Categoria: Correio Mercantil

  • Os Herdeiros de Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller

    Os Herdeiros de Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller


    Com a reverência que se deve à Posteridade — essa gentil senhora que nos relê com o ócio dos domingos e a condescendência dos mortos —, tomo da pena etérea para corrigir um lapso que não me pesava na alma, mas que, por instigação do tempo e do riso, decidi remediar.

    Refiro-me, minhas dedicadas leitoras e meus devotados leitores, ao meu verdadeiro nome — esse que omiti nas minhas primeiras Memórias Póstumas, por pudor, por preguiça, ou talvez por um leve receio de parecer mais importante do que efectivamente fui, ainda que menos do que me julgaram.

    Não o ocultei, para ser veraz, por qualquer vaidade, pois essa usei-a às mãos-cheias, como pomada para as feridas da existência. Não o suprimi por modéstia, sentimento com que nunca fui íntimo e que estimo apenas nos outros, como quem admira um animal exótico e pouco apetecível. E também não o calei por temor do ridículo — esse demónio que assombra os vivos, embora já não incomode os defuntos —, e eu, como bem sabeis, sempre escrevi do lado de lá da carne.

    Calei-o, sim, por estratégia literária. Há nomes que abafam a personagem, como cortinas demasiado pesadas que toldam a luz de um palco; que ressoam mais alto do que a voz que os deveria carregar, como tambores numa ópera de câmara; que impõem uma história antes mesmo do enredo, como brasões pendurados numa taverna de aldeia. Brás Cubas, despido de mais letras, soava-me sóbrio, quase plebeu, e por isso mesmo mais escandaloso quando se via que o sujeito em questão era um parasita elegante, filho da terra e do tédio.

    Mas agora, numa época em que até cadáveres disputam honrarias e o renome suplanta os feitos, declaro, com a solenidade de um édito imperial e a sem-cerimónia de um epigrama de Marcial, o meu prenome, logo triplo, que me distingue no meio da cristandade; os apelidos maternos, legado da linhagem suave mas resoluta da minha mãe; e os apelidos paternos, timbre de uma família cujo brasão foi mais lustroso do que o carácter da prole testamentária:

    BRÁS THEOTÓNIO EVARISTO DE ALCÂNTARA CUBAS E MENESES DE BARBACENA

    Para os puristas do vocabulário e da geografia: sabei que em minha terra se escreve ‘registro’ — e quem quiser registo com ‘g’ suave, vá buscá-lo ao cartório da Torre do Tombo.

    Assim me nomearam, com afagos, esperanças e afectações, meus pais.

    Brás, porque a minha mãe, que nasceu como súbdita do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, viu duas vezes D. João VI a comer pernas de frango enquanto passeava na Quinta da Boa Vista, e lia Os Lusíadas, achava que dar nome de patriota a um filho era uma espécie de oração civil.

    Theotónio, porque o padrinho — um cónego já meio podre de gota e santidade — exigiu um nome de um canonizado obscuro, para justificar o baptismo com pretensões celestiais.

    Evaristo, por vaidade do meu pai, que teve um amigo deputado com esse nome e esperava que eu herdasse também um cargo, ou pelo menos um anedotário.

    De Alcântara, enxertado à pressa por um antepassado ambicioso, talvez na esperança de insinuar linhagem de cruzados, embora a única cruz que verdadeiramente marcou a nossa estirpe tenha sido a das dívidas, carregadas com juros compostos e resignação hereditária.

    Cubas, apelido sólido e sonoro, legado de um avô materno que fez fortuna exportando cebolas para Lisboa.

    E Meneses, enxerto genealógico escolhido por um tio-trisavô, donjuanesco de província, que sonhava sermos parentes do conde de Cantanhede, que andou na Batalha de Toro, ou do marquês de Marialva, que guerreou na Batalha das Linhas de Elvas — ambos tendo sovado castelhanos.

    De Barbacena, porque toda a família bem-posta precisava de um topónimo, e Barbacena, além de ter um certo aroma de província altiva, era onde o meu pai tinha uma modesta chácara herdada — e muitos delírios.

    Se toda esta nomenclatura me enobreceria? Talvez. Se me faria mais digno aos olhos da crítica literária? Duvido.

    Mas, se acaso houvera eu legado descendência — o que, felizmente, não sucedeu, poupando à espécie uns espécimes do meu feitio caprichoso —, decerto ostentariam tais herdeiros ainda apelidos suficientemente sonoros (ou pomposos, ou mesmo de um fausto canhestro) para assomar ao sonar genealógico da ilustríssima jornalista Maria João Avillez. Quero dizer, corrijo já, penitenciando-me pela inaceitável vulgaridade: Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller, filha de Dom Luís de Avillez de Almeida Melo e Castro, bisneto do 8.º conde das Galveias e trineto do 1.º visconde do Reguengo e 1.º conde de Avillez, e de sua mulher Dona Maria José de Melo Breyner Pinto da Cunha, neta do 4.º conde de Mafra, senhora de tantos nomes que, se a Bíblia começasse por ela, o Génesis ocuparia toda a biblioteca.

    Porém, não é de génese que desejo falar — é de Os Herdeiros, programa de entrevistas dessa matriarca da consanguinidade, jornalista e escritora de fino recorte, mas financiada com candura por um banco espanhol de bom proveito e por uma fundação norte-americana, cujos mecenas parecem confundir filantropia com fé no sangue azul.

    Ali, na Rádio Observador, de poltrona em poltrona, já vi e ouvi desfiarem-se vidas cintilantes de rebentos de gentes graúdas da Lusitânia contemporânea — variegada fauna da elite urbana que, entre um iogurte orgânico e uma licenciatura em Londres, vem contar como venceu o mundo com o berço certo e o sotaque afinado. Desde um cozinheiro gourmet, que se queixa do preço do foie gras ao pequeno-almoço, até à política socialista que, entre um abraço ao povo e outro à fortuna, descende de um ministro salazarista, passando pela filha de um realizador e enteada de um embaixador, a quem o casting caiu em cima como a maçã na cabeça do Newton, por um acaso — pode ouvir-se tudo.

    Quer dizer: tudo, excepto todo o resto. Não vislumbrei, até hoje, vidas passadas de sofrimento e choro: nenhuma criança descalça de uma aldeia de Trás-os-Montes, com frieiras nos pés e folhas de embrulho por cadernos de escola; nenhum órfão de sapateiro, nem meninas de avental que recitassem Camões entre tachos; nem sequer um ex-seminarista de aldeia que tivesse fugido para Lisboa com os Sermões de Vieira na algibeira e um estômago vazio de metafísica e feijão. Ali, na Rádio Observador, só há histórias de superação… com dinheiro nos bolsos desde o útero.

    Não me interpretem mal. Nada me move contra a fortuna nem contra o doce instinto de pecuniosos genitores em mimarem os seus pimpolhos — cada qual penteia o seu rebento como quer, ou pode, seja com escova de prata ou de palha de aço. O embaraço não reside no berço de linho, mas na narrativa bordada ao derredor. Na verdade, consiste apenas no facto de, nestas entrevistas — que hão-de prolongar-se enquanto houver crédito bancário e champanhe fresco —, se servir o embuste em taça flûte de cristal francês.

    As conversas da excelsa Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller levam-nos sempre ao engano, como quem compra uma telenovela em fascículos dourados: início feliz, meio feliz, fim feliz — embora o fim, esse, seja igual para todos: ser comido pelos vermes ou metido num boião de cinzas que algum herdeiro distraído esquecerá na arrecadação entre um tupperware e um bibelot.

    Em suma, o busílis está em que muitos, ingénuos ou devotos, ouvindo tais conversetas, crêem que filhos de bons pais, bons sempre serão — esquecendo-se de que até Caim era filho de Adão, que D. João IV de Portugal teve como filho D. Afonso VI, e que, no meu Brasil, de Getúlio Vargas saiu Lutero Vargas.

    Mais útil, mais nobre e mais necessário seria que D. Maria João andasse a vasculhar os filhos degenerados, os despojos gloriosos das linhagens: o filho do barão que virou vândalo, a neta da marquesa dada ao vício do jogo e à poesia, o sobrinho do visconde convertido em youtuber de culinária vegana, e o bisneto do pequeno fidalgo que fundou um partido revolucionário em honra de Robespierre e da dieta sem glúten. Seria esse o verdadeiro contributo para a história social da decadência. Seria uma genealogia da ruína, à maneira nietzschiana —, mas com menos martelo e mais renda de linho.

    Porque, insisto, a minha tese — uma que nenhum banqueiro financiará, e nenhuma fundação transatlântica premiará — é simples como a parábola do Eclesiastes, aplicada com perenidade: “melhor do que ambos é aquele que ainda não nasceu, que não viu o mal que se faz debaixo do sol”. Ou seja, o melhor é não ter filhos. Não transmitir a nenhuma criatura o legado da miséria humana, as manias hereditárias, os vícios meticulosamente embalados em prata e ressentimento. Não impingir a mais bastardos da esperança os traumas em segunda mão, as neuroses com monograma, o medo da morte disfarçado de carreira, a ambição doméstica de um SUV híbrido e de uma escola com filosofia bilingue.

    Enfim, não gerar descendência para deixar de acalentar a esperança de ser possível melhorar o mundo — e que isso passa por mais um nome num boletim de nascimento, mais um balão num chá-revelação, mais um adolescente com aparelho nos dentes mas vazio de alma. Melhor seria, para a Humanidade, que todos, em lúcida greve dos ventres, fechassem a loja da carne e do sobrenome — e deixassem que a Terra enfim repousasse, livre dos humanos e dos seus projectos, dos casacos de meia-estação, da ânsia de eternidade, das selfies e das fotografias de Natal.

    Porque, minhas crédulas leitoras e meus iludidos leitores, convenhamos: se o mundo fosse realmente tão maravilhoso, já teria sido herdado por gente decente.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • E dos abismos, um Messias em Belém

    E dos abismos, um Messias em Belém


    “E veio dos abismos, como Jonas do ventre do peixe. E disse: dou-vos a esperança, dou-vos o futuro, dou-vos… as minhas bitáculas.”
    Livro de Santo Isaltino, capítulo I, versículo naval.

    Confesso-vos, respeitáveis confreiras e veneráveis confrades da língua de Camões — vós que comungais comigo a liturgia das palavras lusas, essas mesmas que se esvaem agora em terras nipónicas, afogadas na subserviência idiomática ao dialecto mercantil dos paxás de Buckingham —, que também eu teria sido tentado a crer, como vós, se nascesse português. E não seria crer com aquela fé cega dos bem-aventurados ignorantes, mas naquela superstição arquetípica que vos habita os ossos desde Alcácer-Quibir: a de que um Homem virá.

    Um só. Um redentor de pulso exacto e olhar tabelado, surgido das criptas bafientas, renascido do húmus de instituições mortas, como Lázaro chamado à luz por decreto do Orçamento. Empunhará ele, agora que sois uma democracia fatigada, a Constituição — e não como simples carta de leis, mas como bastão de Moisés, erguido contra o caos, pronto a fender as águas revoltas de uma Nação em delírio. E ouvi-lo-íeis a prometer, com voz de oráculo e pose de profeta, um Êxodo glorioso rumo a uma terra nunca vista — talvez prometida, talvez inventada — onde mana leite, mel… e relatórios trimestrais.

    Ó Portugal! Ó terra ungida pela saudade e excomungada pela sorte! Ó trono vazio do Quinto Império! Ó tabernáculo de lamentos e visões proféticas! Tu, que sempre cantaste a História em modo subjuntivo! Que outro povo da Cristandade se entregou com tão mística devoção ao culto do Salvador Único? Que outra grei fez do messianismo programa de governação, e da espera do semideus regenerador um dogma da esperança colectiva? Que outro povo invoca ainda um Endovélico velado em névoas, um Apolo errante dos confins do Império, um Prometeu penitente que, em vez de roubar o fogo aos deuses, promete devolver a ordem, a justiça e o pão?

    Houve tempos em que imploraste por reis com auréolas, monges de espada, padres de milagre, generais de verbo inflamado e botas de parada. Mas, no desânimo do mundo, agarrai-vos agora ao eco do antigo augúrio, à figura visionada entre vapores do destino, que há-de guiar, ainda e sempre, tudo e nada, por entre as brumas de um futuro adiado.

