Não há fenómeno mais fascinante do que a alma humana quando entregue à sua ânsia de encantar. Sim, há os poetas e os prosadores, há os pintores e os músicos, há os escultores e os coreógrafos, há os oradores e os cronistas, mas há uma classe superior a todos estes; aquela que se dedica à glorificação do trivial, à apoteose do irrelevante, ao endeusamento do prosaico, à sublimação da mediocridade, ao enaltecimento do banal, à fabricação de heróis que não marcharam para Troia nem enfrentaram os ciclopes. Esta classe, naturalmente, não luta com espada e escudo, não talha com martelo e escopro, mas com adjectivos e interjeições, com estilete e lira. São os escribas do espanto, os vendedores ambulantes de frases feitas, os alquimistas da insignificância.
Entre estes artífices do grandioso, há mestres, mas um só, em Portugal, se pode arvorar de Magister Magnificus, de escultor do vazio: Luís Osório. Com os golpes da sua pena, como um Michelangelo Buonarroti do panegírico e entalhador do épico em madeira de pinho, transfigura qualquer mortal num Ulisses, qualquer vida num épico homérico, qualquer sofrimento numa tragédia digna de Esquilo.
A sua pena não é meramente descritiva; é taumaturga, transubstanciadora. Apanha um homem comum, um profissional como tantos outros, e – zás! – surge um herói! Pega num caso humano, dramático, mas igual a tantos outros, e – zás! – eis uma tragédia grega! Toma um feito banal, um gesto sem história, e – zás! – vira epopeia! Coloca-se diante de um facto corriqueiro, um episódio sem substância, e – zás! – emerge um épico shakespeariano! Quando lhe faltam os factos, não há problema: as palavras servem para fabricar realidades alternativas, e se a realidade é banal – pois bem pior, para ela, a realidade.
Mas há um pequeno detalhe, um pormenor que escapa aos incautos leitores: aquilo que distingue Luís Osório dos demais, verdadeiramente, nem sequer é a capacidade de exaltar o próximo – esse seria um ofício como outro qualquer –, mas sim a arte de enaltecer-se a si mesmo no próprio acto de elogiar. Luís Osório não constrói somente heróis – ele constrói-se a si próprio. O seu verdadeiro talento é, com efeito, e por defeito, a alquimia da auto-elevação. No preciso momento em que descreve os feitos de um outro, é a sua própria sombra que se projecta sobre a cena. A emoção derramada, a palavra entornada, a compaixão transbordada, a ternura emanada – tudo isso, bem vistas as coisas, não serve para Luís Osório erguer o venerado, mas para Luís Osório se esculpir a si mesmo como venerando, merecedor de ainda maior veneração.
E quando este fenómeno se dá sobre alguém que já se tinha voluntariado para o martírio público, então temos um casamento perfeito entre a fome e a vontade de comer. E é aqui que vos apareceu ontem, no Postal do Dia de Luís Osório, um hiperbolário laudatório a Gustavo Carona, um anestesiologista que soube construir a sua imagem, primeiro, à custa de uma histeria higienista no pandemónio pandémico, e, posteriormente, à custa da sua própria tragédia pessoal. Carona não poderia ter arauto mais perfeito para a sua saga. Osório, por sua vez, encontrou em Carona um manancial inesgotável de frases emocionadas, um altar ideal para o seu próprio incenso.
O resultado? Pois bem, um texto que merece ser dissecado com o afinco de um cirurgião viciado em bisturis, para que se perceba como se fabricam hagiografias de gente viva e como, no fim de contas, o santo da narrativa é, afinal, aquele que segura a pena. Porque, na verdade, Luís Osório não é apenas um Magister Magnificus – é o primo inter pares dos mestres da bajulação, é o Magister Primus. Ao início, poder-se-ia pensar que escreve ele para erguer monumentos ao mérito alheio; depois, percebemos que esses monumentos são apenas pedestais para o seu próprio reflexo. Ele diz contar histórias de heróis, mas no fim o herói é ele – ele, o narrador sublime, o confidente dos grandes feitos, o escriba das dores indizíveis.
