Autor: Sílvia Quinteiro

  • A viúva 

    A viúva 

    Estudar em Lisboa e partilhar quarto com uma estranha poderia ter sido uma experiência horrível. Mas não foi. Conheci a Luz, uma miúda como eu, oriunda da província. Ela do Norte, eu do Sul. Rapidamente nos tornámos inseparáveis. Mesmo quando vinha de fim de semana ao Algarve, era frequente a Luz viajar comigo.
    Amorosa, de conversa fácil e sorriso luminoso, toda a gente a adorava, e ela correspondia com longos abraços e palavras doces.

    A naturalidade com que se integrou na nossa rotina, rapidamente a tornou uma de nós, parecendo que sempre fizera parte do nosso mundo. E isso levou a que me questionasse sobre o silêncio em torno da sua família: os telefonemas e idas a casa eram raríssimos. Viajava apenas duas vezes por ano e, ainda assim, percebia-se o esforço hercúleo que fazia. Obviamente, nunca me atrevi a tocar no assunto.

    Foi, por isso, com enorme espanto que um dia recebi o convite para ir passar uns dias com ela:

    — Vou a casa no fim de semana prolongado. Queres vir comigo? — perguntou.

    Achava que eu ia gostar da aldeia. Falou-me de pessoas calorosas, de um rio com um lugar perfeito para nadar, dos amigos de infância que lá viviam, das broas de milho que a mãe fazia como ninguém. Repentinamente, fez uma pausa. Explicou-me que com a mãe eu teria de ter muita paciência.

    — É muito complicada, muito difícil. Especialmente depois da morte do meu pai… está impossível. — declarou, mantendo o tom de voz, mas não conseguindo disfarçar uma irritabilidade que lhe percebi pela primeira vez.

    De súbito, começou a falar de uns livros que tinha de ir devolver à biblioteca. O assunto da mãe estava encerrado.

    Os dias seguintes passaram num ápice. Havia muito a fazer: aulas, trabalhos para entregar, e compras, muitas compras. A Luz fazia questão de levar um visual novo para cada dia. Eu achava-lhe graça, porque em Lisboa e no Algarve nunca se preocupava com o que vestia e muito menos em maquilhar-se. Dizia-lhe que parecia os emigrantes em agosto. Ela encolhia os ombros, sorria e passava os modelos para eu dar opinião.

    Chegou, finalmente, o grande dia. Mochilas prontas, um café no Galeto para despertar, e rumámos ao Saldanha para apanhar o expresso. Partimos em direção à autoestrada. Eu, animadíssima, a reparar em todas as placas: Vila Franca, Santarém, Torres Novas, Fátima, Coimbra, Aveiro, Estarreja, Porto. Ela, nem tanto.

    Chegadas à Invicta, aguardámos a boleia da Telma, uma amiga da Luz que estudava na FLUP. Atirámos as mochilas para a bagageira e entrámos à pressa no carro parado em segunda fila, frente ao terminal.

    Enquanto as velhas amigas punham a conversa em dia, eu, refastelada no banco de trás, deixava-me encantar pelo verde intenso, pela água abundante, pelas cameleiras dos jardins, pelas terreolas embutidas nas encostas e pelas pequenas hortas em socalcos. Habituada ao azul do mar e à maresia, deslumbrava-me o verde interminável e o cheiro a eucalipto.

    A Telma deixou-nos à porta de casa. Marcou-se encontro para a tarde do dia seguinte. O Rui fazia 19 anos e ia dar uma festa na garagem. Toda a aldeia estava convidada.

    — Foi por isso que viemos. — explicou a Luz, com uma piscadela de olho.

    Não reconheci a minha amiga. Incomodou-me que me tivesse ocultado a festa. Ia preparada para fazer caminhadas, andar de bicicleta, nadar. Nem roupa adequada, nem presente. Perguntei-me porque teria agido daquela forma, mas optei por não a confrontar.

    Despedidas feitas, eis que surge a mãe da Luz. Vestida de preto da cabeça aos pés, um ar pesado e um sorriso que quase não o era, a contrastar com a pele e os olhos muito azuis, brilhantes e joviais.
    A Luz dirigiu-se lentamente em direção à mãe, deu-lhe um beijo esquivo, sussurrou um olá frio, e apresentou-nos. A viúva dirigiu-me um olhar desconfiado, que me atravessou. Murmurou umas palavras incompreensíveis e não consentiu que me aproximasse demasiado. Nesse preciso momento, tive a estranha sensação de que aquela viagem tinha sido uma péssima ideia.

    A filha, ignorando a atitude da mãe, comunicou que iríamos subir para descansar. Logo à entrada, desculpou-se:

    — Aqui cheira a cemitério, mas lá em cima não. Fica descansada. Ela enche a porcaria da mesa de velas.

    A um canto, junto ao vão das escadas, uma mesa-redonda servia de altar. Imagens da Sagrada Família, da Virgem de Fátima, de santos e santinhos misturavam-se com jarras de flores de plástico, lamparinas vermelhas, restos da decoração de um Natal passado e fotografias de um homem que imaginei ser o pai da Luz.

    Descemos apenas à hora do jantar. Pedi licença para usar o telefone e avisar a minha família de que tinha chegado bem. A chamada foi breve. Ainda assim, foi suficientemente longa para que, ao chegar à cozinha, encontrasse a Luz já entediada. A mãe falava, e ela suspirava. Quando entrei, calaram-se.

