Categoria: Correio Mercantil

  • Miguel Sousa Tavares em hábito de Torquemada com gravata Hermès

    Miguel Sousa Tavares em hábito de Torquemada com gravata Hermès


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Há sempre instantes na História — esse teatro cósmico (e cómico) onde os homens se convencem de que são deuses — em que surge alguém que, em nome da civilização, decide que é tempo de limitar a liberdade. Está visto que é a liberdade dos outros — não a sua. É uma velha tradição: Moisés trouxe tábuas para domar o caos; Platão sonhou com censores filosóficos para purificar a pólis; Torquemada queimou em nome da fé; Robespierre decapitou em nome da virtude; e, agora, no século da fibra óptica, temos Miguel Sousa Tavares, em Portugal, como o novo guardião da moral digital. O homem deseja, em nome da democracia, proibir o povo de falar nas redes sociais.

    O assunto é sério — e, por isso mesmo, hilário. No seu comentário semanal na TVI, o autor de Equador — essa parábola de sol e desvario — lamenta que o Facebook e as outras redes sociais estejam a “dar cabo do nosso modo de vida”, desbobinando números sobre o tempo que os seus patrícios desperdiçam em frente a ecrãs.

    A frase de Sousa Tavares é bíblica na ambição, mas doméstica na substância. Fala como se o Apocalipse estivesse aí e fosse obra de um programador de Silicon Valley, e o pecado original se chamasse scroll infinito. Para ele, o novo Lúcifer, em versão digital, é uma tríade formada por Mark Zuckerberg, Elon Musk e Donald Trump; e a maçã — símbolo eterno da perdição — é agora o smartphone, entronizado como ex machina diabolica, devoradora de dez horas diárias de dispersão e desatenção, que, em vez de cultivar o espírito, promove a ignorância. E também o insulto.

    Mas há nisto uma ironia deliciosa. Ou, melhor dizendo, duas.

    A primeira é mais mundana. O vosso Miguel teve um pai que, apesar de douto e eloquente, não enjeitava uns bons insultos ad hominem, lembrando os meus tempos em que certos fidalgos de paletó se batiam às bengaladas à porta do Grémio somente por vírgulas mal colocadas. Recordo-me, por exemplo, de um plenário de Janeiro de 1982 — verdadeira ópera bufa parlamentar — em que o “Sr. Sousa Tavares”, então deputado do PSD, se ergueu, inflamado, e bradou ao comunista Jerónimo de Sousa um sonoro “Olhe, vá à merda!”, seguido, na mesma golfada, de um “idiota!”, e logo depois de um “mandrião!”. E, não satisfeito, arrematou com um “Vá trabalhar, que foi aquilo que nunca fez na vida!”, coroando a tirada com um derradeiro “calaceiro!”, dito com o fervor de um padre em púlpito e a pontaria de um esgrimista. E quase me esquecia que, na arenga, lhe chamara antes “idiota!”.

    Não há gravações desse momento glorioso, mas o estenógrafo do Diário da República — esse beneditino da taquigrafia — deixou para a posteridade o registo fiel da diatribe, pontuando cada insulto com exclamações tão vibrantes que quase se ouve o tilintar das espadas verbais no papel.

    Trecho do plenário de 5 de Janeiro de 1982 onde o social-democrata Francisco Tavares ‘mima’ o comunista Jerónimo de Sousa.

    A segunda ironia é sempre mais subtil — e mais perversa —, porque é sempre em nome da razão que se ensaia o despotismo. A Europa — essa viúva elegante que vive de glórias passadas — parece agora disposta a trocar a sua liberdade pela paz morna da moderação algorítmica. Já não teme os bárbaros de fora, mas os bárbaros de dentro: aqueles que comentam sem licença, riem sem cátedra e insultam sem pedigree. E o vosso Miguel, apóstolo das boas maneiras, vem propor que se vá proibindo, “pouco a pouco”, as redes sociais — dos mais novos até aos mais velhos. Um toque de Torquemada, sim, mas com gravata Hermès.

    Eu, Brás Cubas, que vivi entre fidalgos e beatas, reconheço o tipo. Sousa Tavares é o reformador cansado, o democrata fatigado, que ama o povo desde que o povo não fale. Antes, o povo lavava no rio — agora, ele quer um povo que calava no rio digital. Sousa Tavares proclama acreditar no debate livre, mas apenas se moderado por ele. Deseja o pluralismo, desde que ninguém lhe atravesse o raciocínio com um erro ortográfico. Ei-lo com o espírito de Salomão — e a tesoura da censura em punho.

    A ideia de que as redes “estão a dar cabo do nosso modo de vida” é, aliás, de uma ternura arqueológica. É o lamento do aristocrata que vê o povo subir a escadaria — e repara, horrorizado, que já ninguém lhe beija o anel. Como se o insulto tivesse sido inventado por Zuckerberg, e não por Demóstenes! Miguel esquece que sempre houve sofistas, panfletários e imbecis — apenas mudaram de toga e de timbre. O anonimato de ontem chamava-se multidão; o de hoje, perfil. E se o insulto circula agora com mais velocidade, não é culpa do algoritmo, mas da multiplicação de bocas. A democracia é precisamente isso: o direito ao disparate.

    Mas eu compreendo-o. O medo é velho conhecido: é o mesmo que outrora fez os reis censurar a imprensa, os bispos condenar o teatro e os tiranos proibir a sátira. A cada revolução da palavra, surge um profeta do Apocalipse que confunde ruído com heresia — e Miguel Sousa Tavares apenas prolonga, com feição de tribuno de estúdio e exegeta de horário nobre, essa antiga linhagem do pavor esclarecido.

    Ah, mas há um detalhe encantador — e sintomático. O autor da prédica contra a desinformação e o insulto sem defesa é ele mesmo comentador residente de um império mediático que vive do ruído, do clique e da indignação programada. Sousa Tavares proclama-se defensor da verdade, mas apenas daquela que vem com teleponto e intervalo publicitário. Fala contra o veneno das redes sociais — essas que acusa de destruir o debate — ao mesmo tempo que usa o ecrã, sem contraditório, como púlpito pessoal e indulgência mediática.

    E mais: esquece que o vil boato — como aquela perfídia que o acusava de ter violentado a sua malograda esposa — não brotou das redes anónimas, mas da pena de um jornalista e das páginas respeitáveis de um jornal. Foi engendrado, não na sombra viscosa dos posts sem rosto, mas sob o brilho morno das redacções tradicionais, entre cafés servidos em chávenas de porcelana e colunas assinadas com o verniz da autoridade moral. Não nasceu de um algoritmo, mas da vaidade de um crápula impressa em chumbo.

    Ou seja, os insultos e as maldades mais insidiosas continuam a provir do mundo polido da imprensa de salão que hoje — e sempre — o acolhe, o incensa e o protege: esse círculo de cavalheiros de opinião que distribui injúrias com letra redonda e perdões com letra miúda. Miguel, que agora se horroriza com o tumulto das redes sociais, parece ter esquecido que a maledicência já era um ofício antes de o scroll ter sido inventado, e que o verdadeiro veneno sempre teve editor e revisão de provas.

    Enfim, há nisto uma simetria deliciosa: quem denuncia o caos das vozes é, afinal, quem teme perder o monopólio da palavra. Aquilo que atormenta Miguel Sousa Tavares não é o excesso de ruído, mas a perda do palco. E assim, entre invocações ao “continente do Da Vinci, do Picasso, da civilização grega”, o vosso Miguel pretende erigir-se em último bastião da ordem — para conservar a Europa como “farol da luz do Mundo” —, mas num estilo mais próximo do também europeu Torquemada, que, como se sabe, deu à luz do Mundo a claridade das fogueiras e a ternura das censuras.

    Eis o que eu, minhas irrequietas leitoras e inconstantes leitores, vejo do meu repouso subterrâneo: um mundo de velhos democratas que tremem perante o ruído dos novos. Aquilo que os inquieta não é o caos, mas a perda do monopólio da voz. Antes, as opiniões respeitáveis vinham em letra redonda, assinadas por nomes compostos e impressas em papel caro. Hoje, qualquer plebeu de teclado lhes responde. E isso, convenhamos, fere mais do que a ignorância — fere o estatuto.

    Se a Europa, como diz Sousa Tavares, é o continente da luz, talvez lhe conviesse não ficar tão fascinado pela sombra. Aquilo que propõe — controlar, limitar, proibir — não é defesa da civilização: é medo da liberdade. E a liberdade, como ensinou Spinoza, que não tinha perfil no Instagram, é filha do risco. E quem quer um mundo sem erro, sem maledicência, sem crítica, sonha com um cemitério — ordeiro, silencioso e bem administrado.

    Talvez por isso eu me sinta tão à vontade para falar do Além: este é o único lugar onde a liberdade já não incomoda ninguém. Aqui, todos são iguais, e ninguém se escandaliza com o que os outros dizem. Se Miguel Sousa Tavares quer salvar a civilização das palavras, talvez devesse experimentar a paz dos defuntos. Aqui, há silêncio, há ordem, há ausência total de redes — e até há algum espaço para a reflexão, embora sem audiência.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Relâmpago de salão: um ‘brief’ sobre a estupidez atrevida de Mafalda Anjos

    Relâmpago de salão: um ‘brief’ sobre a estupidez atrevida de Mafalda Anjos


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Por meu beneplácito, consenti que um defunto autor, dado a reminiscências filosóficas e a más inclinações literárias, execute hoje um serviço de utilidade pública: um tratado breve — brief, como agora se diz — sobre a divina arte de falar depressa, alto e pomposo, sem necessariamente dizer coisa alguma.

