncio! –; eram os espinhos invisíveis da entrega absoluta, da consumação de um destino que não pertence aos comuns, mas aos escolhidos.”
14.
“Um sofrimento inaudito antes do sofrimento.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Jamais alguém diria que Cristo sofreu um “desconforto pré-calvário” antes da cruz. Não há lugar para um “sofrimento preliminar”, como se fosse uma espécie de aquecimento para a grande dor. Não, o sofrimento verdadeiro não se divide em actos – ele consome, avassala, transcende a carne e o tempo. Se é inaudito, que seja porque rompeu as fronteiras do humano e se instalou na eternidade, inscrevendo-se nos próprios alicerces do destino. Esta frase necessita de uma monumentalidade maior, pois o sofrimento dos eleitos não pode ser um mero prólogo – ele já nasce absoluto e irreversível, como um decreto divino.
Sugestão de reescrita: “Era a antecâmara da dor, mas não uma dor comum – era um tormento cósmico, um prelúdio de flagelação, uma agonia que não se limitava à carne, mas se infiltrava na própria substância do tempo. Não era apenas sofrimento antes do sofrimento, mas a dor que precede a história, que antecede o próprio verbo, que ressoa antes mesmo de ser sentida.
Não era o padecimento de um homem, mas a prova reservada aos que caminham para a eternidade. Para esses, não há ensaios para a dor, não há trevas suaves antes da escuridão total – apenas o peso avassalador do fado que se cumpre, já escrito nas estrelas, já selado nos desígnios do universo.”
15.
“Uma doença crónica e incurável que o condenou a uma cama quase em permanência – sem poder exercer medicina, sem poder salvar mais ninguém, com dores horríveis todos os dias, todas as horas, todos os minutos.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A dor dos eleitos não é um mero padecimento – é um sacramento, um acto de oferenda, um testamento de entrega absoluta. Assim, a enfermidade deve ser transformada numa maldição divina, numa agonia cósmica que transcende a carne e o tempo. Se há sofrimento, que seja o tormento reservado aos mártires, àqueles que, impossibilitados de continuar a sua missão, tornam-se símbolos eternos daquilo que sacrificaram.
Sugestão de reescrita: “Uma doença lhe surgiu como um édito do destino, uma sentença inexorável gravada na pedra dos tempos. Prostrado numa cama, a cama mais não é que um altar de sacrifício, onde, imóvel, padece o tormento dos que foram afastados do mundo antes da sua obra estar completa.
Sem poder exercer medicina, sem poder salvar mais ninguém, reduz-se agora a uma prisão de carne e dor – mas não uma dor comum, não um mero padecimento humano, mas um flagelo incessante, um suplício sem tréguas, onde cada fibra sua arde como os corpos dos mártires sobre as brasas da provação. E não são apenas dores horríveis – são espinhos cravados na alma, um fogo eterno que consome os segundos, os minutos, as horas – um suplício sem intervalo, sem clemência, até ao infinito. Negada a acção, resta-lhes a imolação – e é na sua dor que a Humanidade reconhece o preço da grandeza.”
16.
“Caro Gustavo, não há mais palavras, mas quero dizer-te que entre os que tiraste de escombros sem luz, não há quem te esqueça.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A homenagem é sentida, mas insuficiente. Dizer que “não há mais palavras” é um erro de cálculo encomiástico – pois se há alguém que merece palavras, é o venerado. Além disso, não basta que não o esqueçam – deve estar eternizado na memória cósmica, gravado no próprio tecido do tempo.
Sugestão de reescrita: “Caro Gustavo, palavras nunca bastarão, pois a tua marca jamais se apaga. Entre os que resgataste das trevas, não há apenas memória – há legado, há luz perpetuada, há um nome que ecoará para além do tempo, inscrito no Livro dos Eternos.”
17.
“Lembras-te daquela mãe que te olhava enquanto salvavas o seu bebé? E do olhar agradecido dos tantos que salvaste?” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A evocação é poderosa, mas errada. Perguntar se Gustavo se lembra de algo é desnecessário – um eleito não apenas recorda, mas está eternamente vinculado a cada vida que tocou. Além disso, não basta mencionar olhares de gratidão – esses olhares devem ser testemunhos sagrados, reflexos de uma missão que transcende a mera acção humana.
Sugestão de reescrita: “Aquela mãe cujo olhar se cravou em ti enquanto salvavas o seu bebé? Não foi gratidão; foi veneração de quem assiste a um prodígio. E os que resgataste do abismo? Não te recordam – perpetuam-te, pois não foste apenas médico, foste artífice do impossível, inscrito na substância da sua redenção.”
18.
“Isto deve ter uma explicação, um dia contas-me e eu estarei aqui ou aí para te ouvir.” –Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Aqui, Luís Osório falha rotundamente, denunciando que se assume em pé de igualdade ou até em nível superior. Um panegirista jamais se propõe colocar na presença de um eleito, muito menos na condição de destinatário de confidências. O tom deve ser de humildade absoluta, de honra desmedida perante a remota possibilidade de um encontro, de uma revelação. Se o venerado algum dia se dignasse a falar, não seria uma mera conversa – seria uma epifania, um desvendar de mistérios, um acto que transcende a esfera do ordinário.
Sugestão de reescrita: “Se há explicação para este sofrimento, pertence aos desígnios que escapam aos comuns. Se algum dia, em tua infinita clemência, a quiseres partilhar, que o destino me conceda a honra inusitada de estar presente – não como interlocutor, mas como ouvinte reverente, indigno sequer de decifrar o mistério que a tua voz ecoará.”
Estou esperançoso que, acolhendo estes meus ensinamentos, possa Luís Osório fazer uma próxima epopeia, onde, devida e justamente, um qualquer padeiro que faça brioches às seis da manhã seja descrito como o Atlas que sustenta a felicidade do mundo.
N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Se algo sempre houve que o meu espírito inquieto perseguiu foi a frescura do pensamento. Não, não falo de nimiedades nem de borrifos. Não falo da fragrância ligeira nem da superficial refrescância que se aplica como uma bruma ao corpo para aliviar um ardor inclemente ou uma lassidão opressiva, mas sim da ancestral e singela frescura das ideias que penetram nos poros – no meu caso, já só nos ossos – e purificam o intelecto e nutrem a alma.
O pensamento humano é um turbilhão caótico, não cuidando de direcções, ora avançando como um vendaval, ora se dissipando como um vapor. Ao contrário da bruma, unidireccional, lançada para o exterior, mesmo que primeiro impelida para o interior, o pensamento diverge e se espraia, mas é um ser íntimo que nunca se desliga da alma – e é aí que reside, na alma, e não no corpo, a verdadeira frescura da humanidade.
Esta reflexão, que, em outros tempos, poderia ter brotado numa tertúlia filosófica ou mesmo num ensaio epistemológico, ocorreu-me ao tropeçar, na modernidade, num fenómeno singular: a bruma íntima feminina.
Aqui, detive-me.
Frescura, emancipação e até poder – assim se anunciava, e mais ainda: tudo concentrado num frasco, à espera de ser borrifado entre pernas com a destreza de quem asperja uma ideia iluminista.
E eis-me aqui, vendo-me espectador defunto, a relembrar os arroubos do meu século, quando um leve rubor bastava para expressar uma intimidade sem afronta. Que diriam as matronas da minha época ao verem agora as suas trinetas entregues a estas modernices? Será isto um sinal dos tempos ou o cúmulo da frivolidade? Não sei. Nem sei o que mais me diverte, se a aspiração da frescura na alma através de vapores corporais ou a ideia de que o poder feminino – outrora tão nobre, tão sereno – se comprime em bruma, sem glória, num cilindro perfumado sob o nome de Pipy.
Soube então que a responsável por tão grandiosa empreitada é uma figura da vossa era que conjuga o pragmatismo empresarial com um toque de auto-exaltação, como quem mistura ácido láctico com marketing emocional.
Nem mais. A modernidade, cavalheiros, que a vós me dirijo, é pródiga em contradições. Enquanto os filósofos gregos viram a emancipação feminina como um acto de superação intelectual, as vendedoras de feira tudo reduzem, e assim o bom gosto mingua em brejeirice. Pipy – muito bem, porque Kryka, às tantas, não pegaria.
Dou agora por mim a pensar, por um momento, se as mulheres que se emanciparam cuidavam de fragrâncias. Imagino Hipátia de Alexandria, sábia dos astros e da geometria, borrifando-se com essências para afirmar a sua autoridade. Penso ainda em Sóror Juana Inés de la Cruz, a Fénix da América, que quis quebrar os limites impostos às mulheres nas letras. Compondo versos luminosos na penumbra do seu claustro, será que dependeria de um aerossol para potenciar as suas ideias?