    Quebrando o gelo, a senhora perguntou-me se os meus pais estavam bem. Respondi que sim, e, sem saber como, a conversa passou dos meus pais para o pai da Luz: que já lá estava, coitadinho; que muito sofrera com a doença; que tudo aguentara, sem proferir um ai; que trabalhara até perder as forças; que fora tão poupado; um homem sem vícios…

    A filha interrompia-a. Dizia que não era conversa para ter à mesa. A mãe ignorava-a. Prosseguia, desfiando o rosário: minuto a minuto, consulta a consulta, cateter a cateter, escara a escara. A filha pedia que se calasse. Não era assunto para ter à hora da refeição. Indignada, a mãe olhava-a com ar de reprovação e retomava a ladainha: o último suspiro do seu homem; os gritos que ela dera; o caixão…

    Não haviam decorrido trinta minutos, desde que me sentara à mesa, e já presenciava desavenças entre mãe e filha. — Vamos ao café! — ordenou-me a Luz, a meio do jantar.

    Nunca a tinha visto alterada. Fiquei presa num limbo, constrangida, hesitante entre a descortesia de me ausentar, ofendendo a dona da casa, e a de abandonar a minha amiga.

    Levantei-me, incomodada. Desculpei-me. A senhora olhou-me com desprezo. Senti pena dela. Pareceu-me muito só no mundo. Sem a filha por perto, mantinha-se fechada num casulo de silêncio. Desde que regressara de França, para onde emigrara com o marido, vivia entre quatro paredes. Encarei com normalidade a necessidade de falar que demonstrava. Acreditei perceber o sofrimento que ambas encobriam. A mãe precisava de verbalizar e lembrar; a filha, de silenciar e esquecer.

    Quando desci para sair, a conversa havia subido de tom. Pelo caminho, esperei, em vão, que a Luz tocasse no assunto. Limitou-se a dizer que, depois do café, íamos para casa do Rui.

    Mais uma vez, senti-me traída. Não me tinha arranjado para ir a uma festa. Lá chegada — botas de montanha, calças de ganga, camisolão de xadrez e bandolete a aguentar a melena selvagem —, recolhi-me a um canto, tentando passar despercebida, mas a Luz insistiu em levar-me até à pista de dança improvisada. Valeu-me a fraca iluminação e o fumo espesso dos cigarros. Já a Luz, dava nas vistas. Vestida e penteada de forma exuberante, e a mostrar os passes de dança aprendidos nas discotecas da capital, fazia o possível por ser o centro das atenções.

    Regressámos tarde a casa. Disse-me que não me preocupasse com o barulho:

    — A “santa” está acordada. Passa a noite a rezar.

    No dia seguinte, acordámos tarde. A mãe saíra logo pela manhã. Tinha ido à missa, como todos os dias, explicou.

    — Coitada — respondi —, deve sentir-se muito sozinha.

    — Esquece. Foi sempre assim — respondeu, revirando os olhos.

    — Mas… — tentei, acreditando que poderia ajudar a negociar uma trégua naquele campo de batalha.

    — Mas, mas… Mas vamos é pôr-nos a andar, que temos programa para o dia inteiro. — atalhou.

    Caminhámos pelas ruelas estreitas da aldeia, rodeadas por casinhas de pedra cinzenta. Todos a conheciam. Faziam-lhe perguntas sobre Lisboa, sobre os estudos. Queriam saber quem eu era. Perguntavam-me se estava a gostar da aldeia. Uns falavam com saudades de quando tinham vindo ao Algarve, outros de como sonhavam cá vir.

    O dia passou depressa. Em casa, a mãe parecia de melhor humor. Tinha acabado de cozer broa. Sentámo-nos a comer. Perguntou-me se tinha namorado. Procurando arrancar uma gargalhada à minha amiga, decidi responder que sim, que ia casar no verão seguinte. Ela aguentou-se. Mas a verdadeira surpresa foi a reação da mãe. Pousou a caneca de café e a broa que tinha nas mãos e olhou-me fixamente.

    — Não achas que és muito nova para isso? — perguntou de chofre.
    Na dúvida, fui em frente. Contei-lhe que namorava havia muito tempo e que o rapaz era mais velho.

    — Muito tempo? Eu namorei oito anos. — respondeu. — É um passo muito sério. Vocês têm a vida pela frente. Têm muito tempo para casar. Parece que estão fartas de estar bem.

    Feita a advertência, acomodou-se na cadeira e mudou o tom. Seguiu-se a receita da broa, a lembrança do quanto o pai da Luz a apreciava e, claro, já que vinha a propósito, a repetição do relato feito ao jantar na noite anterior. Mais uma vez, a Luz, impaciente, pedia-lhe que parasse. Dizia-lhe que era mórbida. A mãe ignorava a irritação da filha, que me “convidou” novamente a abandonar a mesa. A situação repetiu-se várias vezes ao longo dos três dias.

    Não foi preciso muito tempo nem particular perspicácia para perceber que na aldeia toda a gente conhecia a história daquela família. Todos perguntavam pela “santa”. A figura da viúva, longe de causar comiseração, era alvo de ironia. Pareceu-me errado e comentei com a Luz. Compreendia que a senhora fosse muito aborrecida, e que rezava o suficiente para mandar uma dúzia de alminhas para o Céu, que tinha alguma falta de noção, mas, caramba…. Nenhuma de nós podia avaliar o sofrimento de alguém que perde assim o companheiro de uma vida. Insisti para que fosse mais paciente e que se esforçasse por compreender a mãe.