    A modernidade baptizou este rutilante fenómeno de lightning talk — mas que, entre a portugalidade, por esse ardor de tradução que tudo estraga e nada melhora, já se viu grafado lightening, que é clareamento de pele e nada tem de trovão. Assim avança a civilização na Velha Lusitânia: a galope, de perna trémula, vocabulário alheio e desastre infalível. Em tempos, seguindo Cícero e Quintiliano, a eloquência pedia pausa, ordem e substância; Luciano e Aristófanes advertiam contra a artimanha que disfarça o nada. Agora, porém, em culto de velocidade, a encenação vale mais do que a ideia: a nuvem serve de espectáculo e o relâmpago de foguetório.

    Inventou-se, pois, nos tempos hodiernos, o discurso que dura menos do que um bocejo, embora com mais efeitos que um laboratório de cosmética: insight, takeaway, call to action, storytelling, networking e um Q&A atirado aos ouvintes como quem dá milho aos pombos para disfarçar a pobreza do celeiro. Ali, não se cita Aristóteles — porque pesa. Cita-se o algoritmo — porque brilha. E, se for preciso, convoca-se a era da estupidez, mas com adjectivo envernizado: bold stupidity.

    Confesso que, sendo homem do século XIX e cavaleiro de certa compostura, tive a veleidade de crer que a eloquência era uma estrita moral do pensamento: quando a ideia faltava, impunha-se o silêncio. A modernidade resolveu esse escrúpulo com uma solução admirável: quando a ideia falta, fala-se inglês.

    Surge então, pois aqui, com graça de vitrina, Mafalda Anjos, dama do jornalismo de salão, que proclamou em cartaz vistoso — magenta de Pascoaes e roxo de procissão — a sua lightning — ou lightening, conforme a sorte do dicionário dos saxões — sobre “algoritmos e redes sociais na era da estupidez atrevida”. Notai: o atrevimento não mora no substantivo, mas no predicado.

    Não digo isto por malquerença. Eu, Brás Cubas, lavrado nos cânones do oitocentos, com gosto pela ordem e pelo juízo, fui educado para tratar as donzelas com candura, respeito e uma certa temperança. Acontece que as musas do presente, emancipadas e livres — sinal de progresso, que saúdo —, descobriram, com o resto da humanidade, um defeito tão dos homens quanto da democracia: a estupidez. E, como toda a paixão moderna, a estupidez vem-lhes, amiúde neste século, com suplemento: o atrevimento, aquele que infecta quem, tendo lido meia dúzia de papers em voz alta, resolve convocar o povo ao teatro para lhe ensinar o funcionamento da mente de Tântalo por meio de slides.

    Vede a cena, que se verá nas cercanias da antiga Collippo, banhadas pelo Lis e pelo Lena: Mafalda pousa angelicalmente on stage, sorri com decoro carismático e projecta o primeiro slide: “O algoritmo odeia-vos”. O segundo corrige: ««”Não — o algoritmo ama-vos, mas cobra”. O terceiro converte o algoritmo em entidade teológica: “O algoritmo prova-vos”. É a velha fatalidade das Parcas, agora baptizada machine learning. Entre uma buzzword e outra, falará de engagement — a forma polida de escravidão do polegar — e de branded content, publicidade com peruca, que muito ela usou na revista Visão. E com mais visão para o negócios, mesmo se falido, do que para o jornalismo.

    Enfim, se algum ateniense de boa memória ressuscitar na plateia, espero que siga ainda a tempo de se refugiar no tonel de Diógenes de Sinope. Eu, por mim, assistirei: sempre admirei os números de ilusionismo, ainda mais se expostos com timbre de tia de Cascais.

    Entre o relâmpago e um clareamento de pele há um E que se interpõe…

    Não me interpreteis mal. Há, sem dúvida, na ciência dos dados, uma bela gravidade pitagórica: em redes complexas, uma ordem de catedral; em algoritmos, verdadeiras rodas d’água intelectuais. Porém, aquilo que me diverte — e aqui começa a sátira — é a sua promoção a catecismo portátil, de quinze minutos e quatro bullets, onde tudo se resolve por decreto verbal. Chamai-lhe centelha dialéctica: ilumina por instantes para deixar o terreno mais escuro.

    É a economia da frase feita: ouvimos “curadoria de conteúdos” — que é escolher o que convém —, depois “narrativa” — que é opinião com sapatos de verniz —, a seguir “literacia mediática” — que ora é necessidade escolar, ora bengala para a ignorância de quem fala. E quando se chega à “estupidez atrevida” — nunca da palestrante, ora essa! —, o auditório suspira, reconhecendo-se a si próprio, mas logo se absolve com um aplauso. Enfim, nada mais católico do que a confissão e contrição de pecados que não se pretendem corrigir, com a bênção de Anjos — ou da Mafalda Anjos.

    Dir-me-ão que pego na dama em excesso. Não! Pego na moda — aquela mesma que transforma revistas em decks, prosas em keynotes e o antigo repórter em speaker. Tudo já se agrafou: os jornais, as consciências, as verbas e os adjectivos. Onde havia manchete, há branding; onde havia crítica, há partners; onde havia responsabilidade, há sponsorship. O jornalismo, que foi escola de paciência e de suor, tornou-se, por falta de leitores e sobra de plateias, um armazém de talks, podcasts e reels. E o que hoje se vende ao público, com lacinho e hashtag, é a promessa de um auto-diagnóstico: “Sois todos estúpidos; mas eu trago a cura em cinco tópicos.” Lembrai-vos de Swift, se é que o disse: quando um remédio vem com panfleto e riso, desconfiai do boticário.

    Sei que corro o risco de parecer um velho azedo, mal ajustado à electricidade desta vossa centúria. Pode ser. A idade passada em ossos conserva rancores, como certas garrafas que azedam com o tempo. Mas, se quereis um juízo honrado, dir-vos-ei que não me ofende a leveza — ofende-me a simulação da gravidade. Um lightning até poderia ser belo, mesmo na modernidade: um aforismo com pulsação, um epigrama com veneno, um apotegma com gravidade, um haiku de raciocínio. Mas não — aquilo que me desafina é a pompa lacónica: a sujeita veste estola para dizer um telegrama.

    “Mas é uma senhora, Brás Cubas” — diz-me um cavalheiro de bons hábitos. As senhoras, respondo, merecem o meu fino respeito, desde a Idalina que me negou um beijo até à Marcela que mo cobrou com juros, passando por Eugénia, flor triste e coxa, que me quis com inocência, e mesmo por Virgília, que me quis com elegância — e com marido. As senhoras ensinam-nos muito. Mas o respeito não impede o juízo, como o amor não suspende a lógica.

    Quando uma dama assume tribuna para catequizar o povo com relâmpagos, não se lhe negam flores — concede-se o contraditório. E este, que ora ofereço, diz apenas o seguinte: a “estupidez atrevida”, tão fácil de apontar nas massas, às vezes acomete o púlpito, até por ser doença antiga, insidiosa e persistente, típica da vaidade e da superciliosa empáfia. Já Péricles sabia que a popularidade é um espelho que engorda. E o remédio, creio, não é outro talk: é a velha disciplina da verificação, a humildade de aprender e um certo pudor verbal — virtude que desalinha hashtags e compõe discursos.

    Em todo o caso, concedo, enfim, que tudo isto pode ser implicância póstuma. Afinal, que direito tem um defunto de fiscalizar a gramática dos vivos? Nenhum. Mas, se me é lícito um conselho — conselho de quem já não teme perder leitores —, direi então à Mafalda Anjos: antes de subirdes ao estrado para explicar algoritmos ao mundo, baixai primeiro à razão.

    Se o propósito é pensar, poupai o magenta e a fanfarra; trocai o lightning por uma vela, que às vezes alumia mais. E, se o assunto for “estupidez atrevida”, começai pelo espelho. Não falha: é a única curadoria que conheço que melhora o conteúdo.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Depois das negras burkas, proíbam-se as peúgas brancas

    Depois das negras burkas, proíbam-se as peúgas brancas


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Diz-se que o homem se vestiu por pudor e a mulher por elegância. Mentem ambos. Vestimo-nos, desde o Éden, por vaidade — esse pecado original de boa aparência que a folha de figueira apenas inaugurou. Por isso, entre todos os artifícios da civilização, minhas refinadas donzelas e airosos cavalheiros, nenhum é tão enganador nem tão necessário como o acto de vestir-se. Há, de facto, uma arte — antiga, subtil e quase metafísica —: a de aparecer coberto ao orbe depois de vir nu ao mundo.

    E é uma arte, porque não se trata apenas de ocultar o corpo — as partes pudendas, as peles que cedem, as barrigas que crescem, as estrias que contam histórias, as rugas que delatam o tempo e as verrugas que o espelho nega —, mas de compor uma aparência que diga, sem dizer, quem se é — ou quem se gostaria que julgassem que somos.

    O vestuário é, na verdade, a mais diplomática das hipocrisias humanas: concede a nobreza que não se tem, a sobriedade que se finge e até a coragem que falta. Desde o primeiro pedaço de pele que o homem enfiou para fugir ao frio e à vergonha, vestir-se tornou-se um gesto civilizacional — a cortina que separa o instinto da decência. E, convenhamos, há nisso uma espécie de arte social, porque, tal como na pintura, o segredo não está apenas nas cores, mas na composição.

    Mas onde há arte, há sempre censura. E onde há censura, há sempre um legislador. Assim, desde os tempos em que o Egipto proibia o linho aos plebeus, a Grécia regulava o comprimento das túnicas das donzelas e a Antiga Roma reservava a púrpura imperial a César, que os governantes se meteram a costureiros da virtude. Na Idade Média, multiplicaram-se as chamadas leis sumptuárias — essas constituições do bom gosto impostas à força da pena e da forca. Proibia-se a seda ao mercador, o veludo ao aprendiz, o ouro à viúva. O cidadão podia ter alma livre, mas o tecido era vigiado.