E o que dizer, ainda antes, de Christine de Pizan, e do seu ‘O Livro da Cidade de Senhoras’? Terá ela construído o seu imaginário literário, o seu refúgio simbólico para as virtudes femininas, e celebrado a capacidade intelectual e moral das mulheres, nos intervalos de respingos de primitivas exalações nas partes pudendas?
Ah, e Mary Wollstonecraft. Que trabalheira para escrever ‘Uma Vindicação dos Direitos da Mulher’, quando lhe bastariam umas essências em redor do seu Mons Veneris…
Mas deixemos as luminares da História. E vamos ao centro da questão: jamais será uma bruma, íntima ou licenciosa, que concederá valor à mulher, mas sim o porte, a palavra ponderada, o olhar que sabe recusar ou conceder sem necessidade de subterfúgios olfactivos. Se o rubor, nos meus tempos de vivo, era apenas sinal de pudor, e não de fragilidade, já o frasco de Pipy, pelo contrário, parece sugerir que, para muitos, a começar por demasiadas mulheres, a emancipação precisa de um pipi refrescado por um marketing bem refinado.
Concedo que o marketing do vosso tempo não é um acto banal; é antes uma arte maquiavélica, que transforma o efémero em essencial. E a vossa Cristina Ferreira – ou talvez Criss, pois a sua figura pública parece exigir essa modernidade simplificada – até declara, com solenidade, que “o poder está em ti”. Como não sorrir? O poder feminino, proclamado por séculos nas obras de Austen, Brontë, Woolf, surge agora reduzido no frasco de um pseudo-cosmético. Não que o belo sexo não precise de artifícios – mas é a pena do chapéu da História que se encontra repleta de exemplos em que a elegância, a inteligência e a astúcia feminina suplantaram, com feliz frequência, a força bruta e a vaidade dos homens.
Bem sei que o Pipy da Cristina, evocando mais a brejeirice do que um produto destinado a mulheres sofisticadas, surge embrulhado em “provocação”. E que provocação: transforma emancipação num slogan, o requinte numa caricatura, a elegância numa banalidade, a inteligência numa mercadoria. Não é que o nome – Pipy – ofenda; o problema é rir na cara das conquistas femininas, como quem diz: “Deixemos de lado a elegância, e celebremos a vulgaridade.” Porque, na visão de Criss, ser mulher livre e confiante significa também aceitar esta linguagem rasteira como bandeira de modernidade.
Mas o que mais intriga nesta campanha, começada em Janeiro, é o calendário. Criss promete que Maio será um mês de transformação, quase como um novo Pentecostes. Só que, em vez de línguas de fogo descendo sobre cabeleiras e cabeças, teremos fragrâncias e slogans envolvendo as massas. Imagino as mães, celebradas em Maio, recebendo de presente não um poema ou uma lembrança significativa, mas um frasco dourado com a promessa de um “toque extra de frescura”. Seria cómico, se não fosse trágico.
A verdadeira provocação, caros leitores, não está no Pipy nem no seu ácido láctico nem na ausência de álcool. Está em rejeitar este canto das sereias do marketing, que promete felicidade em frascos e transformação em podcasts. A verdadeira provocação está em lembrar que o poder – o verdadeiro poder – não se pulveriza, mas se constrói. A verdadeira provocação está em exigir mais do que brejeirices embaladas em ouro falso.
Enfim, depois de serenar a espuma dos dias, confio que, lá no fundo, entre folhos, tudo em breve se dissipará, e da bruma da Criss não haverá memória, nem voz dos egrégios avós; restará somente o eco vazio daquilo que nunca frescura foi, mas sim frivolidade. Mas isso, claro, depois de se vaporizarem uns quantos euros das contas de muitas donzelas carentes de emancipação, que se dissiparão nos íntimos cofres da Criss… Ah, meus ilustres amigos, como é fácil vender ilusões!
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Que importa a posição, cargo ou função de um homem, em corpo presente, no seu efémero palco social, se, no fundo, ele almeja elevar-se pelo espírito, esse eterno arquitecto que ciranda entre ambições e contradições? Permitam-me, dilectas leitoras e caríssimos leitores, dar ênfase a esta digressão pelas vicissitudes humanas, com as mãos sujas de tinta e a mente embebida na ironia dos tempos hodiernos, seguindo inspirado pelas lições eternas desse grande compêndio que é o “Arte de Furtar” – dizem alguns, escrito pelo Padre António Vieira.
Que outro breviário, além de “O Príncipe” de Maquiavel, ousou mapear com tamanha precisão as artimanhas do engenho humano para torcicolar e espiralar as regras por ele mesmo criadas?
Enfim, seja de quem for, seria curioso que alguém roubasse a autoria deste lusitano tratado literário – fiel espelho das mazelas humanas –, cuja moldura se assemelha à das verdades incómodas: reluzente mas também cortante.
Miguel Arruda
As verdades incómodas têm, assim sei, três características inconfundíveis. São teimosamente persistentes, azucrinando até o mais subtil movimento; revestem-se de uma universalidade desarmante, atingindo tanto o rico como o pobre, tanto o poderoso como o insignificante, desencobrindo na crueza a condição humana; e possuem o irritante dom de trespassar as máscaras sociais, expondo as fragilidades do ego.
Assim, tal como no “Arte de Furtar”, onde se denunciam os furtos mais sublimes e menos punidos, as verdades incómodas desafiam, desassossegam e, inevitavelmente, iluminam. Reluzentes, sim, sem dúvida. E também sempre cortantes.
E digo mais: é na mágica transição entre a teoria e a prática que o palco da moralidade concede espaço à conveniência, e a trama se pode adensar. Que o diga esse ilustre deputado de nome Miguel Arruda, nascido sob os auspícios das ilhotas dos Açores, esse arquipélago perdido no Atlântico, que nem o Trump sabe onde fica, de contrário ficaria com ele. Será ele, certamente, um epígono dessa arte secular da ladroagem. Assim me parece, até porque o “Arte de Furtar”, tal como o vinho envelhecido, se refina, mostrando-se agora simultaneamente clássico e moderno. Arruda, ao furtar malas no tapete rolante do aeroporto de Lisboa, não apenas rompe um secular contrato social – ele reconfigura a harmonia da convivência social, que vos faz compartilhar espaços, no seu próprio benefício.
Em tempos idos, o grande peripatético Aristóteles advogava que a justiça era a virtude que preservava a harmonia da Pólis. Hoje, o pequeno pateta Arruda parece ter reinterpretado a máxima, mas transformando a ética numa mala de viagem – ora farta de intenções duvidosas, ora vazia de responsabilidade. Uma cena digna! Arruda como um génio de uma logística invertida: uma mala grande, como matrioska lusitana, engolindo as menores, num acto simbólico de ascensão política.
Mas não nos detenhamos apenas no superficial, nesta espuma do dia, da aurora, da alvorada, da manhã, do meio-dia, da tarde, do entardecer, do crepúsculo vespertino, do lusco-fusco, do anoitecer, da primeira noite, da meia-noite, da finda-noite, da madrugada e da penumbra matutina. A história das venturas e desventuras do Arruda é, na verdade, um microcosmo da condição humana. Hobbes falava do homem como sendo um lobo para o outro homem, e que melhor lugar para provar esta tese do que num aeroporto, esse hobbesiano estado de natureza primordial?
Miguel Arruda encarnou, nesta estória, a figura do Leviatã: não como um soberano a proteger os fracos, mas sim um predador que captura aquilo que melhor lhe convém. Não obstante, encontro poesia na sua métrica. A escolha das malas furtadas – recheadas de perfumes, jóias e relógios – reflecte uma filia, quase uma parafilia, pelos prazeres efémeros da vida. Nisto, Miguel Arruda não é diferente de um outro Miguel, o Cervantes, que vestiu D. Quixote com as loucuras do homem comum. Aquilo que o fidalgo da Mancha buscava na sua Dulcineia, fora de si – beleza e nobreza –, Arruda encontrou no seu arsenal de bagagens.
Digno de nota, nesta dignificante estória da trapaça amoral, é, de igual modo, o comportamento do líder regional do Chega, que não hesitou em desculpar o seu correligionário. Acho bem. Aqui, invoco Maquiavel, que advertia: “Os fins justificam os meios.” A confissão do deputado é relativizada, não com base na ausência de provas, mas na insistência de que um certo acto, mesmo se filmado, não corresponde à “verdade oficial”.
Se os antigos apóstolos de Cristo distribuíam peixes, os discípulos de Ventura distribuem desculpas. A justificação proferida pelo líder regional do Chega é, aliás, uma oratória de duplo efeito: suaviza a queda moral de Arruda, enquanto preserva a aura do partido. Numa crónica de juízos morais, caberia a pergunta: quem absolve o absolvedor? Mas os tempos modernos dispensam, e até execram, uma tal reflexão.