    Respondeu-me em forma de pergunta:

    — Porque é que achas que ela reagiu daquela forma quando falaste em casamento? És muito nova para casar. Tens a vida à tua frente. Parece que estás farta de estar bem. Achas que é resposta de quem teve um casamento feliz?

    Confidenciou-me que o pai era alcoólico e extremamente violento. Que levou alguns anos a associar as nódoas negras da mãe e as quedas quase diárias aos punhos do pai. Só percebeu quando chegou o momento em que começou a ter de explicar, na escola, os seus próprios desequilíbrios e tropeções.

    Explicou-me como viviam ambas aterrorizadas. O pavor que sentiam quando ouviam ranger a porta. Disse-me que um vizinho chegou mesmo a dar-lhe “uns apertos”. Teve esperança, mas nada mudou.

    A mãe, essa, defendeu-o sempre. Era um bom homem. Um bom pai. Nunca tinha deixado faltar nada em casa. A culpa era do vinho e das más companhias. Além disso, a roupa suja era para lavar em casa.

    Talvez para sobreviver à dor, tinha inventado um marido que nunca existira e falava dele como se ninguém conhecesse a verdade. Os vizinhos, os amigos, os familiares não a contrariavam, apesar dos comentários sarcásticos que proferiam nas suas costas. Para a Luz, aquela hipocrisia era insuportável: as rezas sem fim, o luto, as visitas diárias ao cemitério, o ar de viúva sofrida, as lamúrias. Sentia-se aliviada e desejava muito que a mãe se libertasse do passado.

    Partilhámos casa por mais dois anos. A “santa” deixou de ser tabu, apesar de estarem cada vez mais distantes. O Rui também passou a fazer parte das nossas conversas.

    Terminámos o curso em 1992. Ela foi colocada no Minho, eu no Algarve. em breve, perderíamos o contacto.

    Há dias, encontrei a Telma numa conferência. Perguntei-lhe pela Luz. Contou-me que a mãe tinha falecido havia meses. Quanto à Luz, casara com o Rui. Disse-me que tinham tido uma filha, a Estela, estudante de Arquitetura, e que viviam nos arredores do Porto, onde ambos tinham arranjado colocação.

    — O Rui!? Que bom! Fico tão feliz por ela.

    — Não fiques — respondeu.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • A candidata 

    A candidata 

    Leonilde nasceu em pleno Estado Novo. Veio da planície, do Alentejo profundo, para a capital. Os pais empregaram-se numa mercearia. Ela terminou a 4.ª classe e foi para aprendiz de cabeleireira.

    Farta de lavar cabeças num bairro da periferia, Leonilde decidiu voltar a estudar. Não ia ficar naquele salão para o resto da vida. Um único entrave: o pai. Era ele que mandava lá em casa e nem queria ouvir falar em escola. A cachopa ainda se perdia. Devia agradecer a sorte de ter um emprego e um ordenadinho. Além do mais, estava na altura de pensar em casar. Qualquer dia começavam a dar à língua.

    A Leonilde casou. O Rogério trabalhava na construção naval. Era bom rapaz e tinha prometido deixá-la voltar a estudar.  Mas veio uma gravidez. Depois outra. E uma terceira. Queriam um filho varão e só nasciam meninas.

    Após a revolução, desiludido com as condições de vida dos trabalhadores, Rogério juntou-se ao sindicato. Incutiu em Leonilde, que, entretanto, voltara a estudar, os valores do socialismo. Não faltavam a uma reunião do partido, a uma manifestação, a um comício.

    Terminada a licenciatura, Leonilde, de foice e martelo ao peito, sentia-se mais preparada do que nunca para ajudar. Queria combater o capitalismo. Ser a voz dos desfavorecidos e dos explorados.

    Passei há dias por uma das filhas e perguntei pela família. Contou-me que o pai, aposentado, regressou sozinho ao Alentejo. A mãe é candidata a presidente de uma junta de freguesia:

    – Faz sentido. – respondi – Sempre esteve muito ligada à política.

    – Fazia. – disse ela – Se não fosse ser a candidata da extrema-direita.

    Perante a minha perplexidade, explicou-me a razão invocada por Leonilde quando ela própria a questionou:

    –  Só eles é que me convidaram!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • O poema 

    O poema 

    Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.

    Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.

    Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.

    O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.

    Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.

    Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.

    O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:

    – Em que página está esse poema?

    – Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?

    O poeta abriu o livro e leu:

    “Ovos,

    galinha,

    milho

    e…”.

    Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.

    shallow focus photography of brown eggs

    O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.

    O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:

    – E… arroz. – completou.

    Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Cheguei! 

    Cheguei! 

    De onde me encontro, olho para a vida como se olha para a casa da infância. Descubro que o edifício outrora enorme é, afinal, diminuto. Os corredores são estreitos, os tetos baixos; as janelas dão para um quintal exíguo. Busco o prado imenso num canteiro relvado.

    Vista daqui, a minha existência é como essa casa: ínfima. A passagem, que parecia não ter fim, revela-se feita de breves instantes. Os planos para o futuro, tantas vezes adiados por não haver pressa, serão para sempre planos. Intenções.