    Os séculos passaram, e os alfaiates do poder foram mudando de toga e de coroa. No meu tempo — esse belo e hipócrita século XIX — o Brasil fervilhava de modas simultaneamente escandalosas e opressoras. As senhoras das famílias ilustres, apertadas em assassinos espartilhos de seda e cetim, com barbatanas de baleia, pareciam pavões a lutar contra a própria respiração. Havia quem desmaiasse à mesa do jantar, não de emoção, mas por falta de oxigénio. Já os cavalheiros, esses mártires da elegância tropical, desfilavam de casaca preta sob o sol de quarenta graus, com colarinhos tão altos que precisavam de bengala não por altivez, mas para equilibrar a asfixia.

    E o que não faltava eram escândalos: dizia-se que uma senhora que mostrasse o tornozelo cometia quase o mesmo pecado que Eva ao provar o fruto proibido. E sempre subia as escadas atrás de um cavalheiro, não por desvelo, mas por decoro — para que ele jamais vislumbrasse a curva do calcanhar. O pudor media-se em palmos de tecido, e a moral, em número de botões.

    Não espanta, pois, que o vestuário tenha sido sempre matéria de Estado e de confissão. Há quem creia que a alma se mede pelo carácter — mas eu, mais modesto, creio que se mede pela bainha. E foi talvez com essa sabedoria costureira que o vosso parlamento resolveu discutir a proibição da burka — essa tenda portátil de opressão feminina que, entre vós, é tão frequente quanto camelos na Serra da Estrela ou sinapses nos Passos Perdidos.

    As senhoras deputadas e os senhores deputados, ansiosos por servir a pátria naquilo que ela não pede, decidiram, em seu zelo progressista, erradicar um hábito inexistente, como quem espanta um fantasma por decreto.

    Em todo o caso, mesmo sendo raro em solo lusitano, admito que a intenção possa ser nobre, mas estéril. A burka, afinal, simboliza apenas a servidão da mulher, e proibir o símbolo pareceu aos deputados muito mais fácil do que abolir a servidão. Mas não deixa de ser curioso ver o parlamento, esse convento laico de vaidades e gravatas, erigir-se em árbitro da indumentária. Houve nisso um certo perfume de comédia, pois nada mais português do que legislar sobre o que praticamente nem existe.

    Mas, ora bem, se o Estado resolveu finalmente ocupar-se do vestuário português, então que persiga a coerência com coragem moral: que avance de vez para o Código da Decência Vestimentar da República Portuguesa, e que nele inscreva, com solenidade de alfaiate régio, todas as causas perdidas do bom gosto nacional.

    Comecem já pelo mais urgente: a proibição expressa das abundantíssimas peúgas brancas com sapatos escuros ou, pior ainda, sandálias — essa praga estética, resistente a séculos de civilização, mais ofensiva à harmonia social do que a própria burka. Depois, que se decrete o fim das camisas com logótipos ostentatórios, heresia moderna que confunde o cidadão com um cartaz ambulante. Que se pune também o uso de chinelos de dedo em contexto urbano — essa forma de descalce moral que ameaça o pudor das calçadas. E, já agora, por equidade, que se aplique multa a quem compareça a um jantar formal com fato completo e sapatilhas fluorescentes, em claro atentado ao equilíbrio do universo.

    Prevejam também um capítulo dedicado à indumentária política. Que os senhores deputados não se apresentem em plenário com gravatas berrantes, que perturbam a sobriedade da República; que as senhoras deputadas evitem o abuso da cor fúcsia e do brilho excessivo, para que o debate parlamentar não se confunda com desfile de moda. Cada sessão começaria com revista de traje — o Presidente da Assembleia, ou o secretário que manda beijinhos, a verificar decotes, punhos e bainhas —, antes de se passar à verificação da moral e da ordem do dia.

    E, para garantir o cumprimento das normas, instituir-se-ia uma Inspecção-Geral da Compostura Nacional, corpo de elite encarregado de fiscalizar a harmonia cromática da cidadania. Cá fora, o infractor apanhado em flagrante de mau gosto — seja por peúgas indecorosas, seja por t-shirt com frase pseudo-revolucionária ou metida nas calças — seria condenado a frequentar um workshop de etiqueta estética, leccionado por antigos modistas de Belém.

    Imagino já o entusiasmo público: marchas de correcção moral desfilando pela Avenida da Liberdade, bandeiras empunhadas contra o calção rasgado e o boné virado ao contrário. O Diário da República publicaria, a cores, o pantone oficial das gravatas patrióticas. E, em apoteose, celebrar-se-ia o Dia Nacional da Elegância Cívica — ocasião em que os portugueses, lavados e compostos, queimariam solenemente uma montanha de peúgas brancas em frente ao Parlamento, símbolo da purificação estética da nação.

    Dir-me-ão, elegantes leitoras e cavalheiros aprumados, que exagero — e não me zangarei, porque o exagero é o último refúgio dos lúcidos. Mas atentai: a História da Civilização pode ler-se, inteira, nas suas modas proibidas. Quando um país legisla sobre o tecido, é porque já perdeu o fio da sua própria coerência. Quem mede o véu hoje, há-de pesar o decote amanhã; e, um dia, talvez tente censurar a consciência. Entre uma burka e uma peúga, a diferença é apenas de gramagem: o impulso que as quer proibir é o mesmo — o de chamar emancipação ao paternalismo e civilização à mania de impor correcções aos outros.

    Deixem, pois, que o povo — mesmo as minorias — se vista como quiser, desde que o faça sem tutores nem catecismos. Que cada um exiba, com soberana inocência, o seu ridículo, as suas cores duvidosas, os seus pecados de moda e a sua santa liberdade. O verdadeiro traje nacional não há-de ser um uniforme nem uma burka, mas a desordem criadora de tudo o que se é, em conjunto — ou se finge ser. E, se ainda restar dúvida sobre a moral das aparências, olhem para o Parlamento: ali, o disfarce já dispensou o traje.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • A serena fúria de Luís Montenegro

    A serena fúria de Luís Montenegro


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    A morte, meus caros vivos, tem um encanto que não vem do requiescat in pace, nem do rumor dos arcanos, mas da perspectiva que concede. Visto de baixo, o mundo passa a ser uma álgebra de tontices; visto de cima, uma aritmética de disparates. Entre o túmulo e o firmamento, passa-se a compreender ainda melhor que o homem — esse bípede de vaidades inflamáveis — não foi feito à imagem de Deus, mas à semelhança de um barómetro: varia conforme o tempo e o vento.

    Dizia um certo sábio, talvez grego, que o homem, para se distinguir dos demais, quis parecer um animal racional. Mas eu, que já vi filósofos em lágrimas, generais em pânico e padres em apostas, inclino-me a pensar que se mede o homem — e qualquer donzela — não pela razão, mas pela turbulência das paixões que o atravessam. Na verdade, aquilo que separa o homem do boi não é a razão: é a retórica. O boi pasta, simplesmente, sem se emocionar; o homem, incapaz de se conter, pastoreia as suas emoções com argumentos.

    Passei parte dos meus longos ócios póstumos a estudar a zoologia sentimental — um trabalho de entomólogo moral, mais próximo de François de La Rochefoucauld do que de Charles Darwin — e cheguei à conclusão de que a humanidade se divide, não por classes sociais, mas por espécies espirituais, que variam conforme a proporção de emoção e motivo que trazem no sangue. A emoção é o fogo; o motivo, o pavio. E há quem viva a arder sem saber porquê.

    Permitam-me, pois, que vos apresente, plangentes donzelas e arrebatados cavalheiros, o resultado dessa investigação, baptizada com a solenidade que convém aos delírios científicos: Zoologia do Espírito Humano, em seis espécies — ou seis caricaturas, o que vem a dar no mesmo.

    Primeira espécie: os Racionais Emotivos. São aqueles que raciocinam chorando — ou bufando de indignação —, os filósofos de lenço e punho cerrado. Constroem silogismos entre soluços ou imprecações e citam Kant com os olhos húmidos ou as veias do pescoço túrgidas. A lógica deles é uma elegia com surtos de fúria; o raciocínio, uma ópera em permanente crescendo. Confundem clareza com comoção e julgam que o argumento só é verdadeiro se arrancar lágrimas ou gritos à plateia. São os discípulos tardios de Rousseau e de todos os sentimentalistas inflamáveis, que acreditam que a emoção é o selo da verdade e a lágrima — ou o berro — a prova empírica da alma.

    Segunda espécie: os Emotivos Racionais. Estes choram raciocinando — ou raciocinam em plena irritação contida —, o que não deixa de ser uma proeza. Conseguem transformar o soluço em argumento e a cólera em tese. Não confundem emoção com razão: casam-nas em regime de comunhão de bens, com acta notarial e assinatura reconhecida. São os cartesianos do coração, sentimentalistas de laboratório, que amam como quem redige um protocolo científico e se enfurecem com planificação estratégica. O pranto deles tem método, a ira tem bibliografia. Se forem traídos, elaboram gráficos; se forem correspondidos, fazem um relatório de impacto emocional. São capazes de quantificar o ciúme em percentagem e converter a dor em gráfico de barras — com uma citação de Kant no rodapé.

    Terceira espécie: os Racionais Irracionais. Este grupo tem a lógica nos lábios e o caos no crânio. Por regra, confundem o raciocínio com vocabulário e a sabedoria com volume de voz. Falam como quem constrói um templo, mas o altar é de areia. São uns doutores em redundância e uns engenheiros do disparate. Quando dizem “a bem da Nação”, é sinal de que estão a escavar o abismo. Juram adorar a razão, mas tratam-na como amante clandestina: citam-na, mas não a seguem.

    Quarta espécie: os Irracionais Racionais. Ah, esses são, para mim, os mais sublimes — e, por isso, os mais perigosos. Possuem a eloquência dos profetas e a prudência dos incendiários. Falam com o peso das tábuas da lei e pensam com a leveza de uma folha em vendaval. Assumem-se como santos, tecnocratas, ministros e outros apóstolos da certeza — missionários do absolutismo moral que confundem a inspiração divina com o despacho em Diário da República. Tomam o instinto por revelação e o decreto por dogma, e são capazes de citar Aristóteles para justificar uma isenção do IVA, ou Santo Agostinho para cortar subsídios aos desfavorecidos, ou até Platão para aumentar a tarifa da luz. Julgam-se intérpretes exclusivos da Verdade e, por isso, falam com a segurança de quem recebe ordens do Céu, mas com o vencimento pago pela Terra.

