Autor: Sílvia Quinteiro

  • Vem aí trovoada!

    Vem aí trovoada!

    A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.

    O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer.  Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer.  E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼   exclama.

    ⎼  Pois vem! ⎼   confirma ele, continuando a pedalar.

    a pink flower with green leaves

    Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar.  Reparo como se cruzam, mas não param.  Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.

    Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma  das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito  da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:

    ⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.

    Está morta, penso. Tão triste!

    Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha!  Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.

    a bicycle parked in front of a house

    A senhora que sabe coisas volta a passar.

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼ grito-lhe.

    ⎼  Pois vem! Ê lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.

    ⎼ Tá visto que sim.  ⎼ diz ele com um sorriso.

    Um para cima, outro para baixo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Vir de vez

    Vir de vez

                  Tinha saudades de casa. Fecho os olhos. A luz intensa atravessa-me as pálpebras. Mergulho numa paz absoluta. A monotonia por que ansiava há tanto. O som das cigarras, ondas que se desfazem num murmúrio ao encontrar a areia. Um contínuo. Som que é silêncio.  Apenas o canto das rolas marca o compasso e nega a suspensão do tempo.   A sombra imperfeita das videiras. A aragem a brincar com a minha pele, a soprar-me os pelos das pernas e dos braços: fresca, quente, quente, fresca, quente…

                  O telemóvel vibra junta da minha perna. Não queria atender, mas nunca se sabe:

    ⎼ Tou? Toninho, já cá tás, filhe? ⎼ perguntam do outro lado.

    ⎼ Estou, sim, tia. Cheguei de madrugada.  ⎼ respondo.

    ⎼ Ai, graças a Deus, filhe. Tava aqui em pulgas. Ainda deves tar cansade. Mas quande quiseres passa por’qui. Vem almoçar ca gente. Tenhe cá uma coisa p’a t’amostrar.

    the sun is setting over a grassy field

     

    A tia tem razão. Ainda estou muito cansado. Vim de carro. Já me tinha desabituado. Mas vim de vez. Parece mentira. De vez… Combinamos um almoço para sábado.

    Os tios esmeram-se.

    ⎼ Isto aqui não é à grande e à francesa, mas é à grande e à algarvia! Vá lá, toca a comer que isto quem na presta pra comer na presta pra trabalhar. ⎼ brinca o primo Ernesto, enquanto põe em cima da mesa uma travessa de sardinhas assadas.

    ⎼ Carcanholas da ria, berbigão, xarém com conquilhas, saladinha montanheira, sardinhas, panito pra pôr por baixo… Sirvam-se que disto não apanham vocês lá na França. ⎼ acrescenta.

    ⎼ Ah, pois não, mas agora já sabes que estou logo aqui ao lado. É só convidares-me mais vezes.  ⎼ respondo.

    As longas sardinhadas no alpendre dos tios. Os risos, as conversas que se misturam com os sabores, os odores, as cores, as memórias. Ouço-os, como às cigarras: doce banda sonora de verões passados.

    O Ernesto, de pano de cozinha na mão, vai enxugando uma enorme melancia encharcada.

    ⎼  O frigorífico é para melancias enfezadinhas. explica  – Esta esteve dentro do tanque desde de manhã para ficar fresquinha. A melancia quer-se grande, para dar umas boas talhadas.

    white and brown wooden house on green grass field near body of water during daytime

    Seguem-se um café e um medronho para ajudar a digestão. A tia Alice surge de dentro de casa com uma tesoura de jardinagem numa mão e uma fotografia na mão.

    ⎼ Vê lá se conheces aí alguém. ⎼ desafia-me, colocando a fotografia em cima da mesa.

    – Deixe lá ver. Tenho de pôr os óculos. – respondo.

    ⎼ Ai, filho, se já nem tu vês bem… na hei de eu tar velha… ⎼ desabafa a tia entre o lamento e a brincadeira. E eu percebo que nunca vai entender como é possível o filho da irmã já estar aposentado. Na verdade, espanta-a sempre que já esteja maior que ela.

    ⎼ Não diga isso, que a tia está mais nova do que eu. ⎼ respondo, enquanto ela, ligeira, sobe à cisterna, que já só serve como poiso para as centenas de vasos que são o seu orgulho:

    ⎼ Vou-te mandar aqui umas podas. Tens de dar um jête àquele quintal. Pôr lá umas florinhas, que morreu tudo à sede e a tu mãe tinha sempre tude chê’delas. ⎼ diz.

    Examino a fotografia. Um primeiro olhar e viro-a. Na parte de trás, esborratada e já quase ilegível, a inscrição “Ludo, 1954”. Oito mulheres e cinco crianças. Estão em pé, alinhadas. Sorriem para a câmara. Trabalhadoras das salinas. As roupas, pouco mais que farrapos. Vestidos andrajosos. Camisas que não fecham. Saias presas à cintura por cintos velhos ou baraços.  As vestes das meninas destoam das das mães. Limpas. Engomadas. Chapeuzinhos de palha. Aperaltadas para a fotografia, com certeza. Na imagem, um único rapaz. Ao contrário das meninas, está coberto de pobreza. Tem um ar sujo. Sobre o corpo, uma camisa curta. Apenas isso.

    As mulheres usam lenços por debaixo dos chapéus. Por cima, as rodilhas ajudam a equilibrar as canastras. Pés de lama. Nus. Negros até aos tornozelos.

    a chair and a table in a dark room

    ⎼ Então? Não conheces ninguém? ⎼ pergunta o tio António, enquanto arrasta a cadeira para junto de mim.

    ⎼ Reconheço a tia. Toda nova e jeitosa. Olhe para isto. Parece uma garça, aqui com uma pernoca alta e toda desempenada. – provoco-a sorridente. Ela ri-se e diz qualquer coisa que não percebo.

