Ah, os aviões! Dinossauros gigantes a galgar a pista. Um rugido grave que se aproxima. Suave, primeiro. Forte. Novamente suave, até desaparecer. Patas engolidas pelo ventre. Foi. E já no céu surgem ao longe os olhos de fogo dos que em poucos segundos tomarão o seu lugar. Pousarão bruscos e pesados. Tremerá o chão. Mas aterrar acalma-os. Mansos e dóceis, rosnam baixinho enquanto procuram um sítio seguro para deixarem sair os minúsculos seres que transportam.
Luísa inveja as estátuas que, no centro da rotunda, olham fixamente o céu sem que lhes doa a cervical. As luzes de aproximação. O nariz apontado às nuvens. O céu riscado a giz. Adivinhar origens e destinos. Na sua mente, silenciosos, um “Boa viagem!” ou um “Bem-vindos!”.
O aeroporto e os aviões sempre presentes na vida dos farenses. Não admira, pois, que à pergunta: “O que queres ser quando fores grande?”, ela tenha respondido desde muito cedo “⎼ Hospedeira.”. Consequência das muitas tardes passadas junto à rede do aeroporto a ver desembarcar as tripulações. As hospedeiras, assim se chamavam nesse tempo, fascinavam-na. Fardas elegantes, mulheres esbeltas, impecavelmente penteadas e maquilhadas. Exalavam glamour, classe, sucesso e uma liberdade pela qual sempre tinha ansiado. O que poderia ser mais libertador do que voar? E, entenda-se que, na sua lógica de criança, não era preciso ter aquele conjunto de características para ser hospedeira. Era ser hospedeira que garantia que se tornaria igual a elas. Perfeita!
Tudo isto seria normal, da mesma forma que o foi mudar de ideias já na universidade. O que é menos normal é que este seu desejo coabitasse com o pavor de voar. Viajar de avião é uma decisão tomada apenas quando não existem alternativas viáveis. Cada voo é um misto de felicidade por ir, por saber que chegará rapidamente ao destino, e o terror de sentir que não tem chão.
Afastada uma carreira que se adivinhava auspiciosa, manteve-se porém a necessidade de voar de vez em quando.
Na última viagem que fez a Roma, ao embarcar no regresso a casa, deparou-se com um piloto imberbe. Calafrios instantâneos. Suores. Punhos cerrados. Dor de estômago. Enquanto procurava o seu lugar, repetia para si mesma que quanto mais jovem o piloto menor a probabilidade de ter um AVC ou um enfarte. Que melhores eram os reflexos e a visão… Acalmou um pouco. Sentou-se, recorrendo a posições de ioga cuja finalidade finalmente percebeu. E, surgiram então os assistentes de bordo com os coletes salva-vidas e as máscaras de oxigénio a recordar-lhe que poderiam ter de aterrar no mar. Tentou não ouvir. Ninguém prepara os passageiros para o caso de um comboio descarrilar, pensou. Qual era a probabilidade? Não queria ouvir. Abriu o livro que trazia consigo e começou a ler.
Uma das assistentes pegou no microfone e apresentou-se. Tinha o nome da sua falecida mãe, Lucrécia. Raríssimo. Ativou o modo supersticioso e assumiu tratar-se de um sinal. Só podia querer dizer que estava protegida.
–Vai correr tudo bem. – murmurou.
O avião descolou e Luísa tranquila como nunca.