    Quinta espécie: os Emotivos Imotivos. Nesta classe encontramos emoção farta, mas nenhuma motivação. São os inflamados da inércia, os entusiastas do repouso. Comovem-se com as grandes causas da Humanidade — desde que estas não exijam sair do sofá nem trocar o pijama. Pregam virtudes com a mesma eloquência com que evitam praticá-las. São os mártires da intenção, os heróis do pretexto: sofrem por tudo, mas nada fazem por nada. Por vezes, assinam petições, com esforço. A sua chama interior não aquece nem alumia — é uma fogueira sem lenha. Cansam-se da esperança antes de a pôr em prática e, quando a vontade desperta, já é hora da sesta. São os Oblómovs da moral, como o Ilía Ilich de Ivan Gontcharov: puros santos da apatia, com um ideal por dia e um bocejo por parágrafo.

    Sexta espécie: os Imotivos Emotivos. Estes são o reverso dos anteriores, embora aparentados no fracasso. Se os emotivos imotivos se emocionam sem agir, estes emocionam-se sem sentir. São movidos por uma perpétua comoção, mas sem direcção — uma febre sem doença. A emoção neles é reflexa, quase muscular: indignam-se por hábito e comovem-se por contágio. Como adianta o conceito, não precisam de motivo relevante — basta uma manchete, um post, um rumor. A sua alma é meteorológica: muda conforme a previsão moral do dia. Choram ao pequeno-almoço e revoltam-se ao jantar, sempre por causas que esquecerão ao deitar. São o coro coral dos tempos modernos, os apóstolos da comoção instantânea. Dir-se-ia que o seu coração vibra em push notification, e que cada lágrima é patrocinada pelo algoritmo.

    E, para que ninguém diga que estas categorias são mera abstracção teórica, apresento um espécime empírico — um caso de estudo digno da secção de curiosidades morais do além: um primeiro-ministro português, exemplar acabado da subespécie Racional Emotivo em estado de combustão cívica.

    Após a divulgação de notícias pela CNN Portugal e pela revista Sábado — segundo as quais procuradores do Ministério Público consideram dever ser aberto um inquérito-crime sobre a Spinumviva, a sua empresa familiar —, Luís Montenegro ofereceu à Nação o espectáculo raro da fúria serena. Declarou-se “completamente tranquilo”, mas também “estupefacto e revoltado”. Disse esperar o “juízo do Ministério Público”, embora já o tivesse proferido em nome próprio. E, para selar a sua paz interior, exclamou três vezes “pouca-vergonha!”, como se a indignação, repetida em triplicado, tivesse virtudes purificadoras.

    Foi um instante sublime da dialéctica emocional: o homem que promete calma em tom de trombeta mostra a serenidade feita trovão. Falou de “deslealdade processual” e de “manobras obscuras” e, num raro rasgo de filosofia, advertiu que a democracia tem vulnerabilidades — sobretudo quando alguém ousa investigar a sua empresa familiar.

    Vede o sublime equilíbrio de um Racional Emotivo: “Estou completamente tranquilo”, disse ele, “embora absolutamente estupefacto e mesmo revoltado.” — uma tranquilidade que transpira histeria, mas com boa dicção. A frase, per si, constitui uma epifania lógica: o encontro do logos com o delírio, a síntese perfeita entre Buda e Aquiles. Aristóteles teria desmaiado de perplexidade; Santo Agostinho acrescentaria um capítulo às ConfissõesDa Ira dos Serenos; e Pilatos, que lavava as mãos em bacias, sorriria ao ver um político moderno lavar-se aos microfones.

    Dir-se-ia que o vosso Montenegro encarna o espírito trágico dos tempos hodiernos: o governante que se julga um novo Cícero, mas fala como um Jeremias em campanha. É o racional emotivo na sua forma mais pura: pensa em cláusulas jurídicas e sente em chamas. Acredita na serenidade, mas só a pratica em estado de exaltação.

    No entanto, reconheço em Montenegro uma estranha coerência — a coerência da incoerência universal. O homem moderno, seja político ou cidadão, vive agora condenado ao paradoxo de querer parecer racional para disfarçar o quanto é emotivo, e querer parecer emotivo para mascarar o quanto é calculista. Luís Montenegro é, pois, apenas o espelho polido dessa humanidade que se penteia diante do caos: tranquilo no verbo, vulcânico na alma; cartesiano na gramática, romântico na temperatura. A sua serenidade é uma forma superior de exaltação — como se o fogo, envergonhado de arder, se fizesse passar por cinza.

    Mas o dilema do vosso primeiro-ministro é que o seu dialecto emocional já não encontra tradutores. Fala a língua dos Racionais Emotivos, mas o país está povoado de outras espécies. Nas cúpulas, abundam os Racionais Irracionais, doutorados em retórica e licenciados em disparates. Nos púlpitos e nas tribunas, multiplicam-se os Irracionais Racionais, visionários do expediente, que confundem fé com orçamento e dogma com decreto. Nas praças e nos ecrãs, campeiam os Emotivos Imotivos, inflamados de sofá, heróis do clique e do bocejo militante; e, a seu lado, os Imotivos Emotivos, almas meteorológicas que se indignam por reflexo, comovem-se por algoritmo e adormecem reconciliadas com a própria comoção.

    O resultado é uma nação inteira entregue à zoologia do espírito: o Parlamento como um jardim de criaturas morais, o Governo e a oposição como um viveiro de contradições, e o povo — essa plêiade de corações fatigados — dividido nas redes sociais entre o entusiasmo e a apatia. Assim, o discurso político de Luís Montenegro nada mais é do que um hino à incoerência organizada: promete serenidade e pratica alarme; proclama racionalidade e cultiva histeria; invoca a verdade, mas só acredita no eco. Cada “pouca-vergonha” proferido em nome da calma é uma prece ao deus da turbulência.

    E eu, do meu observatório póstumo, sorrio com indulgência e diversão, constatando que o vosso primeiro-ministro não é uma anomalia; é uma regularidade estatística da espécie. O seu “estou tranquilo, mas revoltado” ficará, talvez, como o novo lema da portugalidade — esse cata-vento que oscila entre a lágrima e o édito, entre o argumento e o grito, entre a serenidade que declama e a exaltação que pratica.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Da morada à porrada: breviário das sublimes desinteligências da língua

    Da morada à porrada: breviário das sublimes desinteligências da língua


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

    ***

    Ah, meus caros leitores — e vós também, argutas interlocutoras que me suportais nestas escavações filológicas —, há línguas que são traiçoeiras como serpentes e outras que, não sendo venenosas, têm a malícia de um gato de biblioteca: roçam-se em nós com doçura para, de súbito, soltar um arranhão no verbo.

    A portuguesa, por exemplo, exige do órgão articulador, do músculo da boca e do miolo do cérebro, uma destreza quase coreográfica. Basta um leve tropeço de vogal, um deslize de consoante, e a mensagem — essa pobre vítima — cai esbarrapachada entre o sentido e o disparate. E, convenhamos, se ao falante se pede engenho, ao ouvinte se exige um ouvido agudíssimo, desses que captam a diferença entre “mola” e “mula”, entre “bento” e “vento”, entre “iminência” e “eminência”. Ou entre a beira da estrada e a Estrada da Beira.

    A língua portuguesa — filha bastarda do latim, amancebada com mouros e marinheiros, baptizada entre cruzados e copeiros — nasceu, sabeis isso bem, sob o signo da confusão. Forjada à pressa entre um salmo e uma taberna, talvez por isso conserve o dom de tropeçar com elegância. Herdou de Roma a solenidade, da Galiza a doçura, dos árabes o floreio e do além-mar um gosto por errar o rumo – é, pois, uma língua que tanto filosofa como tropeça, capaz de dizer o sublime e o ridículo no mesmo fôlego.

    Eis a razão por que os seus falantes são criaturas de duplo temperamento: líricos na paixão, processuais na ofensa. Ao verbo se concede a solenidade de um sacramento e a suspeita de uma cilada. Assim, no português, um “sim” pode querer dizer “talvez”, um “não” pode esconder um “espera um pouco”, e um “claro” costuma significar “não percebeste nada, pois não?”.

    A fonética não articula — insinua. Cada sílaba sai com segundas intenções, como dama de véu que sorri sem mostrar os dentes. A ambiguidade, essa velha alcoviteira do verbo e concubina do adjectivo, anda sempre de braço dado com o sotaque, e todos erguem impérios de mal-entendidos. E nisto, a gramática, cambaleando na bengala, tropeça no cachimbo e acende o plenário.

    Os poetas amam a língua, porque nela tropeçar é criar; os políticos veneram-na, porque nela escapar é vencer. Uns rimam com os desastres; outros justificam-se com eles. E assim se segue, entre a inspiração e a acta, entre o cântico e o requerimento — sempre à beira do riso e da querela.

    Ora, chegados aqui, entremos numa tragicomédia parlamentar: o social-democrata Hugo Soares, homem de verbo carregado e gesto assertivo, ao dizer “dou-te a morada”, viu-se transformado em gladiador de bancada, supostamente prometendo “dou-te porrada”. O outro, Pedro Frazão, do Chega, ouviu o que quis, ou o que o instinto partidário lhe soprou ao tímpano. O hemiciclo, esse teatro do absurdo, converteu-se em coliseu, e os escribas do reino já preparavam as crónicas do duelo de armas.

    A Comissão de Transparência, zeladora do bom tom e da exactidão semântica, analisou a questão com o rigor de um gramático medieval. Passaram-se horas em gravação, transcrição, interpretação, rectificação, até que, de tanto rebuscar, o tribunal da palavra acabou por ilibar — ou, melhor dizendo, ilibrou-se —, confundindo o ofendido e o ofensor num abraço de vocábulos. No fim, não houve porrada, nem morada, apenas a constatação de que a língua portuguesa, como o mar de Camões, “tem no engano a maior claridade”.

