Autor: Ruy Otero

  • Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Num destes sábados de Agosto, a RTP 2 emitiu um memorável filme de Miguel Gomes – Aquele querido mês de Agosto, de 2008, e revi-o.

    Com o passar dos anos, este filme ainda parece que ficou melhor, como se surgisse de uma boa casta cinematográfica, que com o tempo vai ganhando mais corpo e elegância (fazendo uma analogia com o vinho, e com os seus eternos segredos).

    Sem dúvida, que o tempo é amigo da boa arte.

    Ajusta-se e consagra-se nela e pode, no caso de ser compreendido, tornar-se no melhor ansiolítico para os artistas.

    De uma forma geral, os filmes de Miguel Gomes têm qualidade e são extremamente bem pensados por alguém que passou pela crítica de cinema e que se habituou a ver filmes para escrever sobre eles.

    Indubitavelmente, o cinema também é escrito, é palavra, e aqui temos um exemplo disso, fazendo, de uma forma muito sóbria, tudo encaixar em tudo, até Portugal lá está metido ao barulho, a fazer de Portugal. É um filme sobre o tempo, em que a espera e a falta de dinheiro verdadeiro ou não, contribuem e supostamente mudam a acção. Um filme que tem a urgência de ser cinema, mais do que a de agradar aos produtores. Isto podia ser a sinopse, ou mesmo a falsa sinopse, já que a longa-metragem vive dessa dicotomia entre realidade e ficção, elevando a arte a um ponto-chave, assinalado vezes sem conta por Jean-Luc Godard com as suas célebres afirmações acerca do documentário e da ficção, sendo que o ideal para o suíço é um integrar-se no outro.

    Lembro-me de outro singular filme de Joaquim Pinto Uma Pedra no Bolso –, cuja acção também se desenrola durante o Verão num Portugal específico, em Porto-de-Barcas, vila piscatória que conheço bem e onde também em tempos já pesquei imagens. Um filme talvez esquecido, que teve presença na RTP2 em Agosto, há um par de anos, mas que imaginamos o tempo a fazer o seu trabalho, para que estes fantasmas melancólicos ganhem corpo, já que alma têm de sobra, sendo mesmo essa alma a marca de uma boa parte do cinema português de autor.

    Vem-me à memória ainda Os Contos de Verão do super-francês Éric Rohmer, passado nas mágicas praias da Bretanha, em que a nostalgia e a palavra são iguarias do cardápio burguês e culto, tipicamente gaulês, como é hábito em Rohmer. Claro, há muitos outros filmes cujo calor contagia e derrete o ecrã. O Pecado Mora ao Lado de Billy Wilder é um deles e “queima” definitivamente o televisor sempre que aparece por aí, mas deste já se disse tudo e a Marylin Monroe tem direito ao seu descanso, uma vez que em vida não o conseguiu sem a ajuda de benzodiazepinas, imortalizando-se qualquer dia mais por elas do que pela sua presença nos fotogramas.

    Pessoalmente, adoro ver um bom filme de verão… No Verão. Mesmo se o céu não anda tão azul, chegando mesmo a não sair durante dias a fio dos tons cinzentos característicos desta época… Gris.

    Outra era virá, se o cinema, ao contrário de Deus, assim o quiser. A Cinemateca Portuguesa está lá para nos sussurrar ao ouvido, a doce melancolia da morte anunciada do cinema, que nunca mais chega.

    Em qualquer um destes quatro filmes que enumerei, é o amor que anda no ar, ao invés de drones. O filme de Miguel Gomes, como entidade própria que já é, percebeu que o cinema e a vida mais os sons que só existem na cabeça das pessoas sensíveis, têm mistério suficiente para não mais nos abandonarem os pensamentos. O cinema é um espírito com o qual os cinéfilos fazem telepatia. Porque o cinema também é memória, sobretudo memória futura para que a poética (seja ela qual for) nunca desapareça no meio da convulsão geral em que mergulhámos definitivamente, com guerras e ódio por todo o lado, tendo sido esta a marca destes últimos tempos bestiais.

    Aquele Querido Mês de Agosto vale e até “informa” mais do que um ano de telejornais e tem uma acção realisticamente climática sobre o espectador, coisa que a realidade vai paulatinamente abandonando, porque se transforma ela mesmo numa imitação de uma rede social.

    Neste filme ambicioso disfarçado de filme humilde, que tem a acção em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias e é tempo de bailaricos, procissões e incêndios, o povo não é só vítima ou testemunha, como habitualmente é tratado pelos media em geral. Aqui a realidade grita pela existência e saboreamos um documentário a fazer de ficção, senão mesmo de uma ficção a fazer de documentário, para citar o crítico Luís Miguel Oliveira a citar Godard.