    ⎼ Olha, a prima Amélia. Estás aqui prima, à frente das nossas vizinhas: a Idalina, a Estrudinhas, a Marcelina.  Aqui ao lado, a mãe da Natércia e da Noélia. Elas à frente. As feições não mudaram nada.  E, se não me engano, esta é avó delas. Não me lembro do nome. ⎼ digo enquanto passo o indicador uma a uma.

    ⎼ Vangelina. ⎼ lembra a tia. ⎼ E a do lado. Sabes quem é? ⎼ pergunta.

     ⎼ A minha mãe, claro. Que saudades! ⎼ os olhos enchem-se-me de lágrimas, a garganta prende-se um pouco. Tusso e ajeito-me na cadeira.  É dia de festa.

     ⎼ Grandes senhoras! – exclamo, sabendo que o repetirão em coro.

    Lembro-me bem destas mulheres e destas crianças. Sei de cor as suas histórias. Apesar de a vida nos ter levado por caminhos diferentes, agosto foi sempre o mês do reencontro. De pôr a conversa em dia, mas também de lembrar. Repetiam todos os anos as suas histórias, como se essa partilha garantisse que o seu passado tinha realmente acontecido: a gripe espanhola que levou o pai e a mãe da Estrudinhas quando ela tinha dois anos; a guerra do Ultramar que matou o noivo da Noélia;  o marido da Ti Vangelina, que emigrou para a Venezuela e nunca mais deu notícias; o sangue vendido para pôr um teto sobre a cabeça dos filhos;  o aborto causado pelo peso do sal; a exploração; as jornas de trabalho de sol a sol; a fome que se enganava com figos secos; a penúria que obrigou os meus pais a emigrar. Também eu preciso que confirmem. Que à mesa me digam que estou certo. Que foi assim que aconteceu.

    ⎼ Oh, tia, eu sei que a miséria era muita. Mas não me diga que não dava ao menos para me taparem as miudezas para a fotografia? ⎼ pergunto.  

    ⎼ Tu até tinhas uns calçanites que te fez a avó Julinha, que Deus tem. Mas eras muito pequeno e a tua mãe não tinha tempo para te andar a limpar o rabo. Nem havia cá fraldas, o que é que pensas?  Vocês eram mecinhes, andavam per‘li uns c’os outres. Não havia cá onde os deixar. – explicou a tia. – Pareciam pilritesós saltinhes dum lado pró outre.

    ⎼ Era duro, hã…? – pergunto.

    ⎼ Era, mas a gente também se ria muito. Contávamos muita anedota. Cantávamos. Dizíamos umas asneiras p’rá gente se ir entretende. Éramos moças…Ele em havende pás sopas e pa vocês se irem criande… mas trabalhava-se muite.

    grayscale photo of Eiffel tower on top of white envelope

    Exatamente o que vejo nesta fotografia, nestes sorrisos: um misto beleza, sofrimento, força e doçura. Sorrisos abertos, francos. Sorrisos de gente feliz. Impossíveis de compreender sem conhecer estas mulheres. Não me lembro daqueles tempos em que era tão pequeno que ainda não tinha direito a calções. Para mim, elas só entraram na minha vida anos mais tarde. Mas reconheço os sorrisos. São os mesmos. Sorrisos felizes, mesmo quando as histórias dos tempos difíceis lhes colocavam um véu de tristeza no olhar. O segredo por detrás deste sorriso aberto? Acredito o sal que lhes curtiu a pele lhes temperou a alma.  Eram divertidas, bem-dispostas, naturalmente felizes ou, pelo menos, decididas a sê-lo.   

    Ao almoço pega-se o lanche. Os tios insistem que fique para jantar. Já me tinha esquecido do que significa “passa cá por casa”.  O estômago diz-me que não aguento. Que não posso ficar sentado. Decido fazer uma caminhada no Ludo. Está um final de tarde lindo. Vou até às salinas. As águas turvas dos tejos coloridas pelos azuis, rosas e dourado do céu. Manchas do branco das nuvens. Aproximo-me na esperança de ver ali resquícios do passado, mas a água já não espelha a imagem das marnotas: um bando de flamingos cruza-se com um avião que levanta voo. Os que chegam e os que partem. Pergunto-me quantos lá irão na esperança de um dia virem de vez.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • O Miguilim da gruta

    O Miguilim da gruta

    Aninhado no ventre da mãe, embalava-o já aquele som melodioso. Uma espécie de canção entoada a dois. Ora em uníssono, ora revezando-se, as vozes da mãe e do pai abraçavam-se.

    Os serões do jovem casal eram passados na cozinha. Ela bordava. Ele fazia-lhe companhia. Contava-lhe como tinha sido o dia na mina. Perguntava-lhe se tinha passado bem. Se o bebé se tinha mexido. Queria saber o que ela estava a bordar. E ela mostrava. Dois passarinhos.

    ⎼ E o que vai escrever nesse paninho, Mariana?

    Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim. ⎼ respondeu. António acrescentou:

    ­⎼  a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com um todo carinho…”.

    De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. – completou ela. 

    black and yellow wall sconce

    Era esta a melodia que atravessava a mãe e embalava o filho. As palavras dos textos de Guimarães Rosa. Aprenderam-nos quando eram Miguilins. Deixaram-se encantar pelas palavras do escritor nascido na sua terra. Foi ali, naquela escolinha de Cordisburgo, que se conheceram e se apaixonaram. Na cidade do coração.

    O bebé nasceu prematuro. Tão pequenino e delicado que dava até medo de pegar. O pai segurou-o cuidadosamente. Receava magoá-lo com os seus braços fortes e as mãos calejadas:

    ⎼ Olha só, Mariana, tão pequenininho. Parece um manuelzinho-da-crôa.

    ⎼  … o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima. – respondeu ela com um sorriso.

    Estava escolhido o nome: Manuel. Como o passarinho mais delicado, mais bonito e engraçadinho do sertão.