    Mas a ânsia acabou. A espera terminou. A vigília cessou. E a profecia cumpriu-se. E a névoa dissipou-se. E o véu rasgou-se. E a figura ergueu-se.

    Chegou-vos o Senhor Almirante — e nunca será bastante este vasto Ulisses lusitano sem Odisseia, que vos surge da espuma dos dias com salpicos de escumas patrióticas. Não veio Ele das praças das peixeiras, nem dos púlpitos inflamados dos parlamentares, nem dos areópagos solenes dos sábios cofiando tratados. Veio Ele da penumbra dos conveses, da vigília luminosa mas fria dos faróis, da cartografia muda das cambuzes — esses camarotes sem janelas onde se esquadrinham rotas, se limpam sextantes e se murmura, em voz baixa, o nome perdido da Pátria. Enfim, surgiu, ungido, porque urge “Honrar Portugal”.

    Mas — questiono eu — perante este epifânico ressurgir das águas, que interessam, portanto, as reflexões sobre o que Ele vos lega? Nenhum interesse. Até porque nenhuma cogitação Ele fez, que se saiba. Que ideias vos deixou Ele antes de 2021?! Nenhuma — salvo, talvez, alguma ordem de serviço para verificar válvulas de pressão em escotilhas ou calibrar a bússola do refeitório. E depois? A sua contribuição para a República foi, até ao advento pandémico, tão audível como o silêncio de um torpedo no bojo de um couraçado já afundado — é certo. Nenhum livro, nenhum discurso digno de registo, nenhum gesto que deixasse memória — apenas o brilho disciplinado de um botão dourado, o aceno protocolar, e a pontualidade com que assinava folhas de ponto ou calibrava o rumo da inércia. Porém, o Senhor Almirante é Ele.

    Dir-vos-ei mesmo, num raro acesso de generosidade conceptual, que Ele encarna a mais discreta e eficaz das funções públicas: a do inútil necessário. Foi Ele uma peça imóvel da engrenagem, a ausência que garantiu estabilidade, o silêncio que evitou ruído, o peso morto que impediu o balouçar excessivo da nau. Não atrapalhou, não inspirou, não corrompeu. Foi Ele um fantasma benévolo, uma nulidade funcional, um burocrata elevado à dignidade de símbolo — o símbolo, aliás, da esperança nacional de ser do nada, que submerge a Pátria, que emerja a Salvação.

    Mas não vos precipiteis, ó anti-Cristos, aquele que não apreciam o Senhor Almirante, nas críticas! Há uma grandeza no nada. Não criou Deus o mundo a partir do vazio? Talvez o Senhor Almirante vos proponha o mesmo. O seu discurso de apresentação da candidatura a Belém — sem corda ao pescoço e com a gravidade de um Isaías com galões — foi uma ex nihilo presidencial. Teríeis, então, um presidente-filósofo do silêncio, um Kant do eco surdo, um Pascal da calmaria, um Heidegger do vácuo institucional. Um desses raríssimos homens cuja força reside no não-dito, na não-acção, no não-ser — um redentor por omissão, que vos guiará, com mão invisível, pelas grutas sagradas da indiferença. E o país aplaude, porque sempre gostou de gente que aparece do nada, se apresenta como tudo, e depois lidera como ninguém. Literalmente. Como ninguém — ou melhor, como um zé-ninguém.

    Mereceis a salvação por essa via: pela via do abismo sereno, onde nada acontece — e por isso tudo parece estar em paz. Porque só Ele vos redimirá da guerra que voltou ao coração da Europa, estilhaçando a ilusão de uma paz perpétua. Só Ele vos libertará do Ocidente que vacila, que se fracciona, que perde o rumo como nau sem astrolábio. E só Ele, hélas, poderá amparar-vos na vertigem de um Império em declínio, onde os Estados Unidos já não oferecem segurança, mas lançam incerteza — como deuses fatigados que abandonaram o panteão e deixaram as criaturas entregues ao seu próprio espanto.

    De resto, o discurso d’Ele é um tratado de evangelismo secular, de homilias sobre esperança, de epístolas sobre confiança e de salmos sobre coesão nacional. Falou-vos Ele da guerra na Europa com a solenidade de um profeta. Falou-vos da Economia Global com o pavor de Jeremias. Só Lhe faltou um Apocalipse com besta de sete cabeças para que a sua candidatura se venha a converter em Revelação.

    “Estou aqui porque amo o país”, anunciou-vos, com o fervor de um mártir. “Estou aqui porque jurei dar a vida pela Pátria”, repetiu, como quem deseja vender-vos um sacrifício no mercado dos votos. E vós, pobres, comovestes-vos. Sois um povo de romaria e lágrimas fáceis — bem sei. Basta-vos um toque de clarim e três substantivos abstractos para vos comover.

    Mas deixai que vos confesse um segredo, vós que ainda respirais: a República, por mais cerimónias que exiba, não é um navio. Não se governa uma Pátria com bússolas e disciplinas de caserna. Isso é coisa de palavras e de ideias, de debate e de dissenso — não de quartéis e bússolas.

    O Senhor Almirante falou-vos da sua coragem, da sua entrega, do seu passado? Invocou o seu percurso sem mácula, a sua missão cumprida no seio da Armada, e recordou-vos, com gravidade quase litúrgica, os dias de Pedrógão, o combate à pandemia, a logística das vacinas, a gestão das cinzas e dos cadáveres — que, sim, exigiram frieza, método e um certo fatalismo operacional?

    Muito bem. Honrai-lhe o serviço, agradecei-lhe o zelo. Mas que vos disse Ele do presente? Que palavra lhe ouvistes sobre a liberdade em erosão, sobre a corrupção que escorre pelos corredores do Estado como água de esgoto em palácio barroco? Que disse dos juízes omnipotentes, da bandalheira nos concursos públicos, da promiscuidade constante entre o capital e os partidos que fingem combatê-lo enquanto lhe dão guarida?

    Ah, nada. Silêncio. Um silêncio denso, expectante, calculado — como o de quem avança coberto por névoas e respaldado por prestígios difusos.

    Mas não temais: prometeu-vos que será presidente capaz de vos unir, de vos motivar, de vos devolver o sentido da esperança. Que será consciência e exemplo. Que será estável, confiável, atento. Que usará a palavra com contenção, com substância, com propriedade. Que será árbitro e moderador — enfim, um Sansão sem cabelo, um César sem senado, um Prometeu sem fogo, embora com traje passado a ferro.

    Também Alexandre prometeu fundar uma nova Babilónia — e morreu febril numa tenda. Também Aarão moldou um bezerro para unir o povo — e foi desmentido pela montanha. Também Cassandra predisse o futuro — e foi condenada a não ser ouvida.

    No Senhor Almirante tudo se resume a uma enumeração de males sem explicação e a uma avalanche de promessas sem plano. A retórica — disse Platão, ou porventura gostaria de o ter dito — é a arte de persuadir sem saber. É o caso. A retórica surge aqui envernizada com a pureza de uma túnica que jamais cheirou pólvora, nem viu lama, e que parece ter emergido directamente da névoa cerimonial de um submarino atracado.

    Não confundais patriotismo com programa. Nem experiência militar com pensamento político. Os generais — sei-o pelo que vi e pelo que a História confirma — quando aspiram ao trono, costumam vir cheios de passado e vazios de futuro. O Senhor Almirante grita isso sem dizer uma palavra. E embora não duvide da honra do homem — a barba parece sincera, e há uma certa nobreza no seu olhar naval —, temo, porém, que Portugal precise, neste momento, não de mais honra, mas de mais ideias. Ou, pelo menos, de melhores.

    Poderia estender-me, mas receio ser acusado de marinofobia retórica, ou de heresia contra a armada dos virtuosos. Deixai-me então concluir com uma exortação bíblica, que tão bem serve à ocasião: “Que não se deite vinho novo em odres velhos.” E Portugal, minhas dilectas senhoras e meus preferidos senhores, precisa de vinho novo. De pensamento fresco. De menos fardas e mais livros. De menos vocação para a obediência, e mais coragem para a dúvida.

    Assim, e com a vossa indulgente permissão, retiro-me novamente para o meu túmulo literário. Se voltardes a precisar de um epitáfio para a política portuguesa, sabei que o escreverei de bom grado. Mas não me peçais, por piedade, que elogie almirantes sebastianistas com vocação de Moisés.

    Glosando o Senhor Almirante, na Gare Marítima, pois então: “Viva a ironia. Viva a lucidez. Viva Portugal.”

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    Hoje (quase) não houve necessidade de produzir ilustrações com recurso a inteligência artificial: a realidade revelada pela associação Honrar Portugal suplanta a ficção.

  • Do arrojar-se em Osaka: considerações zoológicas e teológicas sobre a Língua

    Do arrojar-se em Osaka: considerações zoológicas e teológicas sobre a Língua


    Uma sociedade que olvida o seu passado cava não só a cova da sua memória, mas também abre uma vala comum para sepultar, lado a lado, a sua identidade e a sua dignidade. Quem o diz sou eu, um inquilino perpétuo do subsolo — e por isso, suspeito, saberei avaliar com alguma propriedade o valor simbólico tanto de um buraco como de um hipogeu. Não há metáfora que me falte, nem húmus que me surpreenda.

    Dir-me-ão que exagero, que a História não morre assim tão facilmente. Talvez. Mas também ninguém a viu levantar-se de um túmulo, onde a sequestraram, com a compostura de quem regressa por vontade própria. A História não morre, dizem — mas adormece, pode ser silenciada, moldada aos caprichos dos vivos como um cadáver manipulado por ventríloquos. Há quem lhe chame releitura ao que não passa de reescrita conveniente.

    E é nesse afã de enterrar — com ou sem lápide — tudo quanto foi e já não se conforma à ortodoxia da moda vigente que políticos e burocratas acabam por lançar a pá, não apenas sobre os mortos, mas sobre si mesmos. Julgam-se sepultadores da memória alheia, quando afinal cavam a própria extinção simbólica. A cova, no fim, é sempre escavada pela mão diligente da ignorância — sobretudo quando esta se veste de modernidade e se mascara de progresso. E se é verdade que os mortos não falam, permitam-me esta excepção: o esquecimento é o único cemitério onde o luto é facultativo, mas a orfandade é garantida.

    A pueril ignorância voluntária dos adultos sempre me espantou — é como quem, ao encontrar uma fotografia antiga, prefere rasgá-la a confrontar-se com o rosto que já teve. E, diga-se, sem receio de parecer antiquado: há mais dignidade num retrato a sépia de um antepassado de ceroulas honestas do que num painel de aeroporto em inglês simplificado, onde se proclama que Portugal “está a comunicar inovação”.

    No lusitano cantinho, a terrinha, o peso da sua História passou de alicerce a embaraço, e é essa transfiguração perversa que hoje sustenta a ilusão de um presente auto-suficiente. Mas a vergonha do passado só deixará de ser o vexame do futuro se o porvir for ainda mais ignaro do que o agora — o que, diga-se com diversão, já não é hipótese remota; antes, tendência comprovada por dados e decretos.

    Não me move o ânimo nem me fere a compostura que Portugal veja a sua memória como um fardo, mas já me encanita, mesmo estando em ossos, que reputem a minha língua — não aquele músculo de chicote da verdade e veneno da intriga, que os vermes já digeriram —, mas a Língua, a colectiva e com maiúscula, como um estorvo. Porque, queira-se ou não, acabei involuntário herdeiro de Gil Vicente, Fernão de Oliveira, João de Barros, Luís de Camões e António Vieira — e, como qualquer órfão honrado, zango-me quando cospem no retrato dos meus antepassados.

    Tivesse Nicolas Durand de Villegagnon logrado, no século XVI, mais do que montar o seu efémero Forte Coligny na Baía de Guanabara, e talvez pouco me apoquentasse com os destinos da língua portuguesa. Teria antes sido um súbdito gaulês na França Antártica e herdado o estilo e as normas de Chrétien de Troyes, Guillaume de Machaut, Joachim du Bellay, François Rabelais e Claude Favre de Vaugelas, que tanto se esmeraram em adubar o francês com flores retóricas, mas também com certo perfume de pretensão inebriante.

    E, quem sabe, estaria agora a escrever com ternura sobre la patrie e la langue de Molière, entre um suspiro e um ponto e vírgula, sonhando que o mundo inteiro um dia falasse francês — língua feita para dizer com quatro palavras aquilo que em português se resolve com uma e um gesto. Mas enfim, consolo-me: se não me coube a glória da universalidade, ao menos escapei à tortura de pronunciar rue como se estivesse a tossir em verso.