    Mas não sejamos severos. Há virtude, sim, nesta trapalhada fonética. Os vates que o digam! Que seria da lira se as sílabas não se prestassem a equívocos sonoros? Que seria de um menestrel de vão de escada se “levanta-te” não rimasse com “canta-te”, e “chão” não soasse à “paixão”? Até o mais casto dos bardos se rende às confusões fecundas: o erro é o húmus do verso. O engenho poético vive desse jogo de sombras, desse intervalo entre o que se diz e o que se entende — intervalo por onde o riso, o erotismo e o escândalo costumam entrar.

    Recordo, aliás, um serão em que troquei versos com dois amigos ultramarinos: Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, e Mário Quintana, esse santo das ironias serenas. Entre copos e metáforas, discutimos se o verbo deve servir o homem ou o homem servir o verbo.

    Gregório, em riso brejeiro, sentenciou: “A palavra é como mulher de má fama: o que lhe falta em pudor sobra-lhe em malícia.” Quintana, com ar beatífico, acrescentou: “Toda palavra mal ouvida é um poema que se perde.” Eu, por minha parte, lembrei-lhes que entre “beber um copo” e “beber com um copo” há um abismo gramatical onde já tombaram muitas reputações.

    E como nos basta já de teoria e reflexão, convoquei o bom Bocage, mestre das rimas atrevidas e das sílabas inflamadas, para que, com o sufixo –ada, entre a porrada e a morada, vos compusesse um relâmpago de sátira… rimada. E o velho libertino sorriu-me e, estalando os dedos como quem invoca um demónio da métrica, saiu-se com isto:

    Versalhada da Morada e da Porrada

    Neste Parlamento, de gente zangada,
    Onde a retórica corre azedada,
    Soou “morada” em voz agastada,
    Mas o Chega, zangado, ouviu “porrada”.

    De um lado, vi o Hugo, de fala exaltada,
    Do outro o Frazão, mente tresloucada,
    Um diz “minha casa é bem guardada”,
    Mas o outro ouve “vem cá, levas pancada”.

    Na acta ficou a cena entalada,
    Em pauta fina e letra dobrada,
    Mas por cada sílaba, mal pronunciada,
    Faz-se insulto, confusão marada.

    Ó língua nossa, tão enfeitiçada,
    Que trocas sons com astúcia danada,
    Pedes torrada e dão-te trancada
    E dizes “morada” e é guerra declarada.

    Enfim, o que vos quero dizer com isto, minhas doutíssimas donzelas e meus sapientíssimos cavalheiros? Quero dizer que há quem defenda que o diabo tem morada nos detalhes para nos dar porrada; e eu argumento ser nas vogais médias e nas consoantes chiadas. Um sopro mais áspero, e a harmonia cai em ruído; uma nasal a mais, e o amor vira maldição.

    Já o Apóstolo São Tiago advertia que “a língua é um pequeno membro que incendeia uma grande floresta” — e se o dizia de espírito, vale também para o som. O comendador Carvalho sempre me garantiu que um “r” mal posto ou — pior ainda — omitido faz da diplomacia pancadaria.

    Nem a filosofia escapa a este dilema: Aristóteles acreditava que o homem é o animal dotado de logos, mas esqueceu-se de dizer que o logos é também um labirinto. Os herdeiros de Babel arrastam-se nessa maldição, embora com graça e sarcasmo. Por isso, o episódio entre Soares e Frazão, longe de ser uma vergonha lusitana, é uma celebração involuntária do génio da língua de Camões e do Padre António Vieira: consegue discutir até a própria fala — e transformar o mal-entendido em narrativa, o insulto em piada, e a fonética em farsa.

    Resta-me assim louvar a confusão, mãe da invenção. Porque se tudo se entendesse à primeira, que fariam os poetas, os cronistas e os parlamentares? Sem o deslize da língua, o riso extinguir-se-ia, e com ele a consciência da falibilidade humana. Por isso, atentai: entre torrada e porrada, entre fardo e fado, vibra o mesmo sopro divino: o da palavra, essa dádiva traiçoeira que, mesmo errando, ainda sempre todos salva da ensurdecedora mudez.

    Adeus, e piparote

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Marcelo, o sofista de Belém, e os broches da Literatura

    Marcelo, o sofista de Belém, e os broches da Literatura


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Já muito desvario vi, e não duvido que ainda mais verei — se o destino, cruel porfiador, me prolongar o suplício de assistir aos lusitanos desatinos. Vi reis persuadidos de ter a coroa por graça divina, e que afinal foram decapitados pelo tempo; vi profetas de esquina, cheios de unção, que apregoavam glórias futuras e só colheram misérias presentes; vi sábios de cátedra que mal sabiam soletrar os próprios apontamentos.

    Mas confesso, indulgentes donzelas e benévolos cavalheiros, que jamais julguei possível contemplar um Presidente da República que, proclamando-se patrono das letras, lograsse reduzir a Literatura a pretexto para guitarradas e cantorias sob as estrelícias dos jardins de Belém, enfiando escritores na lapela como as senhoras ostentavam, em recatados tempos idos, os seus broches — e alguns, prazenteiros, lá se deixam prender, contentes em servir de enfeite presidencial, ora à vista pública, ora na sombra recôndita dos favores.

    Eis mais um milagre lusitano: Marcelo transmuta-se, num sopro, de lamiré de solista em sofista de Belém, proclamando-se guardião do livro ao mesmo tempo que erige em sua honra uma festa onde de literário só resta o nome. Como um Midas de talento invertido, converte o ouro melódico da palavra no bronze estridente dos concertos. Xutos & Pontapés, Carolina Deslandes, Rui Veloso, Bárbara Tinoco, Fernando Daniel — todos receberão somas principescas, enquanto os escritores, mendigos do verbo, continuam a mendigar migalhas. O mote são as eternas Letras, o dote vai para a efémera música popularucha.

    Não me acuseis de desrespeito: é a própria cena que se desenrola como caricatura. Imagino Homero, cego, tacteando a lira enquanto lhe ruge ao lado uma guitarra eléctrica; vejo já em espírito Camões, em pleno ardor de compor versos de nau e tormenta, a ser abafado por batuques de bateria que lhe naufragam as estrofes; entrevejo Virgílio, exilado, coagido a casar hexâmetros com rimas de cançoneta como quem enxerta loureiros em sarmentos; vislumbro Horácio, lírico de cálices e musas, a disputar decibéis com um microfone em síncope estrídula, qual sátiro ébrio em bacanal; projecto ainda Dante, a meio da sua descida ao Inferno, soterrado não por enxofre mas pelo ronco profano de um baixo barítono.

    Em suma, que maior ironia, que maior sátira, do que celebrar Minerva invocando Baco? Que maior desatino do que chamar Festa do Livro a um certame onde a única leitura mais atenta é a das facturas com IVA a 23%?

    Marcelo, contudo, não se dará por achado. Citará Pessoa com a ligeireza de quem recita uma bula de farmácia; invocará um sermão de Vieira como se fosse refrão de telenovela; encherá os jardins de Belém com latinórios mal digeridos, selfies e abraços, convencido de que assim ergue a Nação às alturas da Cultura. Em verdade, não passará de um Sísifo lusitano: condenado a empurrar montanha acima a pedra polida do seu narcisismo, que invariavelmente rola de volta ao sopé da banalidade.

    A tragédia, caríssimas leitoras e ilustríssimos leitores, é que Portugal já se habituou a estes espectáculos como se fossem virtude. O povo aplaude, não porque creia na glória dos livros, mas porque confunde festa com Cultura, ruído com pensamento.

    Aquilo que poderia financiar quinze bolsas literárias, sustentando poetas por um ano, dramaturgos por 12 meses, romancistas por 365 dias e ensaístas por 8760 horas, é dilapidado em cinco efémeros concertos de jardim que são levados pelo vento. O eterno é sacrificado ao instantâneo, o silêncio da leitura ao estrondo das colunas de som.

    Mas talvez não deva ser assim tão severo: talvez tudo isto seja parte do destino lusitano, esse estranho fado em confundir aparência com essência. Ou, porventura, é mal universal. Nero também julgava ser artista enquanto Roma ardia; Juliano pensava ressuscitar deuses mortos; D. Sebastião, vosso símbolo perene de feitos quiméricos, queria conquistar glória eterna e perdeu-se na areia africana. Marcelo inscreve-se nesta galeria ilustre: é certo que não queima cidades, não ressuscita deuses, não se perde em batalhas — mas o desastre é similar, limitando-se a substituir Literatura por música popular. É, no fundo, uma tragédia — mais ligeira, é certo, mas ainda assim tragédia.

    E, porque escrevo de além-túmulo, ouso já lavrar o epitáfio de Marcelo nos jardins de Belém, ao findar dos seus dias políticos: “Aqui jaz o Presidente que sonhou ser mecenas das letras e acabou empresário de arraial. Cuidou ser Orfeu, mas quedou-se maestro de dissonâncias. Tomou a eternidade de Camões e trocou-a pela fugacidade de um refrão pop.”

    Este é o retrato, e dele não fujo: Portugal aplaudirá com fervor os concertos dos Xutos & Pontapés, de Rui Veloso, de Carolina Deslandes, de Bárbara Tinoco e de Fernando Daniel. Mas nesse aplauso ecoará também uma resignação melancólica: a certeza de que, mesmo quando um Presidente se põe a ler em público, a Literatura não passa de serva da música ligeira, e o livro, reduzido a sombra discreta, serve apenas de biombo num palco iluminado para outros.