    O tempo — longo, lento — foi um inimigo a vencer. Falta muito para acabar o curso. Falta muito para acabar de pagar a casa. Falta muito para os filhos serem adultos. Falta muito para chegar à aposentação.

    A dor, a tristeza, a raiva… tudo passa:

     —Tens de dar tempo ao tempo.

    Os minutos tornam-se horas; as horas, uma eternidade. O tempo a arrastar-se. Lento. Lento. Lento. E eu, com pressa de chegar. A dar ao tempo, o tempo que nem desconfio não ter.

    Sentamo-nos, tu e eu, num banco junto ao mar. Deixamos o olhar navegá-lo, baloiçando tranquilamente sobre o ondular leve das águas. Deito a cabeça no ombro de um casamento de 50 anos.

    A lua, os barcos, a palmeira, o homem que passa com uma canastra na mão, este banco — tudo é enorme. Tudo será para sempre enorme. Não para nós.

    Afagas-me as costas. Brincam os dedos das nossas mãos entrelaçadas. Percorre-me um misto de tristeza, melancolia e felicidade contida, de quem sabe que este movimento não é eterno, mas encerra a doçura de uma vida plena e extraordinária na sua normalidade.

    Inspiro o cheiro a mar presente. As pálpebras descem lentamente. Um a um, invadem-me os aromas do passado: a pele dos filhos pequenos, as flores do bouquê de noiva, o perfume que usavas quando nos conhecemos, as frésias do quintal, o bolo mármore dos lanches na Alameda, o colo da minha mãe.

    Cheguei!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A mulher má 

    A mulher má 

    Vivia no Beco do Espinho uma mulher má. Dizia quem a conhecia que nunca tinha sido melhor:

    — Foi sempre assim. Terá de aprender com a vida. Até lá, temos de ter paciência.

    Certo dia, a mulher adoeceu. O caso era grave. Na vizinhança, todos se apiedaram dela e acorreram a ajudar a família como podiam:

    — Coitados dos pais. É gente boa. Ela é que saiu ruim. O que é que se há de fazer? — comentava-se.

    Não tardaram, porém, a perceber que abusava da generosidade de todos os que a visitavam. Os agradecimentos saíam-lhe a ferros, arrancados da boca pelo olhar severo dos pais envergonhados. Na sua boa fé, a população  acreditou ter chegado o tal ensinamento que a iria mudar:

    — Pobrezita! Ninguém merece uma coisa destas. Não era preciso tanto!

    Recuperada da doença, a mulher retomou os velhos hábitos. A maldade, entretanto mal disfarçada, tomou a sonsice por companheira e ganhou um novo fôlego. E, quando, algum tempo depois, os pais faleceram, partiram com eles os únicos limites que até então conhecia.

    Dois anos mais tarde, a morte, sempre impiedosa e, desta vez, inesperada, arrancou-lhe do colo a única filha.

    — Um golpe destes muda qualquer uma. — pensaram todos. Pensaram mal. Ficou exatamente na mesma. Má.

    Um dia, a mulher zangou-se com uma nova inquilina acabada de chegar ao seu prédio. O objeto da discórdia: vasos e plantas no vão da escada. Coisa grave! Gastou um pacote de sal com as begónias, mas os vasos continuavam no mesmo sítio. Não podia deixar passar a afronta. A sessão de gritos e injúrias que se seguiu também não deu frutos. A vizinha ouviu-a até ao fim, sem qualquer expressão no rosto.  Despediu-se, virou costas e entrou em casa. Fora de si, a mulher correu a escrever uma mensagem em letras raivosas que enfiou por debaixo da porta do 3.º esquerdo. Era, afinal de contas, uma pobre vítima incompreendida. Tinha o direito de se defender. No bilhete, expressava o desejo de que a filha da vizinha tivesse o mesmo destino da sua, só para ver se ela percebia o que custava.

    Os habitantes do Beco do Espinho resignaram-se, então. Deixaram de esperar que a vida lhe pudesse ensinar alguma coisa. Não havia dentro daquela alma o mais pequeno sinal de um ser humano por resgatar. A quem perguntava como estava a mulher depois de tantas provações, os que a conheciam respondiam agora:

    — Má, como sempre. Se mudasse de fora para dentro, era a primeira.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Virada do avesso 

    Virada do avesso 

    Quando nasceu Odete, a mãe colocou-a numa cesta junto à máquina de costura.  Embalada pelo som ritmado do pedal, a menina cresceu sem conhecer outra realidade. Da cesta passou para uma cadeira de criança trazida de um passeio a Reguengos.  Foi nela que aprendeu a dar os primeiros pontos. Dali observava a mãe a tirar as medidas das clientes, a talhar e alinhavar os modelos, a experimentar e fazer os últimos ajustes.  A mãe dizia que gostava que a menina tivesse outra vida. Que não ficasse ali presa na casa de fora, a ver o mundo passar na rua. Mas Odete cedo revelou ter mãos de fada. A chegada da segunda máquina, comprada a prestações na Singer, foi uma espécie de diploma. Primeiro em dupla, depois sozinha, Odete trabalhou grande parte da sua vida como modista.

    person holding white and red plastic toy

    Mas chegou o pronto-a-vestir. Abriram lojas modernas um pouco por toda a cidade. Os vestidos da moda estavam agora à mão de semear. Odete já pouco podia mostrar da sua arte. Vivia de fazer pequenos arranjos. Ganhava bem. Mas o trabalho não brilhava. Os clientes eram desconhecidos com os quais poucas palavras trocava. Dias, meses, anos, sentada a uma máquina que agora era elétrica.  Um rádio. Um pequeno cão peludo, sonolento, enrolado sobre a velha cadeira alentejana. O sol a bater-lhe no focinho tranquilo. Entre bainhas, botões e fechos, Odete encontrava tempo para fazer peças que mostravam a sua destreza e talento. Pendurava-as na porta de reixa, viradas para rua. Entre elas, um talego de cores vibrantes saltava à vista. As pessoas passavam, paravam, perguntavam o preço:

    – Esse não está à venda. – respondia Odete.