    Aqui, o povo tem voz e canta a sua angústia através da lente justa e sonora do realizador e da sua equipa. Mesmo tratando-se da cruel realidade a que ninguém escapa, no qual se exalta o realismo mágico, mesmo que a ideia de terror sobrenatural parta mais de um trecho de um filme, que aparece dentro do filme, que da própria encenação de Miguel Gomes, trazendo para a sala uma preocupação estilística, participe de uma visão estética da vida que não exclui de todo a experiência do real.

    E alicerçado nesses degraus de continuidade, o fantástico filme vai cavalgando e surpreendendo por entre rituais em que até os próprios incêndios igualmente o são, como se vê nas cenas da torre de detecção e no plano dos botões luminosos no centro de controlo.

    Importante para a compreensão conceptual do filme, são travellings, como aquele em que a câmara acompanha de frente a carrinha de bombeiros com a música de Toni Carreira Sonho de Menino – a instalar-se paulatinamente na acção.

    Em poucos filmes, o som e o tratamento acústico estão tão singularmente presentes para habitar o campo narrativo, em que se ouve, mas pode não se ver, e escuta-se de “olhos bem fechados” (para citar Kubrick), devido às cinzas orgânicas que parecem sair do ecrã ou da tela. Esta é a poética do filme que arde, mas não se vê.

    A banda sonora assinalável é fundamental para o desenvolvimento das histórias fragmentadas, sobretudo da história central em que um pai, uma filha e o seu namorado-primo se relacionam, trazendo sempre novidades narrativas, até porque os próprios protagonistas fazem parte de uma banda musical que deambula pelas aldeias da zona, cantando-se e interpretando-se a si mesmos aludindo aos musicais clássicos.

    A banda sonora tem títulos como: ‘Escravo do teu encanto’, ‘Som de cristal’, ou ‘Passear contigo’, todas elas bastante reconhecíveis pelo público em geral.

    O verdadeiro e real(?) Vasco Pimentel que faz dele próprio a fazer dele próprio, dá-nos uma lição no fim da película acerca da eternidade e dos fantasmas que habitam os filmes, numa dimensão em que a imagem se apaga no som. A tecnologia desaparece perante tamanha grandeza e apenas prevalece aquilo que queremos acreditar ser a vida. A vida para lá de todas as vidas, a vida em que, como dentro dos filmes nunca nada morre. É sempre tudo a fingir. 

    Esta película não parou no tempo. Esta e outras obras cinematográficas feitas com arte, fazem, sim, parar o tempo. E como o Verão me torna melancólico, vou parecê-lo e dizer que o cinema também é amor e com ele mantenho uma relação de fidelidade amorosa ao longo dos anos, sabendo e aceitando a indústria e a sua artificialidade, e até reconhecendo a abundância de criminosos nefastos como o Harvey Weinstein que produziu filmes que hoje são autênticas elegias ao amor, como Shakespeare in Love, ainda que não seja grande filme.

    O cinema perdoa, daí a sua possibilidade de catarse. Se a vida fosse um filme, salvava-se, mesmo sabendo que o cinema foi o principal agente manipulador e transmissor de mensagens subliminares para o século XX e veículo de persuasão com sede em Hollywood. Mas a contradição é a flor e a pistola dos artistas e a realidade ganha sempre depois de vermos um bom filme.

    Ainda assim, sabemos que o cinema traz valor acrescentado e é muito mais do que isso, e esse cinema-muito-mais-do-que-isso é onde este filme se inscreve, e não será vítima do novo tecno-mundo, cujos realizadores são anónimos e não precisam de actores, podendo mesmo fabricá-los a partir da A.I. Isso não é Ser Cinema.

    Aqui o conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens não é claro, mas existe, sim, a presença de elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados, ou mesmo a presença do sensorial como parte da percepção da realidade, trazendo uma singular distorção do tempo para que o presente se repita ou se pareça com o passado, baralhando-se cronologicamente. Como exemplo disso temos o “milagre” operado na personagem do pai do Fábio, quando fala na transformação que se deu no seu cativeiro impregnado de dor, ao cruzar-se com a Rainha Santa, feita de cerâmica, durante a procissão quando experimentava o auge da agonia, até ao triunfal cruzamento onde a dor desaparece definitivamente. Não conseguimos saber se aconteceu mesmo ou é produto do argumento ficcionado.

    Talvez pertença aos dois, e é isso que as novas tecnologias digitais inteligentes não percebem.

    Uma personagem inesquecível é o Paulo Moleiro, que não faz nada, segundo um amigo, mas todos os anos em fevereiro dá um salto da ponte para mostrar que está vivo.

    Aquele Querido Mês de Agosto é esse salto que nunca se vê.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • O Eixo do Mal

    O Eixo do Mal

    Estava na rua e vi um amigo. Parei para o cumprimentar.