Pouco tempo depois, a máquina foi envolvida por um temporal pavoroso. Abanava por todos os lados. O medo dos passageiros era audível. Luísa manteve o controlo durante algum tempo. Porém, passados poucos minutos, começou a desconfiar de que o facto de a assistente ter o nome da sua mãe podia não ser sinal de proteção, mas sim de que me iria juntar a ela não tardava mesmo nada. Ativou, então, o modo religioso. E vá de rezar até o avião pousar. Se foi das orações, das figas ou de uma mãozinha do Além, não sabia, mas tendia a desconfiar que o milagre pudesse ter sido obra do miúdo loiro da cabine…
Para chegar a casa, havia, no entanto, que apanhar um segundo voo. Uma passagem pelos lavabos, permitiu-lhe refrescar-se, salpicando o rosto repetidamente até se sentir mais calma. Estava aterrorizada com a ideia de voltar a entrar num avião, mas não havia alternativa. À chamada, caminhou com passo lento e coração acelerado em direção à sala de embarque. Olhou rapidamente em redor para ver quem iria embarcar consigo. Muitas crianças era bom auspício. Nunca se ouviu falar de cair um avião cheio de crianças. Gente feliz e com ar saudável. Excelente prenúncio. Não tinham ar de quem ia morrer naquele dia. Uma cara ou outra com ar mais mortiço provocavam-lhe maus pensamentos. Passava adiante. Ao fundo, a um canto da sala, um homem captou a sua atenção. Meio enrolado na cadeira, debruçado sobre uma mochila preta, ar de poucos amigos, uma barba farfalhuda. Passou-o de imediato pelo seu detetor de riscos aéreos. E foram necessários alguns segundos até que se apercebesse de que se tratava afinal do seu pobre marido, ainda enjoado, e com muito pouca vontade de embarcar numa nova centrifugação.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Ele corre pela pista fora. Pequenino. Muito magro. Moreno. Cabelo levemente ondulado. Olhos e lábios inchados. Brilhantes como os de quem chorou longas horas.
Veste uns calções pretos e brancos de turco. No peitilho, um urso conduz um carro vermelho. E ele corre. Veloz. Os braços acompanham o ritmo. Agarro-o. Agarramo-lo os três. Um sopro de felicidade envolve o reencontro.
É esta a imagem que retenho do regresso a Portugal. Da primeira vez que vi o meu irmão. Uma falsa memória, porém. Hoje sei que não foi assim. E sei-o simplesmente porque não pode ter sido. Os factos contrariam a curta-metragem que a minha mente gravou. E, contudo, é tão viva, tão clara quanto a dos meus dedos a saltitar sobre o teclado neste momento. Talvez por isso, nunca me ocorreu perguntar como foi a chegada. Assumi sempre que sabia. Só recentemente me apercebi das incongruências e questionei a veracidade das minhas memórias.
Uma criança a correr solta pela pista de um aeroporto. A família a aguardá-la junto ao avião. O suficiente para questionar este episódio. Não o fiz. Nem sequer desconfiei da perspetiva. Vejo o pequenito lá ao fundo, de frente para nós. Apesar da distância que nos separa, um grande plano permite-me observá-lo em pormenor. Começa a correr e, nesse momento, acompanho o trajeto colocando-me ao seu lado. O vento afasta-lhe o cabelo do rosto e vejo-o de perfil. O meu olhar desliza, foca-o de perto. É uma câmara sobre carris. Sempre ao seu lado. E ele corre célere, ansioso, em direção a três desconhecidos.
Três. Insisto neste número nem sei bem porquê. O pai que tinha então bigode e segurava a minha mão esquerda enquanto descíamos a escada do avião. O pai que correu para abraçar o filho que tinha visto uma única vez e o levantou no ar à nossa frente, não viajou connosco. E, todavia, vejo-o nitidamente. Um sorriso inconfundível. Mas não estava lá. Regressámos sós, a mãe e eu. A desmobilização dos soldados ocorreria meses mais tarde. A reunião da pequena família, mais uma vez adiada. 25 de abril. Um dia extraordinário. Mas um dia que foram dias, anos, décadas. Que não aconteceu em simultâneo para todos e ainda está por acontecer para muitos.
Nem mesmo a felicidade que me lembro de sentir enquanto vi o meu irmão pode ser real. Não o conhecia. Não conhecia ninguém. Tinha acabado de ser arrancada ao lugar das minhas primeiras memórias. Afastada da minha única realidade: do pai, dos amigos, da casa, dos animais de estimação, das cores, do cheiro a caju e mangas maduras.
A decisão de nos juntarmos ao pai em África revelar-se-ia trágica. A separação deixa marcas indeléveis. A partida nunca é verdadeiramente compreendida ou aceite por quem fica. Corrói a alma o sentimento de se ter sido deixado para trás, de se ter sido privado de uma vida que existe apenas para os que partiram. Ele nunca se encaixará no nosso pequeno mundo. Estará ausente das nossas histórias, das nossas aventuras, das nossas canções. Nós. Um nós que não desejámos. Que se supôs transitório e se fez perene. Ele nunca pertencerá. Crescerá na incerteza de nos amar ou odiar profundamente. Insegurança, carência, agressividade, dor, desespero. Um ressentimento que, passados 50 anos, determina ainda as nossas vidas. Uma ferida reaberta em cada almoço de domingo, em cada jantar de Natal, em cada aniversário, minando-os até à sua extinção.