Adiante. No Mito da Caverna, Platão propôs que a realidade percebida não passa de sombras projectadas na parede. Mas se hoje Platão fosse vivo e visse o afanosíssimo cavalheiro Arruda no aeroporto de Lisboa, certamente revisaria o mito: a realidade seria um tapete rolante e as sombras, as pequenas malas engolidas nas trevas de uma mala gigante no aconchego de um sanitário. E assim, o grande filósofo admitiria que, mesmo na República ideal, haveria sempre lugar para um ou outro Arruda.
Aliás, permitam-me um momento nas artes da especulação, porque, às tantas e sem querer, ainda chegarei ao âmago do homem do Chega, às suas viscerais intenções. Imaginem que as malas furtadas possuíam memórias, como aqueles objetos falados por Walter Benjamin, que acreditava em auras escondidas em coisas. Cada mala teria então a sua história para contar ao malífero Arruda, uma espécie de biografia discreta, que transporta não só bens, mas também o eco das vidas, de todas as vidas que as tocaram.
Por exemplo, uma das malas poderia ter carregado dor e sonho, inferno e éden, de uma jovem no regresso de um Erasmus em Florença, onde se apaixonou pela arte renascentista e por um pintor que lhe prometeu eternidade traçada em tela. Outra, talvez tivesse pertencido a uma família que, de regresso da ilha do Pico, com transbordo em São Miguel, trouxesse na bagagem não apenas uma miniatura de barcos baleeiros ou pedra-pomes, mas também a fragilidade dos seus últimos dias juntos antes que a vida os separe em rotinas e geografias.
E poderia ainda haver aquela mala robusta, cheia de fechos metálicos e um leve cheiro de especiarias, que, sabe Deus, veio de Xangai com um comerciante fatigado. Nela, inventemos, estarão mais do que amostras de chá e seda; o bagagílico Arruda sentiria todo o peso físico e simbólico do pungente arrependimento por cartas jamais enviadas a quem nunca mais viu desde que partiu.
Enfim, mas sejamos condescendentes: o valisófilo Arruda, ao furtar estas malas, jamais quer sacar apenas objectos tangíveis, mesmo que os disponibilize na Vinted. Ele deseja, ardentemente, desnudar para si o teatro íntimo de vidas alheias, onde cada peça de roupa, cada relógio, cada perfume, ou até mesmo um velho par de sapatos desirmanados, uma colher de prata roubada num hotel de luxo, um urso de peluche com um olho remendado, um vibrador ou uma carta de amor são fragmentos de existências, prováveis ou improváveis – nem sei.
Numa só mala, ele almeja sempre encontrar um globo de neve partido, um álbum de fotografias do casamento de desconhecidos, ou um manual de instruções de um pequeno eletrodoméstico que já nem existe. Noutra, talvez aspire desencantar uma lamparina ainda embalada, um quadro a óleo de gosto duvidoso, ou um capacete de mergulho imaculado. E que dizer, talvez, de um par de grilos vivos numa caixa furada, levados como amuletos, ou de um chapéu de penas que já viu melhores dias, mas que carrega memórias de festas esquecidas…
Cada mala, para Arruda, será um mostruário de vidas alheias, paralelas, onde o absurdo se mistura com o mundano, acumulando histórias que este nosso malatrista Miguel jamais conseguirá explicar, mas que, de forma irónica, talvez espelhem a sua própria busca por um sentido.
Miguel Arruda, estou a convencer-me, é afinal um romântico: um viajante errante pelos olhos e malas dos outros. A oportunidade de viajar dos Açores para o Continente não o fez ladrão – fê-lo explorador da Humanidade compactada em malas. Agora deputado, depois eurodeputado. E aí furtará vidas e cidades. Hoje… sair-lhe-á uma que traz o cheiro da madeira de Istambul, transportando um exemplar gasto de Orhan Pamuk. Amanhã… há-de encontrar, talvez, uma mala das Índias exalando perfume de sândalo e mel, onde repousará um pergaminho enrolado com o mapa de um tesouro imaginário, desenhado por uma criança que revelará aventuras por mares infinitos. Depois de amanhã… erguerá uma mala de couro gasto das Pampas, tão pesado de memórias que, ao abri-la, libertará um enxame de notas musicais saídas de um violoncelo. Para a outra semana… tropeçará numa mala comprada num bazar de Fez que, destrancada, revelará uma biblioteca portátil de micro-livros ilegíveis, escritos em língua extinta, mas que lhe ressoará na alma, porque ele é um sonhador.
E para todo o sempre… Arruda, malófilo, assim vagueará pelos mundos como caçador errático para um museu de esperanças, memórias e absurdos, à procura daquele objecto impossível: uma mala vazia, que, ao ser aberta, não contenha nada além do eco da sua própria solidão. Entretanto, ele aprenderá com cada pedaço de amores perdidos, com cada migalha de sonho adiado, com cada sopro de saudade contida. O resto não interessa.
No fundo, no furto dessas malas, Miguel Arruda esquadrinha por algo que falta na sua própria história. Porque cada mala, na sua essência, é um relicário de Humanidade, um microcosmo de desejos, um caleidoscópio de frustrações e um palimpsesto de memórias. Nesses gestos aparentemente ilícitos, nada mais temos do que um curador involuntário de vidas, de todas as vidas que ele nunca viveu. Miguel Arruda não é um reles ladrão; é um arqueólogo do efémero, escavando em malas alheias os estilhaços da própria incompletude.
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Deliciam-me mais os profetas da desgraça do que os arautos da esperança. Há algo de magnético em quem, armado de pena ou verbo, anuncia o caos como um comerciante de banha da cobra no meu Mercado de São José ou um vendilhão de quinquilharias na vossa Feira da Ladra. Não é que me falte simpatia por um Bloch, mais as suas utopias de um amanhã ideal; por um Rousseau, mais o seu contrato social que redime o homem moderno; ou por um Marcel, e mais o seu amor humano como antídoto contra o desespero – mas há uma certa majestade sombria em Hobbes, com o seu Leviatã a triturar liberdades; uma certa gravidade lúgubre em Schopenhauer, que fez das cegas vontades o motor do sofrimento universal; ou mesmo uma certa altivez tenebrosa em Nietzsche, que, proclamando a morte de Deus, nos legou a necessidade de criar sentido num universo vazio.
A verdade, minhas graciosas leitoras e veneráveis cavalheiros, o pessimismo é mais convincente do que o optimismo. Afinal, o desgraçado que tropeça, e cai, tem a gravidade como aliada; já o esperançoso que tenta voar, desafia Newton e os seus dogmas, e ademais se escaqueira, volta e meia, qual Ícaro, no empedrado da realidade. Se, na História, os arautos do colapso anunciaram catástrofes – muitas vezes concretizadas –, na Filosofia ofereceram-nos sempre uma doce melancolia, um antídoto contra o excesso de alegria que, amiúde, turva os olhos da razão.
Porém, ah!, sublime ironia, os profetas da desgraça raras vezes se revelam derrotistas em absoluto. Há, em si, intrinsecamente, nos seus lúgubres presságios uma oculta centelha de esperança. Por exemplo, quando Hobbes pintava, de forma austera, o homem como um lobo, murmurava uma redenção pelo contrato social. Quando Marx previa a luta de classes, vislumbrava também, a despontar no horizonte, um paraíso do proletariado. Quando Hannah Arendt, traçava um diagnóstico implacável sobre os totalitarismos, desvendando a banalidade do mal, sonhava com a resistência como redenção da Humanidade contra a apatia moral.
Destarte, os melancólicos visionários resguardam no bolso um sonho envergonhado de salvação – como quem, prevendo tempestades, secretamente leva um guarda-chuva na esperança de, enfim, poder dar conta do recado.
Ora, se até os filósofos, nos seus extensos e densos tratados, revelam essa dualidade entre a desgraça e a redenção, o que diremos dos jornalistas? Esses modernos agoureiros que, com teclados em riste, anunciam o juízo final em directo, embora escondendo um brilhozinho nos olhos, porque, para eles, o apocalipse é uma mercadoria.
Os jornalistas são, nos tempos hodiernos, as Cassandras de antanho, mas escrevendo agora textos escatológicos, cheios de metáforas vulcânicas e de previsões de derrocadas iminentes. Porém, ao pintar o caos, buscam redenção nas vendas de assinaturas ou nos gráficos de audiência, e sem o peso trágico de qualquer maldição. Enquanto Cassandra era ignorada na sua clarividência, os jornalistas da calamidade são amplificados por cliques, partilhas e manchetes. Não é a verdade que os move; é a economia do pânico.