    Ao fim de um minuto, e depois de umas banalidades sobre se a vida corre bem ou mal, e uma ou outra sobre o tempo, passando pelo badminton, perguntou-me por que não fazia eu um texto sobre O Eixo do Mal, o programa da SIC Notícias que se arrasta há anos. 

    Disse-lhe que não estava interessado, que não via o programa há muito e que só a ideia de o voltar a ver me deixava mal-disposto. É claro que, às vezes, ainda ouço ou vejo ao longe, num café ou numa sala de espera, os comentadores a dispararem balas secas para algum lado, e até sinto a velha cumplicidade amiga entre eles, o que até podia ter piada. Mas depois, só de ouvir uns minutos, vem logo ao de cima a energia má onda da Clara Ferreira Alves, em que parece que as veias do pescoço vão rebentar para cima da mesa; as banalidades assertivas do Pedro Marques Lopes, com a sua voz tremendamente irritante; as lições de moral em ponto de ebulição do Daniel Oliveira, com o seu ar de sabichão marxista; e as mexidelas neuróticas na cadeira, com alguma verve à mistura, do jovem cinquentão Luís Pedro Nunes. Não mudaram muito desde a última vez que vi um programa completo para aí em 2010. Continuam exaltados a fingir que são cool

    Na verdade, as fisionomias não mudaram muito.

    Acrescentei ainda que o apresentador não era o mesmo, sobre o qual nada tinha a dizer por desconhecimento da personagem. Mas tinha bom ar, e lembro-me vagamente dele numas entrevistas aparentemente bem conduzidas no Canal Q e já agora, Aurélio é um nome com alguma piada fonética. Este programa não era certamente como os bons vinhos que ficam melhores com a idade. Fiz notar.

    Ilustração de Alex Farac

    Ele voltou a insistir para que escrevesse um texto, ainda que curto, só para dizer mais ou menos aquilo que acabara de ouvir como resposta. Nem era preciso desenvolver muito, era só para ficar a nota, palavra aliás muito usada no programa, fez-me saber.

    Este amigo nunca me levava a sério. Enquanto lhe ia dizendo estas coisas, ele só se ria, mas estranhamente via o programa como um acto masoquista, dizia ele com um flácido sorriso nos lábios. Era o hábito.

    Gostava da música do genérico e tinha um especial prazer em tentar adivinhar as roupas que iria ostentar a Clara Ferreira Alves em cada novo episódio, já que tinha alguma irreverência para a idade e até surpreendia nas cores e nas lãs. Disse-me até que já tinha adivinhado umas quantas vezes, num jogo absurdo de adivinhas fashion que mantinha com a namorada.

    Também jogava noutros canais e acertava com alguma frequência no prognóstico que fazia aos penteados da Raquel Varela, noutro programa similar na RTP3.

    A historiadora do trabalho, garantiu-me o meu amigo, mudava de penteado a cada semana e já lá iam mais de dez anos de programa. Portanto mais de 200 penteados pelo menos, deduzi. Garantiu-me que sim. Mas o que andava eu a perder… Não há cabeça que aguente tanto secador.

    Ilustração de Alex Farac

    Primeiro, eu não sou critico de televisão, disse-lhe aumentando o tom da minha voz só de pensar nos actores do programa com nome de Bush, ainda não aprendi a moderar-me. As coisas continuam a enervar-me como se ainda fosse um adolescente, embora, tenha já escrito alguns artigos sobre situações televisivas, já que ser critico da televisão é uma redundância, uma obrigação porque toda a gente devia ser critica de televisão por natureza. A televisão nasceu para ser criticada mesmo antes de a ligar. Quem inventou a caixa negra foi um génio, pertencia certamente ao Eixo do Mal. Inventou o melhor sonífero de sempre para que se sonhe acordado. Depois quem desenvolveu os programas de comentário devia ter muita raiva ao mundo.

    É verdade que exerce algum fascínio catódico sobre mim claro, a caixa idiota está feita para isso e vejo mais rapidamente os programas cor-de-rosa da Maya que os noticiários e programas de debate. É que nos eixos-do-bem somos obrigados a ouvir, por muito que não queiramos.

    O Rui Santos de blazer a falar de futebol consegue ser menos previsível que os do Expresso da Meia-Noite, de camisa e mangas arregaçadas na descontra, mas também calma, não vejo o jornalista desportivo a pregar moral futebolística todas as semanas, era o que mais faltava.

    Pareço aquela personagem do Caro Diário do Nanni Moretti que não conhecia as ilhas que deviam visitar, mas sabia tudo acerca delas, inclusivamente onde ficavam as melhores pastelarias, acrescentou o meu amigo em tom de gozo. Nunca via os programas, mas sabia tudo, género síndrome Big Brother em que no fundo toda a gente passa por lá, mas ninguém assume. A coscuvilhice funciona. É universal e a Endemol estudou em Tavistock.