    As palavras de Guimarães Rosa vivas. As paisagens e as personagens. Os bichos. As pessoas. As plantas. O chão. Tão familiares e tão estranhos. Eram o ali e o além.  Manuelzinho memorizava as palavras dos pais. Repetia-as para si próprio. Às vezes, procurava compreendê-las.

    Aos 12 anos, juntou-se aos Miguilins. Finalmente! Dedicou-se de corpo e alma à tarefa do grupo: memorizou um a um os textos que lhe foram confiados. Aprendeu a dizê-los com a voz, com o corpo, com a alma. Orgulhosos, os pais ajudavam-no. Os serões eram agora a três.  Não havia na terra motivo de maior alegria do que ter um filho nos Contadores de Estórias Miguilim.  Orgulho da cidade, o grupo que carrega o nome da personagem rosiana é a sua bandeira e o seu melhor embaixador.

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    Tal como para todos aqueles jovens, a aventura de Manuelzinho terminou aos 20 anos. Era chegado o momento de voar noutras direções. Sabia o que queria.  Ia para a universidade estudar literatura. Compreendia agora a nostalgia dos pais:

    ⎼ Uma vez Miguilim, para sempre Miguilim. ⎼ diziam.

    A universidade foi um sonho que durou apenas 4 meses. O dinheiro não chegava. Regressou a casa. Procurou emprego. Encontrou um ali bem perto, na Gruta do Maquiné. Agradou-lhe a ideia de ser guia. Gostava de contar histórias. Na gruta não seria diferente. Manuelzinho abraçou aquela sombra. Amou-a.  A gruta era agora o seu sertão:  Sertão é onde o pensamento da gente se forma maior que o poder do lugar, tinha aprendido.

    O silêncio, as salas gigantes, o vazio. Preenchia-os com a sua luz, com as histórias, as personagens e as paisagens que povoavam a sua mente. Talvez por isso, recebia os turistas com um sorriso tímido, mas acolhedor. Palavras e gestos doces. À medida que atravessava cada uma das sete salas, contava a sua história: quem as descobriu, quando, o que ali achou, os filmes que ali foram gravados.  Apontava a lanterna para as formações rochosas e mostrava castelos de fadas, abóboras gigantes, morcegos de pedra, uma língua de vaca que saía da parede. Um ralo aberto na rocha que ia dar ao Japão. Ou talvez fosse um portal para outra dimensão, quem sabe?

    Certo dia, uma turista curiosa perguntou-lhe se Guimarães Rosa alguma vez tinha visitado a gruta. Manuelzinho apressou-se a dizer algumas frases do escritor a propósito daquele lugar. E fê-lo com tal entusiasmo e arte que a visitante não conseguiu esconder a perplexidade. Perguntou-lhe como tinha ele aqueles textos na ponta da língua, assim, sem qualquer preparação.  Manuelzinho cresceu. Encheu o peito. Compôs o capacete. Aprumado, respondeu:

     ⎼ Bem, é que eu sou um ex-Miguilim, mas ex-Miguilim não existe não, moça. Ser Miguilim não sai da gente.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Ilusões e quiches de espinafres

    Ilusões e quiches de espinafres

    Agarrou o livro. Abriu-o, pressionando a palma da mão contra o vinco que teimava em fechá-lo. Leu os dois primeiros parágrafos. Releu-os em voz alta. Fechou-o. Era tudo o que a capa e o título prometiam. Voltar a amar, a silhueta de um casal sobre um pôr-do-sol em tons de Inteligência Artificial. Oferecera-lho a tia:

    ⎼ Como gostas de ler… e tens de começar a pensar em refazer a tua vida. És muito nova!

    Pois gosto, pensou. Gostava também da tia. Gostava ao ponto de guardar aquele livro. Não tencionava lê-lo. Guardá-lo-ia como qualquer outro objeto que ela lhe tivesse oferecido. Livro-pisa-papéis. Livro-de-não-ler. Livro-há-mesmo-alguém- que-acha-que-isto-é -literatura. Livro-como-é-possível-abater-árvores-para-imprimir-isto. E, o mais incrível, livro-número-1-no-TOP-de-vendas. Este sucesso que não conseguia perceber fez com que um turbilhão de pensamentos lhe atravessasse a mente. Lembrou-se dos anos 90. Das  supermodelos. Perfeitas. Poderosas. Cindy, Naomi, Linda, Christy. Desfilavam, posavam, eram ricas e famosas. Ser como elas era o sonho de milhares de miúdas e miúdos por todo o mundo. Mas mais do que isso, passou a ser o sonho de muitos pais e mães. Embevecidos com a beleza das suas crias, viam ali a possibilidade de uma vida bem sucedida. Começaram a surgir escolas de manequins um pouco por todo o lado. “Caçadores de talentos” convenceram as famílias a apostar o que tinham e o que não tinham na realização dos sonhos dos mais novos. Dos que tinham tudo para dar certo. Mas também dos que não tinham rigorosamente nada que pudesse apontar nesse sentido. Sentada à mesa do escritório, livro nas mãos e olhar perdido naquele pôr-do-sol impossível, continuava a pensar nas crianças e jovens que qualquer leigo na matéria teria percebido não terem a mínima possibilidade de virem a ser modelos. Deixaram para segundo plano os estudos, atraídos por uma carreira nas passerelles ou na publicidade. Bem mais apetecível do que estudar, sem dúvida. Anos à espera da grande oportunidade. Amargurados, a  sentir-se injustiçados. A acumularem rejeições e traumas. Anos e anos até perceberem, ou não, o que lhes tinha acontecido.

    assorted-color hanging clothes lot

    Olhou novamente para aquele monte de folhas impressas e achou que poderia servir para elevar um pouco o monitor do computador. Afinal, sempre teria alguma utilidade.  Abriu-o mais uma vez. Já agora, queria ver como terminava. Leu o parágrafo da última página. Ah, felizmente tinha uma lombada com a altura ideal para o que precisava. 