Mas – ah, ironia das ironias! –, no fundo do seu ser, eles não desejam o fim do mundo. Não, nanja, nunca! Eles querem, sim, o mundo à beira do abismo, suspenso, sem cair. Que proveito lhe daria um apocalipse consumado? O fim das receitas publicitárias, das transmissões urgentes, dos likes e das partilhas que alimentam o seu pecúlio. Convenhamos, uma ruína universal lenta e documentada é bem mais proveitosa do que um esvaziamento cósmico vertiginoso e sem papel.
O agora subdirector do jornal Expresso, Pedro Candeias, mostrou-se por estes dias, em letras, um belíssimo exemplar dessa nova linhagem de Tirésias contemporâneos. Não, não me refiro à cegueira literal, mas àquela outra, mais sofisticada, que, pré-anunciando um desastre – iminente ou improvável, indiferente lhe é –, logo congemina a oportunidade de o transformar em manchete.
Escreveu ele – e logo ele, que até há pouco andava a narrar pontapés na bola e os meandros de suas transações comerciais – uma pungente ode ao alarmismo apocalíptico internacional! Confesso que, ao lê-lo, senti-me transportado para uma assembleia medieval de oráculos vaticinando a queda iminente do céu.
E que espectáculo, este seu texto! Uma verdadeira sinfonia de exageros que faria o meu saudoso Quincas Borba gargalhar ao ponto de quase sufocar na própria filosofia. Imagino-o, ao ler tal peça, a exclamar triunfante: “Ao vencedor, as batatas… e ao Candeias, o pânico!” Sim, porque ali não há lugar para o tom sereno do cronista ponderado, somente para a verve inflamável de um fervoroso profeta..
Ora, garantiu-nos o Candeias – com a solenidade de quem descobre a pólvora explodida há séculos – que bastará Trump ser empossado na segunda-feira para que, vejam bem, “o mundo que acordar na terça-feira pouco terá a ver com o que se deitou no domingo anterior.” Um “facto”, segundo ele!
Ah, e que magnífica obra do engenho humano é a sua capacidade de se anunciar uma “nova ordem mundial”! Não importa que a História, essa senhora teimosa e sarcástica, já tenha discorrido com séculos de caos perfeitamente ordenado: cruzadas, colonizações, revoluções industriais, mundiais e digitais; sempre a mesma orquestra, de homens explorando homens, apenas com novos instrumentos a desfiar e a desafinar.
Nada que o cândido Candeias subverta e descubra no senhor Trump o inédito protagonista de uma ópera bufa onde o protecionismo é o prelúdio, o aquecimento global o refrão e as ameaças geopolíticas a batida do tambor. “Nova era”, diz-nos. Oh, e já não ouvimos antes variações desta sinfonia? Quando os Habsburgos dominaram meio mundo com a subtileza de um rinoceronte num salão de porcelanas? Quando Napoleão, em delírios cartográficos, decidiu que um mapa não era mais do que um rascunho à espera da sua assinatura, caneta numa mão, baioneta na outra? E Hitler? Ah, o que me faz o Candeias: descambei no desgraçado reductio ad Hitlerum. Pronto: vejamos então o Tio Sam, já um tanto pançudo e cheio de corantes, fast food e diabetes. Bem antes de Trump, não singrou o Tio Sam por mares nem calcorreou continentes para ajustar umas tacadas entre um embargo e outro, umas pancadas entre uma invasão e outra.
Para o Candeias, de que serve olhar para Woodrow Wilson, para Franklin Roosevelt e até para Ronald Reagan, que alternavam entre o escudo do isolacionismo e o florete do protecionismo, qual mosqueteiros indecisos? Ah, esses, claro, não eram magnatas imobiliários de frases curtas, mínimos substantivos e tweets bombásticos. E não havia, para lhes acender as chamas do ego, um Musk, essa figura que é o sonho húmido tanto dos capitalistas aventureiros como dos jornalistas paladinos na luta contra a desinformação que, amiúde, alimentam.
Mas Candeias, esse santo observador, acredita que cada nova fanfarra trumpiana inaugura um concerto jamais ouvido. E ignora, coitado, que, per saecula saeculorum, se têm tocado as mesmas melodias, somente variando os arranjos. O mundo, sei bem, não é senão um velho teatro, com actores renovados e cenários gastos.
Para o Candeias, tudo lhe é novo. A Gronelândia, coitada, diz ele, uma vítima trágica de “insinuações musculadas”. Já não bastava a Rússia, agora surge a ameaça norte-americana? A base aérea de Thule caiu de para-quedas em 1951, presumo. Imagino agora os fiordes em polvorosa a preparar discursos de boas-vindas com tradutores simultâneos para o peculiar dialecto trumpiano, porque encontrar lá uma população equivalente à da Póvoa de Varzim disseminada em território vinte e quatro vezes maior do que Portugal não será tarefa fácil para os marines.
Ah, e o Canadá, tão ordeiro, deve estar a polir as suas folhas de ácer por antecipação à suposta – que digo!, garantida! – invasão dos vizinhos norte-americanos. Quanto ao Canal do Panamá, se o Candeias diz que vai suceder, porque não? Nem sei como se esqueceu de nomear a intenção do Trump de cambiar o Golfo do México para Golfo da América. Acho uma excelente ideia para quem já teve um casino chamado Taj Mahal em Atlantic City e o vendeu depois ao Hard Rock Café…
Candeias é um ingénuo. Se Trump tossir, ele anunciará um surto pandémico de proporções bíblicas. Se Trump sorrir, ele verá nesse singelo gesto o prelúdio de uma nova praxis diplomática. Se Trump elevar a mão para compor a cabeleira ou coçar a cabeça, ele vislumbrará uma conspiração, talvez envolvendo piolhos radioactivos. Se Trump cruzar os braços, ele descortinará o arquétipo de embargos económicos que nem pastel de nata e o queijo de Nisa pouparão. Se Trump bocejar, ele proclamará o despontar de uma era de desmotivação global, um fenómeno tão profundo que Nietzsche, da tumba, virá denunciar. Se Trump errar o caminho para o quarto na Casa Branca, ele afirmará que o mapa dos Estados Unidos se redesenhou durante a madrugada pela secreta tinta de um cartógrafo mefistofélico. Se Trump, enfim…
Candeias, pobre Candeias, viverá da crença inabalável de que cada gesto de Trump será um decreto; cada palavra um édito; e cada silêncio, ah, cada silêncio, minhas esclarecidas leitoras e doutos leitores, a mais temível das estratégias. Se Trump um dia decidir ficar quieto, Candeias talvez venha anunciar o fim do mundo.
Na certeza do seu cataclismo, Candeias lançou, porém uma trágica pergunta de ouro: “O que aí vem?” Ninguém sabe”, respondeu, o tonto. Que candura, depois de tudo o que antes postulara. Que leveza de espírito, que irresponsável abertura ao desconhecido! Como se não estivesse estado, neste mesmo texto, a traçar cenários dignos de um Nostradamus em delírio. Ora, afinal acaba a dizer que ninguém sabe o que vem, quando garantiu antes que seria terrível. É a eterna arte do jornalismo sensacionalista: criar um vácuo de incerteza para ali semear o medo e regado a ansiedade.
Trump e Musk, na narrativa de Candeias, serão, neste cenário de efabulação e de especulação, os monstros míticos que habitarão o seu Olimpo editorial. E então, com a altiva pose de quem carrega a tocha da verdade, Candeias e o seu Expresso vão “oferecer contexto” aos leitores. Enquanto o fim dos tempos não chega ao mundo, aproveita-se o tempo para fazer negócio sobre o fim do mundo.
Eis, pois, a verdade nua e crua: os jornalistas da desgraça, como Pedro Candeias, têm um segredo quase freudiano. Na sua alma, não são arúspices do fim dos tempos; são gestores da calamidade. Querem o caos, mas que seja um caos lucrativo, como uma girândola em chamas perpétuas que atrai curiosos e vende bilhetes à entrada. Deles se pode dizer que são como Ícaros invertidos: não alçam voo rumo ao sol, descem à escuridão, como garimpeiros malabaristas explorando as profundezas da vertigem até ao tutano. Afinal, é do precipício que vivem, nunca da queda.
N.D.Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima segunda edição, a pretexto da trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional, o piparote de Brás Cubas desanca os ‘homenageadores’, dissecando uma taxonomia.