A ilusão de que aquele dia poderia devolver-nos a uma ordem primordial idealizada esboroou-se lenta e impiedosamente.
A verdade é que o meu irmão não correu para nós. Nunca correu para nós. Nunca voltámos a ser família. Cinco décadas decorridas e os nossos mundos ainda não se encontraram.
O 25 de abril acontece aos poucos. Vai chegando e recuando, e chegando mais um pouco. Chegará, certamente. Mas nesse dia já cá não estarão os que conhecem o significado de não ser abril.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Nascida numa família abastada de Castelo de Paiva, Eulália, a quem carinhosamente chamavam Menina Lalita, tinha das janelas de casa a vista para os quadros que compunham o seu mundo. O mundo da família. O jardim de cameleiras na frente da edifício. Dali se ia à vila. O mundo dos trabalhadores da casa, nas traseiras. Uma colmeia de sorrisos tristes. O mundo dos trabalhadores rurais. Estendido pelos montes a perder de vista. O mundo dos que iam e vinham. Estradas, caminhos, carreiros. Os mineiros de Pejão. Os cantoneiros de onde quer que a estrada tivesse parado. Saíam ao domingo à tarde e regressavam à sexta-feira à noite. Lalita mal os conseguia distinguir, de tal modo vinham camuflados pelo pó das minas e pelo negro do alcatrão que espalhavam de sol a sol. Daquela janela, via também os caixeiros viajantes que abasteciam as lojas da vila. E via as mulheres e meninas a equilibrar pesados fardos de lenha à cabeça. De vez em quando, a motorizada do Sr. Padre acelerava por ali fora para ir acudir a uma alma aflita. O carro do pai acudia ao corpo.
O Dr. Brandão, que os mais velhos ainda tratavam por doutorzinho, tinha herdado do avô e do pai a quinta, o consultório, os empregados e o respeito dos habitantes da vila. Só dali saíra para estudar em Coimbra. Pai de três filhas e um filho, rapidamente traçou para cada um deles um destino em conformidade com a tradição da família. O filho estudaria medicina e assumiria o consultório. As duas filhas mais velhas casariam com rapazes de boas famílias. A mais nova iria para freira. O ideal seria ter um filho padre, mas Deus só lhe tinha dado um varão.
Foi neste mundo que Lalita cresceu. A mãe ensinou às meninas as primeiras letras, a tocar piano e a bordar. O Ruizito andava no colégio. Era rapaz. As irmãs, Antónia e Francisca, casaram assim que a idade o permitiu. Já Lalita não mostrava qualquer vontade de desposar Cristo. Preferia a casa. Tímida. Cada vez mais solitária. Empalidecia a cada dia. Dava grandes preocupações aos pais.
⎼ Se a metes no convento, ainda morre por lá. ⎼ dizia a mãe.
E o pai nem se atrevia a falar no assunto. Nem queria pensar. Não bastava não ter uma religiosa a zelar pela sua alma, ainda tinha de ficar com uma filha solteirona.
O Ruizinho, depois de sete anos em Coimbra que lhe pareceram sete dias, regressou. O diploma é que ficou por lá.
⎼ Sabe lá o paizinho como aquilo está. Uma pessoa quer estudar e não consegue. Não é como no seu tempo.
A casa passou a ter outro fulgor. Amigos não lhe faltavam. Até porque o Ruizinho não trouxe a licenciatura, mas trouxe um gira-discos. E as janelas já não serviam só para deixar entrar o mundo. Agora Lalita passeava-se à volta da casa para ouvir as músicas que escorriam lá de dentro e inundavam o jardim. Ouvia cantar em línguas e ritmos desconhecidos. Mas só quando o pai não estava, claro está. Não se conformava, o pobre homem.