    E se pensais que, perante este ultraje, os escritores se erguerão contra, desenganai-vos. Muitos correrão a Belém de sorriso servil, pedindo dedicatórias presidenciais, agradecendo a compra de um livrito, elogiando a promoção das letras entre um refrão e outro. Afinal, nada mais português do que o autor famélico agradecer ao poderoso a esmola simbólica, mesmo que abafada pelos decibéis do batuque presidencial.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • (a)Ventura entre hambúrgueres e cidadãos

    (a)Ventura entre hambúrgueres e cidadãos


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Homens políticos há que detêm uma rara particularidade, e nem precisam de ser cowboys de banda desenhada: têm reflexos mais rápidos do que a própria sombra. Mal a luz do acontecimento se projecta na parede, já eles deram um tiro — não importa em quê ou em quem —, e pouco importa também se o tiro é de pólvora seca ou de pólvora de feira.

    É o caso de um certo tribuno lusitano que, no afã de mostrar serviço ao auditório, dispara antes de pensar. E, pensando bem, talvez nem pense de todo. Parece aqueles cães de jardim, que ladram a qualquer folha que voe, não por coragem ou por medo, mas por hábito nervoso. Vê um escândalo onde há protocolo, descobre uma desgraça onde há cerimónia, desvenda uma conspiração onde há uma banalidade internacional.

    O episódio da semana, digno de nota para a posteridade, é, pois, a indignação do Dr. André Ventura — esse Savonarola das redes sociais — com a ida do vosso Presidente da República a um Burgerfest na Alemanha. O Parlamento, imagine-se — clamou ele, incrédulo — autorizou a deslocação de Marcelo, obviamente contra os votos do Chega, para estar presente naquilo que Ventura traduziu livremente como “festival de hambúrgueres”.

    Ai de vós, pobres contribuintes, que pagarão a gasolina do Falcon presidencial para que Sua Excelência vá devorar cheeseburgers e batatas fritas ao som de música bávara, às tantas vestido de Lederhosen. Sim, porque hoje são hambúrgueres e daqui a poucas semanas será o Oktoberfest, onde se verá Marcelo de caneca de litro em punho, em cima da mesa, a entoar Ein Prosit der Gemütlichkeit, para gáudio dos seus assessores que, em trajes tiroleses, dançarão polca com criadas louras, de avental e trança, entre um fornecimento e outro de cerveja e salsichas, tudo ao compasso estridente da fanfarra.

    Eis o disparate levado à sua forma mais gourmet: uma indignação servida em prato de porcelana bávara, com direito a espuma de cerveja e acompanhamento de oom-pah.

    Quem saiba meia dúzia de palavras de alemão — ou que, pelo menos, tenha o bom hábito de consultar um dicionário antes de puxar do megafone digital — sabe que Bürger quer dizer “cidadão” em português. Logo, Bürgerfest é, portanto, uma singela mas relevante festa da cidadania. Mas Ventura, zeloso guardião da moral fiscal, resolveu transformar Goethe em McDonald’s e dar a Portugal a imagem de um Presidente viajando para um arraial de fast food. Eis o que dá misturar patriotismo inflamado com ignorância lexical: sai um hambúrguer malpassado, servido em prato de indignação moral.

    No fundo, esta pressa em transformar tudo em escândalo é o próprio motor do populismo. Não há facto que não possa ser distorcido, palavra que não possa ser malbaratada, tradução que não possa ser retorcida para caber no figurino da revolta permanente — como massa de pizza atirada ao ar por um cozinheiro de taberna, moldada até ficar fina o bastante para tapar qualquer assunto e coberta de molho de furdunço para acicatar o sabor.

    O velho Hobbes talvez chamasse a isto uma guerra de todos contra o bom senso. Assim, agora, já não se discutem ideias, mas memes; já não se debatem conceitos, mas prints de Twitter. E, no meio de tanta pressa, lá se vai a semântica, coitada, reduzida a carne picada.

    Aliás, não é de hoje que a Humanidade tropeça nas palavras — e Ventura que se cuide. Basta lembrar que a palavra “idiota”, na Grécia Antiga, não significava tolo, mas o cidadão prudente que se abstinha de intervir na polis. Com o tempo, o sentido inverteu-se, e hoje chamamos idiota justamente a quem se mete em demasia na vida pública, sem ideias claras nem ditos assertivos, ao ponto de ver caldeirada até onde só há cerimónia protocolar.

    Em todo o caso, o populismo adora a confusão lexical. Por exemplo, transforma imposto em roubo, subsídio em esmola, parlamento em covil — e, agora, cidadania em festa de hambúrgueres. E notem que é uma estratégia tão velha quanto eficaz: se a realidade não cabe no discurso, amassa-se a realidade até caber. E o povo, entretido, morde a isca, como quem morde uma sandes — ou uma bifana, mais apropriadamente.

    Não nego que há ocasiões em que os governantes lusitanos gastam em viagens aquilo que falta aos hospitais e às escolas. Porém, uma indignação por Marcelo ir a Berlim celebrar a cidadania talvez seja exagerada. Indignem-se, sim, se ele ficasse em Belém, alheio ao mundo, enquanto lá fora se celebra o valor que ainda permite votar num sistema democrático onde até André Ventura pode ir a votos — mesmo se ele confundir um convite para a Festa della Befana em Roma com um banquete de bifanas, ou uma visita oficial aos Camarões com uma foliada de marisco.

    Imagine-se, assim, o efeito cómico se Ventura fosse convidado ao tal Burgerfest: entraria desconfiado, olharia para o lado à procura do food truck, e ao ver uma conferência sobre direitos humanos, gritaria ao microfone: “Isto é uma vergonha! Eu vim para comer hambúrgueres e vocês estão a falar de Constituição!”. E talvez, no fim, posasse para a fotografia com ar grave, denunciando ao país a cabala internacional que lhe roubou o almoço.

    Mas deixemo-nos de coisas. O episódio é menor, mas revela algo maior: a facilidade com que se gera espuma. O populista vive de transformar uma gota de leite em maré de espuma, um convívio protocolar em orgia de desperdício, um conceito em caricatura. Não é uma técnica de sobrevivência política, mas de crescimento: gritar sempre mais alto que a razão, para que a razão não se faça ouvir.

    Festa della Befana com bifanas…

    E o que resta disto para vós, serenas donzelas e tolerantes cavaleiros? Esperar que Marcelo organize o Präsidentielles Bifana-Fest e que Ventura denuncie ao país mais este ataque à moral e ao erário público? Ou rir? Rir como ria Voltaire dos pedantes, rir como ria Eça dos bacharéis, rir como ria o meu pai Machado de Assis dos Quincas Borbas deste mundo. Porque, no fim, nem sequer é um hambúrguer que está em causa, nem uma viagem presidencial, mas a capacidade de não se ser arrastado pela enxurrada da ignorância barulhenta.

    E, posto isto, se é verdade que a cidadania se celebra, então brinde-se — não com Coca-Cola, mas com um bom vinho tinto, daqueles que dão paciência para aguentar tanta idiotice. Saúde, minhas confreiras e meus confrades, que a festa continua — e é bom que continue, mesmo que alguns insistam em confundi-la com a fila do McDrive.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Portugal: este país não é para vivos

    Portugal: este país não é para vivos


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS (até 10 de Setembro)

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Há em Portugal uma escola de prantear tragédias que faria inveja às carpideiras de Tebas, às viúvas de Jerusalém e, ouso dizer, ao próprio São Roberto Belarmino – sim!, esse mesmo, o cardeal jesuíta que quis tratar da saúde a Galileu Galilei –, que em De Arte Bene Moriendi ensinava que a boa morte é a consumação de uma vida virtuosa, e não o coroamento de uma existência de incúrias e descuidos.

    Pois, sim. Mas se é verdade que Belarmino pregava o arrependimento como chave para o bem morrer, Portugal prefere só o espectáculo: não se arrepende, antes decreta luto e soleniza. Por isso, neste Estado luso – e no estado em que andais –, asseguro-vos, discretas donzelas e circunspectos cavalheiros: mesmo que pequeis à vontade, que vivais na incúria, na preguiça, no desleixo, no comodismo, na desatenção, na negligência, na imperícia, na omissão, no descuido e até no dolo mais descarado, no momento da vossa morte — se ela se der com estrondo e sobretudo com culpa pública — sereis guindados à glória dos altares cívicos, com missa de corpo presente, luto nacional, coroas de flores e lágrimas televisivas que fariam corar as bem-aventuranças.

    Foi assim na queda da ponte de Entre-os-Rios em 2001, quando a engenharia lusitana, num acto de fé pascaliana, apostou que a ponte se manteria de pé sem manutenção — e perdeu a aposta. Foi assim nas chamas de 2017, quando mais de cem almas se transformaram em holocausto rodoviário, encerradas em estradas sem escape, como se o Leviatã hobbesiano tivesse decidido cobrar tributo. E é assim agora, com o funicular da Glória — que ironia nominal! — que se despencou, depois de uma vistoria feita poucas horas antes, certificada com a mesma solenidade de um sacramento, garantindo que estava apto a durar. Durou, sim: mais umas horas até à derradeira viagem, quando se fez do trilho catre e da cabine esquife, para lamento das famílias e gáudio das estatísticas da criminalidade travestida de acidente.

    Eu, Brás Cubas, que expirei na minha chácara de Catumbi com onze amigos à beira do meu buraco, sem coroas de flores nem discursos de Estado, confesso que às vezes invejo este vosso país. Não tive luto nacional, não tive trombetas nem orquestra, e tampouco um imperador que me enviasse condolências. Mas Portugal, esse país que me poderia ter mantido súbdito se tivesse deixado a Inglaterra ficar com o apêndice cecal da Europa que Napoleão tanto ambicionou, sabe fazer funerais. Portugal é, em pleno, um país que não se governa, mas que se enterra com magnificência.

    Olhem o ritual: primeiro, a comoção mediática, de três ou quatro dias, com luto oficial, envio de condolências, directos televisivos junto aos destroços e coroas de flores à farta. Depois, a romaria política aos velórios e homenagens, como o da Igreja de São Domingos com a presença simultânea dos contritos 3M — Marcelo, Montenegro e Moedas —, gravata preta, desempenhando o seu papel num evangelho cívico.