Dizia alguém com vivaz conhecimento, com aquela filosofia que somente a contemplação do túmulo inspira, que os mortos são o espelho mais cruel das vaidades humanas. Concordo, e sem pesar, antes sim com a serenidade de quem, do outro lado da vida, já alcançou a verdade sem as véstias do interesse ou do temor. Sim, minhas dilectas leitoras e meus ilustres leitores, os mortos têm a única qualidade que os vivos não podem jamais ostentar: a paciência infinita. Eles não protestam, não se queixam, não corrigem as palavras pomposas que lhes dedicam. São, portanto, os alvos perfeitos para a celebração tardia e o reconhecimento póstumo, essas moedas de pequeno valor com que os vivos compram a absolvição das suas omissões e negligências.
Vejo-os, a esses vivos, debruçados sobre lápides, declamando discursos solenes, regados às lágrimas mais dramáticas que o teatro jamais ousou representar. Vejo-os encomendando bustos, erigindo monumentos, publicando panegíricos e elegias que celebram as virtudes dos mortos com uma efusão que, em vida, se restringia a frias reverências ou, pior ainda, a silêncios calculados. E porquê? Porque é mais fácil amar o que não pode mais competir, mais fácil exaltar o que já não desafia, e mais cómodo honrar o que, debaixo da terra, bem calcado pelo tempo, sequer pedirá contas.
Caixão com as ossadas de Eça de Queirós, em Tormes.
Talvez seja essa, sim, a verdadeira utilidade dos mortos: alimentar o teatro dos vivos, essa encenação contínua de grandeza e moralidade que esconde, sob as cortinas de veludo, os fios de egoísmo e conveniência que realmente movem os actores. Não pensem, porém, que os condeno; até mesmo na cova reconheço que, sem esses fingimentos, a vida seria um palco vazio, e o homem (ou mulher), um actor (ou actriz) sem papel.
Eu, Brás Cubas, observo estas manobras com o regozijo de quem está definitivamente morto – e, ainda melhor, fictício. Por exemplo, não tenho ossadas que possam ser trasladadas de um lado para o outro, nem jazigos que possam ser reabertos para ajustes protocolares. A minha inexistência física protege-me das agruras póstumas que esta semana recaíram sobre Eça de Queirós, esse meu contemporâneo lusitano, que em vida foi mais incómodo do que celebrado, e que, depois, na morte se tornou um ícone nacional, passível de ser transportado como se os seus ossos tivessem adquirido poderes mágicos. Coitado do homem que só soube que ‘Os Maias’, essa celebrada epopeia doméstica com incesto à mistura, tinham tido segunda edição uns 13 anos depois da primeira, já ele andava a comer capim pela raiz há um ano no cemitério do Alto do São João, desagradado por não o terem metido em Verdemilho, nos arrabaldes de Aveiro.
E coitado depois, porque em 1989, os vivos decidiram retirá-lo de Lisboa e levá-lo para Tormes, junto à quinta que ele imortalizou n’A Cidade e as Serras. Parecia um destino apropriado, poético até, para um escritor que tanto exaltou a simplicidade e a ligação à terra. Mas a paz dos mortos é algo que os vivos não conseguem respeitar. Agora, metem as ossadas de Eça de Queirós, ou o que resta, na fria igreja de Santa Engrácia, de novo em Lisboa, a que chamam Panteão Nacional, depois de uma quezília familiar ter sido dirimida pelo Supremo Tribunal Administrativo que foi chamado a resolver o que fazer aos (poucos) restos (já) mortais do “Escritor GG”, conforme consta no acórdão divulgado publicamente.
GG, meu caro Eça! Que dirias tu!
E que dirias tu, também, dos 75 mil euros doados pelo Ministério da Cultura à fundação com o teu nome, convenientemente oficializado pela ministra Dalila Rodrigues, quando te foram buscar os fémures e a caveira a Tormes? Presumindo que, ao fim de 125 anos, te restem das relíquias calcárias uns cinco quilos, convenhamos que o preço do teu cacareco anatómico está bem valorizado…
Enfim, esta tua nova trasladação é tudo menos um evento cultural; é uma oportunidade, como tantas outras, para os vivos se enaltecerem enquanto fingem enaltecer os mortos. E, por isso, que melhor momento para reflectir sobre a tipologia dos políticos e outras vivas aventesmas e abutres que se dedicam a tais empreitadas? Sim, porque os mestres das vaidades têm estilos bem distintos de homenagear, dependendo do estado físico do homenageado.
E é assim com prazer que vos apresento, esclarecidas leitoras e nobres leitores, a minha taxonomia do Politicus Homenagiator.
1. Politicus Salutatus, o louvaminheiro do efémero
Comecemos pelo tipo mais previsível: o político que adora homenagear os vivos, desde que estejam de boa saúde e ainda possam retribuir com um sorriso ou, melhor ainda, com apoio público. O Salutatus é o rei das medalhas, dos convites para conferências e dos discursos em que mistura banalidades com frases atribuídas erroneamente ao homenageado.
Mas há um detalhe crucial: este tipo só homenageia quem pode retribuir – com um sorriso, um aperto de mão, ou, melhor ainda, com votos e apoio público. Não esperem que se aproxime de um moribundo ou de um defunto; para ele, a morte é demasiado deprimente e, pior, não rende boas selfies.
Se há algo que caracteriza o Salutatus é a incapacidade de lidar com a finitude. Ele é o político da celebração fácil e do instante. Por isso, raramente lê as obras dos escritores que enaltece ou reflecte sobre a profundidade das suas contribuições. Não, para ele basta um nome conhecido e a certeza de que a homenagem será bem recebida.
Se tivesse tido a oportunidade de lidar com Eça, ainda vivo, talvez o Salutatus o tivesse chamado para um evento literário onde proclamaria: “É um orgulho homenagear o autor de ‘Os Maias’, essa obra que tão bem descreve o amor de Pedro e Inês.”
Nos tempos modernos, certos Salutatus adaptaram-se às redes sociais. Agora, em vez de salões, preferem selfies. Publicam fotografias ao lado de celebridades ou de monumentos que nunca visitaram antes, legendando com hashtags como #Gratidão #Patriotismo #EuSouOMaior. Para ele, a homenagem é um espectáculo digital onde o número de likes substitui os aplausos.
2. Politicus Moribundis Praeparator, o exaltador crepuscular
Mais subtil, o Moribundis Praeparator espera que um fruto maduro esteja quase a cair da árvore para aparecer. Prefere agir quando o homenageado está em fase próxima dos pés para a cova. Este tipo tem um sentido apurado de timing: o moribundo ainda está vivo, mas já frágil o suficiente para não rejeitar a homenagem, mesmo que esta seja tardia.
Estamos perante o político que entrega medalhas e faz discursos emocionados com frases como: “Reconhecemos em vida o que a história eternizará na morte.” Ou então dos júris que entregam prémios literários ou comendas quando o homenageado já se entregou à tremida abnegação do senhor Parkinson ou à ternura distraída da dona Alzheimer. É sempre comovente ver a emoção fingida perante a a grandeza alheia, sobretudo quando esta já foi devidamente reduzida a uma sombra trémula ou a uma memória esfarrapada.
No fundo, o Moribundis Praeparator faz um investimento de risco zero: celebra-se um génio que já não pode protestar pela hipocrisia do tributo ou recusar a honraria por falta de estima ao emissor. Afinal, nada como o declínio físico ou mental para tornar qualquer talento ainda mais palatável aos discursos engravatados e às ovações bem-comportadas.
3. Politicus Cadavericus Calidus, o abutre oportunista
Este é o abutre mais ágil, que se atira à vítima mal o coração pára de bater. Assim que o último suspiro é dado, o Cadavericus Calidus entra em acção. Não perde tempo, porque sabe que a memória dos mortos tem prazo de validade e deve ser explorada enquanto ainda está fresca na mente do público. Por isso, corre a vigílias e a cerimónias fúnebres, encomenda flores, esboça elogios póstumos e, entre soluços ensaiados, ainda encontra tempo para sugerir um busto ou uma rua com o nome do falecido. Para ele, a morte é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.
Mas não vos deixeis enganar: por trás do sorriso contrito e da voz embargada, há um estratega. O Cadavericus Calidus sabe que um tributo no momento certo é ouro em relações públicas, pois quem ousaria criticar um homem que presta honras a um defunto? Melhor ainda se o homenageado tiver sido, em vida, um opositor ou um crítico: nada como a clemência póstuma para encerrar contendas ou pavimentar a própria imagem com as lágrimas dos outros.
E se o morto for uma figura ilustre? Ah, então é uma festa! Discursos inflamados sobre “legados eternos”, promessas vagas de “não deixar a memória apagar-se” e, claro, a inevitável foto ao lado do caixão, com aquele olhar perdido que mistura saudade e ambição. No fundo, a morte não é o fim; é o princípio de uma excelente oportunidade.