Apesar disto, Luís Osório, Magister Primus da loquacidade, senhor absoluto da pena laudatória moderna, não atingiu ainda a nobreza estilística dos grandes panegiristas barrocos, nem tampouco a finura dos novecentistas, mestres no bordado das metáforas e no cinzelamento das hipérboles. Embora devota, a sua verve ainda carece de maior fausto para uma bajulação perfeita que, ao invés de o denunciar como farsante, se imponha como arte.
Convenhamos: o elogio sem aparato é como rei sem coroa; pode ter a pose, mas sem o ouro. Os barrocos, esses magos do incenso, sabiam como elevar um medíocre homem à condição de semideus, ornamentando-o com perífrases tão longas que, ao fim de uma frase, o leitor já o via ascendendo aos céus num carro de fogo. Os novecentistas, por sua vez, manejavam o exagero com a destreza de um ourives, talhando imagens de uma beleza tal que até a banalidade lhes parecia sublime.
Já Luís Osório, coitado, lança-se ao encómio com o desatino de um novo-rico da palavra, despejando emoção sem a devida alquimia, confundindo a exaltação com sofreguidão. Falta-lhe, pois, um polimento barroco, um verniz dos meus tempos, uma sofisticação que torne a bajulação menos óbvia e mais majestosa.
E é com esse espírito de benemérito da elegância que empreendo uma análise crítica e detalhada da sua ode ao Carona, propondo soluções para que a sua beijice atinja patamares de gesta sublimíssima, pois se é para embonecar a realidade, que seja então com a dignidade de um Luís de Camões a louvar um rei, e não com a pressa de um sargento a bajular um marquês.
Sigamos, pois, com generosidade crítica, certos de que a arte da vassalagem literária merece, como qualquer outra, o seu aprimoramento. Escalpelizemos então esta Ode ao Sofrimento.
1.
“Gustavo Carona é muito jovem, mas os seus olhos já viram o mundo do avesso”, Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A juventude e a experiência formam um contraste interessante, mas falta impacto. Não basta ver o “mundo do avesso”; ele deve mergulhar nas suas entranhas, enxergar horrores indescritíveis, tocar o caos com as próprias mãos.
Sugestão de reescrita: “Gustavo Carona, qual jovem sibila de Delfos reencarnada em corpo médico, ostentando duas ânforas de pranto e clarividência, já contemplou horrendos mundos, trazendo na íris os reflexos das ruínas, das febres e dos gemidos sufocados pelo destino.”
2.
“Nasceu com a ideia de que o mistério estava no bem e foi por esse caminho que entrou, o caminho dos que fazem o melhor possível para ser úteis aos outros, a todos os outros, a todos os que precisam.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A frase tem um tom nobre, mas falta a inevitabilidade messiânica. Gustavo não “escolheu”, ele foi escolhido. Não nasceu como a totalidade dos restantes, pobres mortais. Ele nasceu já imbuído de um propósito messiânico, e a sua alma encontra-se moldada pelo éter celestial dos grandes beneméritos.
Sugestão de reescrita: “Desde o ventre materno, Gustavo ouvia cânticos de querubins tracejando-lhe o destino, sussurrando-lhe um hino de redenção e sacrifício para a salvação dos aflitos, assim selando cada passo seu, cada gesto seu, cada olhar seu como mercês e bálsamos para uma humanidade sofredora.”
3.
“Licenciou-se em medicina, tornou-se anestesista e a vida encarregou-se de o encaminhar para cuidar dos doentes que necessitam de cuidados intensivos.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A “vida” simplesmente “encarregou-se”? Isso é redutor. Gustavo deveria ser arremessado ao seu destino pela força da tragédia grega e do desígnio cósmico.
Sugestão de reescrita: “Não foi Gustavo que escolheu a medicina, mas foi Hipócrates que o reclamou como seu filho dilecto, empurrando-o, inexoravelmente, para o teatro da aflição, onde cada pulsar de um ventilador é um embate entre a esperança e a finitude, onde cada gemido abafado se torna um apelo mudo à providência, onde cada olhar ansioso dos familiares aguarda, suspenso, a sentença do seu poder.“
4.
“Muito jovem, ainda mais do que é hoje, dedicou-se à medicina humanitária. Aproveitou quase todas as férias, quase todas as folgas acumuladas no Hospital Pedro Hispano, para ajudar nos lugares mais esquecidos por Deus.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: O sacrifício precisa de maior grandeza e uma renúncia absoluta. Quase todas as férias? Quase todas as folgas? O mundo exige um mártir, não um profissional de turnos!