    Das pseudoescolas de manequins, o seu pensamento deslocou-se para as escolinhas de futebol. Para os meninos arrastados pela ideia de que a fama é tudo. De que estudar dá trabalho. Ganhar a vida a dar uns chutes na bola é bem mais fácil e apelativo. Talento e sacrifício são pormenores. Abre-se uma “escola”. Enfiam-se os miúdos nuns equipamentos giros. Depois, basta ir sussurrando aos ouvidos dos pais que têm ali o próximo Ronaldo e a mensalidade não falha. Sonham com aviões particulares, mansões em lugares paradisíacos, contratos de milhões a fazer capas de jornais. O tempo vai passando. O secundário faz-se a custo. O sentimento de injustiça. A revolta. A frustração que tantas vezes poderia ter sido evitada. Bastaria alguma honestidade. Bastaria que se dissesse claramente que a maioria dos meninos e meninas se podem divertir, mas nunca  serão profissionais. Só que a honestidade custa dinheiro. O problema é que no futebol é que não há como vingar sem verdade. Já na literatura… Suspirou. Voltou a olhar para o livro. Poderia o texto da contracapa induzir os compradores em erro? Começou a ler. Não aguentou mais de duas linhas. Não. Nem era esse o caso.

    E voltou a pensar nas sanguessugas que, sempre atentas, vão diversificando o negócio, tirando proveito das ilusões e ingenuidade alheias. Alimentam-se  agora do sangue de um novo grupo de vítimas. Atacam-nas nas águas pantanosas das editoras, que nascem um pouco por todo o lado, entaladas entre uma escola de modelos/atores (vai dar tudo ao mesmo) e outra de futebol. E é ver entrar e sair os aspirantes a escritores.  Entram apreensivos, ansiosos. Saem com o ego massajado e a carteira mais leve. A maioria das editoras é hoje um negócio que vive de alimentar sonhos e explorar sonhadores. Publicam manuscritos com mais erros de ortografia e sintaxe do que parágrafos. Enredos ao nível da composição “As minhas férias”. Um discurso que convence o autor de que será o próximo Saramago. Mas em bom, claro!  O outro nem pontuar sabia! O editor vai metendo milhares de euros ao bolso, ano após ano. Sim, porque os leitores não foram lá à primeira, mas hão de reconhecer o génio. Não se pode desistir assim. O próximo volume não falha. Faz-se uma capa ainda mais chamativa e embala-se num saquinho com brilhantes, fechado com uma fitinha de seda. Monta-se uma banca com flores de plástico nas feiras do livro e fazem-se sessões de autógrafos. É fundamental que o texto tenha muitas frases de encher o ouvido. Daquelas a escorrer azeite. Pode até ter atores das telenovelas a ler uns excertos. Custa dinheiro. Mas é um investimento. Depois é publicar mais um. E outro.  E até outro, se o pé de meia ainda não se tiver esgotado.

    man playing soccer game on field

    E vem-lhe então à memória a recordação de uma antiga professora da FLUL. Uma conhecida catedrática com tanto de competente como de pouco diplomática que, certo  dia, após a apresentação de um trabalho, perguntou à autora se havia um prato que cozinhasse particularmente bem.

    ⎼ Quiche de espinafres! ⎼ retorquiu a rapariga.

     A resposta não se fez esperar:

     ⎼ Então, vá para casa e faça imensas quiches de espinafres. Mas deixe a literatura em paz que não lhe fez mal nenhum.

    E ela foi.

    Cruel? Sim. Honesta, porém.

    Leonor coloca finalmente o livro debaixo do monitor. Lombada virada para a parede. A cor da capa e o título são-lhe insuportáveis.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    Corria o ano de 1950. Pelas ruas da cidade vagueava um cão abandonado. Ardiloso, escapava como podia à carrinha do canil municipal. A perseguição levou-o a procurar refúgio junto ao Liceu. Foi aí que o canídeo cor de mel foi adotado pelos estudantes e elevado ao estatuto de mascote. Deitado junto a um grupo, empoleirado junto a outro, alimentado por todos, Kanitov, assim lhe chamaram os estudantes, tinha encontrado um lar.

    Certo dia, porém, Kanitov afastou-se deste lugar seguro e voltou a percorrer as ruas da Baixa, onde, à vista de toda a gente, o inimigo lhe deitou finalmente a mão. Sem um dono que pagasse a licença, o destino do animal estava traçado.

    black and tan short coat medium sized dog sitting on green grass field during daytime

    A notícia da captura chegou rapidamente aos ouvidos dos estudantes. Juventino, aluno do 8.º ano, tinha então 16 anos. Era baixo para a idade, magro, pálido. Tão recatado que poderia desaparecer sem que os colegas dessem pela sua ausência. Só Kanitov lhe sentia a falta. Mal o via ao longe, o bicho corria desenfreadamente na sua direção, saltitando e abanando o rabo. Juventino, filho único, a quem nunca foi permitido ter um animal de estimação – não fosse o menino adoecer dos pulmões – encontrou em Kanitov um companheiro. Um fiel amigo com quem partilhava a sandes de iscas fritas que a anemia o obrigava a ingerir diariamente.

    A perspetiva de Kanitov ser abatido era inaceitável para os jovens. E, enquanto os colegas iam murmurando soluções, eis que Juventino, saído da penumbra em que vivera até então, saltou para cima de um banco e gritou: ⎼ Uma manifestação, companheiros! Isto pede uma manifestação! ⎼ Movidos pelo amor ao cão e pela inesperada atitude sanguínea do colega, os estudantes juntaram-se no pátio preparados para avançar.