    Toda esta torrentosa fanfarra de lusíadas palavras e liturgia de portucalenses vocábulos, à laia de exórdio, serve unicamente para vos falar que este sucedâneo do Reino de Portugal — antigo senhor de mares e de letras — resolveu apresentar-se na Exposição Universal de Osaka, em pleno ano da graça de 2025, omitindo — com a coragem dos tímidos e a temeridade dos envergonhados — a Língua Portuguesa.

    Entram os visitantes no lusitano pavilhão, para logo imergirem num mar de luz e imagens, donde apenas emergem o japonês — por deferência — e o inglês — por subserviência. O português, esse, permanece submerso.

    Este facto, que seria apenas grotesco se não fosse revelador, foi perpetrado sob a égide da AICEP, acrónimo que, segundo os arquivos oficiais, designa a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, mas que melhor seria traduzido como Agência para a Inutilização Cretina da Expressão Portuguesa. Preside-lhe um cavalheiro chamado Ricardo Arroja — cujo apelido, por uma dessas ironias de cariz escatológico-divino, já prefigura o seu destino: arrojar-se. E quanto mais depressa, melhor.

    Mas alto! Não à frente, como Eneias ao combate; nem para cima, como Elias no seu carro de fogo; nem aos deuses, como Prometeu à ousadia — arroja-se simplesmente ao chão. E fá-lo com zelo: como o cão de Tobias, que lambia as feridas do seu amo cego, assim também se arrasta o Arroja, devoto e diligente, aos pés do inglês.

    Ricardo Arroja, presidente da AICEP junto ao pavilhão de Portugal na Expo 2025 Osaka.

    Como explicar tal prodígio de abnegação identitária? Como justificar que, num investimento de 26 milhões de euros — o equivalente a uma armada de galeões de papel reciclado —, não tenha sobrado espaço nem para uma frase em português? Talvez, quem sabe, a língua de Camões tenha sido considerada pouco eficaz, pouco market-friendly, ou, na lógica dos publicitários ministeriais, demasiado identitária para um país que quer parecer outro.

    Oh, veneráveis sombras de António da Mota, Peixoto e Zeimoto, vós que em 1543 aportastes ao Japão, em fragatas tão frágeis quanto o carácter dos burocratas modernos, que diríeis agora, vendo a pátria que vos sucedeu apresentar-se ao arquipélago nipónico sem voz? Onde estão as espingardas de prata que oferecestes ao daimyō? Onde a gramática que os jesuítas redigiram? Onde a imprensa tipográfica, o catecismo, a língua?

    Desgraçado de ti, Fernão Mendes Pinto, armado em Ulisses da grandeza lusa, que disseste que o Japão ficara maravilhado com o verbo português — e eis que hoje, pela mão de Arroja e seus acólitos, se apaga esse verbo como quem apaga um candeeiro numa casa alheia por medo de ofender.

    Mas talvez não se trate apenas de ignorância. Talvez seja mesmo um complexo, como o diagnosticou o meu patrício Nelson Rodrigues, esse dramaturgo da alma brasileira que detectou o “complexo de vira-lata”: essa vergonha difusa de ser o que se é, essa ânsia de parecer cosmopolita pela negação da origem. O senhor Arroja, assim, não é apenas um tecnocrata: é um vira-lata com vergonha do país e da sua língua.

    E aqui entra o elemento teológico: ao renunciar à sua língua, o homem renuncia à sua alma — e ao fazê-lo, comete o pecado de Babel, embora às avessas. Se os construtores da bíblica torre quiseram unir-se por uma língua comum, o Arroja moderno prefere confundir a sua para melhor diluir-se. Tal como Pilatos, que se lavou com água para não sujar as mãos com o sangue do Justo, assim também se lava a AICEP do incómodo português — para não afligir turistas, consultores ou intérpretes de japonês de escritório.

    Há, neste gesto, também algo de zoológico. Um canídeo, quando teme, deita-se. O animal submisso curva-se, mostra o ventre, esconde os dentes. Ricardo Arroja, nesse sentido, é um espécime lapidar do Canis lupus familiaris tecnocrático: obediente, higiénico, sem voz própria. Já não é o cão de guarda da Cultura nacional; é o cão de colo da conveniência internacional.

    E o mais trágico é que esta auto-humilhação se dá no país que, outrora, mais escutou os portugueses, com atenção e reverência. O Japão, que teve no português a sua primeira janela para o mundo moderno, é hoje palco deste amesquinhamento voluntário. Como se Portugal fosse um mendigo à porta de um templo onde já foi sacerdote.

    Há pastéis de nata portugueses… ou,simplesmente, custard tarts, designação mais adequada para a subserviência linguística em exibição.

    Mas não espereis demasiado de burocratas e políticos. Um velho mestre da minha infância dizia: “há almas que não aspiram à imortalidade — apenas ao cargo.” Portanto, para eles, a língua portuguesa é uma despesa. A memória, um entrave. A identidade, uma excentricidade.

    Assim, caríssimas leitoras e não menos ilustres leitores, proponho uma solução radical: declare-se o português uma língua morta. Como o latim de Cícero. Como o grego antigo de Píndaro. Como o aramaico de Cristo. Como o etrusco de Velthuran, escriba de túmulos e poeta sem leitores. Façam-lhe um funeral com honras de Estado.

    Encomendem a alma de Camões aos cuidados da UNESCO e passem a chamar ao idioma, com rigor de mercado e pragmatismo ibérico, brasileiro. Bem sei que o pavilhão do Brasil também passa vergonha em terras nipónicas, mas os meus patrícios, tirando isso, sempre são maior número e, com mais ou menos política, mantêm viva esta língua de século — nos livros, nas canções, nas ruas.

    Até porque, vejamos bem, Portugal já não se vê como Nação. Vê-se como logótipo. Se em tempos recentes já transformaram o árabe al-Gharb em ALLgarve para fins turísticos, agora só falta Portugal transmutar-se em PortugALL. E um logótipo não precisa de língua — apenas de slogan. Como os burocratas se esqueceram de que a língua é o sopro da soberania, acabam estrangeiros de si próprios.

    Portanto, Ricardo Arroja, vós que presidis à Agência para a Inutilização Cretina da Expressão Portuguesa, e com toda a reverência que a vossa genuflexão não me merece, permitais-me declarar: o vosso apelido não é um acaso paterno; sois, sim, um aviso à navegação. O vosso arrojar não é impulso heróico — é reflexo pavloviano. Arroja, aqui, é como atirar-se fora uma herança embaraçosa.

    O vosso Pessoa disse outra coisa qualquer sobre a língua e pátria, de que me não estou agora a recordar, mas poderia ter escrito que “a pior forma de ignorância é a elegância do apagamento” — e, nesse aspecto, senhor Arroja, Portugal apresenta-se mesmo em Osaka como um país elegantemente ausente.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    A ilustração foi produzida com recurso a inteligência artificial.

  • Dia de Reflexão, o único feriado democrático que nada celebra e tudo proíbe

    Dia de Reflexão, o único feriado democrático que nada celebra e tudo proíbe


    Digníssimas leitoras e ilustríssimos leitores — que hoje, em véspera de eleições, vos recolheis às celas interiores do pensamento como eremitas da cidadania, cartuxos do sufrágio e ascetas do boletim, invocando em silêncio os querubins da ponderação e os serafins do juízo último —, permiti que vos perturbe esse raro instante de suspensão democrática.

    Sim, falo-vos hoje, e não ontem nem amanhã, com a solenidade rígida dos defuntos e o sarcasmo peculiar dos lúcidos, sobre a mais nobre instituição do Portugal moderno: o Dia da Reflexão — esse sabático do espírito, essa saturnina suspensão da razão, esse interregno místico entre o desespero e o voto.

    O vosso Dia da Reflexão, senhoras e senhores, é o único feriado democrático que nada celebra e tudo proíbe: não há cartazes, não há comícios, não há debates, nem se concede nem se concebe um post matinal do candidato a beijar velhinhas, a elogiar os chicharros da praça ou a beber um copo de três da Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões. Nessa véspera sagrada, o eleitor é abandonado solitário, deixado a sós com a sua consciência — o que, no caso lusitano, é o mesmo que entregar um menu de degustação nas mãos de um cadáver: há protocolo, mas não há paladar; há silêncio, mas não há transcendência.

    A portuguesa legislação, com piedosa ambiguidade, não nomeia expressamente tal dia, mas sabe-se que a campanha encerra à meia-noite da antevéspera da abertura das barricas da fé democrática, ou dos sarcófagos da vã esperança, a que chamam urnas, deixando vinte e quatro negras horas em branco como uma página de Descartes antes da obscura dúvida metódica.

    A razão? Presume-se, nem se sabe bem quem, que alguém julgou que o povo, liberto da intoxicação propagandística, se recolheria em estado de contemplação cívica. Na prática, porém, o eleitor luso vai ao Pingo Doce, almoça na sogra, revê a última gala do The Voice — e hoje, muitos daqueles que forem à bola ainda seguirão para o Marquês de Pombal em festejos, ou para casa em soluços —, mas quem legislou fica convencido de que haverá reflexão, e que esta opera milagres invisíveis.

    É nisto que Portugal se distingue: em vez de ser uma nação pensante que age, é um país que age como se pensasse. Invoca-se a reflexão como um bem escasso, uma espécie de trufa democrática aflorando do estrume em véspera do sufrágio. “Pensai!”, ordena-se. “Sopesai”, intima-se. E o povo responde, sem responder: “Sim, mas só depois do jogo e do cozido à portuguesa.”

    Vede o paradoxo, ó espíritos esclarecidos: é no único dia reservado ao pensamento que se evidencia, por contraste, a indigência mental da República. O reflexo natural do eleitorado lusitano nunca foi reflectir, mas repetir: repete slogans, repete indignações, repete sábados, repete o voto. Com a seriedade de uma urna funerária, o português depositará na urna eleitoral uma escolha que muitas vezes não passará de superstição com uma cruz num quadrado — e isto se souber traçar dois riscos em diagonal.

    Enquanto isso, imagino os candidatos, privados dos seus púlpitos, entregando-se, neste dia, a liturgias privadas. Que fará Pedro Nuno? Ajoelha-se aos pés de uma sondagem? E Montenegro? Preparar-se-á para o desfile das Rusgas a São Pedro? Ventura? Ah, ficará rodeado por chá de camomila e biscoitos de água e sal, num jejum mais retórico do que físico, tentando distinguir entre o refluxo gástrico e o refluxo eleitoral? E Mariana? Consultará o tarot para conhecer o futuro dos grisalhos? E Tavares? Escreverá, em tom bíblico, uma lista de profecias, pensando serem promessas? E… enfim, os outros? Nada de útil. Hoje, reina o silêncio. Nenhuma palavra, nenhuma imagem, nenhum meme. Será o jejum do credo democrático.

    E o eleitor, suspenso no seu transe reflexivo, deverá, perante este momentum, cair em lucidez — coisa que, entre vós, costuma chegar tarde e, normalmente, depois de consumado o disparate.

    Dia de Reflexão! Ora, não penseis, certamente, que os deuses da Antiguidade se sujeitariam a semelhante cerimónia. Júpiter, que arrasava montanhas e arrebatava ninfas, não admitiria um segundo de silêncio entre o raio e o trovão. Nem Atena, deusa da sabedoria, ousaria suspender a palavra para permitir que os atenienses meditassem antes de escolher o mais eloquente entre os demagogos. Mesmo o Oráculo de Delfos exigia um certo tumulto. Só em Portugal é que se pretende que a razão nasça do vácuo legal, da circunspecção, da análise introspectiva, da suspensão volitiva.

    Na verdade, o Dia da Reflexão é menos uma pausa para pensar e mais um ritual de inocência burocrática: serve para lavar as mãos ao sistema, como Pilatos diante do povo, proclamando: “O que vier agora não é culpa da propaganda, é da vossa consciência.” Mas quem conhece a consciência portuguesa sabe que é moldada em resina de conveniências, não em bronze de virtudes.

    E ainda assim, na véspera das eleições, cada candidato rezará — não por si, mas pelos erros dos outros. Não há convicções, só esperanças. Deseja-se que o adversário tenha escorregado num soundbite; que a abstenção o favoreça; que o voto útil no adversário se disperse como farinha no vento. O Dia da Reflexão é uma jornada de superstição, onde o único pensamento admissível é “esperemos que corra bem.”