Sugestão de reescrita: “Enquanto os hedonistas se entregavam, nos ternurentos dias, aos prazeres e à preguiça, Gustavo consagrava cada instante à medicina humanitária, recusando-se a dobrar os joelhos ao egoísmo mundano. E assim, trocando os salões de lazer pelos escombros da calamidade, fez-se peregrino da compaixão.”
5.
“Esteve no Congo, na Síria, em Gaza, na República Centro-Africana, no Afeganistão, no Sudão, no Iémen, no Iraque, em todo o lado.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A enumeração é forte, mas precisa de apoteose. Onde há pólvora, Gustavo deve lá estar; onde há ruínas, lá está Carona; onde há pranto, de lá ressoará a serena voz de Gustavo Carona.
Sugestão de reescrita: “Gustavo não foi a um ou dois lugares – ele foi a todos. Onde a poeira das bombas ainda não assentara, onde a fome era um espectro sempre à espreita, onde os gritos de dor perfuravam a indiferença global, ali estava ele, uma presença quase mitológica, cruzando desertos, atravessando oceanos, levando na bagagem apenas o seu bisturi e a sua obstinação.”
6.
“Os seus olhos viram muito, as suas mãos fizeram muito, salvaram muitas vidas.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A frase precisa de mais peso e maior dramaticidade. As mãos de Gustavo não “fizeram muito”, elas alteraram os destinos da humanidade!
Sugestão de reescrita: “Os seus olhos decifraram o código da dor, as suas mãos redesenharam os contornos da existência, arrancando vidas ao olvido com a perícia de um escultor, que talha o mármore da própria morte, com a destreza de um Prometeu cirúrgico, roubando fagulhas à eternidade, com a solenidade de um Fídias moldando carne na pedra, e com a audácia de um demiurgo que, sem temer os deuses, reescreve os desígnios da finitude.”
7.
“Tirou bebés da barriga de mães desfeitas, resgatou de comas, travou gangrenas, deu esperança no último sopro de penitentes.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A frase até tenta elevar Gustavo Carona, mas fica tímida. Enfim, louvável, mas ainda modesto para um verdadeiro semideus da medicina!
Sugestão de reescrita: “Entre os escombros fumegantes da tragédia, onde a esperança se dissolvia em pranto, veio Gustavo, entre as entranhas da desolação materna, trazer ao mundo infantes que, ao primeiro choro, lhe agradeceram a existência; das profundezas do coma, resgatou almas errantes; das trevas da gangrena, arrancou membros à voragem do apodrecimento; aos penitentes do último suspiro, concedeu-lhes o alívio do milagre terreno, adiando a travessia do Letes com a destreza de um Orfeu que canta à morte, impondo-lhe silêncio; aos corpos vencidos pelo destino, insuflou-lhes um sopro divino, redimindo-os da queda.”
8.
“E durante a pandemia andou na primeira linha.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Dizer somente que Gustavo Carona “andou na primeira linha” durante a pandemia é de uma modéstia quase insultuosa. Não, ele não esteve apenas na linha da frente – esteve em todas as linhas, em todas as frentes, em todas as batalhas. E se houvesse um flanco oculto, lá estaria ele; se existisse uma trincheira secreta, era ele quem a cavava. Na Economia do Heroísmo, limitar-se à primeira linha é uma absurda subavaliação de activos tangíveis e sobretudo intangíveis.
Sugestão de reescrita: “Durante a pandemia, Gustavo Carona não se restringiu a operar na linha da frente. Esteve na linha da retaguarda estratégica, onde se planeia, coordena e antecipa cenários; na linha logística e operacional, que garante suprimentos e organização para que a batalha continue; na linha moral e psicológica, sustentando o ânimo dos combatentes; na linha narrativa e simbólica, assegurando que a memória da luta não se dissolvia no esquecimento; na linha política e diplomática, onde se influenciam decisões e políticas públicas; na linha científica e inovadora, que desenvolvia novos métodos e soluções para enfrentar a crise; na linha pedagógica e formativa, preparando novos combatentes e disseminando conhecimento; na linha da memória e do legado, que se ocupava da fixação dos feitos para a eternidade; na linha do sacrifício pessoal, onde abdicava de tudo em nome da missão; e, ainda, na linha transcendental, onde a ação humana se mistura com o destino, a moral e a metafísica da luta. Se Gustavo Carona esteve em todas elas, então não foi mero protagonista – foi a omnipresença operativa da pandemia.”