    O Reitor, tomando conhecimento desta intenção, alertou os rapazes para o perigo que corriam. Não tinham autorização do Governo Civil. Mas Juventino, assumindo a liderança, falou por todos quando disse que a decisão era irrevogável. Estavam cientes do perigo. Sabiam que os ajuntamentos eram proibidos. Mas era o Kanitov, caramba! Era um deles!

    Foto: Inácio Ludgero

    Uma vaga de capas negras desceu a avenida e atravessou as ruas da Baixa, em direção à Câmara Municipal: – Viva o Kanitov! Libertem o Kanitov! – Exigiam.

    A população, assustada, dividia-se entre o desejo de se afastar para evitar problemas e a curiosidade de saber quem era Kanitov. Alguém esclareceu: – É um general russo. – E o rumor correu a cidade: Os alunos do Liceu, o futuro da região e do país, caminhavam pelas ruas cidade a exigir a libertação de um general russo. Uma vergonha!

    O meritíssimo juiz, posto ao corrente do escândalo, abandonou o café que tomava numa esplanada da moda e foi ver quem eram os meliantes. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. A encabeçar o grupo de delinquentes, punho em riste e a gritar a plenos pulmões, o seu Juventino. Por instantes, pensou em ir até ele e arrastá-lo dali pela orelha. Mostrar que sabia educar o filho. Mas a vergonha foi maior. Dirigiu-se a casa. O passo pesado. Cabisbaixo. Pediu à mulher que lhe mandasse buscar uns sais. Sentia-se prestes a desfalecer:  – Ai, Valentina! Que grande desgraça! O nosso Juventino, Valentina! O nosso Juventino! Ai, que me foi para o Liceu normal e vem de lá comunista!

    Ao final da tarde, mascote resgatada, o novo líder estudantil dirigiu-se a casa de peito cheio. Ia feliz. Ansioso por partilhar o feito com os pais, por lhes explicar como se tinha sentido forte pela primeira vez na vida.

    Foto: Inácio Ludgero

    Bateu à porta. Ninguém abriu. Voltou a bater. A velha ama veio à porta, mas não o deixou entrar. Lavada em lágrimas, entregou-lhe uma mala de viagem e um envelope: – Fuja, menino! Fuja, e que Deus o proteja!

    Sem perceber o que se estava a passar, Juventino agarrou a mala e abriu o envelope. Lá dentro, algum dinheiro, dois cordões de ouro, um par de brincos e uma mensagem: “Querido filho, o seu pai denunciou-o à polícia. Vêm prendê-lo! Vá para Paris e procure a ajuda do seu tio. Um beijo, da mãe que tanto o ama e morrerá com a dor de não o voltar a ver.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Olhão

    Olhão

    Olhão. Final de tarde. Estacionam perto da Marina e seguem a pé junto à Ria. Procuram o concerto anunciado para aquele jardim.

    Têm tempo. Saboreiam o ar fresco que vem do mar e tempera a brisa morna de um verão que principia. O amigo visita pela primeira vez o Algarve e  Leonor explica-lhe  a origem da designação “Olhão, cidade cubista”. Abrandam o passo. Ela aponta e pergunta:

     ⎼Vês os cubos? Vês como se sobrepõem? Olha ali, um maior na base, depois um mais pequeno e por fim um bem menor. Parecem legos.

    a yellow and white boat in a body of water

    Ele sorri e imagina mãos de crianças a descobrir formas e volumes. A experimentar equilíbrios. Prosseguem. Vão olhando e comentando os edifícios mais próximos. Cubos, mirantes, platibandas, açoteias… Tudo é para ele novidade e espanto.  Mas a atenção de ambos é subitamente desviada para outras formas. À sua direita. Parecem vir do mar. Formas completamente opostas à  geometria retilínea das casas. Uma ondulação de pedra que  prolonga em terra firme a da água agitada pelo vento. Os bancos de jardim e a calçada ondulantes a replicar-lhe o movimento. Uma réstia de sol a espalhar sobre a tarde as sombras trémulas das folhas das árvores. No chão, no rosto, nas costas e palmas das mãos. Tatuagens flutuantes.

    Ecoam então os primeiros acordes e vislumbram-se ao fundo os movimentos redondos da orquestra. A melodia enche o jardim. Enche a tarde. Sinuosa, sobe em direção às gaivotas suspensas numa dança hipnótica. Música e aves pairam embaladas pela brisa. Lânguidas. Tranquilas.

    Tudo parece encenado. Um bailado grandioso. Uma coreografia rigorosa. Atenta aos mínimos detalhes: orquestra, maestro,  público, aves, árvores, vento. Os aviões que surgem hesitantes entre o descer e o planar. Essas aves imensas. Aproximam-se ao ritmo da música.

    a flock of birds flying over a body of water

    Subitamente, um movimento firme, um braço em riste, uma nota  forte que atravessa o ar e os corpos. Duas andorinhas, em perfeita sintonia, rasgam o céu. Caças velozes num voo rasante em direção ao palco. Um pequeno cão a fazer acrobacias. Saltita. Ladra. Disputa o protagonismo com Tchaikovsky. A vida a  entrar pela música. A música a entrar pela vida.

    Leonor convida-o a ir com ela até ao lago dos patos. A música envolve-os ainda. Passam o Mercado do Peixe, depois o da Fruta. A alegria de Leonor depressa dá lugar à perplexidade. O lago já não existe. Mas os patos estão lá. Não de carne e osso, como antigamente. Apenas pequenas estátuas que evocam a sua existência. Uma instalação escultórica: o “Jardim dos Patinhos”.

    ⎼ Que alívio! Afinal não sou só eu que me lembro. Olha que até duvidei da minha memória. Vir até aqui era parte de um ritual. Ia-se ao mercado, depois comer um gelado à Gelvi e, claro, tínhamos de vir ver os patos. ⎼ explica ao amigo.