Entre os novos visitantes da quinta apareceu um tal de José António. O filho do Brasileiro, um comerciante da vila que tinha feito fortuna no Brasil e regressado há pouco. A fartura do pai não se refletia no corpo do filho. Baixo, demasiado magro, pálido. Tinha sido ele a razão do regresso. O Brasileiro buscava os bons ares e águas da terra natal para ver se o rapaz arrebitava.
Com um olhar doce e os modos de um príncipe, José António rapidamente cativou o coração de Lalita. Não era bem o que o Dr. tinha imaginado. Mas entre um casamento com quem pudesse cuidar dela e ficar para tia, não hesitou. O casamento fez-se sem a presença de Ruizinho, entretanto chamado para a guerra. Moçambique. Os dias da família passavam entre a ânsia e o receio de receber notícias daquele fim de mundo. Lalita tinha o conforto de o seu José António não ter saúde para ir à guerra. Preocupava-a tanto o irmão. Até que um dia chegou uma carta.
– É da tropa! – anunciou a empregada.
A mãe desmaiou antes mesmo de a receber. Lalita correu a telefonar ao pai a pedir que viesse. José António agarrou o envelope. Abriu-o lentamente. Leu.
– É para mim. – disse – Vou para a Guiné.
E a família repetiu o caminho até Lisboa, a despedida, o embarque. Um último beijo, um adeus ao longe já sem a certeza de a quem estavam a acenar.
O vazio da espera entre cartas. A mensagem de Natal na RTP. Não mais de três segundos, mas valiam por uma vida inteira.
O Ruizinho voltou. Mas já não ligava o gira-discos. O seu mundo era agora o fundo da garrafa de aguardente. Acendia um cigarro com o outro e tinha umas mudanças de humor que ninguém compreendia. Ia pela vila, bebendo um copito aqui e outro ali. Arranjando desacatos.
–É para apontar. – pedia.
E os comerciantes envergonhados por cobrar ao Doutorzinho que não merecia tal sorte. E o Dr. envergonhado, a mandar um homem de confiança à procura das dívidas do filho.
Na Guiné, José António cumpriu o seu tempo de serviço na cozinha. Não tinha corpo para combater. E o pai, mesmo ao longe, garantia que não lhe faltava lá nada. Se alguém precisava de um relógio, de uns sapatos civis ou de uma qualquer bugiganga, era só encomendar ao Silva. De tal forma a vida lhe corria bem por lá que não quis regressar. Gostava do clima e das frutas tropicais que lhe recordavam o Brasil da infância. Gostava das pessoas. Gostava da liberdade. Percebeu que Paiva nunca seria o lugar dele. Mas sentia falta de Lalita. Escreveu-lhe a contar que tinha comprado uma casa e estava a montar uma loja. Já todos se tinham habituado a recorrer aos seus préstimos quando precisavam do que quer que fosse. Falou-lhe de um país maravilhoso. De gente boa. Explicou-lhe que a guerra era longe dali. No mato. Muito, muito longe. Em Mansoa não havia qualquer perigo. Para ele ser feliz só lá lhe faltava ela.
De todos os homens que partiram para o Ultramar, José António seria o último que os paivenses imaginariam singrar por lá.
– Fez-se homem! – exclamavam com orgulho no rapaz da terra, de quem antes diziam ser um fraca figura que nem para comer servia quanto mais para trabalhar.
E, perante a incredulidade de todos, Lalita fez prontamente as malas e preparou-se para partir. O seu lugar era ao lado do marido, dizia. Foi num estado de atordoamento que deixou o seu mundo e rumou ao aeroporto de Lisboa. Viu pela primeira vez um avião. Entrou aterrorizada no bicho que a devorou e a depositou num lugar onde os montes não eram verdes. Pensou que teria andado por ali incêndio. Apanhou o voo de ligação do Sal para Bissau. Fez a viagem a pensar como sobreviveriam os donos daquelas quintas e pinhais queimados.
Chegou finalmente ao destino. A terra muito vermelha lembrou-lhe que ali havia uma guerra. Teve medo. Muito medo. E se o José António não a viesse buscar? E se lhe tivesse acontecido alguma coisa desde a última carta? Mas veio. Quase não o reconhecia. Mais cheio, com um bigode farfalhudo, cigarro na mão. O olhar doce e o sorriso franco com que a conquistou. Reparou que usava calções. Riu-se. Nunca tinha imaginado vê-lo assim.