    Ah, Portugal! Pátria onde até o pensar precisa de tutela. Onde se legisla o silêncio para que, enfim, se escute o eco do vazio. Onde se proíbe a palavra não para valorizar a acção, mas para garantir que ninguém diz mais uma asneira — porque, até nesse campo, os políticos atingem a saturação.

    Mas, chegado o domingo, tudo se precipita. O cidadão dirige-se à assembleia de voto como quem vai ao confessionário, com uma cruz na mão e a alma em suspenso. Vota. E, ao sair, já não reflecte mais. Vai comentar, vai lamentar, vai desconfiar. Vai voltar ao ruído. Vai voltar ao meme. Vai voltar à indignação. Até à próxima reflexão.

    Eis, pois, o balanço: o Dia da Reflexão serve para confirmar que Portugal pensa mal, pouco, ou apenas quando é tarde. É um interregno cerimonial, como a pausa entre o segundo acto e a tragédia. Um feriado do pensamento num território onde a ideia é ilegal quase todos os outros dias.

    Por isso vos digo, com caveiral clarividência: se a vossa única lucubração cabe apenas na véspera, mais vale deixardes o boletim em branco e buscardes preencher, com afinco, o espaço entre as vossas ornamentais aurículas. E vão tarde.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Os bobos e os reis, ou sátira ao novíssimo humor político

    Os bobos e os reis, ou sátira ao novíssimo humor político


    Com a sobrancelha arqueada de quem já viu ministros a dançar o fandango em romarias eleitorais, causa-me espécie — espécie com nódoa — assistir à nova predilecção dos políticos lusos: em vez de se submeterem ao tormento antigo dos jornalistas impertinentes, armados de arquivos e perguntas duras como dentaduras de avó britânica em plena crise do chá, preferem agora reclinar-se em poltronas de veludo mediático, entregues ao chiste benigno dos modernos bufões — os nobilíssimos Ricardo Araújo Pereira, Guilherme Geirinhas e outros encantadores da verve televisiva e digital —, esses verdadeiros jograis de auditório, menestréis de horário nobre, prestidigitadores de palmadas cúmplices e riso programado.

    Esta é uma inversão deveras deliciosa da hierarquia dos tempos de antanho: outrora, o bobo fazia rir o rei; hoje, o rei — ou o aspirante ao trono — mendiga a bênção do bobo para que o povo o tolere, que o respeito já se foi. Estes encontros são, com frequência, pastéis de nata de vaidade recheados de auto-ironia controlada, servidos num prato de empatia calculada. O político, ao rir-se de si mesmo, esconde os espinhos do seu programa. E o humorista, ao fingir irreverência, não morde — apenas ladra com graça, como um caniche de salão treinado para agradar tanto a governanta como o mordomo.

    Foi-me dado assistir, com as minhas vazias órbitras, à mais recente paixão do lusitano homo politicus moderno: a comédia. Outrora besta solene que falava em hemiciclos e esbracejava em comícios, tomou gosto ao riso popular. Em vez de A República de Platão, prefere agora o proscénio do RAP; em vez das Cartas de Locke, abre-se em confidências ao Bom Partido do Geirinhas, embalado pela fundação do Pingo Doce. Troca-se Maquiavel por punchline, Rousseau por running gag. Tudo combinado. Tudo batido. O poder, que sempre teve queda para a vaidade, descobriu no humorismo não o seu espelho, mas o seu cosmético, porque agora reflecte o deformado com charme.

    Não é que isto me cause espanto: também Nero se achava artista, tocava lira entre incêndios e mandava decapitar senadores que desafinavam nos aplausos. E os imperadores romanos, em geral, conscientes de que o povo queria panem et circenses, alternavam o chicote com o dichote. Mas ao menos os gladiadores tinham espadas e os bufões, juízo; hoje, os políticos procuram o riso como os fariseus procuravam moedas no templo: com fingida humildade e segundas intenções.

    Vede Paulo Raimundo, que leva a sua foice ao estúdio como quem leva flores à sogra, esperando que o anfitrião lhe pergunte sobre a infância entre barricas e manuais do Vladimir — o Lenine, não o Putin.

    Ou Rui Tavares, o novo Demócrito mediterrânico, que, entre risinhos e parábolas, nos oferece filosofia à pressão, temperada com afectação melíflua e citações de quarto de hotel.

    Ou Luís Montenegro, que surge como o aluno aplicado de colégio interno, com ar de quem estudou as piadas frequentes do entrevistador mais do que o Orçamento do Estado — e acha que rir-se antes da pergunta é estratégia de proximidade.

    Ou Pedro Nuno Santos, que mostra ensaiar uma humildade de operário em férias, exalando um perfume de bonomia calculada, enquanto prepara o próximo trilho entre Montemor-o-Novo e São Bento.

    Ou Rui Rocha, qual figura evanescente do liberalismo de biblioteca, com riso de vitrina farmacêutica, esperando que a leveza das perguntas suplante a fragilidade das convicções.

    Ou Mariana Mortágua, com ares de tribuna revolucionária e lábios semicerrados de desdém classista, que aceita a comédia como se fosse um panfleto trotskista adaptado para adolescentes com TikTok.

    Ou Inês Sousa Real, a rainha das causas verdes e mascote da ecologia moralista, que surge pronta a rir de si própria, desde que o guião tenha sido previamente aprovado pelo departamento de diversidade.

    E mesmo André Ventura, esse São Jerónimo de Algueirão-Mem Martins, que vocifera contra esta majestática corte humorística e clama blasfémia, acredito que, em privado, roga aos deuses do prime-time que o RAP o chame ao seu tabernáculo, para depois seguir para a ara do Geirinhas, nem que seja para, mesmo sendo escarnecido, garantir que o Chega vai… chegar lá — embora sem se saber onde.

    Talvez — e só talvez — estejamos a ser injustos com os políticos. No fundo, limitam-se a seguir o riso onde ele dá mais votos. A culpa, ou grande parte dela, recai também sobre os humoristas, que trocam a busca da verdade pelo aplauso fácil, e a maiêutica pelo patrocínio da Fundação Francisco Manuel dos Santos ou da Worten. São arautos da graça com ideologia, padres do sarcasmo domesticado, sempre prontos a morder… desde que seja um inimigo autorizado. Aprenderam, como Midas às avessas, a transformar em ouro tudo o que tocam — mas um ouro sem peso, sem curso legal, um ouro de papelão.

    Que é feito do sarcasmo afiado, da crítica que fere? O humorista de hoje, em vez de morder, acaricia; em vez de expor a nudez do rei, ajuda-o a escolher o fraque; em vez de lançar a gargalhada com uma pedrada, oferece a piada emoldurada, com fita, legenda e hashtag. Transformaram-se em estilistas do poder, em cabeleireiros da irreverência, passando pó-de-arroz na cara da impostura. Já não fazem rir da tragédia: fazem rir com o tirano — e não do tirano —, esperando um eco em retweets e cachets. A sátira, essa Medusa com olhos de lucidez, foi decapitada e pendurada na parede de um camarim. Dizem-se iconoclastas, mas ajoelham-se perante o convite do poder como os magos do Oriente diante da manjedoura. No fundo, aspiram àquilo que fingem desprezar: o aplauso do palácio.

    E o povo — esse eterno espectador de tragédias mal encenadas — ri-se. Rir sempre foi um consolo dos desvalidos, já o sabia Aristóteles. Mas rir de quem vos há-de governar, enquanto este ensaia a piada sobre a sogra e a Lili Caneças, é baixar a política ao rés-do-chão da frivolidade. Tornou-se evidente que, para muitos eleitores, um político que saiba rir de si próprio vale mais do que um que saiba fazer um orçamento. Aliás, não admira que as urnas se encham de votos com a mesma leveza com que se enchem balões numa festa de aniversário.

    Recordo-me aqui da fábula do profeta Elias, que subiu ao monte Carmelo para desafiar os sacerdotes de Baal. Estes clamavam, gritavam, cortavam-se, pediam que o seu deus lhes respondesse. E Elias, com ironia bíblica, perguntou-lhes: “Porventura dorme o vosso deus? Terá ido ao retiro espiritual?” Pois bem: os vossos políticos, ao irem ao sofá do comediante, carpem pelo favor do novo deus: o like, o meme, a viralidade. E os humoristas, sacerdotes de Baal pós-modernos, animam a cerimónia.

    Tudo isto não seria trágico se fosse apenas cómico. Mas há algo de profundamente reaccionário nesta inversão de papéis. Quando o humorista abdica da sua função crítica para se tornar palanque do poder, legitima-o. E quando o político se disfarça de palhaço, oculta as suas responsabilidades. É o triunfo da leviandade como estratégia de governação. Não é já o governo dos sábios, mas dos engraçados. A política converte-se numa espécie de stand-up comedy com consequências orçamentais, no emprego, na inflação e até no tempo de diversão.

    Vejo Montesquieu a soluçar em silêncio. Weber a revirar-se no túmulo. Tocqueville, se ressuscitasse, confundiria Lisboa com Las Vegas. Rousseau, envergonhado, rasgaria O Contrato Social e inscrever-se-ia num curso de escrita cómica para influencers. E Hannah Arendt, ao ver o triunfo do entretenimento sobre a acção, escreveria A Banalidade do Riso. Porque o espectáculo é total, mas o conteúdo é nulo.

    Ad extremum, vos declaro: não me oponho ao riso. Riam-se do ridículo, do poder, do sublime que se quer divino. Riam-se dos corruptos, dos hipócritas, dos moralistas de plástico, dos políticos. Mas não se riam com eles como se fossem vossos comparsas de adolescência. Há um abismo entre rir deles e rir com eles. E esse abismo, uma vez atravessado, transforma a sátira em selfie, o bufão em cúmplice, e o eleitor num espectador distraído que bate palmas enquanto lhe assaltam o bolso.

    Sabendo isto, e sabendo que a comédia é o novo Parlamento, resta saber, a partir de domingo, quem será o novo bobo… e quantos almoços vos custará o próximo orçamento.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • O Espírito Santo, esse ‘spin doctor’ da desinformação

    O Espírito Santo, esse ‘spin doctor’ da desinformação


    Há na alma dos homens uma tendência antiga — talvez eterna — para aspirar aos domínios do invisível, do teúrgico, do sublime, como se assim pudessem escrutinar o futuro com a ilusão de que o tempo se molda ao toque da vontade. Não bastando aos viventes terem olhos para saber de antemão onde pisam — atitude ainda mais prudente em Lisboa, onde se adivinha sempre o risco de uma fractura provocada pela deslizante e traiçoeira calçada de calhaus patrióticos —, há quem almeja, porém, ver para além da névoa dos dias, como se a vida fosse uma ciência exacta e não uma tragicomédia oscilante entre o acaso e a morte.

    Ora, esta soberba dos homens que se metem em previsões, julgando conhecer os meandros do futuro— vestida por muitos e travestida de saber —, talha-se hoje mais em estatísticas lustrosas, borda-se de modelos preditivos e enfeita-se com véus respeitáveis de estudos de cenários, como outrora se trajava de oráculos de Delfos ou de visões apocalípticas com cheiro a enxofre e incenso. Mudam-se os atavios, mas não se muda a vaidade: continua ela a desfilar, altiva, entre gráficos e percentagens, como se a incerteza fosse apenas um erro de cálculo e não o fundamento da existência.

    E quando a vaidade se insinua nos corredores da Ciência Social, transmuta-se então, não em profecia, mas em presunção. É nesse espírito que se inscreve a aventura tragicómica do MediaLab do ISCTE — essa moderna pitonisa institucional — que, em nome da racionalidade, pretendeu revelar aos mortais o nome do novo Papa. Usando, presume-se, não mirra, incenso ou ouro, mas análise inferencial, cruzamentos de variáveis e alinhamentos estratégicos de cardeais.

    Assim, com a certeza própria de uma encíclica revelada por algoritmo, veio o MediaLab anunciar, no início desta semana, que, aplicando “critérios qualitativos e dados simulados do conclave para identificar caminhos plausíveis para os resultados da eleição papal”, havia já um eleito infalível: o cardeal de Marselha, Jean-Marc Aveline. Deu tal oráculo azo a uma vitoriosa página no Público e do Diário de Notícias.