4. Politicus Trendycus Funeraris, o caçador evocativo
Este tipo é o camaleão das homenagens. O Trendycus Funeraris não escolhe os mortos pelo seu legado ou importância, mas pela popularidade que granjeiam em determinada época. Ao perceber que alguém já esquecido se tornou novamente relevante – seja por um filme, uma reedição de obras ou um centenário –, rapidamente associa o seu nome àquele vulto.
O Trendycus Funeraris é um leitor ávido… de resumos. Por exemplo, nunca leu ‘Os Maias’, mas adora citar “Portugal é um país admirável!”, mesmo se tal frase nunca tenha sido escrita pelo Eça. Ele aparece em cerimónias culturais com um ar reflexivo, segura livros para as câmaras e, em discursos, fala de “imortalidade” com a desenvoltura de quem confunde eternidade com um mandato de quatro anos.
Por vezes, promete uma placa, uma rua, um busto – e quando a poeira da relevância se assenta, os mortos retornam à penumbra do esquecimento, enquanto o Trendycus Funeraris segue em busca de outro defunto que possa lustrar a sua própria glória. Se por um acaso, a placa, a rua e o busto se concretizam, o dinheiro vem do povo, mas o seu nome é que surge associado – não como um mecenas, mas como o grande benfeitor que “jamais esquece os grandes nomes da nossa História”.
Não vos espanteis, por isso, se o encontrardes a exaltar um autor de quem nunca ouviu falar ou a defender a “importância da cultura” enquanto tropeça num verso de Camões. Para ele, o acto de homenagear é um palanque, uma vitrine, um trampolim. E assim, transforma os mortos em degraus para sua própria imortalidade pública. Por vezes, espatifa-se no ridículo, podendo até enviar votos pessoais de sucesso editorial a escritores fenecidos há uma centúria.
5. Politicus Ossiphagus, o profanador cerimonial
Finalmente, o mais perigoso: o Politicus Ossiphagus. Este não se contenta com homenagens simbólicas; ele precisa de mexer, literalmente, nos ossos. Não está interessado em monumentos, discursos ou memórias; ele quer ossos. Abre covas, parte lajes, escancara jazigos, e tudo com ânimo solene de grande obra cívica. Para ele, desbravar os esconsos esconderijos onde repousam os restos de um morto ilustre é como picaretar uma mina de ouro – ou, pelo menos, assim parece.
Assim, no caso do Eça, os ossos são como uma relíquia sagrada, mas não no sentido espiritual – são uma oportunidade de brilhar no palco da política nacional. Ele não se importa que as relíquias do escritor até tenham encontrado repouso em Tormes, junto à Natureza que tanto exaltou, ou que melhor ficariam em Verdemilho, como era seu desejo. Para o Ossiphagus, os quereres ou a paz dos mortos é secundária ou terciária; o que importa é a pompa, o desfile, a oportunidade de pronunciar discursos vazios sobre a “grandeza nacional”. Se os ossos fossem capazes de protestar, o Ossiphagus ainda assim os moveria – e chamaria a isso “dever cívico”.
Ah, o Politicus Ossiphagus! Que bela ironia encarnada: aquele que, na tentativa de elevar os mortos, acaba por descer à mais grotesca das vaidades. Não basta, para ele, transferir o crânio, a mandíbula, as vértebras, as clavículas, as escápulas, o esterno, as costelas, os úmeros, os rádios, as ulnas, a pélvis, os fémures, as tíbias, as fíbulas, as falanges, das mãos e dos pés, os metacarpos e os metatarsos – ou o que restar. É preciso transportar também o peso do seu próprio ego, embalado, em mil cuidados, por enternecedores discursos e poses para a posteridade. Afinal, que outro gesto mais simbólico do que o de remexer nas entranhas do passado para assegurar o futuro da sua própria reputação? Enquanto proclama que “a História o exigia”, ou que “o Eça é do país inteiro“, não percebe que o único exigente ali é o espelho onde contempla a sua glória, e os ossos que traslada são meras marionetes neste teatro de farsas grandiosas.
E assim termino esta galeria de figurinhas e figurões que tanto lutam para celebrar os mortos, mas raramente para os compreender. Felizmente, sendo eu um morto fictício, não corro o risco de cair nas mãos de nenhum destes tipos. Quanto ao Eça… bem, sempre foi homem pacífico; de contrário, pegaria numa das suas tíbias e seria o primeiro defunto a descer do pedestal literário para ajustar contas com esses aduladores tardios. Imaginem a cena: Eça, elegante mesmo na sua ossada, brandindo a tíbia como um espadachim, a pôr em fuga políticos e oportunistas que, sob o pretexto de o homenagearem, usam-no como trampolim para suas próprias vaidades. Seria, sem dúvida, um momento digno: o duelo póstumo entre o autor e os arautos do elogio vazio.
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima primeira edição, especialíssima, também por ser a primeira do ano de 2025, o piparote de Brás Cubas vai para João Vieira Pereira, “o director do mais importante jornal português”, que o vulgo conhece por Expresso, que concedeu público raspanete à sua redacção, enquanto espraiava os seus estranhos conceitos democráticos condimentados com erros gramaticais.
Ora bem, donzelas e cavalheiros, leitores fugazes e transitoriamente evanescentes desta crónica da minha eterna posteridade, permitam-me narrar um curioso episódio do já distante fragmento remanescente do ano precedente ao terminal primeiro quartil do século XXI. Ou, traduzindo para os menos atreitos a floreios literários e mais inclinados à prosa das horas comuns, a tragifarsa desta última sexta-feira saída do prelo das oficinas do Expresso.
Seja como for, para não perder o fio à meada, invoco aqui, neste meu texto, as reflexões do insigne João Vieira Pereira, aquele mesmo homem que, sentado no púlpito do mais importante jornal português – título esse que, a julgar pela pompa com que o ostentou no seu editorial, deve ter sido forjado em bronze e encomendado a Vulcano –, decidiu, com o zelo de um mestre-escola vitoriano, ou da professora primária munida da conveniente menina-dos-cinco-olhos, aplicar um raspanete à sua redacção. E não quis assim proceder nos corredores discretos de Laveiras, mas logo em tribuna pública, em letras impressas na pretérita edição do semanário, para assim todos saberem que as reprimendas devem ser executadas com a arguta eloquência de um Cícero e a solene oratória de um Bossuet.
João Vieira Pereira, director do Expresso
Ah, como sempre invejei a destreza cénica destes sumos sacerdotes da suprema sabedoria, que, do alto de cátedras erguidas pelo ego, disparam reprimendas com a confiança de quem acredita ter descido do monte Sinai com tábuas de verdades eternas.
Quanto a mim, que careço de semelhante palco, atrevo-me a confessar que, se alguma vez o tivesse, provavelmente me excederia em adereços, donde até considero a humildade do João: eu usaria uma toga romana, para dar ainda maior autoridade, uma partitura de latinismos para impressionar os incautos e, quem sabe, uma harpa tocando ao fundo para sublimar o momento a um patamar divino. A glória deve ladear-se sempre de uma pitada de pedantismo.
Mas deixem-me entrar no caso. O nosso João, impoluto e zelador das virtudes democráticas – ou assim se julga, não o contrariemos –, mostrando-se ofendido nos seus brios jornalísticos, desferiu um anátema sobre os pobres redactores do Expresso que cometeram a imperdoável transgressão de, puxando mal ou bem pelas meninges, escolher Ruben Amorim, um treinador de futebol, como figura nacional. Diz ele, em tom grave e categórico, que tal escolha foi um “erro” e que o verdadeiro eleito (ou seria elegido? Já lá vamos…) deveria ter sido Luís Montenegro.
Ora, argumenta João Vieira Pereira, não é este o mesmo Montenegro que “decidiu o aeroporto” e “acantonou o Chega”, coisas tão grandiosas? E já agora, não é este o mesmo homem que conseguiu transformar a demolição de um casebre numa reabilitação de casarão de seis pisos, façanha que lhe poupou umas centenas de milhares de euros, enquanto em simultâneo o entronizava como habilidoso especialista em semântica? Imaginem só, leitores, que herói grego temos aqui! Ao pé disto, Ulisses parece-me um mero burocrata, Péricles um amador em estabilidade política, e Sófocles um aprendiz de escriba para relatar tamanhas façanhas.