    Outros tempos. Outros patos. A estes não os embala a água. Embala-os o som dos violoncelos. Observa-os e consegue sentir o incómodo do metal que se enfiava debaixo das costelas quando se debruçava sobre a vedação. Sente as mãos da mãe a segurá-la pela cintura. A  elevá-la e a sustê-la enquanto ela se estica e tenta tocar as penas com as pontas dos dedos…

    a woman sitting on a chair next to a body of water

    O concerto termina.  Leonor procura escapar à nostalgia que a assalta. Agarra na mão do amigo e puxa-o até à proa simulada de um navio que entra pela Ria adentro. Ensaiam a famosa cena do Titanic. Trauteiam a música da Céline Dion e riem da figura que sabem estar a fazer. Registam o momento numa fotografia divertida e encetam o caminho de regresso. Os olhos de Leonor seguem as linhas traçadas pelo rasto de um barco que ruma à Culatra. A perfeição da linha reta desfeita pelo movimento ondulante das águas. Também é Olhão.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • O sal e o açúcar

    O sal e o açúcar

    Entro pela noite. Gato pardo, deslizo pela cidade. Contorno-a. Esgueiro-me pelas estradas que a cintam. A hora vazia convoca os sentidos. A passada forte. A respiração profunda. A noite perfumada e fresca. Oliveiras, pampilhos, amendoeiras, canaviais, salgados. Maresia.  O piso vermelho iluminado. Encontro a maré baixa e viro na rua em cotovelo. Um pequeno bando de flamingos alimenta-se preguiçosamente na água turva das salinas. Surpreende-me que se alimentem à noite. Nunca tinha visto. Detenho-me a observá-los. Fotografo-os. Dois cães com tamanho de gato e ladrar soprano surgem do nada. Ameaçam-me como podem. Atrás deles um homem de andar ligeiro. Invulgarmente magro. Calças arregaçadas até ao joelho, balde numa mão, cana de pesca na outra. Pés de lama. Assobia e grita:

    – Pipoca! Micas! Já para aqui. Eles não mordem. Boa noite.

    pink flamingo

    Devolvo o cumprimento. O homem pára  e pergunta se estou a fotografar as muralhas. Respondo que sim. Não tenho a certeza de haver motivo para continuar a conversa. Mas o homem dá alguns uns passos na minha direção. Pergunta-me se sou de cá.  Não sei porquê, digo-lhe que não.

    – A parte amarela não pertence à muralha. Foi um enxerto que ali puseram. Era para ser uma fábrica de cerveja, mas nem uma mini! – Diz por entre uma gargalhada desdentada. – É verdade, menina. Só tem o nome. Cerveja, nem uma gota. – E avisa-me de que não devia andar por ali sozinha àquela hora. Diz que à noite é muito deserto. Não costuma haver problemas, mas nunca se sabe. E sem me dar tempo para retorquir, pousa o balde. Encosta-lhe a cana. Puxa de um cigarro. Acende-o:

    – Antes de entrar em casa. A minha Maria não gosta que eu fume. Marafa-se toda.

    E, entre baforadas, explica-me que as casas no outro lado da estrada são quase todas da família dele. Já os avós ali viveram. Eram marnotos. Trabalharam toda a vida nas salinas. Fizeram ali “umas barraquinhas para ter onde enfiar a cabeça”.

    gray smoke digital wallpaper

    – Era no tempo da fome, menina. Muita miséria. A vida era custosa. A minha mãe tinha seis filhos para criar. Uma vagoneta de sal cortou-lhe dois dedos e no dia a seguir já lá andava.

    Diz-me que agora não é assim. Já não vivem do sal. As coisas estão melhores. Não são ricos. Ele tem de ir ao mar de vez em quando para dar uma ajuda. Mas é comerciante. Vende nas feiras. Dá para as sopas e deu para pôr a filha a estudar.

     – É enfermeira. Vive numas boas casas. – explica, num misto de orgulho e felicidade.

    Apaga o cigarro. No ar, um odor a fatias douradas sobrepõe-se ao da maresia.

    – Vou andando que já há jantar. As fatias da minha Maria e uma pelangana de café? É o “desimagina”. 

    Despedimo-nos. Vejo-o entrar numa casa de madeira, pobre, antiga, mas cuidada. À porta uma roulotte com imagens do Noddy, do Mickey e do Shrek. Letras garrafais com o nome da família. Logo abaixo: “Pipocas”,  “Algodão doce”.

    white ceramic bowl on pink textile

    Tiro mais algumas fotografias. Já não há flamingos. Capto a inútil fábrica da cerveja. Enquadro a lua. O quarto crescente hasteado sobre as muralhas remete para a sua origem.

    De dentro de casa, ouvem-se risos. Uma mulher vem à rua deitar comida aos cães.

    Penso nas rabanadas. Cheiram a afeto temperado com uma pitada de sal e muito açúcar. Penso nas vidas das pessoas que habitaram e habitam este lugar à margem da cidade. Em como trouxeram o sal e trazem agora o açúcar às vidas dos outros.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Espelho meu…

    Espelho meu…

    Mora cá em casa um espelho a que poderia chamar antigo, vintage, relíquia. Mas que, na verdade, é apenas um espelho velho, antiquado, com manchas cinzentas. Um espelho de casa de banho, ovalado, com um rebordo de vidro castanho. Em ambos os lados lâmpadas. A luz filtrada pelo mesmo vidro que desenha o contorno do objeto. Adquirido em finais dos anos 70, reflete o melhor design da época. Com luzes difusas a sofisticar o ambiente. A suavizar os contornos de quem nele se mirava. Uma lavadela de cara, um jeito ao cabelo e voilá, lindos. O nosso espelho nunca nos falhou. Nada tem a ver com os seus pares que,  entalados entre medonhos armários branco-enfermaria, se vingavam lançando-nos uma luz gélida e cruel. O  velho espelho foi sempre generoso. E, por isso, quando chegou a altura de mudar de casa, já a oxidação começava a fazer os seus estragos, não ficou para trás. Mudou-se também. Não se pode abandonar tamanha lealdade. Pendurámo-lo novamente. E ele, grato, retribuiu devolvendo-nos, como sempre, uma imagem suavizada de nós próprios. Até que as pessoas desapareceram. A luz apagou-se. A  casa ficou desabitada. E ele ali. À espera. Sem rostos para acarinhar. Os anos foram passando, passando…