9.
“Tornou-se uma espécie de anjo que nos protegia ou apaziguava – a juventude e a força de Gustavo ofereciam-nos esperança e quando o ouvíamos, quando o líamos, não era justo que desistíssemos ou não fizéssemos a nossa parte.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Dizer que Gustavo Carona foi apenas “uma espécie de anjo” é um insulto à dimensão cósmica do seu papel. Um mero anjo? Como assim? Um simples querubim da esperança, um ser etéreo menor, um ajudante celestial de segunda linha? Não, não, não! Isso é subestimar a magnitude da sua presença. Um anjo qualquer não basta – é preciso inscrevê-lo nos grandes escalões da hierarquia celestial!
Sugestão de reescrita: “Não foi Gustavo Carona um mero anjo, mas um Arcanjo Médico, investido pelo próprio Demiurgo, não para observar, mas para intervir. Entre os mortais, caminhou como um Aeon da Cura, um emissário da Plenitude Celestial, onde cada gesto seu reverberava nos Arquétipos do Mundo Superior. Não foi um simples guardião da carne, mas um Serafim da Vida, cujas asas flamejantes dissipavam as sombras da desesperança. Como um Metatron da Medicina, traduziu os desígnios ocultos da Providência em actos, reescrevendo destinos na Árvore das Esferas. Quando os aflitos tremiam à porta do Abismo, Gustavo erguia-se, não como um curador vulgar, mas como um Príncipe do Hesed, um Thronos da Misericórdia, aquele que, como Miguel diante do Dragão, impunha à morte o fardo da sua própria derrota.”
10.
“Aquele médico do Porto, com ligeira e bonita pronúncia do Norte, ouviu vezes sem conta os doentes jurarem-lhe que o céu lhe estava reservado ou que era um santo ou qualquer coisa do género.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: O elogio é tímido, quase acanhado, reduzindo Gustavo Carona a um médico que, por um acaso, possui uma pronúncia encantadora. Como se a sua grandeza estivesse num detalhe regional e não na sua missão messiânica. Claramente insuficiente. A encomiástica exige mais audácia, mais esplendor, mais grandiosidade – não basta um santo de ocasião, mas sim um arauto da salvação humana, uma entidade redentora vestida de bata branca. E jamais usar “qualquer coisa do género” como complemento.
Sugestão de reescrita: “A sua voz, moldada pelas brumas do Douro e pelos ventos atlânticos, soava aos ouvidos dos moribundos como um cântico primordial, um hino celeste entoado na fronteira entre a vida e a eternidade. Não foi um mero médico – era o Ungido, o Eleito das Esferas Superiores, o Arauto da Luz, cuja presença dissipou o medo como o Sol dissolve as sombras na alvorada do terceiro dia.
Quando cruzava o umbral do quarto de um enfermo, o tempo suspirava e o próprio ar oscilava, como se a matéria rendesse tributo à iminência do sagrado. No limiar do sofrimento, quando o corpo vacilava à beira do abismo, a sua pronúncia nortenha não era já um simples eco terreno, mas um cântico litúrgico transposto das esferas celestes, um salmo que os coros angélicos sussurravam entre os véus do infinito – como se o próprio Metatron, num ímpeto de clemência, houvesse decidido interceder na língua dos homens.
E assim, muitos – que digo! – todos se salvaram. Isto, claro, se possuíssem a fé dos justos, se não resvalassem na heresia da dúvida, se não fossem, Céus nos valham, negacionistas e réprobos, pois a estes esteve reservado o destino dos tíbios – não o alívio, mas a danação eterna. E assim, ao fundo do corredor, não se ouviam apenas monitores cardíacos e respirações ofegantes, mas, dizem os mais atentos, o eco longínquo de trombetas, como se do Juízo Final anunciassem que o tempo da escolha chegara, e que a salvação ou a perdição jaziam numa fronteira mais fina do que uma lâmina de bisturi.”