    – Que pena! Tão bonito. – comentavam.

    Odete sabia disso. Era justamente essa a razão pela qual não o vendia. Para que admirassem a sua habilidade. Depois, regressava o silêncio.

    Certo dia, uma turista curiosa parou a admirar o talego. Quis saber o que era, para que servia. Odete, entusiasmada com a conversa, respondeu-lhe elevando cada vez mais a voz:

    –  TA-LE-GO! É PA-RA PÔR O PÃ-O! TA-LE-GO!

    A turista enfiou a mão no saco e repetiu sorridente:

    –  TA-LE-GO! PÃ-O!

    Mas no fundo do talego, não foi pão que encontrou. Foi um brinco de ouro. Espantada, entregou-o a Odete que o rejeitou. Não era dela. A turista voltou a meter a mão no talego e encontrou o par do brinco.

    Passados dias, uma outra mulher que parou para ver o talego retirou de lá de dentro um cordão de ouro de duas voltas.  Odete insistiu que ficasse com ele. Não lhe pertencia.

    Cedo correu a notícia pela cidade.   As pessoas começaram a passar com mais frequência àquela porta. Primeiro vinham a medo, disfarçadamente. Como quem  não quer a coisa. O talego nunca desiludia. Não havia por esses dias quem não se lembrasse de vir cumprimentar diariamente a Odete. Passado algum tempo, tinha tantos amigos que a fila se formava durante a madrugada. Quando abria a porta para pendurar o objeto, todos se apressavam a tentar a sua sorte e  já nem se davam ao trabalho de lhe dar os bons-dias. Pelo contrário. Reclamavam. Insurgiam-se:

    – O que custava ao raio da velha deixar aqui o saco durante a noite?

    Tiravam o que queriam e iam embora. Até que um dia, ao chegarem à porta, encontraram o talego virado do avesso. Metiam as mãos e nada. De um lado. Do outro. Nada. Não podiam acreditar. Bateram tão violentamente à porta que a arrombaram.  Invadiram a casa para exigir explicações. Mas não  encontraram a costureira. Estava tudo nos sítios do costume, menos ela e o cão.  Nunca souberam que numa tarde de inverno, cansada das dores do reumático que há muito lhe davam que fazer, Odete resolveu meter a mão dentro do talego na esperança de encontrar uma pomada que a aliviasse. Mas o que de lá saiu foi um cartão dourado. Odete Mendonça diziam as letras em relevo. Não havia dúvidas de que era para ela.

    Há quem diga que a viu deitada numa espreguiçadeira, com o seu Pompom ao lado, a beber água de coco, em Copacabana.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Verde, verde… 

    Verde, verde… 

    Raimundo nasceu em berço de ouro. Na verdade, em berço dourado, mandado fazer de propósito para o único filho da família Souza. O menino medrou. Cresceu. Cresceu. Cresceu. Diziam os pais que o rebento era espigadote. Os avós, que era bom para ir ao figo. Os amigos, que devia jogar basquete. E ele, que não compreendia o que significava espigadote, nunca tinha visto uma figueira nem gostava de basquetebol, ignorava os comentários. Aliás, tudo lhe era indiferente. Sem preocupações e sem nada melhor para fazer, crescia.

    A escola era um grande aborrecimento.  Os professores chamaram a atenção dos pais. O rapaz andava desinteressado e em más companhias:

    ⎼ Já não basta ele andar de cabeça no ar. Olhem que o Carlos não é flor que se cheire. ⎼ avisaram.

    fig on brown wooden surface

    Com uma longa carreira no ensino,  o diretor afirmava que o problema do rapaz era falta de motivação. Estava enganado. Muito enganado, como se veio a provar quando o Sr. Souza adquiriu o colégio. O Raimundo passou a ser o primeiro a chegar e o último a sair. Sentia-se em casa. Tornou-se um aluno exemplar. Não falhava o quadro de excelência. Ele e o Carlitos, quem diria?

    Por esta altura, o Carlos jogava futebol e o Raimundo decidiu entrar também para a equipa. O treinador dizia que o rapaz era grande, mas não era grande coisa. A Souza & Filho Lda. não tardou em perceber as dificuldades do clube da vila. Um patrocínio generoso. O nome da empresa estampado nas camisolas dos jogadores. O estádio pintado de fresco. A bancada presidencial renovada. E, finalmente, um treinador capaz de reconhecer o verdadeiro talento. Raimundo, esse, perdeu o gosto pelo desporto. Já não lhe apetecia.