    Seguir-se-ão missas de sufrágio, televisionadas, com homilias que citam o Livro de Jó (“O Senhor o deu, o Senhor o tirou”) e a Carta aos Coríntios (“A morte foi tragada pela vitória”), misturadas com um pouco de Rousseau para temperar o caldo. Tudo para que o povo chore em uníssono e a catarse colectiva seja integral.

    Enquanto isso, havia um ortopedista de plantão nos serviços de urgência de toda a cidade de Lisboa e o pomposo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Ferroviários, esse Sísifo lusitano, tem menos inspectores do que palavras na nominata, contando somente um investigador ferroviário para carregar a pedra da responsabilidade até ao topo do monte burocrático, de onde ela invariavelmente rolará para o esquecimento. Mas o que importa isso? Importante é um país decretar luto nacional sem saber ainda quantos mortos há, mobilizar quinze médicos legistas para imediatas autópsias nocturnas — enquanto nas urgências os vivos esperam sem médicos — e garantir que as lágrimas e as palavras sugeridas por spin doctors sejam devidamente transmitidas em directo.

    Portugal não sabe prevenir, mas sabe lamentar: é um país que, como disse Santo Agostinho, “ama a cidade dos homens mais que a Cidade de Deus”, e por isso celebra a morte com solenidade, como se fosse um sacramento cívico. Recordo-me do Eclesiastes — “há tempo de nascer e tempo de morrer” —, mas em Portugal há sobretudo tempo para decretar luto, tempo para discursar, tempo para mandar coroas de flores.

    E aqui entra a parte mais sublime da liturgia: desde 2022, fazendo jus a um país funesto, o vosso Presidente da República já encomendou 190 mil euros em coroas fúnebres. Sim, noves fora, é muita flor – e muito dinheiro. Seria dinheiro suficiente para arranjar os cabos do funicular da Glória? Ou seria preferível que a Carris não gastasse 600 mil euros por ano em jardineiros? Não sei: afinal, para quê prevenir se é tão mais edificante carpir depois?

    Dir-me-ão que sou cáustico, que exagero, que o país não é só lágrimas nem cerimónias fúnebres, que também faz leis, governa, constrói estradas, gere hospitais – nem sempre bem e a custos módicos, é certo. Concedo. Mas há aqui uma estética da morte que em Portugal é cultivada como um jardim barroco: as bandeiras a meia-haste, as notas de pesar, os retratos das vítimas em montagem audiovisual ao som de Samuel Barber, tudo é preparado para a fotografia, para o directo, para o lamento partilhado nas redes sociais.

    Enquanto os vivos esperam anos por justiça, os mortos são velados em altares de veludo. Enquanto os vivos padecem nas listas de espera, os defuntos têm prioridade de autópsia e honras de corpo presente. Mas não se diga que isto é pouca coisa. Certos países nada têm disto que o Estado vos concede: um consolo colectivo, uma espécie de purgatório antecipado: já que se falhou em garantir a segurança dos vivos, ao menos se canonizam os mortos. Mesmo se, convenhamos, se trate de uma economia moral curiosa: o Estado falha em zelar pela vida, mas compensa com pompa na morte, como se a bandeira a meia-haste fosse indulgência plenária para os pecados de omissão.

    Eis o triunfo da liturgia sobre a prudência, da estética sobre a ética. Pascal diria que é a grandeza e a miséria do homem: falhar na vida, redimir-se na morte — em Portugal, os políticos assim procedem, embora para tratar da vida deles e cuidar do funeral dos outros – e com fundos do Orçamento de Estado.

    E, assim, o vosso país continuará, entre lágrimas e velas, seguindo os passos do seu fatídico destino, paradoxalmente à espera da próxima tragédia para logo depois repetir o rito. De certo modo, é comovente. De outro, é aterrador – grotesco, mesmo. Como defunto que sou, ouso porém aconselhar: vivei com prudência perante as obras e feitos dos políticos, para que não preciseis de ser carpidos com tanto esmero, mas se morrerdes por negligência, incúria ou omissão do Estado, tende ao menos a consolação de que tereis missa de homenagem, transmissão em directo e, com sorte, uma coroa de flores presidencial. Talvez até duas, se o orçamento permitir.

    E, no fim, Marcelo vos elogiará do púlpito, Moedas soluçará de emoção, Montenegro jurará que ‘jamais’ — e se não forem estes, serão outros —, de sorte que a Nação sentirá que cumpriu a sua parte. O resto — o resto é silêncio, e o crepe fúnebre cai.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Montenegro, Ventura e o Plano Nacional de Leitura: tragédia em dois actos e nenhum livro

    Montenegro, Ventura e o Plano Nacional de Leitura: tragédia em dois actos e nenhum livro


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS (até 10 de Setembro)

    (não inclui esta crónica; para ler o prólogo e três crónicas, veja aqui)

    ***

    Sou um defunto autor – digo-o sem modéstia, mas também sem vanglória, pois já não me resta carne para ser modesto nem vaidade para me gabar. A morte, ao contrário do que se supõe, não vos roubará o vício de observar os vivos: apenas vos concederá a deliciosa distância que permite rir dos seus desatinos sem remorso.

    E que grande circo me cabe agora assistir, entre Fogos e Férias, neste país que há muito vive condenado a três letras fatigadas – Fado, Fátima e Futebol. Pois é: eis-me aqui a falar de uma nação que teve Camões a cegar para ver mais fundo, Sophia a dar voz ao mar, mas que agora, por perverso sortilégio democrático, se vê representada por um primeiro-ministro que, tendo escalado alto nos degraus da política, não logrou, todavia, elevar o espírito além da soleira da taberna. É um Ulisses sem Ítaca, um Édipo sem tragédia, um Salomão sem provérbios: chegou longe, sim, mas apenas na geografia dos cargos, enquanto na cartografia da inteligência permanece fiel a uma província desolada, onde as letras são ornamento supérfluo e a cultura um incómodo que convém confundir.

    Falo-vos, claro, minhas argutas donzelas e perspicazes leitores, de Luís Montenegro, o homem que governa Portugal desde 2024, e que há semanas subiu ao Parlamento para encerrar um discurso com uma citação erudita. Ah, o velho truque da retórica: “como diz Sophia”, proclamou ele, e recitou a frase “Nós somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”. Bonito, não fosse um pormenor: a frase era de Saramago, nos Cadernos de Lanzarote. Sophia quedou-se muda no jazigo em Carnide, as cinzas de Saramago gargalharam em Lanzarote, e Montenegro saiu como um novo Édipo de São Bento, furando os olhos da cultura sem sequer saber onde estava a faca.

    Fácil se percebeu, por esta amostra risível, porque não há Ministério da Cultura neste governo. Para quê, se o próprio chefe não distingue a socialista Sophia do comunista Saramago? Já se mostrou temerário nomear um ministro da Agricultura que poderia confundir trigo com tremoço, ou uma ministra da Saúde que, mesmo com diploma de farmácia, prescreveu o encerramento de urgências para salvar vidas.

    Montenegro, porém, supera essas caricaturas, fazendo da ignorância não uma falha, mas um princípio doutrinário. Naquele instante parlamentar, o país compreendeu: a confusão não é lapso, é método; a ignorância não é acidente, é programa; e a cultura, se resistir, será apenas por obra e graça do Espírito Santo – e nem sempre Ele está disponível para milagres tão repetitivos.

    Aliás, Montenegro quer, à sua maneira, deixar marco na Cultura portuguesa. É verdade que outros governantes, em tempos idos, o fizeram erguendo, fundando, protegendo: D. Dinis criou a Universidade em 1290, legando ao reino um farol de saber; D. Manuel I mandou imprimir as primeiras grandes edições régias, introduzindo a tipografia como instrumento de poder e de conhecimento; D. João V, mesmo estroina, engrandeceu a memória nacional com a monumental biblioteca da Universidade de Coimbra, templo barroco do livro; e a rainha D. Maria II patrocinou a criação do Conservatório Real de Lisboa, que formou gerações de músicos e actores.

    Montenegro, porém, não se inscreve nessa galeria de benfeitores: prefere a linhagem dos iconoclastas domésticos. Aproxima-se mais de Pombal quando, ao expulsar os Jesuítas em 1759, entregou a pilhagem das suas bibliotecas à voragem dos ratos e dos alfarrabistas; dos liberais de 1834 que, sob pretexto de modernidade, extinguiram conventos e dispersaram tesouros monásticos inteiros, vendendo incunábulos a peso de papel; dos republicanos iconoclastas de 1910 que, em nome da laicidade, serraram retábulos, destruíram imagens sacras e transformaram claustros seculares em armazéns ministeriais; ou ainda dos censores do Estado Novo, que fizeram da tesoura uma arma contra qualquer ideia demasiado alta. Para cúmulo, não esqueçamos os zelosos burocratas do século XIX que, com diligência de almoxarife, desfizeram códices e pergaminhos medievais como se fossem trastes inúteis, nem a voragem municipal do século XX que, no afã de “progresso”, deixou perder livrarias inteiras dos antigos colégios jesuítas de Coimbra.

    É essa a marca que Montenegro deseja deixar: não a construção, mas a extinção; não o fomento, mas a erradicação; não a memória, mas o esquecimento. Assim ficará inscrito no panteão da vossa história cultural: não ao lado dos que edificaram universidades, bibliotecas e conservatórios, mas na fileira dos que, por cálculo ou tacanhez, reduziram a pó o património que lhes coube guardar.

    Por isso, o seu Governo anuncia a extinção do Plano Nacional de Leitura e da Rede de Bibliotecas Escolares. Eis a pedagogia montenegrina: não havendo livros, não há erros de citação; não havendo bibliotecas, não há lapsos de memória; e não havendo leitura, não há risco de pensamento. É um regresso ao Éden, mas sem serpente nem maçã – apenas com a inteligência saloia como árvore da vida.