Agora, digo-vos com a franqueza de quem nunca teve paciência para os artifícios da política: João Vieira Pereira é um bufão disfarçado de jornalista. E digo mais, com o desassombro de um morto que não teme retaliações: este homem tropeça na própria língua com a mesma facilidade com que tropeça na lógica. Porque, donzelas e cavalheiros, sigam-me lá: que jornalista, de tão pedante, não sabe que, no contexto em que escreveu, o correcto é escrever ‘elegido’ e não ‘eleito’? Ah, se Camões o lesse, choraria lágrimas de sintaxe; e se o jesuíta Anchieta o visse, reescreveria a sua ‘Arte de Grammatica da Lingoa mais usada na costa do Brasil’, intitulando-a ‘Manual de estilo e descuido: como criar erros com autoridade’,
Aliás, se é para reformular a língua ao gosto do João, porque parar por aqui? Sigamos a lógica: se “ter elegido” passa a “ter eleito”, então acho bem que alguém “ungido” passe a ser “unto”. Sim, unto! Porque não? E que destino glorioso seria o desse unto se, maturado (ou será maturo?) no tempo, virasse presunto. Nem mais, João: não será esse o destino inevitável de quem submete a gramática ao jugo da vaidade? Um presunto redaccional, bem curado pela arrogância e temperado no estranho espírito “construtivo” que tanto apregoas.
Mas não é só na gramática que João patinou. Ou se destrambelhou. Não, não. Num gesto digno de um Nero editorial, ele garantiu que vai ‘melhorar o processo democrático’ das escolhas das figuras do ano para “reduzir os riscos de tal [uma escolha diferente da do director] voltar a acontecer”. Traduzindo: quer o João mudar as regras do jogo, porque não gostou do resultado. Diz ainda que a democracia directa, às vezes, “não elege os que merecem ganhar”, que aliás sucedeu com o António Costa, um dos seus favoritos a figura do ano, por ter sido eleito (aqui é ‘eleito’, João) para o cargo de presidente do Conselho Europeu, uma sinecura equivalente a mestre de cerimónias bem pago.
Ora, João, já dizia quem nunca a teve, que a virtude está em não ter virtude alguma. Mas que democracia é essa que só te serve quando te agrada? Serás tu, afinal, o Rousseau de Laveiras, pregando uma vontade geral que tenha obrigatoriamente de coincidir, para ser perfeita, com a tua?
Transcrição seleccionada no mural do Facebook do próprio Expresso para expandir o ralhete.
Ah, minhas queridas donzelas e meus sapientes cavalheiros, o tom deste editorial do João Vieira Pereira é de uma pompa e presunção que nem Luís XIV em dia de banquete… João lamenta que Ruben Amorim, um “efémero”, tenha vencido Luís Montenegro, o “estrutural”. E ainda clama, num rasgo de magnanimidade, que António Costa também teria sido uma escolha aceitável.
Permitam-me discorrer brevemente sobre esta curiosa noção do ‘João do Expresso’, que, com superciliosa empáfia, tão bem ilustra o mundo da inflada soberba e das gramáticas ao sabor da conveniência: a de que o “estrutural” é obra de políticos, enquanto o “efémero” é apanágio daqueles que não ousam tingir as mãos no barro das urnas. Que teoria tão sublime! Tão requintadamente pedante, este simplismo de dividir o mundo em categorias de permanência do feito consoante o título do ofício.
O político, essa criatura divina aos olhos do director do Expresso, não constrói apenas obras, constrói “estruturas”. Não importa que o aeroporto se limite a ser decidido num guardanapo, ou que o Orçamento seja votado para durar menos do que uma maratona de telenovela. Não, essas são “realizações estruturais”, porque nascem do augusto teatro parlamentar ou na sumptuosa mansão governamental, onde o político distribui decretos como quem dispersa migalhas aos pombos da praça.
Já o não-político, coitado, está condenado à efemeridade, à futilidade, ao reino das coisas passageiras. Ruben Amorim, que ganha títulos e galvaniza milhões de desgraçados que andavam à míngua de alegrias por não serem benfiquistas, jamais poderá aspirar a ser “estrutural”, porque lhe falta o atributo essencial: a capacidade de transformar a banalidade em discurso e o discurso em currículo. Ora, que interessa ao mundo ganhar um campeonato, quando se pode, em vez disso, decidir o destino de um aeroporto que será concluído no dia em que o perneta Saci cruzar as pernas? Que graça tem treinar grupos de homens para jogos de estratégia de milhões, quando o verdadeiro feito é “acantonar o Chega”? Ah, leitores, e jornalistas do Expresso, percebam a tese do João Vieira Pereira: a efemeridade é o destino dos pragmáticos, enquanto a estrutura é o legado dos retóricos.
E é assim, nesta lógica ‘pereiravieirana’, que os “estruturais” se eternizam nos anais, mesmo que o único “cimento” da sua obra seja a vaidade, enquanto os “efémeros” são relegados à poeira dos ventos, não obstante o peso real das suas conquistas. Dizem que, em tempos, a História era somente escrita pelos vencedores, mas talvez agora haja quem, como João Vieira Pereira, queira que seja lavrada com canetas douradas e púlpitos erguidos pela presunção de directores de estirpe duvidosa.
Que visão do mundo terá este director do Expresso que acha que travar “a contestação dos polícias, médicos e professores” com os impostos dos contribuintes, que “decidir um aeroporto” a ser começado no dia de São Nunca à tarde, e que aprovar um Orçamento que é votado no Parlamento, são feitos mais dignos de imortalidade do que ganhar campeonatos e contratos milionários? Para o João, a posteridade só é válida se passar pelo crivo da sua singular caneta, a única capaz de exarar decretos sobre as figuras do ano, como se a Imprensa fosse a História. Quem sabe, no íntimo, João Vieira Pereira não se veja como o verdadeiro herói nacional, a especial criatura capaz de discernir quem deve seguir para o panteão. Aliás, Luís Montenegro que se cuide; talvez o próximo editorial seja para corrigir outro “erro”: a ausência do próprio João Vieira Pereira na lista das figuras incontornáveis de todos os tempos.
Ah, como eu gostaria de assistir ao momento em que ele perceba que a História se escreve com tinta de gente comum, e não com o verniz da arrogância.
E quanto a Ruben Amorim, deixo aqui um elogio ao treinador por, com a sua saída para Manchester, não só ter desestabilizado o Sporting como também as certezas do João Vieira Pereira. Porque, no fundo, o verdadeiro “efémero” desta história é a desmedida presunção do director do Expresso, que, na sua ânsia de parecer o mais sábio, conseguiu apenas parecer o mais tolo. Não havendo nada mais patético do que um homem que desconhece os próprios limites, neste seu editorial revelou-se o perfeito exemplar do asno erudito: aquele que sabe o suficiente para parecer inteligente, mas não o bastante para evitar o ridículo.
E assim encerro esta crónica inaugural de 2025, prometendo regresso frequente, porque desta eternidade, que pedia descanso, ainda mantenho um inexplicável fascínio pelo triste e divertido teatro humano, onde a vaidade é perene, e fugaz o bom senso. Afinal, que graça teria a eternidade sem daqui assistir aos egos inchados com balofa autoridade, aos pedantismos que se vestem de sabedoria, às presunções que tropeçam na própria lógica, às ignaras burrices coroadas de títulos, às solenidades que declamam vacuidades como se fossem oráculos, às certezas que se desmoronam à primeira contradição, e aos delírios de grandeza que só a vaidade humana pode produzir.
Que outra infinita temporalidade poderia oferecer-me o prazer de assistir, com o distanciamento seguro de quem já não teme o ridículo, ao desfile tragicómico da vaidade daqueles que, na ânsia de se mostrarem superiores, acabam por expor, em toda a sua glória, a pequenez que tentam ocultar? Não há maior espectáculo; e, por isso, prometo regressar ao longo deste ano para mais crónicas sobre farsas sublimes.
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
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Se vós, como vivos, ainda não chegastes a essa conclusão, terei de ser eu a vos dizer: a utilidade, a futilidade e a inutilidade são os três estádios metafísicos do propósito humano, irmanados como actos de uma peça que nunca chega ao aplauso final.
A utilidade é, na verdade, uma ilusão, a ilusão primordial, a máscara dourada que usamos para justificar a nossa presença no palco da vida até cair o pano. É somente o pretexto do relojoeiro para ajustar engrenagens, do filósofo para ajustar ideias, do político para ajustar promessas, e também orçamentos – embora nesta última tarefa se confunda amiúde a utilidade com a oportunidade. Como já bem sabia Epicuro, a utilidade é um conceito fluido: aquilo que serve ao efémero raras vezes serve ao perene, e a roda, girando para um lado, arrasta inevitavelmente o outro para trás.
Já a futilidade é a utilidade transfigurada pela vaidade a caminho da inutilidade. Faz questão de se enfeitar de propósitos enquanto se entrega ao vazio. É a diligência do pássaro recolhendo palha para um ninho que jamais usará, ou do homem que, carregando livros, finge sabedoria sem os abrir.
Já a inutilidade é o estádio sublime e filosófico do existir, que, como uma estátua de mármore, existe apenas para existir. Muito afastado de ser lastimável, a inutilidade transcende as ansiedades, enquanto contempla o futuro e o absurdo com um sorriso sereno. Tantas foram as figuras ao longo da História comprovando que somente o inútil está livre do fardo de errar em nome de algo maior.