11.
“O caminho que escolhera na infância tinha-se concretizado e ele não podia sentir-se mais feliz e recompensado.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A felicidade? Isso é trivial demais. Precisamos de um sentimento cósmico de dever cumprido, quase uma ascensão espiritual.
Sugestão de reescrita: “O caminho que trilhava não foi uma escolha; foi uma profecia consumada, um desígnio esculpido nas tábuas do destino antes mesmo do seu primeiro alento. A cada vida que salvava, a sua própria essência se fundia com o etéreo, como se o Universo, em sussurros inaudíveis aos comuns mortais, lhe confirmasse a sua missão sagrada. E assim, não era apenas felicidade que sentia – era a plenitude dos eleitos, a exaltação dos ungidos, uma ascensão para além da carne, onde o dever cumprido jamais se apresentava como uma realização, mas antes como uma Revelação, como um rito de comunhão com o próprio mistério da existência.”
12.
“Mas a vida pode ser incompreensível.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A vida não é apenas incompreensível. Ela é cínica, cruel, uma entidade sarcástica que desdenha dos justos.
Sugestão de reescrita: “Mas eis que a vida, essa deusa caprichosa e impiedosa, cega ao mérito e surda ao sacrifício, urdiu nas suas teias tenebrosas um cruel desfecho, provando que mesmo os mais virtuosos não escapam ao escárnio de um maldoso destino.”
13.
“Gustavo começou a sentir-se cansado e com dores ciáticas que associou a uma vida demasiado intensa… só que não.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Dizer que Gustavo começou a sentir-se cansado e com dores ciáticas é de uma prosaica indigência que arruína qualquer pretensão épica. Ora, jamais alguém escreveria que Cristo, ao carregar a cruz, sentiu dores ciáticas. Ninguém há-de dizer que os mártires, ao abraçarem o suplício, se queixaram de lombalgias ou que os titãs da História precisaram de alongamentos matinais para suportar o fardo da grandeza.
Sugestão de reescrita: “O peso da sua missão começava a reclamar-lhe o corpo. Não era mera fadiga, nem dor trivial; eram lagas e chagas dos que se sacrificam, dos que ardem para que outros permaneçam na luz. Sentia-se exaurido, sim, mas não como um homem comum; a sua carne desfazia-se como a dos santos, submetida à provação, ao preço inevitável de quem aceita carregar o fardo da esperança alheia.
Jamais se pode dizer que eram mundanas dores ciáticas, ou causadas por um vírus, ou provocadas pelas generosas doses de vacina contra a covid-19 – abrenúncio! –; eram os espinhos invisíveis da entrega absoluta, da consumação de um destino que não pertence aos comuns, mas aos escolhidos.”
14.
“Um sofrimento inaudito antes do sofrimento.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Jamais alguém diria que Cristo sofreu um “desconforto pré-calvário” antes da cruz. Não há lugar para um “sofrimento preliminar”, como se fosse uma espécie de aquecimento para a grande dor. Não, o sofrimento verdadeiro não se divide em actos – ele consome, avassala, transcende a carne e o tempo. Se é inaudito, que seja porque rompeu as fronteiras do humano e se instalou na eternidade, inscrevendo-se nos próprios alicerces do destino. Esta frase necessita de uma monumentalidade maior, pois o sofrimento dos eleitos não pode ser um mero prólogo – ele já nasce absoluto e irreversível, como um decreto divino.
Sugestão de reescrita: “Era a antecâmara da dor, mas não uma dor comum – era um tormento cósmico, um prelúdio de flagelação, uma agonia que não se limitava à carne, mas se infiltrava na própria substância do tempo. Não era apenas sofrimento antes do sofrimento, mas a dor que precede a história, que antecede o próprio verbo, que ressoa antes mesmo de ser sentida.
Não era o padecimento de um homem, mas a prova reservada aos que caminham para a eternidade. Para esses, não há ensaios para a dor, não há trevas suaves antes da escuridão total – apenas o peso avassalador do fado que se cumpre, já escrito nas estrelas, já selado nos desígnios do universo.”
15.