    Entediado, deambulava horas e horas pelo calçadão, junto à praia. Certo dia, perdeu-se de amores por uma ruiva que ali passava. Não a voltou a ver, mas tinha a certeza de que era o amor da sua vida.  Sentado na gelataria, lambia colheradas de gelado de baunilha e procurava-a com o olhar. Enquanto isso, crescia, crescia, crescia. Para passar estas horas lentas e acalmar o coração, começou a versejar. Rimas únicas, de uma singularidade irrefutável: amor a rimar com pavor; olhar com almoçar; correr com morder; amanhã com maçã; mulher com colher; coração com leitão. Quatro longas tardes. Dezenas de poemas. Era obra. Reuni-la em livro, inevitável. O pai, que nem era apreciador de poesia, ficou fascinado. Reservou para si 500 exemplares. Toda a tiragem. Não houve cliente, fornecedor ou funcionário da Souza & Filho que não recebesse um volume de A ruiva que me cativa. Estava ali um grande poeta, sim senhor:

    – Um Pessoa, se ele quisesse! exclamou o professor de literatura.

    Mas o Raimundo não tinha vontade de continuar a escrever. Estava visto que a ruiva não voltava e já estava tudo dito.

    person wearing brown boots

    Uma banda! Uma banda é que era! A música nunca fez mal a ninguém. Tinha tocado flauta no colégio. Um saxofone não havia de ser assim tão diferente. O Carlos era afinado. Podia ser o vocalista. Comprou mais uns instrumentos, o pai mandou preparar uma sala de ensaios na cave. Juntou uns amigos e  formou a Raimundo & Friends. Ensaiaram uns dias. Gravaram duas músicas e enviaram-nas para uma conhecida editora de Lisboa. A resposta foi estranha: queriam conhecer o Carlos. Não fosse haver engano, o motorista da empresa levou os dois amigos até à capital. Mas não havia. Queriam mesmo conversar com o Carlos. Seguiu-se um concurso de novos talentos. Depois o Festival da Canção, um CD, a rádio, concertos… O Carlos não parava. O Raimundo já mal conseguia falar com ele. Assistia ao longe, fascinado pelas ovações, pelos elogios, pelos grupos de fãs que seguiam o amigo por todo o lado.

    Enquanto isso, a Raimundo & Friends continuava a ensaiar. Tocavam nos bares e restaurantes da vila, nos bailes, nas feiras. Entristecia-os ver o público conversar enquanto atuavam. As bocas cheias de farturas, de fogaças, de sandes de porco no espeto. O Raimundo foi desanimando. E, à medida que desanimava, a sua pele ganhava um tom estranho. Esverdeado. Os médicos não conseguiam explicar. Fechava-se cada vez mais no quarto. Seguia quase ao minuto a vida do Carlos. Parou de crescer. Encolhia, ao invés. Completamente verde.

    Na vila, a mudança não passou despercebida. Tornou-se tema de conversa. Havia teorias:

    ⎼ É da comida. Só comem porcarias. ⎼ dizia a D. Amélia.

    ⎼ Eu digo que é da água. Está cheia plástico. ⎼ respondeu o Sr. Jorge.

    man holding his neck

    ⎼ Aquilo é da vacina. Eu bem avisei, mas não quiseram acreditar. ⎼  afirmava a D. Manuela, feliz por finalmente provar que tinha razão.

    Uma velha, enrolada sobre o cajado à porta do Centro de Saúde, levantou o rosto. Com ar grave e seguro, fez o diagnóstico:

    ⎼ É inveja, digo-lhe eu, que já vi tudo.

    O Raimundo, verde, verde, continuava a mirrar. Deixaram de o ver. A vila inteira foi mobilizada. Nada. Nem sinal do rapaz. Tinha encolhido tanto que tinha de se esconder não fossem pisá-lo.  Um dia, aproveitando a calma do amanhecer, trepou a uma folha de malva para apanhar os primeiros raios de sol. Estendeu-se, espreguiçou-se, bocejou. Uma toutinegra ensonada saiu de dentro de um arbusto e comeu-o.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A estrelícia 

    A estrelícia 

    É quase primavera. Ajoelhado, arranca pacientemente as azedas que teimam em invadir os canteiros. Um carreiro de formigas entra pela terra seca. Puxam, empurram, arrastam como podem pedaços de granulado. O cão olha espantado a comida que sai da tigela e segue jardim adentro até desaparecer. O trajeto repete-se uma e outra vez. Vaivém implacável que aprisiona os insetos à rotina.  Retomam-na a cada dia.

    Salvador detém-se a observar as minúsculas Sísifos. Talvez devesse tapar a tigela.  Mas dá-lhe pena.  Pergunta-se se as formigas terão memória do dia anterior. Ou será que, como ele, acordam e percebem que o sono foi apenas o alívio permitido entre os dias?

    Pergunta-se se estará sozinho ou se haverá outra criatura no mundo que, a cada amanhecer, seja esmagada pela realidade. Que receba, a cada despertar, a notícia da morte do amor da sua vida. Se haverá, para além dela, mais alguém que faleça um dia e outro e outro. Se mais alguém desperta pronto a viver e é confrontado com o espaço vazio ao seu lado. O silêncio na casa. A solidão. E depois levantar-se. Preparar-se como se estivesse vivo. E ao longo do dia ir rolando a rocha que vai ganhando volume à medida que as memórias a vão adensando: a doença, o medo, a degradação do corpo, a depressão, as dores, as últimas palavras, o último suspiro. O saber que um segundo antes ela ainda o ouvia. O medo de não ter dito tudo. Nunca se diz tudo. A escolha da roupa, do caixão. O retorno a quatro paredes que já não são casa. As roupas nos armários. O anel de noivado e a aliança de casamento que ficaram no móvel da entrada quando saiu pela última vez. Ainda ali estão. Não lhes toca. E se ela voltar?