    Quando Lúcifer, por excesso de luz, caiu do Céu, fê-lo porque quis saber mais do que lhe convinha. Ora, os investigadores Gustavo Cardoso e Carlos Picassinos, que não se devem considerar anjos mas se presumem arcanjos do saber moderno, decidiram, com o seu séquito do MediaLab, usurpar o lugar do Espírito Santo e antecipar o futuro do trono de Pedro com as armas de uma matriz e da vã ciência da sociologia de dados. E vai daí, quiseram “captar a complexidade de um processo moldado por expectativas ideológicas, dinâmicas globais da Igreja e realinhamentos de facções dentro do Colégio dos Cardeais”, ainda por cima traçando três cenários.

    Notícia na edição em papel do Público, com um título diferente daquele que agora surge na edição online.

    Terão Cardoso & Picassinos lido São Tomás? Conhecerão, ao menos, Balaão e os seus asininos presságios? Pouco importa. Preferiram o oráculo do SPSS, ou quejando programa informático, ao murmúrio do Altíssimo. E assim anunciaram, com fé messiânica, a eleição do cardeal Aveline como novo Papa. Atenção: não era uma previsão, não senhor — era uma revelação! Um Sinai sem Moisés, um Apocalipse com parangonas no Público e no Diário de Notícias.

    Atentem: entre parágrafos e reverências, disseram os investigadores do ISCTE que usaram “critérios qualitativos e dados simulados de alinhamentos” para prever a eleição. Foi a aritmética ao conclave; foi o algoritmo à Capela Sistina. E, como não podia deixar de ser, falharam. Com estrondo. Um falhanço retumbante. Com a majestade trágica de quem tropeça numa sandália apostólica. O Espírito Santo, caprichoso como sempre, escolheu outro. E o MediaLab? Ficou com os figos de Israel apodrecidos nas mãos. Ou, como terá dito Cícero — e se não disse, deveria ter dito —, “quando a razão adormece, os dados sonham”.

    Talvez — conceda-se essa hipótese teológica —, o falhanço não tenha sido do MediaLab, mas uma ignomínia subtil de um travesso Espírito Santo, ou melhor, do Spiritus Satani Vestitus in Gloriam, que, num golpe de malícia celestial, resolveu manipular os cardeais com artes diabólicas só para desmentir, diante do mundo, o infalível método preditivo do ISCTE.

    Em alternativa, porventura, o Altíssimo, aborrecido com o excesso de confiança estatística, tenha decidido — como fez outrora com a Torre de Babel — confundir as línguas, os dados e as intenções. E assim, rindo-Se do cimo dos céus, terá sussurrado ao ouvido de um obscuro cardeal de Setúbal, ou de Bamako, ou de Cracóvia, um nome imprevisto, só para que os gráficos do MediaLab se transformassem em parábolas do ridículo. Porque, como se sabe desde o Génesis, Deus castiga os soberbos — e ao que parece, também os spin doctors armados em haríolos enquanto acusam Sodoma e Gomorra de desinformação.

    Derrisai-vos, estimadas leitoras e queridos leitores, pois há graça nisto tudo. Os apóstolos da “ética comunicacional” e os combatentes da “desinformação” — como se apresenta o MediaLab —, aqueles que se erguem em púlpitos laicos para excomungar jornalistas heréticos e analistas profanos, são os mesmos que pecaram por hybris e tentaram tomar o lugar de Deus na arquitectura do destino. Fizeram-se agiotas do futuro, tomando emprestado o verbo do Altíssimo para um parágrafo na Visão Estratégica para a Comunicação Digital do Vaticano.

    O Cardoso e o Picassinos — permitam-me a intimidade post fata — quiseram ser os novos Nostradamus, mas saíram-se uns Zandingas com doutoramento. Porque, minhas caríssimas e meus caros, prever o Papa é como apostar na chuva em Jericó: pode-se acertar, mas ninguém se molha. A audácia não foi tanto científica quanto metafísica: substituiu-se a Graça por um framework, o Espírito Santo por uma heteroscedasticidade, a Oração Divina por uma inferência bayesiana. Ao fim e ao cabo, confundiram Pentecostes com o Método Delphi.

    O maior problema, porém, nem é o erro. O erro é humano, e até divino — vide Adão e todos os seguintes. O problema é a soberba com que se ostenta uma previsão de almanaque de feira como certeza, e o jornalismo como púlpito de revelação. O Público e o Diário de Notícias, quais escribas de Alexandria, aproveitando um artigo da Lusa, ordenaram a impressão do tratado de futurologia oracular do MediaLab com estrépito tipográfico e zelo evangélico, como se a estatística fosse agora exegese e o ISCTE um conclave com nexus umbilicalis ao Espírito Santo. Enfim, ainda aguardei, quando se anunciou Leão XIV, que os pasquins lançassem um fumata nigra poenitentiae sobre a patacoada do ISCTE, em sinal de escarmento — mas não: todos saíram de sendeiro. Excepto, claro, o leónico Robert Francis Prevost, cardeal que não era ouvido nem achado no algoritmo Cardoso & Picassinos.

    Eis a ousadia dos vaticinadores de laboratório: armados de gráficos e vestes estatísticas, crêem ver o divino nas margens de erro e o Espírito Santo nas simulações de Monte Carlo. Nem mesmo Platão ousou prever os oráculos — contentou-se em interpretá-los com reverência filosófica —, nem Aristóteles se atreveu a domesticar as Moiras, essas fiandeiras do destino que nem o próprio Zeus ousava contradizer. A sorte é caprichosa. E o Papa — queiram ou não os apóstolos da inferência — é escolhido por homens que rezam, não por máquinas que calculam.

    O ridículo, dizia Victor Hugo, é o túmulo do orgulho. E o vosso epitáfio, senhores do MediaLab, já se escreve em itálico digital, numa nota de rodapé esquecida entre duas colunas do Público.

    Se desejais adivinhar o futuro, começai pelo vosso: ele chama-se esquecimento. Amanhã virá outro artigo, depois outra previsão, mais adiante outro erro — e a vossa falha será apenas mais uma nota de rodapé na cronologia das petulâncias académicas, como quem acrescenta um grão de areia à duna do disparate.

    Ah, e já agora, não vos esqueçais: mesmo vós, profetas do algoritmo, haveis de morrer — com ou sem acerto. Essa é, aliás, a única previsão que vós conseguireis acertar.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Sondagens, ou a cartomancia laica, seguida de prospecção necropolítica

    Sondagens, ou a cartomancia laica, seguida de prospecção necropolítica


    Há um certo prazer mórbido — e como extinto cavalheiro posso atestá-lo — em observar os vivos a debater o futuro com ferramentas de carpinteiro sociológico: réguas enviesadas, esquadros partidos e martelos que só pregam onde lhes convém. Refiro-me, pois claro, às sondagens — essas cartomancias laicas, aritméticas de feitiçaria travestidas de ciência estatística, que se oferecem ao povo como bússolas de opinião, mas funcionam, na verdade, como cajados de pastorícia manipulada. Não orientam, conduzem; não revelam, sugerem; não informam, insinuam — e fazem-no com a mesma seriedade de uma beata a lançar búzios num comício.

    Em Portugal, a sondagem política já não serve para compreender o eleitor: serve para o modelar. O lusitano cidadão, qual Narciso sociológico, olha-se na poça dos números sorteados e diz: se calhar também voto neles. E assim, entre percentagens e margens de erro, os partidos sobem ou descem não por mérito ou demérito, mas por acasos metodológicos, telefonemas ao jantar e ajustes de quotas feitos por estagiários com pressa de fechar o ficheiro Excel antes do fim da tarde.

    Não digo isto com acrimónia — mas com a placidez de quem repousa fora do nível de significância. Afinal, não me podem sondar — estou morto. E ainda bem, pois nesta condição sou poupado a interrogações meteorológicas do género: Em quem pensa votar se as eleições fossem hoje?, como se o acto eleitoral fosse uma trovoada súbita e o eleitor um barómetro com telemóvel.

    Mais ainda: os vivos, incautos enredados em empresários de sondagens, são hoje vítimas de uma superstição quantitativa, uma fé neopositivista que venera, em geral, apenas seiscentos inquiridos como se fossem todo o povo, ou os trezentos espartanos das Termópilas a dobrar, escolhidos por Leônidas com base em quotas demográficas — embora armados apenas com opinião e a hesitação de quem foi interrompido a meio do jantar.

    Vem depois a imprensa, essa Hermes ruidosa da era algorítmica, cúmplice do barulho dos gráficos, que converte flutuações estatisticamente irrelevantes em oráculos editoriais, com setas vermelhas e verdes como os olhos de Argos — atentos a tudo, a opinar sobre o absoluto, a comentar sobre o trivial, mas a compreender nada.

    E assim, o destino da Lusitana Nação parece pender do voto distraído de um senhor de Matosinhos que atendeu o telefone fixo julgando tratar-se do canalizador ou de uma matrafona de Linda-a-Velha a pensar que lhe ofereceriam no fim um cupão do Lidl.

    Que me perdoem os estatísticos e os pitonisos do voto, mas sondagem eleitoral é como os chapéus do Vasco Santana: há muitas e nem todas servem para cobrir a cabeça da razão. Ora, como defunto experiente, e sobretudo vacinado contra ilusões de urna — que sufrágios foi coisa que jamais usei —, decidi promover um inquérito mais fidedigno: uma prospecção necropolítica, onde a abstenção se mede apenas pela ausência de ectoplasma e a opinião é tanto mais lúcida quanto mais esquecida está a corrupção dos sentidos.

    Não convoquei assim quaisquer eleitores registados nos cadernos das juntas de freguesia, nem tão-pouco o Sérgio Sousa Pinto, até porque o encontrei a “pôr a roupa na máquina“, e não o quis incomodar. Convidei sim defuntos consagrados, aqueles que, embora inabilitados para votar, me pareceram estar intelectualmente mais aptos do que os vivos para avaliar a moral pública desta vossa vetusta Nação. Portanto, prescindi de ficha técnica, e conveniente depósito na ERC, mas não deixa de ser sessão de brilhante lucidez — sem percentagens flutuantes, sem margem de erro e sem spin doctors.

    Ora, quem mais poderia ser o primeiro do que D. Afonso Henriques. Ao questioná-lo sobre a actual oferta partidária, ergueu-se do túmulo com a mão no punho da espada e murmurou entre dentes, com os poucos que tinha e lhe restam: Não fundei o Reino à custa de mouros e aço para vê-lo entregue a contabilistas de sorriso plastificado e a bardos de rima fraca que mal sabem declinar a pátria. Desconfio, em todo o caso, da autenticidade da personagem, porque no seu tempo não havia plástico — nem no meu.

    Ao seu lado, porém, e confirmo, estava mesmo a Rainha Santa Isabel, sempre entre rosas e espantos, sempre envolta num aroma piedoso do hissopo, sempre a distribuir votos simbólicos pelos pobres, um a um, como esmolas de urna. Lá opinou, com brandura fatigada, num quase murmúrio: Se é para transformar Abril numa quermesse, ao menos que dêem ao povo um caldo verde, algum silêncio e uns cravos sem terem sido importados da China.

    Mais à frente, abeirou-se o Infante D. Henrique, que julgava er já avistado todos os horrores do mundo desde o Cabo Bojador. Pedi-lhe e fitou perplexo a actual cartografia eleitoral; pegou um astrolábio na mão e um boletim de voto na outra, e suspirou em desalento atlântico: Navegar é preciso, sim — mas este país tornou-se numa terra de nevoeiro tão espesso que nem com uma Super Bock consigo agora sair de Sagres, disse. E, depois de consultar as estrelas e os cabeçalhos do Correio da Manhã, acrescentou com pesar lusitano: Nos meus tempos, ao menos sabíamos para onde íamos: África, Índia ou para o desconhecido. Agora, nem os partidos sabem se seguem para bombordo ou para o precipício.

    Pouco depois, surgiu-me D. Sebastião, ainda a sacudir areia do norte de África, franzindo o sobrolho perante as promessas eleitorais do Montenegro, do Santos, do Ventura e dos demais que pouco contam. Com olhar perdido algures entre o futuro e o abismo, exclamou, melancólico: Voltar, queria voltar — mas se isto é o país do Quinto Império, prefiro regressar ao nevoeiro.