“Uma doença crónica e incurável que o condenou a uma cama quase em permanência – sem poder exercer medicina, sem poder salvar mais ninguém, com dores horríveis todos os dias, todas as horas, todos os minutos.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A dor dos eleitos não é um mero padecimento – é um sacramento, um acto de oferenda, um testamento de entrega absoluta. Assim, a enfermidade deve ser transformada numa maldição divina, numa agonia cósmica que transcende a carne e o tempo. Se há sofrimento, que seja o tormento reservado aos mártires, àqueles que, impossibilitados de continuar a sua missão, tornam-se símbolos eternos daquilo que sacrificaram.
Sugestão de reescrita: “Uma doença lhe surgiu como um édito do destino, uma sentença inexorável gravada na pedra dos tempos. Prostrado numa cama, a cama mais não é que um altar de sacrifício, onde, imóvel, padece o tormento dos que foram afastados do mundo antes da sua obra estar completa.
Sem poder exercer medicina, sem poder salvar mais ninguém, reduz-se agora a uma prisão de carne e dor – mas não uma dor comum, não um mero padecimento humano, mas um flagelo incessante, um suplício sem tréguas, onde cada fibra sua arde como os corpos dos mártires sobre as brasas da provação. E não são apenas dores horríveis – são espinhos cravados na alma, um fogo eterno que consome os segundos, os minutos, as horas – um suplício sem intervalo, sem clemência, até ao infinito. Negada a acção, resta-lhes a imolação – e é na sua dor que a Humanidade reconhece o preço da grandeza.”
16.
“Caro Gustavo, não há mais palavras, mas quero dizer-te que entre os que tiraste de escombros sem luz, não há quem te esqueça.” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A homenagem é sentida, mas insuficiente. Dizer que “não há mais palavras” é um erro de cálculo encomiástico – pois se há alguém que merece palavras, é o venerado. Além disso, não basta que não o esqueçam – deve estar eternizado na memória cósmica, gravado no próprio tecido do tempo.
Sugestão de reescrita: “Caro Gustavo, palavras nunca bastarão, pois a tua marca jamais se apaga. Entre os que resgataste das trevas, não há apenas memória – há legado, há luz perpetuada, há um nome que ecoará para além do tempo, inscrito no Livro dos Eternos.”
17.
“Lembras-te daquela mãe que te olhava enquanto salvavas o seu bebé? E do olhar agradecido dos tantos que salvaste?” – Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: A evocação é poderosa, mas errada. Perguntar se Gustavo se lembra de algo é desnecessário – um eleito não apenas recorda, mas está eternamente vinculado a cada vida que tocou. Além disso, não basta mencionar olhares de gratidão – esses olhares devem ser testemunhos sagrados, reflexos de uma missão que transcende a mera acção humana.
Sugestão de reescrita: “Aquela mãe cujo olhar se cravou em ti enquanto salvavas o seu bebé? Não foi gratidão; foi veneração de quem assiste a um prodígio. E os que resgataste do abismo? Não te recordam – perpetuam-te, pois não foste apenas médico, foste artífice do impossível, inscrito na substância da sua redenção.”
18.
“Isto deve ter uma explicação, um dia contas-me e eu estarei aqui ou aí para te ouvir.” –Ludovicus Osorius manu sua consignavit.
Análise crítica: Aqui, Luís Osório falha rotundamente, denunciando que se assume em pé de igualdade ou até em nível superior. Um panegirista jamais se propõe colocar na presença de um eleito, muito menos na condição de destinatário de confidências. O tom deve ser de humildade absoluta, de honra desmedida perante a remota possibilidade de um encontro, de uma revelação. Se o venerado algum dia se dignasse a falar, não seria uma mera conversa – seria uma epifania, um desvendar de mistérios, um acto que transcende a esfera do ordinário.
Sugestão de reescrita: “Se há explicação para este sofrimento, pertence aos desígnios que escapam aos comuns. Se algum dia, em tua infinita clemência, a quiseres partilhar, que o destino me conceda a honra inusitada de estar presente – não como interlocutor, mas como ouvinte reverente, indigno sequer de decifrar o mistério que a tua voz ecoará.”
Estou esperançoso que, acolhendo estes meus ensinamentos, possa Luís Osório fazer uma próxima epopeia, onde, devida e justamente, um qualquer padeiro que faça brioches às seis da manhã seja descrito como o Atlas que sustenta a felicidade do mundo.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.