    Todos os dias são o mesmo dia. Todos os amanheceres o reviver. Pergunta-se quais terão sido os seus crimes? Que outro homem cumpre em simultâneo os destinos de Sísifo e Prometeu? As entranhas renovam-se apesar da sua vontade. Leu recentemente um livro no qual o protagonista perdia a memória e repetia a cada dia o dia anterior. Não é esse o seu caso, pensa. Antes fosse. Lembra-se bem de cada detalhe. De cada sensação. Ainda sente as mechas de cabelo dela a escorrer-lhe entre os dedos. Ainda as vê caídas no chão. Não, não perdeu a memória. Apenas é incapaz de a tornar permanente.

    A memória ressurge incompleta a cada despertar. As lacunas preenchem-se ao longo do dia. Uma escova. Uma fotografia. O sofá. Ao anoitecer está completa. Esmaga-o. E ainda assim, espera a noite. Anseia por ela. Abraça-a. O sono chegará em breve. E depois o sonho. E finalmente o reencontro. Olham-se e sorriem. Há muito que as palavras são desnecessárias entre eles. Passeiam, tomam café no alpendre, brincam com o cão. Às vezes viajam até destinos longínquos. Mergulham felizes em águas tíbias. Conversam muito, ainda que não digam uma palavra. A luz do amanhecer afasta-os lentamente. Já não a consegue tocar. Procura-a e não a encontra. Telefona-lhe, mas ela não atende. Desperta angustiado. Alivia-o perceber que foi um sonho. Afinal ela não partiu. Procura-a com a mão. Vira-se. O travesseiro intocado diz-lhe que o sonho foi doce. E anseia já por mais uma noite, ainda que o preço sejam as entranhas em sangue a empurrar a rocha montanha acima. Quatro mil manhãs.

    ⎼ Morreste quatro mil vezes.  ⎼ ­ sussurra enquanto continua a limpar o canteiro.

    Só ele sabe disso: um segredo bem guardado. Não interessa o que pensam os outros, a religião, a ciência… no traço descontínuo do sonho, são felizes.

    ⎼ Esta noite trago-te cá.  A tua estrelícia floriu. Tens de ver.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Uma vida a servir a causa pública 

    Uma vida a servir a causa pública 

    Pousa o copo e a garrafa. Abre a janela e debruça-se sobre o parapeito. A brisa fresca no rosto sossega-o. Outubro. O fim do calor insuportável do verão do sul. A chegada discreta do outono. Olha para baixo e, por entre as copas das árvores que se começam agora a desnudar, vislumbra a avenida alumiada pelo branco quente dos candeeiros. Está bonita, a cidade. Romântica. Orgulhoso da sua obra, leva o copo à boca.  Pega na garrafa e lê o rótulo. Tem bom gosto o senhor vereador, pensa. O brandy reconforta-lhe a garganta. A vista da penthouse é encantadora. Chamar-lhe penthouse pode ser exagerado. Mas soa bem melhor do que “último andar”. Vendeu-lha um rapaz muito correto. Até lhe fez uma atençãozinha. O pai é construtor. Pessoa honesta e trabalhadora. Mas não há seriedade que resista à maldade e à má-língua dos invejosos. É a pequenez da província. Não se pode contar nada a ninguém.

    Copo numa mão, garrafa na outra, dirige-se ao terraço. Daqui a vista expande-se até ao centro da cidade. Ao fundo da avenida, os holofotes iluminam um conjunto de edifícios em remodelação. Luxuosos, charmosos, exclusivos. Isto sim, é uma boa aplicação dos fundos europeus. Devolver a cidade aos munícipes. Promover a habitação na Baixa. Em redor, um belo jardim que veio substituir o inestético parque de estacionamento. Houve quem criticasse a decisão. Mas basta olhar para perceber como valoriza o espaço. Além disso, é inegável que a cidade precisa de mais espaços verdes. Uma questão de saúde pública, até.

    Photo of Alcoholic Beverage on Top of Counter Top

    O Presidente já consegue imaginar-se no novo terraço. Jacuzzi. Vista mar. Não tinha pensado mudar-se, mas o construtor fez-lhe uma proposta irrecusável. E logo agora que estava a terminar o mandato para não dar azo a falatórios.  Vendeu-lho a preço de custo. Uma joia de homem. Sabe bem o que o dinheiro custa a ganhar.

    Olha para o telemóvel. Está na hora. Termina o brandy e encaminha-se para o escritório. Sente-se exausto. Os dias têm sido longos e difíceis.  Abre a agenda. Olha para a lista de telefonemas a fazer e parece-lhe não ter fim, mas há que garantir o apoio à candidatura:

    –  Pois é, Meritíssimo. Pois é. O meu mal é não saber dizer que não. Uma vida a servir a causa pública… Conto então com o apoio do meu amigo, certo?

    Deputado da nação. Quem diria!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • É aqui! 

    É aqui! 