    E foi nesse nevoeiro que se começou a erguer, com compostura régia e o Tratado de Haia debaixo do braço, D. João IV, o Restaurador, com o ar de quem reconquistou aos castelhanos um país e agora o vê hipotecado ao Sacro Império Europeu. Passou os olhos pelo espectáculo partidário e chorou: Restituí-vos a soberania, e em troca oferecem-me este condomínio ideológico, onde todos falam grosso mas se encolhem ao primeiro parecer de Bruxelas? O Reino custou-me caro, senhores, e não foi para isto. A Inquisição tratou-me com menos indignidade. E voltou a fechar-se na tumba com estrondo.

    Entretanto, impôs-se em passo pausado o Padre António Vieira, envolto em fumo de incenso, benzendo-se. Subiu à cornija do jazigo e dali começou a proferir o que titulou Sermão da Multiplicação das Promessas e Escassez dos Milagres:

    Meus irmãos, prometem muito os varões que aspiram aos altos ofícios da terra. Prometem caminhos onde não há chão, prometem justiça onde não há balança, prometem futuro onde não há presente — e quanto mais vazio trazem na alma, mais cheio está o alforge das promessas. São como os magos do Egipto que, vendo o cajado de Moisés converter-se em serpente, procuraram imitá-lo com feitiçarias. Também estes, vendo as palavras fazerem efeito entre os incautos, multiplicam-nas, não por fé, mas por cálculo; não por verdade, mas por vantagem.

    Diz o Evangelho que Cristo, vendo a multidão faminta, tomou cinco pães e dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e multiplicou-os até que todos se saciaram. Mas os políticos do vosso tempo, vendo o povo esfomeado de justiça, de trabalho e de esperança, tomam as palavras — e só as palavras — e multiplicam-nas até que todos fiquem mais vazios. Onde Cristo fez milagre com pouco, estes fazem miséria com muito. Onde Cristo saciou com verdade, estes entretêm com aparência. São mestres do verbo, mas discípulos da omissão.

    Não se vêem milagres nas repúblicas modernas, porque a fé cedeu o púlpito ao marketing, a penitência deu lugar à desculpa e os actos foram substituídos por cálculos em folhas. E assim caminha o povo de prometeres em prometeres, como outrora os hebreus no deserto, mas sem coluna de fogo, sem maná, sem Moisés — apenas guiado por um telejornal ao serão e uma sondagem ao domingo. E, como o Diabo no monte alto, mostram-lhe todos os reinos do mundo… mas nada lhe dão, senão um buraco.

    E continuou…

    Terminado o sermão — a que só eu e algumas espinhas de peixes assistimos —, se deu a apresentar D. João V, o Magnânimo, ladeado por anjos barrocos, trombetas e ministros genuflectidos. Solicitou uma observação dos debates e, por fim, entre um suspiro e um bocejo, exclamou, com desdém litúrgico: Ainda se queixam do que não fiz e do que fiz com o ouro e os diamantes do Brasil — e pôs-se depois a falar da Madre Paula, chamou o confessor, e depois o físico para lhe preparar uns pós de cantárida com vinho do Porto.

    Com passos decididos e sem esperar cerimónias, entrou-me neste interim o Marquês de Pombal, empunhando um compasso, um decreto e uma lista de culpados. Dispensou salamaleques e, com voz de terramoto reformista, ordenou apenas: Mandem-me os ficheiros da Administração Central, os regulamentos da CNE e os estatutos partidários — dou-vos um país novo em seis meses. Mas aviso já: os comentadores e analistas políticos vão todos degredados para a Fortaleza de Pungo-Andongo.

    As palavras ainda pairavam no ar quando, vindos da galeria da Cultura, começaram a surgir os vultos dos letrados. Como se directo de uma taberna de Alfama viesse, exalando ainda absinto, irrompeu-me Bocage, com as calças desapertadas, a língua solta e a rima no gatilho. Abriu passagem no cortejo póstumo e bradou com a voz rouca:

    Por entre tanta lista e tanto embuste,
    tanta promessa vã, tanto canalha,
    voto, se voto, é n’algum que me ajuste
    a reforma ao vinho e à mortalha.

    Vejo agora um país que fala mas não pensa,
    que trocou o verbo pela aparência —
    e entre o roubo e a fé da conveniência
    já só governa o ordinário que se dispensa.

    E antes que alguém o pusesse fora por decoro, cuspiu no chão das urnas e resmoneou: Se um rabo se sentar, outro levanta — eis a dança desta democracia, meus senhores. Depois piscou o olho ao fodaz Ribeiro, o negro que arrombava as paredes quando mijava, e foi perder-se num beco onde ainda ecoam decassílabos com cheiro sulfuroso e sabor obsceno.

    Entrou-me depois Alexandre Herculano, semblante escandalizado — não sei se pelas palavras do Poeta do Sado —, mas saiu-se com verbo firme: Ninguém que escreva “cidadania activa” ou “resiliência democrática” merece governar uma taberna, quanto mais um povo. E saiu, como quem fecha um tomo de História e recusa a nova ortografia da mediocridade.

    Logo a seguir, soergueu-se Camilo Castelo Branco, com a expressão de quem, mesmo já cego em vida, continua a surpreender-se com o que agora vê. Mas isto é o quê?, perguntou, folheando os programas eleitorais como se fossem cartas de suicidas. Um país onde todos querem governar, mas ninguém quer escrever a primeira linha com sentido? Trágico, sim — mas nem para romance serve. Falta estilo, falta culpa, falta até o crime. E retirou-se.

    Mal se lhe esvaía este vulto e já surgia, impecável e de bigode hirto, Eça de Queirós, saído da nova morada no Panteão de Santa Engrácia, com a pena em riste, pronto a registar asneiras, dislates e abencerragens. Passou com empáfia — não da superciliosa, mas da que se julga clarividente — os olhos pelas campanhas, nada alegres, desoladas sob verniz citadino, vendo a província mascarada de metrópole. E abanou a caveira: O país, meus senhores, continua uma caricatura de si mesmo — com a diferença de que agora se desenha a si próprio nas redes sociais. O Dâmaso Salcede multiplicou-se, o Conselheiro Acácio já tem canal no YouTube, e o Jacinto de Tormes é coordenador de uma empresa de sondagens e estudos de mercado. A decadência já se transmite pelos ares. E foi-se até ao Egipto, dizendo querer saber se o Trump também já se apoderara do canal do Suez.

    De entre os bastidores da realeza, já quase republicana, assomou-se-me D. Carlos I, naturalista por vocação e mártir por azar. Contemplou a fauna política com binóculo de precisão científica e saiu-lhe uma tristeza resignada: Passei anos a catalogar espécies raras, mas nunca me ocorreu que a mais daninha pudesse ser o político do século XXI. E levei eu dois tiros — e por muito menos.

    Do lado dos mais exaltados, irrompeu Sidónio Pais, farda reluzente e verbo messiânico. Olhou a sala, cerrou os dentes e declarou com nostalgia autoritária: Se vivesse agora, dissolveria o Parlamento à moda antiga: com decreto presidencial e charuto. Depois ergueu o braço em saudação firme, ao estilo de um Elon Musk, como quem já escuta a marcha da revolução entre aplausos regimentais e folhas de despacho.

    Salazar, por seu turno, não irrompeu. Apareceu. Silencioso, preciso, pálido como a sua própria política. Sentou-se sem pedir licença e, com voz gasta mas firme, murmurou: Chamam liberdade ao ruído e progresso à dispersão. No meu tempo, admitio que se controlava demais; agora não se controla nada. Tenho pena que me tenham compreendido mal quando disse: “Para Angola e em força” — era para sairmos deste buraco. E ficou por aqui ainda uns tempos, a olhar fixamente para um gráfico do SNS, como quem decifra um país pela frequência cardíaca da propaganda.

    A seu lado, esteve o inevitável Óscar Carmona, sem dizer palavra. Sentou-se, acenou vagamente e, quando lhe perguntei o que pensava, respondeu com a sua única frase conhecida: O que disser o Professor. E voltou ao mutismo da eternidade com a dignidade burocrática de quem viveu calado e morreu sem se dar por isso.

    Do lado da democracia, apareceu Sá Carneiro, irrompendo como um falcão, que sabe para onde vai. Deu uma vista de olhos ao panorama político, ao ruído dos corredores, às alianças que se fazem por necessidade e desfazem por conveniência, e declarou com firmeza: Fiz política com verdade. Hoje fazem-na com protocolo. E antes de sair, ainda lançou: A liberdade, meus amigos, se não for perigosa, não é liberdade.

    Foi então que, com passo lento mas firme, entrou Álvaro Cunhal, trazendo consigo o peso de todas as revoluções que não chegaram ao fim. Já não há luta de classes, há luta de hashtags. Os trabalhadores foram trocados por engagement. E a revolução? Essa foi arquivada por falta de likes. E retirou-se para o silêncio — não o da resignação, mas o da teimosa.

    Olhe que não! Olhe que não! — ripostou Mário Soares, entrando de sorriso largo, irreverente como sempre: O problema é fazer-se agora política com respeitinho. Eu fui insultado de todos os lados — e, convenhamos, foi isso que me deu credibilidade. Sem os sopapos na Marinha Grande, teria sido apenas mais um primeiro-ministro a apertar o cinto. Agora são todos honrados, honradíssimos, enquanto metem a democracia na gaveta… Ah, gavetas! Que atire a primeira pedra quem nunca fechou uma. — E saiu a rir, antes de perguntar se alguém vira o Sócrates — o grego, claro.

    E eis que, por fim, inopinadamente, acudiu-me também o Zé das Iscas, ceifado na Estrada da Beira em 2018 por um camião transportando golas antifumo do projecto Aldeias Seguras. Trazia boné na cabeça, uma cerveja morna na mão e o olhar desconfiado de quem nunca votou por convicção, mas só por teimosia. E disse-me apenas: Não percebo nada disto — mas se calhar fechava-se esta chafarrica e começava-se tudo de novo. Como nas obras: vai tudo abaixo e depois logo se vê. E foi-se embora, sem pressa, como quem nada espera de um país que nunca teve. Nem terá.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Da jerricanocracia, ou a gloriosa arte de governar com um bidão

    Da jerricanocracia, ou a gloriosa arte de governar com um bidão


    É nos momentos de treva que se iluminam, paradoxalmente, as grandes verdades de uma nação — tal como as constelações só se revelam quando o céu fecha os olhos ao sol. Pois, pela tarde do mais recente Die Lunae, esse dia lunar que vos chegou não com claridade celeste, mas sempre sob a sombra terrena da incompetência, quando, por ironia e despeito, a nova luna dominava os céus, cá em baixo, na Hispania — essa província antiga que Roma quis disciplinada, e nunca verdadeiramente conseguiu domar — eclipsou-se a luz artificial num apagão digno de tragédia sem corifeus, sem coro e sem poesia. Ficou-se sem lâmpadas, sem semáforos, sem elevadores, sem terminais multibanco, sem café expresso, sem ar condicionado, sem semelhança com um país civilizado, sem linha para o INEM, sem paciência para mais explicações, e — suprema miséria! — sem Wi-Fi. Foi um colapso não apenas energético, mas simbólico: como se a civilização tivesse tropeçado num fio solto e mergulhado, não em trevas místicas, mas no mais literal e humilhante breu de terceiro escalão.

    Não terá sido por castigo dos deuses, que já não se ocupam de gente que não lhes ergue templos, mas por um fenómeno moderno e muito vosso: a indolência com gravata, a incompetência com cartão de acesso ao Parlamento, a leviandade com estatuto de governante. E logo assim, o pânico — esse combustível psicológico das nações inseguras, onde a administração é sempre provisória e a lucidez um artigo de contrabando — ardeu mais vivo do que as velas pascais e revelou o que já todos sabiam, mas fingiam não ver: o simulacro de um Estado feito de papel higiénico. E assim se foi a electricidade, e assim ficaram a estupidez e a estultícia — incandescentes, persistentes, institucionalizadas.

    Portugal, esse vosso solar centenário de paredes esfareladas e bandeira esfarrapada ao vento da nostalgia, que já dobrou o Cabo das Tormentas com a audácia de quem levava mundos ao Mundo, e o metia ao bolso, acagaça-se agora e dobra os joelhos ao primeiro curto-circuito. Não houve meteoros, sabotagens, bombardeamentos nem revoluções — apenas o silêncio da rede eléctrica, que se apagou como um velho candeeiro de tecto que ninguém quis substituir. E eis que o país, tão dado a actos de heroísmo, se revelou herói apenas do improviso. Um apagão bastou para que o aparelho de Estado se quedasse como um boneco de feira sem corda — imóvel, grotesco, com olhos pintados e boca de mola.