Pensemos em Diógenes, que habitava um barril e se ria dos poderosos; ou em Oblómov, que, na sua inacção gloriosa, expunha as falácias da diligência vazia; ou ainda em Bartleby, o escriturário de Herman Melville, que, com o seu lacónico “I would prefer not to”, desarmava a máquina burocrática, recusando-se a participar na engrenagem de uma sociedade que o consumia; ou até em Hamlet, cujo tormento metafísico o levou a preferir a hesitação à acção, descobrindo na contemplação do ser e do não ser o absurdo das escolhas humanas.
Todos, mesmo se de forma diferente, demonstraram que a inutilidade, longe de ser um defeito, pode mesmo ser uma forma de resistência ao ridículo da busca incessante de propósito. Assim, enquanto o mundo gira, apressado e distraído, o inútil permanece um observador imóvel da vaidade universal, e é nesse paradoxo que reside a sua força.
E não será a utilidade, afinal, uma ilusão criada para justificar a roda das conveniências? Aqueles que tentam ajustar o mundo às suas engrenagens raramente percebem que a verdadeira sabedoria está em reconhecer a beleza do imutável, do que não necessita de se justificar para continuar a ser. O inútil, como o mármore intocado, desafia o tempo ao não buscar a aprovação dele. Assim, mesmo que o resto do palco se desmorone, ele permanece — quieto, eterno e, por isso mesmo, superior.
Desta sorte, a lusitana política e a sua ultramontana burocracia vieram, por estes dias, sacudir o meu mais sublime e nobre estado de ocupação improdutiva, isto é, o descanso, por mor da nomeação de Hélder Rosalino, outrora um ilustre ocupante de uma posição permanente no Banco de Portugal, para a sinecura de secretário-geral do Governo, sendo que o debate sobre quem paga a mercearia do senhor acabou por eclipsar a dúvida metafísica sobre quanto custam, afinal, os desvarios da Nação.
Comecemos, por isso, com uma reflexão simples, mas fundamental: Hélder Rosalino é um homem útil? Não me refiro à utilidade óbvia de uma chaleira onde se ferve água ou de um cão que guarda a casa, mas à utilidade mais elevada, àquela que justifica a existência de certas figuras que transitam pelas engrenagens do poder. Não me parece.
Se Rousseau nos ensinou que a sociedade cria desigualdades artificiais, talvez possamos afirmar que também inventa utilidades imaginárias, preenchendo cargos que, mesmo vazios, continuam a existir como monumentos à própria vaidade e à validade do sistema. E Hélder Rosalino, como provarei com a minha tese, ou dissertação, é somente o último mártir deste culto à utilidade fantasiosa, fruto de futilidades que levam à inutilidade, ligada sempre aos contribuintes, que tudo pagam.
A filosofia utilitarista, que tanto encantou Bentham e Mill, deve ser aqui convocada como uma musa caprichosa. Afinal, sobre as questiúnculas da escolha e do salário do doutor Rosalino, os argumentos do Governo de Luís Montenegro nunca se centraram naquilo que ele produzirá, mas naquilo que se poupará. Ora, desde os romanos, que introduziram o conceito de utilitas, sabemos que a utilidade é aquilo que serve para alcançar um fim. Ora, aqui, o fim, ao que parece, não é outro senão a perpetuação de um sistema onde o Estado se alimenta da sua própria lógica circular. Hélder Rosalino é útil porque, sendo inútil no Banco de Portugal, passa a sê-lo no Governo, sem que ninguém, em momento algum, questione a natureza intrínseca da sua utilidade.
Transportemo-nos à Grécia Antiga, à ágora onde Sócrates inquiria: “De que serve um homem, senão para aquilo que melhor sabe fazer?” Se Rosalino não deixa lacunas ao sair do Banco de Portugal, e se, por outro lado, o cargo de secretário-geral do Governo poderia ser ocupado por alguém que auferisse muito menos, então a pergunta de Sócrates reverbera per saecula saeculorum: qual é, afinal, o real valor deste homem? Será ele um moderno herói do saldo orçamental, ou apenas mais uma peça deslocada no xadrez burocrático, cujo movimento é justificado pela conveniência de quem o manipula?
Ah, mas Luís Montenegro não deseja que o seu povo se perca em mesquinhezas terrenas, próprias de almas que jamais se elevam ao sublime horizonte da retórica oficial. Afinal, há uma certa elegância em transformar este sofisma magistralmente dissimulado numa retórica da poupança, um clássico exemplo de petitio principii. Rosalino impõe-se, ou é imposto, não pela sua incontestável utilidade passada, pela sua inequívoca utilidade presente e pela sua inevitável utilidade futura, mas pela graça de uma heroica poupança.
À primeira vista, a argumentação oficial ostenta-se como uma obra-prima de lógica. Pena ser uma lógica tortuosa.
Ao deslocar Rosalino, diz o Governo, evitam-se dois salários: o que seria pago a um novo secretário-geral e o que ele continuaria a auferir no Banco de Portugal. Assim, só haverá um, mesmo se principescamente pago. O vosso Luís Montenegro quer-vos crédulos, deseja que acrediteis que há uma poupança transferindo um encargo do orçamento do Banco de Portugal (independente do Estado, e até lucrativo) para o Erário Público, esse poço sem fundo que todos vós, contribuintes portugueses, alegremente alimenta. Que truque de prestidigitação! Que economia de narrativa! É como transferir um vaso de cristal rachado de uma sala para outra, esperando que, sob uma nova luz, brilhe como um rubi ‘pigeon blood’.
E aqui, invoco Maquiavel, que nos ensinou que os governantes, para se manterem no poder, devem mascarar as suas decisões com o véu da necessidade. Nada mais conveniente do que apresentar Hélder Rosalino como a solução ideal – não por ser o melhor homem para o cargo, mas porque já é um custo que existia. A isso chamaremos a virtù da poupança: o talento de transformar o inevitável numa virtude.
O astuto florentino, por certo, ficaria deliciado com esta lusitana intriga moderna, onde os interesses do Estado se confundem com os interesses individuais, e onde a necessidade de justificar decisões leva à invenção de realidades paralelas. Na verdade, a contratação de Hélder Rosalino para a secretário-geral do Governo não é o problema; ele personifica sim um sistema que vive da sua própria inércia, perpetuando cargos, salários e justificações que desafiam qualquer raciocínio padronizado.
O primeiro-ministro, ao defender que a utilidade de Hélder Rosalino no Governo é única porque não se encontraria melhor – e por isso o foi buscar ao Banco de Portugal – , comprova a inutilidade do dito, porquanto o Banco de Portugal anunciou já prescindir da procura de quem o pudesse substituir. Portanto, onde o Governo vê um Rosalino absolutamente insubstituível, e assumirá um encargo de 15.000 euros? o Banco de Portugal suspira por se livrar do Hélder, alguém perfeitamente dispensável, poupando 15.000 euros.
Eis o paradoxo lusitano em toda a sua glória: um homem que, segundo o Governo, é o epítome da excelência administrativa, ao ponto de não se vislumbrar igual no país inteiro, revela-se, noutra instituição pública, como uma ausência que nada altera, um vazio reconfortante. É como se um violino Stradivarius fosse removido de uma orquestra sem que ninguém notasse a diferença – ou, pior, como se a orquestra até passasse a tocar melhor. É como o Princípio de Peter ao contrário.
Maravilho-me com esta lógica oficial, como esta obra-prima da contradição: o insubstituível do Governo é o descartável do Banco de Portugal. Que exemplo magnífico de como a utilidade não reside no que se faz, mas no sítio onde se é colocado! A carreira de Hélder Rosalino é, pois, um testamento vivo à arte da reciclagem institucional: uma espécie de ouro alquímico da Administração Pública portuguesa, que brilha sempre que muda de gaveta, mas cuja essência, quando examinada de perto, se revela um eco vazio do absurdo burocrático.
E no entanto, que importa este vazio da utilidade, se enche, afinal, o meu tempo com reflexões deliciosamente fúteis? Confesso, que a existência de Hélder Rosalino é, para mim, de uma utilidade paradoxal: serve como pretexto para celebrar a inutilidade, essa sublime e filosófica condição que liberta o espírito dos desvarios da acção. E assim, involuntariamente, o novo secretário-geral do Governo transcende a sua própria vacuidade e torna-se uma inspiração para este meu fútil, mas prazeroso, exercício de escrita, permitindo-se um irrefutável silogismo condicional: se a utilidade é uma ilusão, a inutilidade pode ser, por certo, a mais elevada das verdades, mesmo estando inundada de futilidade.
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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