A viagem entre a capital e Mansoa fez-se num carro emprestado por um amigo. Lalita contou a José António sobre o incêndio na Ilha do Sal. Conhecendo-lhe a bondade e inocência e receando que ela ficasse a remoer sobre como sobreviviam as pessoas numa terra tão pobre, explicou-lhe que no outro lado da encosta a ilha era muito verde. Que era ali que vivia a maior parte da população e que o que viu ardido era apenas uma pequena área.
– África é muito grande e muito rica, meu amor!
Lalita estranhou a paisagem. Não era assim que imaginava África. Perguntou-lhe pelas girafas, pelos elefantes, pelos leões… e ele, sempre pronto a esclarecê-la, explicou que estavam mais para o interior.
– Lá no mato.
-E a guerra?
-Também. Lá no mato.
– E o mato é longe daqui?
– Ah, sim. Muito longe. Às vezes ouve-se um bocadinho quando vento está de lá para cá. Mas é muito longe.
Foi a primeira vez que Lalita andou num descapotável. E também a primeira em que sentiu que poderia vir a ter de destapar os ombros em público. Um calor infernal.
– Chegámos!
– Chegámos?
A vila não era de todo o que esperava. Três ruas. O marido ia relatando o que via: o clube, os correios, a igreja, o mercado, a escola, lá adiante o restaurante e virando ali o quartel. A casa, a loja. Estava dececionada, mas não queria que ele percebesse. Decidiu que seria feliz ali.
O Silva era agora o dono do maior estabelecimento comercial da terra. A pequena loja anexa à casa estava cheia de mercadoria até ao teto e fazia sucesso. Colchas pesadas a imitar pele de tigre, tapetes com pavões, garrafas de whisky . Predominavam os motivos orientais: nas toalhas de mesa e de banho, pijamas bordados, serviços de café e chá. Loiça muito fina. Dragões alados em relevo. Os soldados acumulavam tudo isto como podiam. Debaixo das camas. Dentro das gavetas das secretárias. E sonhavam com as férias.
Lalita garantia que nas suas encomendas o marido não se esquecia de mandar vir tela e linhas para os seus bordados. Bordava camélias, rosas, paisagens com montanhas verdejantes. Bordava o mundo em que vivia no interior da casa de que pouco saiu nos anos que ali passou. Nunca aprendeu crioulo. Não tinha jeito para línguas, dizia. O marido fazia a ligação aos empregados e acompanhava-a nas raras saídas. Iam ao cinema. Aos domingos, a missa foi substituída por um almoço no restaurante do Simões e um gelado em Bissau. Lalita era feliz assim.
Mas quando o sol se punha, ouvia tiros. Não lhe pareciam assim tão longe como José António lhe dito que o mato ficava.
– Tens razão. – confirmou – Estes tiros são aqui perto. Os homens, à noite, vão aos coelhos.
E ela cheia de pena de o seu José António não se ajeitar com a espingarda. Tinha saudades do coelho em vinho verde tinto que a cozinheira fazia quando o paizinho ia à caça.
– Não lhes podes comprar um? – pedia com o ar de criança que o deixava sempre desarmado.
– Podia, sim, Lalita, mas os homens comem tão mal no quartel que até tenho dó.
– Coitados. Deixa-os estar. – dizia conformada.
E o ar da noite no rosto. O cheiro do coelho bravo estufado, do arroz no forno e da regueifa quente a entrar pelas narinas. As mangueiras e os cajueiros a libertarem o odor de pinheiros, ulmeiros e castanheiros. Os mineiros e cantoneiros enfarruscados a entrar pelo mato adentro.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Nunca conversaram muito. Nunca foram amigas. Também nunca foram outra coisa qualquer. As vidas das duas mulheres cruzaram-se. Trabalham há muito na mesma empresa. Partilham alguns espaços e momentos. Muitos, na verdade. Mas nunca convergiram. Nunca aconteceu. E, no entanto, hoje aqui estão. Sentadas lado a lado, de mãos dadas.