    De todos os ecos que me chegaram ao vale de sombras onde agora repouso — com maus fígados, sim, mas também com boa escuta — nenhum me trouxe tanto gáudio espectral como o caso da Maternidade Alfredo da Costa, esse lugar sagrado onde nascem filhos e dívidas, parturientes e futuros reformados, quiçá um novo Sebastião que vos resgate a cavalo de um orçamento suplementar.

    Contou-se, sussurrou-se, que ali só havia gasóleo para mais uma hora de respiração institucional. Uma hora! Um sopro de diesel entre a vida uterina e o blackout total. A civilização pendurada. E foi então que, em plena capital da república e no seio da era do hidrogénio verde, da inteligência artificial e dos planos para Marte, se desceu à mais prosaica das angústias: quem acudiria? A Protecção Civil? Os bombeiros? O vizinho com um Opel Corsa? Não: o Conselho de Ministros. Porque, na liturgia republicana do improviso, cada ministro é um apóstolo e cada jerricãs um sacramento.

    Assim se ergueu, na República dos Bidões, em conclave emergente, o Governo para decidir, com gravidade operática, sobre o fluxo de diesel — como outrora o Santo Ofício debatia heresias e astros. Propôs-se, em tom messiânico, que os motoristas ministeriais conduzissem gasóleo, não por estrada, mas pela História adentro, como cavaleiros do pós-modernismo. Jerricãs! Ah, jerricãs — unidade de medida do desespero, ícone portátil do colapso administrativo, agora alçados ao altar do ex-palacete bancário na Avenida do Pedro Hispano. Maravilha: o mesmo país que outrora construiu caravelas para atravessar o Atlântico e dar mundos ao Mundo, debateu recipientes de plástico.

    A mente — que o cérebro se me finou — naturalmente dada a paralelos históricos, conduz-me à fatídica primeira manhã de Novembro de 1755, quando Lisboa ardia e se afundava em escombros, cheiros a enxofre e lamentos. Nessa aurora de catástrofe, a prioridade régia foi dar ordem ao Marquês Estribeiro-Mor para tirar das ruínas o embaixador de Espanha — não para salvar os feridos, nem cuidar dos órfãos, nem sequer proteger os arquivos da Torre do Tombo. Quase três séculos depois, sob os escombros de um blackout digital, a prioridade foi alimentar um gerador. Progresso? Não sei. Mas persistência no disparate, disso ninguém vos acusarão em vão.

    Eis, pois, o retrato vívido, ainda que pintado a carvão de sarcasmo, da vossa República: uma administração de improviso com fachada de eficiência, um Estado que se desfaz ao primeiro estalido e responde com encenações que visam parecer planos — mesmo que só planeiem parecer. Enquanto isso, o povo — esse ente que paga impostos e aguenta com solenidade de santo — assiste aos seus governantes confundirem governar com abastecer. A política, esse nobre tabuleiro de xadrez, é agora um jogo de damas — e cavalheiros — com tampas de garrafão, ou de jerricãs.

    A política, esse nobre jogo de xadrez, tornou-se um torneio de damas jogado com tampas de garrafão. O Governo nem sequer confiou na Protecção Civil — que deveria ser civilizada —, nem nos bombeiros voluntários, financiados com subsídios dos contribuintes para não parecerem, nem serem, profissionais; nem nos planos de contingência. Preferiu entregar-se ao desespero dos improvisos, como quem procura espetar azeitonas com um garfo de plástico. Não houve plano B, nem plano XPTO; houve uma fé quase sebastianista na sorte e, se esta falhasse, na argúcia do motorista do ministro adjunto que sabe onde ficava a bomba mais próxima.

    A administração da Unidade Local de Saúde de São José, que supervisiona a Maternidade, lá veio, com paninhos quentes e contas de aritmética hospitalar, garantir que afinal o gerador tinha 400 litros e que a autonomia era de cinco horas. O problema, minhas senhoras e senhores meus, não foi a realidade, mas a percepção. Um clássico do vosso tempo: a verdade já não se mede em litros, mas em “narrativas”. A aflição governamental foi, afinal, uma reacção desmesurada, como quem se atira para o chão perante um estalido, julgando-o trovão. Um cão que ladra ao som do disjuntor.

    E, no entanto, se um só recém-nascido tivesse exalado o último suspiro em pleno blackout, teria sido suficiente para enterrar este Governo até ao último resquício de memória institucional. O medo da morte — não biológica, mas mediática — esse novo Santo Ofício do século XXI, move ministros como outrora movia os inquisidores.

    A encenação tomou conta da acção — e da Nação — e, por isso, não me admiraria que, em breve, se anunciasse com pompa um Plano Nacional de Distribuição de Jerricâs, com fases, eixos, metas, PowerPoints e consultores internacionais de combustíveis portáteis. Prevejo que, no futuro, os jerricãs se tornem amuletos da lusitana Nação: ao lado das latas de atum e salsichas, do papel higiénico, da garrafinha de água, do rádio a pilhas, dos isqueiros com licença, das máscaras, do panfleto da DGS e do chip do cartão de cidadão — que não localiza ambulâncias, mas dá pontos no Continente.

    Num país onde tudo ora arde, ora escurece, ora rebenta, o improviso já é política de Estado. O Conselho de Ministros converteu-se em quartel de voluntários, onde se decide a logística de combustíveis como quem escolhe o hino de uma colectividade, ou se decide se se contrata o Toy ou o Tony Carreira para a festa do emigrante. E falta apenas, para que a ópera bufa esteja completa, um Ministro da Energia Imediata ou um Secretário de Estado das Soluções Patéticas. Nada que um despacho em Diário da República não possa decretar com solenidade — a bem da Nação!

    Governar, neste vosso reino do quase, já não é planear, prever ou pensar — é apagar fogos com copos de água, abastecer geradores com jerricãs e pedir a Deus que o motorista chegue antes da última contracção. Os mais sagazes — que já fugiram, ou se fizeram suecos — sabem que o segredo da governação nacional já é só o improviso com ar grave, a pose sem substância, a pressa como doutrina, o plano de emergência com a única urgência de parecer um plano.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Perde-se a electricidade, perde-se a alma, perde-se o juízo

    Perde-se a electricidade, perde-se a alma, perde-se o juízo


    Pois sim, senhoras minhas e senhores meus, pois sim. Eis o que sucedeu: apagou-se a luz e apagastes vós todos com ela. Ah, que maravilha! Que regalo sublime para mim, que nunca conheci a electricidade em vida, senão por escassos rumores e vãs promessas dos sábios do meu tempo, mas que, já falecido e bem acomodado no Além, tive notícia, com certa estupefacção zombeteira, de que afinal a dita cuja servia mesmo para alumiar casas!

    Foi em 1883 — dois anos depois da minha morte, vede só que pontualidade irónica! — que a Rua do Ouvidor, essa mesma que tantas vezes percorri sem pressa e sem nexo, se viu iluminada não mais pelas tremeluzentes lâmpadas a gás, mas por luz eléctrica, faísca domesticada por engenheiros atrevidos, com o aplauso do nosso mui progressista D. Pedro II. Eu, cá do meu canto de defunto, ri-me. E ri-me porque, na minha vida inteira, sempre me bastou a penumbra das velas e a luz duvidosa das ideias, sem jamais suspeitar que um dia os homens viriam a tornar-se escravos de um fio e de uma tensão, como bestas presas a um cabresto invisível.

    No meu tempo — oh, esse tempo tão escuro e afinal tão claro! —, não se usava electricidade, e livrei-me, tanto quanto pude, de outra novidade esotérica: o telefone! Sim, o telefone, essa maquineta que, diziam-me, transportava vozes também pelos fios como se fossem almas penadas em visita. No meu tempo, ouvi rumores dessa prodigiosa engenhoca concebida por um tal de Alexander Graham Bell, que teve a ousadia de querer abolir as distâncias com metal de Chipre e um bocal.

    Soube que o nosso imperador D. Pedro II, homem dado a essas extravagâncias, até se deleitou com o engenho em 1877, apressando-se a trazê-lo para o Brasil como se fora coisa de utilidade pública. Mas dizei-me: que prazer haveria em falar com alguém sem o ver? Que confiança poderia haver numa conversa sem rosto, sem gestos, sem cheiros? Para mim, em vida, o telefone sempre pareceu um convite à mentira, um artifício para os tímidos, um substituto melancólico das cartas perfumadas e dos encontros marcados com hora e chá.

    Enfim, bem sei que a electricidade e outras engenhocas de similar inquietude fabricaram carros sem cavalos, transmitiram vozes por entre os ares ou, ainda mais fantástico, projectaram imagens animadas em caixinhas que falam e mandam.

    Nada disso me maravilha. Havia as cartas — essas, sim, perfumadas, com caligrafia pensada e lacre de bom tom —, que se esperavam com saudade. Havia convites entregues em mão para horas certas, e esperava-se o outro sem a ansiedade de notificações. Os encontros marcavam-se e cumpriam-se. No seu tempo, não se ligava a ninguém, não se estava ligado a ninguém, porque não havia o que ligar. E assim se vivia, donzelas e cavalheiros, com menos luz, é certo, mas com menos tremores de alma. Povos atrasados? Talvez. Povos mais sábios? Talvez também.

    Pois vede o que vos sucedeu hoje nesta era de prodígios! Um apagão, um trambolhão da vossa deusa Electricidade — bastou isto para vos lançar na mais ridícula aflição. Em Portugal, esse reino que outrora desafiava oceanos e Adamastores, bastou que se quebrasse o fio vindo de Espanha — e vede só, vós que outrora lutastes contra Castela, agora vos pendurais e dependeis dos seus cabos! — para que tudo parasse. E não falo só das máquinas, senhoras e senhores, mas de vós mesmos, que, sem luz, vos perdeis como baratas desorientadas em salão de baile. Bastou esse estertor eléctrico pela manhãzinha, e desatastes em teorias da conspiração, metendo Putin e os extraterrestres, para em seguida aparecer um tropel aos hipermercados, como se o fim do mundo estivesse anunciado pelos querubins…

    E que buscastes vós, donzelas e cavalheiros? Água, enlatados, e claro, o sagrado papel higiénico, esse símbolo dos vossos temores modernos, mais precioso que o ouro dos tempos antigos. Carrinhos cheios, e não de cultura, mas de conserva. A luz faltou-vos nas casas, mas também nos juízos. E vi-vos, eu, que nunca precisei de electricidade para existir, correrdes por entre prateleiras como se fosse preciso abastecer a arca para o Dilúvio. E que pena, senhoras e senhores! Que pena que as vossas baterias e os vossos geradores, esses pequenos Prometeus de ocasião, só bastassem para as caixas registadoras e não para os livros, que ficaram às escuras, como que a zombar da vossa pressa.

    No meu tempo, faltava luz, porque era noite? Acendia-se a vela. Faltava notícia? Escrevia-se uma carta e aguardava-se pela resposta. Faltava o pão? Falava-se com o vizinho. Hoje, falta-vos luz, e faltam-vos as pernas, os braços, a alma. A electricidade tornou-se o vosso espírito, e, quando se vos apaga, sois mortos-vivos, mas sem a elegância de um defunto.

    E assim, confesso: gozei, gozei muito, ao ver-vos entregues ao terror de um mundo sem luz. Porque não é a treva que vos mete medo, mas a vossa incapacidade de viver sem luz. Eu, que morri iluminado apenas pelas ideias vagas de um século sem fios, digo-vos: aprendei com o escuro. Ele vos ensina que a luz não está na parede, mas na alma. E que mais vale uma noite de sombras com espírito do que um dia claro numa cabeça vazia.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Das Pomarinas, ou o infortúnio de um apelido grande em pequeno corpo

    Das Pomarinas, ou o infortúnio de um apelido grande em pequeno corpo


    Há um velho axioma que me ensinou certa vez um sábio já defunto – ou terá sido eu, talvez, a ler nas margens de uma edição mutilada de Plínio, a que faltariam o princípio e o fim, restando apenas os delírios do meio –, de que o homem que nada cria, nada senão inveja cultiva. E, se acaso fizer esse homem filho de um génio, desdobra-se então em duas labutas: adorará o pai e odiará o mundo, porque a si, injustamente, não lhe confere igual grandeza. E assim teremos um pobre rebento dos titãs, condenado a ver no pedestal paterno um espelho côncavo da sua própria mediocridade.