    Dir-se-á que exagero. Não: este é o retrato fiel de uma pátria que transformou sabedoria em despesa e leitura em luxo. Recordo que Nero, diante do incêndio de Roma, tocava lira; Montenegro, diante da extinção da cultura, cita Sophia enquanto apaga Saramago. E se Átila deixou a Europa em cinzas, Montenegro prefere deixar os liceus em branco – páginas em branco, programas em branco, cabeças em branco. Montenegro prepara um vale branco de ignorância.

    Muitas de vós, leitoras queridas, e muitos de vós, estimados leitores, concordarão comigo. Porém, ainda julgo que há algo para além da ignorância enraizada: há também aqui um cálculo político, uma prudência quase maquiavélica. Porque paira sobre São Bento uma presença larvar ainda mais temível do que a própria ignorância: a fantasmagoria literária de André Ventura.

    Imaginem, senhores, que nas negociações com o Chega, entre a caça aos imigrantes e o fogo das serranias causadas pelos incendiários a condenar à prisão perpétua, Ventura exige que os seus livros, impressos em vanity press, figurem no Plano Nacional de Leitura. Um apocalipse pedagógico! Crianças de tenra idade a estudar A Culpa é do Benfica com a mesma solenidade com que se lê O Meu Pé de Laranja Lima. Adolescentes a sublinhar 50 Razões para Mudar para o Benfica, ilustrado com cartas astrais da Maya, como quem descobre a epopeia de Camões. Professores, de lágrimas nos olhos, a explicar que o herói da nova literatura nacional é um ciclista toxicodependente, seropositivo e ninfomaníaco que, no romance Montenegro, conquista a Volta a Espanha com a mesma bravura com que Ulisses conquistou Ítaca.

    Vede, pois, o drama: adolescentes confundirem o protagonista do romance com o primeiro-ministro em exercício; ou pior, debaterem nas aulas a pérola venturiana intitulada A Última Madrugada do Islão, onde o palestiniano Yasser Arafat surge travestido de personagem gay, numa obra promovida por um académico nigeriano. Perante tais riscos, que faria um estadista prudente? Extinguir o Plano, claro está!

    Notai bem – e convenhamos que lhe ameniza a incultura –, há aqui um gesto de génio disfarçado. Montenegro, ao abolir o Plano Nacional de Leitura, mata a leitura, sim, mas por um fim supostamente superior: salvar a pátria da leitura errada. Torna-se um Ulisses às avessas: finge loucura não para evitar a guerra de Tróia, mas para impedir que o cavalo venturista entre nas bibliotecas. No fim, protege a cultura não através do cultivo, mas arrancando-a, destruindo-a – é como se, para evitar os fogos rurais, a melhor solução fosse cortar todas as árvores, decepar todos os arbustos, ceifar todas as ervas para, em seguida, se alcatroarem montes e vales.

    A História, ironicamente, até lhe dá alguma legitimidade. A Inquisição proibiu livros para salvar almas. Os liberais de 1834 pilharam conventos para “modernizar” a nação. Salazar preferiu estatísticas a poesia para elevar o produto interno bruto e manter súbditos dóceis. Montenegro, mais higiénico, não proíbe nem censura: simplesmente extingue. Assim como Faraó endureceu o coração contra Moisés, Montenegro endurece o espírito contra Sophia e Saramago. Em vez de tábuas da lei, oferece tabelas de Excel; em vez de profetas, relatórios trimestrais com protecção de dados garantida pela Spinumviva.

    Portanto, se me perguntarem, direi: Montenegro é coerente. Melhor extinguir planos do que arriscar Ventura ver os seus volumes aprovados para leitura recomendada – ou obrigatória, às tantas. Melhor a desertificação total do que a floresta de papel contaminada pelo populismo. Eis a astúcia: ao matar a leitura, salva-se a inocência das criancinhas e dos adolescentes. É de mestre – mestre ignorante, mas mestre.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Correio Mercantil de Brás Cubas

    Correio Mercantil de Brás Cubas


    PRÉ-VENDA NA LOJA DO PÁGINA UM

    17,50 euros (com portes incluídos para território nacional)

    Leia aqui o prólogo e três das crónicas

    O regresso literário de Brás Cubas em pleno século XXI, agora pela pena de Pedro Almeida Vieira, numa obra de humor erudito e crítica social mordaz. As crónicas revistas e aumentadas numa edição esmerada.

    O Correio Mercantil de Brás Cubas reinventa a tradição machadiana e oferece ao leitor crónicas satíricas sobre política, jornalismo e costumes contemporâneos, não do Brasil do século XIX, mas do Portugal do século XXI.

    Esta é a edição príncipe, impressa em tiragem exclusiva para os leitores do PÁGINA UM, que ostentará o nome dos subscritores em pré-venda até 12 de Setembro.

    Uma oportunidade única de figurar para sempre nas páginas de uma obra que alia inteligência, ironia e actualidade.

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    Envio dos livros a partir de 15 de Outubro. Será enviado recibo.

    Em caso de dúvida ou para aquisição em quantidade, por favor envie mensagem para loja@paginaum.pt

    PRÉ-VENDA NA LOJA DO PÁGINA UM

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    Prólogo de papel passado, ou a inconveniência tipográfica da minha ressurreição literária

    Estimadas leitoras e veneráveis leitores — sois vós agora, por artimanha editorial, os destinatários de um volume que, em bom rigor e decência metafísica, jamais deveria ter existido. Refiro-me, é claro, a este opúsculo desmesurado, baptizado Correio Mercantil de Brás Cubas, em cujas páginas se alojam, com impunidade tipográfica, as minhas mais recentes epístolas ao mundo dos vivos.

    Antes de mais, assinale-se o óbvio: um defunto não escreve livros. Pode, quando muito, soprar crónicas ao ouvido de escribas cansados, insinuar sarcasmos ao teclado de jornalistas descontentes ou, com a audácia dos espectros persistentes, lançar ironias em formato digital, tão voláteis como ectoplasma em dia de vento. Com a sua natureza evanescente, o meio electrónico condiz com a condição ectoplasmática de quem, como eu, já não tem carne, mas conserva os nervos do espírito Agora, transladar tal obra para o papel — esse nobre e vetusto suporte que se esfarrapa, se dobra, se encaderna e, pior ainda, se arquiva — é exercício de teimosia editorial, quase necromancia gráfica. Mas que hei-de eu fazer? Até os mortos têm editores.

    Confesso, pois, a minha estupefacção inicial. Um livro? Meu? Novamente? Depois de quase um século e meio de retiro no ossário da Literatura? Que insulto à compostura tumular! O papel, ao contrário do éter digital, compromete, fixa, torna oficial — e, para mal dos meus pecados, cria leitores com marca-páginas. Eis a tragédia: tornar-me autor reincidente sem sequer ter tido tempo para renegociar os direitos de autor com São Pedro.

    Dir-me-eis: “E as crónicas, Brás Cubas, essas que compusestes para o PÁGINA UM com desdém filosófico e fel risonho, que destino julgáveis que teriam?” Ó ingénuos! Julgava-as como folhas ao vento, para distrair os espíritos e afligir os vivos. Eram, à nascença, textos para correr mundo com leveza, não para serem impressos com ISBN. Escrevi-as como quem lança garrafas ao mar da internet, não como quem ergue catedrais de sarcasmo. Eis, portanto, a minha justificação: nunca foi minha intenção compor uma obra; apenas uma perturbação intermitente do vosso bom senso.

    Mas já que me imprimem — e com capa, lombada e prólogo, veja-se! —, cumpre-me esclarecer o propósito deste volume. Não é um romance, ainda que contenha personagens mais absurdas do que os de Balzac; não é um ensaio, embora se veja nele mais pensamento do que em muitos tratados universitários; tampouco é um panfleto, mesmo que esmurre com elegância vários dogmas do vosso tempo. Trata-se, tão-só, de um modesto inventário da loucura contemporânea, registado por um defunto com bom ouvido, má-língua e infinito tempo para observar as vossas insanidades.

    Em cada crónica aqui reunida — sim, crónicas, pois não se lhes pode chamar sermões, nem sentenças, nem editoriais — encontrarão uma tentativa de compreender a grotesca metamorfose do vosso século, essa era em que os reis se fazem bobos para ganharem votos, os moralistas se vendem a fundações, os artistas facturam em nome do sublime e os jornalistas já não investigam, mas reverenciam. O meu olhar não é neutro, porque os mortos não são imparciais: não tendo mais a perder, só nos resta a liberdade de rir.

    De António Costa a Cristina Ferreira, do Santo Padre às jerricanocracias lusas, da estética subsidiada à electricidade perdida, e com uma embirração especial para com os jornalistas e o Almirante Gouveia e Melo, percorro — com a ajuda do meu indispensável piparote — as misérias, as farsas, os eufemismos e os escândalos ocultos de uma Pátria que parece hoje menos uma Nação e mais uma anedota com impostos e taxas. As minhas crónicas são, portanto, actas da vossa decadência, redigidas por um escrivão sem corpo, mas com memória.

    E se há mérito nesta publicação, não me pertence inteiramente. Há, de facto, um vivo que se prestou ao vexame de me servir de médium e de amanuense, um tal Pedro Almeida Vieira — literato outrora conhecido, depois silente, agora ressurgido, como eu, mas ainda de carne e muitos ossos, muito cabelo e já alguma gordura — que, por nostalgia ou insanidade, vem prestar-me corpo tipográfico. É ele quem assina por mim na contabilidade dos livreiros, embora se saiba que, neste acordo, a alma sou eu. Em boa verdade, é o seu regresso à literatura; no meu caso, é apenas uma recaída.

    E assim vos deixo, leitoras de sensibilidade e leitores de coragem, com este compêndio de mordacidade. Não é obra de amor, mas de lucidez; não consola, mas esclarece; não perdoa, mas diverte. Se rirdes, cumpri o meu intento. Se vos ofenderdes, melhor ainda

    Brás Cubas