    empty living room

    Um dia, porém, veio a decisão de regressar ao lar da adolescência. De o reorganizar. De o preparar para acolher uma nova geração. Obras aqui, móveis novos ali… e o espelho, no lugar de sempre. Retiro-o para pintar a parede, decidida a substituí-lo.  Mas volto a colocá-lo no seu lugar. ⎼ É só até comprarmos outro. ⎼, vou repetindo, quase certa de que não o vou fazer. Tem cada vez mais manchas e, ainda assim, disfarça as minhas.

    Adquiro um espelho novo. Moderno. Bonito. Adequado ao resto da  decoração. Mas, no momento de retirar o antigo, vacilo. Acredito que me devolve o olhar. Aproximo-me um pouco. Depois um pouco mais. Olho fixamente e não sei de quem são  as rugas que vejo. Os cabelos brancos. De quem é o sorriso complacente. Serão meus? Serão do meu pai? Da minha mãe? Terá o espelho guardado as nossas memórias? Afasto-me um pouco. Estico-me. Alongo o pescoço. Procuro a imagem de uma miúda escanzelada, loira, de cabelo escorrido. Em bicos de pés, como se estivesse de saltos altos. E o espelho não tarda em mostrá-la. A camisa de noite de algodão, comprada na Voga. Comprida, fundo branco, salpicado de pequenas flores em rosa claro,  rosa vivo e rosa velho. Três a três.  Uma mão atrás das costas a ajustá-la ao corpo. A outra a apanhar o cabelo. Sente-se crescida.  Acha-se muito bonita. Quando tiver 30 anos vou ser assim,  pensa.  A memória desliza-me os dedos pelo cabelo, pelas faces sardentas, pelo algodão macio da camisa. Quando tiver 30 anos…

    Decido não me desfazer do espelho. Quero preservar as imagens que guarda. Memórias  que já só nós dois partilhamos. Só ele se lembra da menina que fazia as tranças à sua frente. Da adolescente a experimentar a maquilhagem da mãe. A ensaiar com um lápis os movimentos para fumar com estilo. A praticar olhares sedutores, de aparelho nos dentes. A testar visuais para as saídas de sábado à noite. E só nós os dois sabemos que se um dia a saudade for insuportável, bastará sussurrar-lhe os nomes dos que partiram e ele, sempre leal,  trá-los-á em meu auxílio. Ficaremos os dois cá em casa. Cobertos pelos sinais da idade que alastram nos corpos de ambos. O pacto está feito: olharemos com benevolência as manchas um do outro. Espelho meu, espelho meu…

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A que cheira Izmir?

    A que cheira Izmir?

    A nuvem que envolve a baía pinta a cidade de uma cor parda que não engana. Izmir cheira a poluição, a borracha queimada e a tubo de escape. Mas, no grande caos que acontece dentro desta cúpula, somos interpelados por outros odores que se nos colam à roupa, ao corpo, ao cabelo. Que nos entram pelas narinas e se fundem no nosso cérebro, criando uma paisagem única. Izmir cheira a tabaco, a dejetos de gato, a miséria e a dinheiro da emigração. Cheira a café acabado de moer, a kebab, a especiarias, a chá e a perfume. Mas cheira, sobretudo,  a orgulho, a amor à pátria e a hesitação entre a tradição e a mudança. Seis milhões de pessoas. Uma cidade. Muitas almas. Muitos corpos a viver concomitantemente no mesmo espaço e em universos distantes. Como se cada um destes seres fosse ele próprio apenas um aroma. Suficientemente forte para se impor e suficientemente difuso para que nada o possa impedir de fluir, de ser como é, independentemente do que o rodeia.  

    Izmir cheira a tradição islâmica. A incontáveis mesquitas. E, a apenas alguns metros destas, cheira a prostíbulos.  Abertos em pleno dia. Tocas escuras. Imundas. Música insinuante. Espelhos. Muitos espelhos. Couro negro e encarnado. Mulheres apáticas. Cigarro na mão. Perna cruzada. Vestidos ridiculamente pequenos. Olham em busca de clientes. Na rua, mulheres de hijab recolhem plástico e cartão. Formigas que arrastam atrás de si sacos gigantescos que são simultaneamente coletores, berço, creche. Corpos mirrados que arrastam a vida. Vergados. Olhos de fome.

    two mosque minarets under calm sky

    Os vencidos da cidade. As prostitutas. Os cães abandonados. Os mendigos. Os que vendem roupa cheia de nódoas, puída, mas briosamente passada a ferro. Os que a compram. Gente que escorre dos bairros miseráveis que se erguem nas colinas em torno do centro.

    Nas  avenidas, centenas de lojas de noivas. Vários pisos. Modelos de contos de fadas. À porta, uma mesa de plástico, três homens. Chá e amostras de tecido. Faz-se negócio. Ao fundo, a transação é outra.  “Night clubs”, onde noivas felizes de outrora vendem um sonho perdido. A esperança, a crença numa vida feliz a dois, tão valorizada, tão presente nas montras sumptuosas. Imagens radiantes de mulheres princesas. Corpos dormentes de mulheres tristes.

    Desloco-me para os arredores. Ao passar por um centro comercial, o motorista que me conduz enumera os nomes das lojas. Sem surpresa, as mesmas que encontramos em qualquer cidade europeia.  Os olhos dele brilham. A voz, porém, muda:

    – Muito barato para vocês. A Turquia é um paraíso para os europeus. É um inferno para os turcos.