    Assim, o espírito mesquinho vinga-se como pode e quando o deixam liberto: desdenha, agride, adultera e mercadeja, não a alma, porque essa já se perdeu no inventário, mas a língua, para dela fazer instrumento de defesa da sua corte de amigos, mecenas e comensais. E, servindo-se desse artifício, põe-se a entalhar juízos e decretos sobre tudo quanto respire ou estremeça contra si e contra os seus, como se de um Oráculo de Delfos em liquidação se tratasse, sem que lhe falte a certeza, essa doença incurável dos medíocres ilustres, de que está em missão divina. Por isso, o veremos a cada esquina, em púlpitos e gazetas, a clamar contra os homens de mérito, como o cão ladra ao forasteiro, não por coragem, mas por hábito, não por zelo, mas por temor de que alguém lhe repare o rabo entre as pernas.

    Foi um espécime desta natureza, ou género, que vi esta semana – e não com os olhos, mas com os óculos da razão sarcástica – ao contemplar os arrufos de um tal senhor de nominata Alexandre Pomar, crítico de arte por profissão e, por condição hereditária, filho do pintor Júlio Pomar, esse sim, homem de traço próprio, que pintou e deixou pintado. O filho, porém, não pinta senão a si mesmo. E fá-lo de tons sombrios. De ressentimento. E ao ver um jornal – esse maldito PÁGINA UM – apontar as cores carregadas de certo mural de dinheiros públicos à pintora Graça Morais, logo pulou da cadeira como se um traço de carvão lhe tivesse queimado as nádegas, correndo pelas salas da sua corte de estetas, de catavento em punho, apontando aos céus como se Apolo lhe tivesse penhorado a paleta.

    Que raio de mundo é este onde uma pintora, de sua graça Graça Morais, factura meio milhão de euros à custa do erário público por duas obras de arte, enquanto os museus nacionais, esses templos do património comum, repartem migalhas por dúzias de peças? E não se trata de conjectura ou calúnia, mas de factos expostos com a precisão fria da aritmética: 420 mil euros, fora impostos, pagos pela autarquia do conde de Oeiras e pela Provedoria de Justiça – aquela mesma entidade que deveria zelar pela moralidade administrativa. Uma ironia que faria rir Demócrito, se ainda vos visitasse.

    Pois, mas espantou-se Pomar: como ousam os jornalistas Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira expor tais desvarios? Como se atrevem a questionar a opacidade dos contratos, a ausência de concursos, a selectiva prodigalidade dos poderes? Ora, isto merece célere censura, e assim logo se lançou o anátema, pela boca ou pena acerba do Pomar, acusando-os de “ignorantes, atrevidos”, de “pouco informados”, de vilipendiadores da Cultura, como se a Cultura se resumisse à carteira da dona Graça, e o jornalismo à louvaminha de salão. Parece-me, senhor Pomar, que aquilo que ali se criticava não era a Arte, era o abuso; não era a pintora, era o sistema que lhe garante rendas régias; não era o talento, era o tráfico – não de escravos, mas de favores.

    Um crime de lesa-majestade revelar um gasto público em arte sem se conhecerem os critérios.

    Não me compete censurar o senhor Pomar pelas suas esmerilhadas artesanias em cair nas graças das elites, onde almoça e janta; afinal, também eu, em tempos idos, aceitei uma ou outra ceia em casa de mecenas interesseiros – e comi bem, não nego. Mas o que nos distingue é que jamais pintei o prato onde me serviram. Também nada tenho a dizer sobre não ter ele herdado a rudeza heróica das mãos do pai, calejadas de terra e suor, mas antes ter recebido genes para o exercício mais fino — ou finório — do taramelar, essa arte de mexer os beiços sem levantar um só calo, a não ser o da língua. Aqui estamos juntos no infortúnio: um dia tive a tentação de ser pintor e um amigo até disse que eu tinha certo ar de Rafael. Não sei ainda se do Rafael de Urbino ou do Rafael do açougue.

    Mas circunscrevamos o olhar no filho de Pomar, que nesta cena tragicómica é o mais interessante dos figurantes. Detenhamo-nos, ó espírito amigo, na raiz do problema, que não é a Arte, nem o belo, nem o justo, mas sim a velha prostituta da Humanidade: a pecúnia, essa deusa de vil metal, que corrompe mais almas do que Satã, não precisando nem de chifres nem de cauda: bastando-lhe o tilintar para os homens se dobrarem não em penitência, mas em saldo.

    Dir-me-eis que exagero, que os artistas também hão-de comer, e que não vivem de luz e inspiração. Pois bem, não é disso que reclamo, mas sim da forma como certos circuitos artísticos – verdadeiras tabernas de elogios cruzados – transformaram o sublime num negócio de avenças e ajustes directos, onde o mérito não se mede em estética, mas em contactos; onde o talento é moeda falsa e o favoritismo, a única corrente.

    Alexandre Pomar em acção….

    E Graça Morais simboliza, não sendo a única, a figura de cuja assinatura brota rendimento certo, e pouco parece importar-se com a turba que lhe sustenta o prestígio. A sua paleta mistura o azul do talento com o verde do euro, compondo murais que mais servem à memória do Tesouro que à memória da Arte. Não é sua a culpa – dirão. Talvez. Mas sua é a mão que recebe. E meio milhão por um mural e uma pintura? Por tal quantia, esperava-se que a tinta vertesse milagres e que as figuras, ao menos, saudassem os contribuintes ao passar.

    Confesso, com a placidez que me assiste deste lado da cova – placidez de defunto, que não é virtude, mas contingência –, que se alguma inveja conservo dos vivos, não é, não, pela vida, essa madrasta que me escapuliu numa fulminante pneumonia, tão célere e descuidada que nem me permitiu compor o emplastro que me daria fama eterna. E note-se que falo de uma inveja discreta, quase filosófica, daquelas que não roem, porque já não há entranhas, mas que antes coçam, e coçam devagar, no âmago frio da alma defunta.

    Aquilo que me assombra, e por vezes me provoca leve azedume nos ossos – nos ossos que me restam, diga-se: a falange proximal do indicador direito, que ainda teima em apontar, o occipital, fiel às memórias do que vi, e a maxila, por onde se escapa um sorriso, mais de escárnio do que de graça – é o privilégio que os vivos têm de assistir, com olhos húmidos e carnes vibrantes, às tragicomédias do mundo. Eu, que já me sirvo de falanges para gesticular e de cavidades para meditar, vejo tudo, sim, mas sem o gáudio da epiderme que se arrepia ou da gargalhada que sacode os músculos. E olhai que rir com costelas é um sucedâneo pálido, um simulacro de prazer, uma sombra ridente do que outrora fora um riso inteiro.

    …de elogio à obra de Graça Morais. Fotos: Câmara Municipal de BRagança.

    Regressemos ao rebento do Júlio. Como todo o filho ofuscado, Alexandre ergue-se no pomar do pedantismo, enche-se de posturas, adopta ares de sabedoria, e de suspensórios nas calças se ergue, embora lhe falte a substância, incapaz de suportar que o seu mundo de conveniências seja escrutinado. E assim apela ao insulto contra o jornalismo escatológico com “o cu na secretária”.. Acusa, sem ironia, os jornalistas do PÁGINA UM de desprezarem “os custos reais da produção artística”, e brandindo que a Cultura se engrandeceu sempre com “mecenas e poderes públicos”, esquecendo-se de explicar como é que tais custos se tornam, agora, mesmo em tenpos pós-feudais, sempre mais elevados quando pagos por dinheiros dos contribuintes. E se algum leitor incauto perguntar o que justifica tal disparidade, logo lhe será dito que não compreende a “singularidade do processo criativo”, esse conceito nebuloso que serve tanto para inflacionar preços como para justificar amiguismos.

    O mais curioso – e por curioso entenda-se aquilo que beira o patético – é que, ao defender tão veementemente a pintora Graça Morais e as suas mecenáticas benesses, o senhor Pomar escancara, sem querer, o espírito de corte que domina o meio artístico lusitano. Não é único – é universal. Um meio de artistas, malabaristas do sublime, onde se troca a crítica pela bajulação, o juízo pelo interesse, a integridade pela proximidade. E que diremos da transparência quando se trata de dinheiros públicos? Essa, coitada, é logo enterrada sob o pretexto do “respeito pela criação”. Um mural para Oeiras, um quadro para a Provedoria, meio milhão para a artista – e silêncio cúmplice para todos. Ah, artistas!

    Ah, e que falta faz Aristóteles nestes tempos de confusão moral! Que diria ele da Justiça que se adorna com murais pagos a peso de ouro, enquanto fecha os olhos aos métodos com que se adquirem? Que exclamaria Platão do senhor Pomar, que julga que questionar é pecado, e que todo aquele que não se curva perante o cânone imposto é um bárbaro? E que não pensaria Diógenes, esse cão luminoso, se perambulasse hoje por entre os salões perfumados dos novos sábios, levando na mão a sua lanterna, não à procura de um homem, mas de um vestígio de vergonha? Creio que não se daria ao trabalho de latir, pois saberia que os ouvidos destes vossos contemporâneos estão mais surdos que as paredes da minha tumba. Licurgo, se por cá andasse, decerto queimaria tais contratos, e faria gravar no mármore: “À Arte, a virtude; ao lucro, a vergonha.” Mas aqui, troca-se o mármore por faiança cara e a vergonha por um brinde.

    Trecho da ‘tertúlia’ entre Alexandre Pomar e Pedro Almeida Vieira a propósito da notícia sobre as encomendas públicas à pintora Graça Morais.

    Não nos esqueçamos, já agora, de explorar a vetusta questão das inferioridades: os filhos dos grandes homens, por vezes, em vez de tentarem igualar-lhes o génio, contentam-se em defender a corte, aspirando a ser os arautos de uma tradição que não compreendem, mas que lhes garante lugar nas recepções e nas vernissages. Tornam-se zeladores de capelinhas, juízes de meia página, estetas da conveniência, e, por fim, caricaturas do nome que ostentam.

    E, por isso, assim segue o nosso Pomar até ao fim dos tempos: sem fruto, sem raiz própria, mas de foice em punho contra quem lhe pise o relvado de privilégios. E note-se que não é relvado de jardim, mas daqueles bem regados com o suor alheio e adubados a preceitos de superioridade artística, servidos em salões onde a liberdade é permitida, desde que ajoelhada. Ora, senhor Pomar, dir-lhe-ei então o que nenhum dos seus amigos lhe dirá, por cortesia ou interesse – que o seu zelo não passa de vaidade disfarçada, dessas vaidades vestidas de causa nobre, mas que se desnudam logo ao primeiro espelho; que a sua fúria não é senão medo – medo de perder a sua pequena monarquia de estetas subsidiados, onde vossa senhoria reina sem contestação, a troco de belas palavras e bons contratos; e que o seu nome, embora herdado, não lhe compra razão, nem lhe garante talento.

    Portanto, se quer defender a arte, defenda-a com argumentos, não com latidos. Se quer proteger a amiga, então empreste-lhe a sua língua, mas não lhe venda a sua sombra. Se quer continuar a vender os quadros do seu pai ao alcaide de Lisboa, quando o carapau aumenta de preço, então pinte ao menos um retrato fiel da realidade, mesmo que borrado. Se quer silenciar quem escreve, então aprenda primeiro a ler sem tremer. Se quer a glória, então mereça-a. Se quer respeito, então não o exija como esmola, conquiste-o como obra.

    Até lá, deixe os jornalistas fazerem o seu ofício, sem essa sobranceria de cortesão moderno, que não encontra eco senão nas paredes rendadas das fundações que o sustentam; e permita aos leitores julgarem por si, sem o seu dedo em riste, qual juiz de praça. E guarde, para quando olhar ao espelho – esse espelho que, mais cedo ou mais tarde, devolve a nudez da alma – a lembrança de que nem todos se vendem ao preço que o senhor gostaria.

    Sim, caro Pomar, a Arte vale muito, sobretudo para quem detém um pomar de privilégios, mesmo se, vós, apenas frutos podres cultivastes. Mas o respeito pelo público, e pelo seu dinheiro como contribuintes, esse não tem preço – ou, ao que parece, tem, e meio milhão não chegou para o comprar. A sua amiga Graça Morais que o diga. Ou melhor, que o pinte, se lhe restar tinta depois do ouro.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.