Encontrou-a sentada no carro. Debruçada sobre o volante. Hesitou, mas decidiu voltar atrás. E se desmaiou? Pode estar a sentir-se mal. A precisar de ajuda. Ana percebe rapidamente que a colega não perdeu os sentidos. As convulsões do corpo denunciam o choro. Fica sem saber se deve bater no vidro ou não. Não tem intimidade suficiente para se intrometer. Por outro lado, receia que esteja com dores. Que seja necessário chamar uma ambulância.
Avança. Se não gostar, paciência, pensa. Mande-me embora. Três toques com os nós dos dedos. Aguarda um pouco e repete. Os olhos vermelhos de Sara, inchados e sem expressão surgem lentamente por entre as dobras da manga bege suja de maquilhagem. Volta a enterrar rosto no couro do volante e Ana pergunta-se se estará a ser inconveniente. Afasta-se. Dois passos dados, ouve o seu nome:
⎼ Entras um bocadinho?
Entra, obviamente. Não sabe porquê, mas não se surpreende com o pedido. Senta-se no lugar do passageiro. Aguarda que Sara se recomponha. Pousa-lhe uma mão no ombro. Com cautela. Com a hesitação de quem não tem o hábito de o fazer. Sara liberta um grito rouco. Chora compulsivamente durante longos minutos até o cansaço a impedir de continuar.
É então que limpa o rosto. Assoa-se ruidosamente, uma e outra vez. E Ana, que até então sabia apenas como se chamava, o que fazia e que tinha três filhos, torna-se a sua maior confidente. Sara diz-lhe que o marido saiu de casa há dois dias. Estiveram juntos quase 20 anos. Ainda não encontrou a melhor forma de contar às crianças.
– Achas que tens mesmo de fazer o já? Não te estarás a precipitar? Não há possibilidade de se reconciliarem? – pergunta Ana.
Sara garante que não. Explica que quando a informou de que iria sair de casa, o João já tinha um apartamento alugado e mobilado há meses sem que ela soubesse. Duas ruas abaixo da casa onde vivem. Voltam a correr-lhe as lágrimas quando diz que nunca se tinha apercebido de nada. Para ela, tinham o casamento perfeito. Não consegue entender, logo não consegue explicar. Sente-se perdida. Foram namorados de liceu. Escolheram a mesma faculdade para poderem estar juntos. Casaram. Tiveram filhos lindos. Construíram a casa com que sonharam. Fizeram viagens de sonho. Até o cão é perfeito. São, ou melhor, eram a imagem da felicidade. Pelo menos, era assim que ela via a sua vida. E, por entre muitos desabafos, explica que, por incrível que pareça, o que mais a magoou não foi o facto de ele ir embora, nem sequer as palavras. Ele foi doce. Educadíssimo, como sempre. Falou como um amigo que a tenta confortar. Disse-lhe que tinha de ir. Que ela tinha de ter paciência. Sara perguntou-lhe porquê. Ele baixou o rosto. Ela explicou-lhe que tinha de compreender para se poder conformar com a ideia. Além disso, como queria saber como iria ele explicar aos filhos o que se passava. Perguntou-lhe o que pretendia dizer-lhes. Como e quando o iria fazer. Não obteve resposta. Nem uma palavra. Nem um olhar. A cabeça baixa. Não por pudor, acredita ela. Mas porque não pensou na necessidade de dar uma resposta. Porque assumiu que “ter de ir” era justificação suficiente. Voltou costas. Cabisbaixo. Desapareceu. O João não voltou a dar notícias e a única certeza que ela tem agora é a de que terá de ser ela a desferir esse golpe nos filhos. Que ficará sozinha a olhar a dor no fundo dos seus olhos incrédulos.
As palavras e os atos já não a magoam, diz. Desiludem. O que a magoa é o baixar os olhos, o gesto que a deixa no vazio e que lhe traz de volta uma memória terrível. Conta que a sua mãe faleceu recentemente. Cancro. Ana lamenta. Cruzam-se quase todos os dias e não se apercebeu de nada. Sara recorda o médico da mãe, a bata azul, o ar exausto, um cubículo improvisado com vista para o estádio.
⎼ A equipa fez tudo o que podia. – explicou-lhe então.
⎼ Nada correu como esperado.
E ela de olhos fixos no relvado. A imaginar que não estava ali. Se não estivesse, não podia acontecer.
⎼ A ciência tem as suas limitações. – ouviu.