    Voo TAP 103 Lisboa-Belo Horizonte. Onze horas da manhã. Novo aviso de atraso na partida. Laura anda de um lado para o outro. Coloca o passaporte na mochila, verifica o bilhete pela enésima vez, arruma-o também. Senta-se, levanta-se, volta a sentar-se. A espera adensa a inquietude e o medo de voar. Ao microfone o anúncio da possibilidade de um upgrade para a classe executiva. Laura pondera. Conclui que isso em nada altera a sua angústia: Se cair a económica, a executiva também não fica lá em cima.

    Finalmente, ordem de embarque. Aguarda ansiosa na fila e pergunta-se porque não ficou em casa. Àquela hora estaria a regressar de uma tranquila manhã de praia. Mole. Sem preocupações. A saborear as merecidas férias. Porquê ir, então, se voar a aflige, se viajar dá sempre tanto trabalho e tem tantos imprevistos? Porquê abandonar o conforto do lugar seguro? Porque insiste em ir?

    A viagem faz-se com a ajuda de um comprimido milagroso. Laura desperta com o anúncio da aterragem. Um pousar suave. Palmas. Uns persignam-se, outros verbalizam um “Graças a Deus” ou à Virgem da sua devoção. Laura aperta a caixa dos comprimidos: Abençoados!

    Pés em terra firme. Aguarda-a o controle do passaporte, a espera das malas e a verificação da bagagem. Sai e depara-se de imediato com a amiga que a aguarda. Fica espantada ao vê-la. Ali, à sua frente. Um sorriso enorme. Braços abertos. Não compreende o seu próprio espanto. A viagem estava há muito planeada e sabia perfeitamente que amiga a viria buscar. No entanto, há sempre qualquer coisa de extraordinário no facto de encontrar alguém num local totalmente diferente daquele onde a conhecemos. Sente, neste momento, a mesma espécie de incredulidade que a assalta quando se encontra pela primeira vez perante um monumento famoso. Como se fosse preciso ir para ter a certeza.  Para confirmar a existência.

    Segue-se uma longa deslocação até à cidade. Pensa perceber agora a curiosa designação do aeroporto: “Confins”. Bastante adequada, na verdade. É noite e para lá da estrada, pouco se vê. A conversa, essa, é animada e vai dando forma ao que a noite esconde.

    Chegadas ao centro da cidade, a amiga leva-a pelas ruas de Belo Horizonte com a alegria de quem mostra orgulhoso a sua casa. Os monumentos, as ruas famosas, os lugares da literatura, os belos edifícios.  Mal podem acreditar que estão ali as duas.  Laura ouve com atenção a história e as histórias da capital mineira. Quer ver tudo. Saber tudo. Experimentar tudo. E enquanto a amiga continua a mostrar-lhe a sua cidade, na mente de Laura começa a formar-se a primeira imagem do país.  O seu olhar detém-se na luz vermelha de um semáforo a tentar assomar-se por detrás de um enorme emaranhado de cabos.  Uma longa faixa negra. A perder de vista. Fios de esparguete negro, al dente, pendurados em postes:

    ⎼ Tantos fios! Mal se veem os semáforos. Isto é normal? ⎼  pergunta.

    ⎼ É, sim. ⎼ responde a amiga com uma gargalhada ⎼ Bem-vinda ao  Brasil. Quando um cabo se estraga, não é substituído. Acrescenta-se outro. Aí, vai ficando cada vez mais volumoso.

    Riem-se as duas. Laura imagina o poste à sua frente a transpirar como um halterofilista que excedeu os seus limites. As pernas a fraquejar e, por fim, o sucumbir ao peso. Repara, então, como a  estes aglomerados de linhas horizontais se juntam, num plano inferior, estendidos sobre os muros e vedações nas entradas dos edifícios, incontáveis rolos de arame farpado com lâminas reluzentes:

    ⎼ Tanto arame farpado e tantas grades na entrada dos prédios. ⎼ comenta.

    ⎼ É. Tem de ser. ⎼ responde a amiga ⎼  Não está em Faro, não.

    Laura repara que alguns edifícios têm grades até ao terceiro piso. Cabos, arame farpado, gradeamento ⎼ a miríade de  linhas horizontais e verticais dá forma a um estranho e sinistro jogo do galo. Sinal de uma convivência pouco pacífica entre duas vontades distintas: a de unir e a de separar. O esforço de união é grande, porém frágil. Os cabos que a proporcionam são muitos, porém atabalhoados, com ar de improviso e de remendo. O desejo de separação, pelo contrário, é firme. As barras dos gradeamentos são robustas, as farpas do arame, feitas de materiais de boa qualidade. Um investimento desigual, evidência das enormes clivagens e da debilidade das costuras que unem a sociedade brasileira.

    Na manhã seguinte, o programa é uma visita à zona da Pampulha.  Estacionam numa rua bem perto da lagoa artificial e seguem a pé. Laura mal pode esperar por ver ao vivo a obra de Niemeyer. Atravessa a estrada em passo acelerado e depara-se com a pequena igreja de São Francisco. Niemeyer! As formas arredondadas. Ondas de azul e branco. Tão pequenina. Sente o coração bater mais forte. Aproxima-se. Quer tocar os azulejos. Repete com as pontas dos dedos os traços azuis que desenham peixes e pássaros sobre um fundo branco. Emociona-se. Percebe, então, porque veio. Porque veio desta vez e porque vai sempre. Olha para a amiga e exclama:

    ⎼ É aqui! É mesmo aqui!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.