    É um homem simpático, de meia-idade. Tem boa aparência. Se tivesse de adivinhar, diria que vive bem. Mas a conversa continua e explica-me exatamente o que é o inferno de se ser turco na Turquia.  A conversa fará eco na minha mente durante o resto da viagem. Faz ainda. Percebo agora a  abundância de malas de viagem de contrafação que se vendem por todo o lado: nas boutiques, nos supermercados de esquina, nos bazares, nas sapatarias, nas farmácias. Percebo o enorme desejo de partir. A necessidade de ter as malas sempre à mão.  De não perder a oportunidade.

    assorted-color spices

    Trânsito louco. Travagens ruidosas. Carros a cair aos pedaços. Viaturas de luxo. Motas. Carrinhas modernas, em que bancos de jardim garantem que cabe sempre mais um. Jovens de minissaia, tatuadas, cabelos coloridos, caminham com amigas que mostram apenas o rosto. Anúncios a clínicas. Estrangeiros e emigrantes com botox até à alma. Cabeças rapadas a exibir implantes capilares recentes.

    E, no meio disto tudo, uma gente prestável. Afável. Que nos momentos mais inesperados saca de um frasco de perfume e se borrifa até onde os braços chegam. Enquanto nos atendem na receção de um hotel ou ao balcão de uma loja. Enquanto nos abrem a porta do táxi. A meio de uma conversa na rua. Os frascos aparecem e  desaparecem num passe de mágica. Perfumam o corpo, a casa, o carro,  os escritórios, as esplanadas… Sim, Izmir cheira a sobrevivência. Mas também cheira a perfume. A perfume, a gente boa… e a gatos.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Eu só vim ver a Gloria Gaynor

    Eu só vim ver a Gloria Gaynor

    Ontem, em conversa com a filha de uma amiga, perguntei-lhe se já sabe o que quer ser quando for grande. Respondeu-me decidida que quer ser famosa. Voltei à questão: ⎼ Mas famosa como? Queres ser atriz? Cantora? Pianista? ⎼ Fiquei a saber que não tem preferência. Quer aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Não quer ter de trabalhar. Pareceu-me um excelente plano. Aos oito anos já percebeu que trabalhar é uma maçada sem glamour.

    No regresso a casa, a conversa trouxe-me à memória um acontecimento do verão passado. Era agosto e, junto à estrada, um cartaz gigante anunciava: “Gloria Gaynor, em Albufeira”. Não prestei muita atenção. Assumi que se tratava de mais um “tributo a”, designação recentemente encontrada para as bandas de covers. Confesso que a minha primeira experiência com estes supostos tributos foi também a única. Como diria o meu avô, que era um homem muito diplomático: ⎼ Está muito bem, sim senhora, mas pra mim tem avonde!

    Uns dias mais tarde, chamaram-me a atenção para o facto de ser mesmo um concerto da Gloria Gaynor. Custei a acreditar. Mas fiquei a saber que, aos 79 anos, Gaynor continuava a dar concertos um pouco por todo o mundo. 

    Entusiasmei-me. Não é todos os dias que vemos em carne e osso alguém cujas canções nos acompanham desde que nos lembramos de ser gente. A caminho da Praia do Pescadores, as ruas eram ribeiras de gente que escorria feliz em direção à diva. Lá em baixo, milhares de turistas esperavam pacientemente. Cantava-se. Conferiam-se conhecimentos ⎼  Lembras-te desta ….? E daquela …? – Para a maioria seria a primeira e a  última oportunidade de ver a grande estrela da Disco ao vivo.

    Por fim, os primeiros acordes. Gloria Gaynor subiu ao palco. O vulto branco soltou uma voz negra. Linda. Poderosa. Encheu a noite. Ficou bem clara a razão pela qual é uma superestrela. Mesmo os mais jovens estavam rendidos e acompanhavam. Reconheciam as letras de canções que foram sucessos ainda eu não era nascida. Por vezes, não na voz de Gaynor, mas em versões: – Esta é da Beyoncé! – … Enfim. São miúdos. Estão perdoados.

    Terminado o espetáculo, dei uma volta pela zona dos bares. Circulava-se como se podia naquele mar de gente em que não se ouvia uma palavra em português. Avancei até ficar presa entre um carro e uma jovem que descia a rua, trazida por uma corrente contrária à que me empurrava. Olhámos uma para a outra. Defeito de profissão, assumi de imediato que se tratava de uma aluna ou ex-aluna.  Olhámos uns segundos uma para outra, sem decidir se sorríamos ou não, até que a corrente voltou a empurrar-nos. Dois passos mais adiante, lembrei-me de quem era. Ainda olhei para trás. Seguia tranquilamente, de mão dada com um rapaz. Comentei com os meus acompanhantes. Também a tinham visto e ficado com a sensação de a conhecerem de algum lado. Percebiam agora quem era. Na verdade, ela não teria passado despercebida em qualquer outra rua de Portugal. No nosso país, esta miúda gira e pequenina enche estádios. Noutra rua qualquer, os fãs atropelar-se-iam por um autógrafo e uma selfie com a sua heroína. Não aqui. Não em Albufeira.

    Penso no que é afinal ser famoso. No contraste entre ser-se uma estrela mundial e uma estrela portuguesa. Recordo como há alguns anos, no auge da sua carreira, um grande comediante nacional dizia que para acalmar o ego bastava ir a Aiamonte. Passada a fronteira,  ninguém fazia a mínima ideia de quem ele era.  

    Lembrando o semblante da cantora, acredito ter visto no olhar dela o desejo de não ser reconhecida. Imagino-a aos 8 anos a sonhar aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Penso no contraste entre esse desejo de fama e uma expressão facial cansada que me diz “Por favor não me reconheças. Por favor deixa-me estar. Eu só vim ver a Gloria Gaynor.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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