Não podia ser. Incrédula, perguntou:
⎼ E agora doutor? O que vão fazer? O que digo ao meu pai?
Ele baixou os olhos. Encolheu os ombros. Ela formulou e reformulou a questão. E o silêncio cada vez mais pesado, mais doloroso. Desesperante. Olhos no relvado. O sol a encandeá-la através do vidro e a tornar tudo irreal. Do regresso a casa, recorda os vultos, o medo de pousar o pé a cada passo. Sem chão. O abismo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Estação de Sete Rios. Uma voz bem colocada anuncia a chegada do comboio. Um rapaz emerge da escada rolante e aproxima-se a correr. Mochila, trolley, telemóvel na mão. Dirige-se ofegante a uma rapariga que está mesmo à minha frente e se prepara para embarcar. Pergunta-lhe se apanha muitas vezes aquele comboio e se sabe se o “pica” costuma aparecer. É que vai até Entrecampos, explica, é só uma estação, não tem bilhete e está atrasado para um exame. A jovem responde: – Faço isto todos os dias. É tranquilo. Nunca o vi.
Entram. Entro também. Acomodamo-nos. O comboio arranca e ouve-se de imediato: – O seu bilhete, por favor. – Olho para o rapaz da estação. Está lívido. O corpo transformou-se num bloco que inclina em direção à janela. Não, Entrecampos não está à vista. O fiscal avança rapidamente pela carruagem e a cada passo que dá o rapaz parece estar mais perto de ter uma síncope.
Fito-o com intensidade, como se isso o pudesse desmaterializar, torná-lo invisível. Aos meus olhos, irracionalmente, o infrator transforma-se em vítima. O fiscal-caçador passa por mim. Demoro um pouco a mostrar-lhe o meu bilhete. Torno-me cúmplice. Quero acreditar que aqueles breves instantes serão suficientes. Estamos quase em Entrecampos. Finalmente, o momento da verdade. Invade-me um sentimento de vergonha alheia. É agora! Mas antes que se dê qualquer interação entre caçador e presa, eis que, do nada, surge a rapariga da estação. De mala na mão, vira revira tudo o que tem lá dentro: – Está aqui o meu passe e… é só um bocadinho… oh, pá, não encontro o teu. Tem de estar aqui. Eu pus aqui… –, vai dizendo enquanto simula uma busca desesperada. O rosto do rapaz, porém, não deixa margem para dúvidas. Um expressão entre o espanto e o pavor. Os músculos faciais estão completamente contraídos. Chegamos ao destino. O fiscal, provavelmente cansado, finge acreditar na história do passe desaparecido e prossegue como se nada fosse.
Já na estação, os dois jovens riem da aventura. Ele garante que nunca mais se mete noutra. Ela está divertidíssima com a situação. Apresentam-se e trocam rapidamente contatos. Vejo-os abandonar o edifício enquanto aguardo o táxi. Imagino a continuação deste episódio. Um segundo, um terceiro encontro. O início de uma bela história de amor. Vejo-os num futuro distante. Ela uma atriz famosa, ele um engenheiro civil aposentado. Sentados a uma mesa, rodeados de filhos e netos, contam-lhes, mais uma vez, como se conheceram. Lembram o dia em que ela, corajosa, descontraída, despachadíssima, o salvou de uma multa no comboio. Recordam como ele, tímido e incapaz de mentir, um dia se perdeu de amores pela bela ruiva que veio em seu auxílio.
Esta história escrita pelo meu coração de casamenteira termina com um “e viveram felizes para sempre”. Porém, a minha mente não se detém muito tempo nesta versão. A experiência diz-me que não será bem assim. Que há mais por detrás da pequena farsa a que acabei de assistir. Incomoda-me a facilidade com que aquela jovem mentiu descaradamente ao fiscal. Não terá sequer 20 anos. No meio de uma carruagem, rodeada de estranhos e sem sombra de hesitação, criou uma cena digna de um grande palco. A imagem do casal feliz, a contar a aventura aos descendentes, é agora substituída na minha mente pela de dois velhos amargos, depois de décadas de pouco convincentes “Querido, isto não é o que parece!”
Luto para que este pensamento não mate a história inicial. Convenço-me de que salvar o rapaz era inevitável.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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