    Lembrei-me dessa personagem do filme italiano e ri-me. Aliás, esse filme antigo ataca bem a televisão. Mas em 1994 ainda não havia Internet e redes sociais eram discotecas controladas por profissionais de relações publicas. O mundo mudou.

    O Eixo do Mal não.

    Ilustração de Alex Farac

    Escrever sobre um programa é estar a dar importância ao programa, embora ache que ninguém leia as minhas crónicas-ou-lá-o-que-isso-é, não o posso saber, não estou nas redes, não existo, o que para mim é igual ao litro.

    Escrevo porque gosto de escrever e assim posso mudar de estilo quando quiser. Até posso mentir que ninguém me chateia. Posso dizer mal, bem, mais ou menos mal, mais ou menos bem, posso até exagerar que ninguém me censura, muito menos o director do PÁGINA UM, que é um herói contemporâneo. Um Clint Eastwood do Macintosh sem os excessos musculados do americano. Um justiceiro que é preciso levar a sério mesmo que não tenha as paisagens do Texas atrás em planos heróicos e comprometedores como só o cinema sabe fazer. Precisamente uma coisa que me irrita nesses programas é nunca pegarem em nada que saia daqui do jornal online, como se os jornalistas do P1 andassem a brincar aos jornalismo. E por saber disso por dentro ainda me afasto mais. As Lusas e Reuters produzem, os Ricardos realizam, e os Oliveiras actuam. E amanhã será igual.

    Mas por outro lado, a verdade é que percebo bem qual o papel atribuído àquela gente no Matrix. Esquecemo-nos muitas vezes, mas todos eles recebem um cheque no fim do mês, ainda que vá ficando cada vez mais magro. O próprio “papel” começa a escassear. Há muitas alterações não só climáticas no horizonte e os comentadores têm de comer, o que torna a compreensão mais compreensível para ser redundante sem ninguém me chatear com o redundamento. Para regras, basta ver o Eixo do Mal semanalmente. Quem nos dera que não as seguissem.

    Já ninguém é punk? Charles Bukowski era.

    Se não houvesse uma Clara haveria outra obscura qualquer, vinda das universidades a fazer o que é preciso. 

    Os agentes de casting não param para comer uma sandes mista. O relógio chega a ter mais de 24h. O incrível aqui é o programa durar há tanto tempo. Ser um dinossauro em 16 por 9, catapultado ainda do 4 por 3, há-de ter algum segredo. E não deve ter grandes audiências como aliás muito poucos programas fora dos big brothers, têm. Já para não falar das dividas acumuladas pelos grupos mediáticos que sobrevivem sabe Deus como.

    Deus… E o PÁGINA UM.

    Todo um mistério… Para quem não leia o PÁGINA UM.

    A minha dúvida é se eles sabem do seu papel, se têm consciência do que representam, alguém tem de o fazer, é certo.

    Chego à conclusão que se trata de teatro, o problema é que já está toda a gente cansada da dramaturgia e não é fácil mudarem paulatinamente de peça. Os actores vão mudando de vez em quando, parece a série Neighbours. E o Shakespeare aqui não manda nada. Se há coisa que estes programas não têm é elegância. Às vezes é uma gritaria desenfreada, ouve-se na rua.

    Lembra mais Marquês de Sade representado pela Comuna.

    A Realidade também não é assim tão profícua, pelo menos da forma como a estratégia está montada. Já adivinhamos no futuro próximo as alterações climáticas ainda mais alteradas a ser debatidas com a culpa do Trump e da ganância capitalista, as fake news, as eleições dos EUA, as observações em falsete do Pedro, as indignações do Daniel, as irritações nervosas com olhares fugidios para o tecto da Clara, e o ar blasé como se nada tivesse a ver com aquilo do Luís.

    Uma seca expectável descomunal.

    Ilustração de Alex Farac

    E os cães ladram, mas qualquer dia as caravanas passam-se.

    Se é para jogar a sério ao Matrix mais vale ver uns putos conspirativos da terra plana no YouTube, é bem mais divertido, ao menos tem semelhanças com um filme de acção americano, com ritmo, suspense e finais inesperados. Se é para seguir a telenovela informativa do costume, aconselho os velhos e passarem pela plataforma e deixarem-se ir pelo algoritmo, que hão-de aprender alguma coisa, nem que seja que os répteis andam aí, tomam café connosco, os extraterrestres têm a cabeça na Lua e que os pássaros assim como a morte não existem, já que para mim quem não “existe” são estes 4.

    Não, definitivamente não vou escrever, disse eu ao meu amigo que se despediu a rir, sem mais uma vez me levar a sério.

    Ruy Otero é artista media


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  • Anthony Fauci, o artista

    Anthony Fauci, o artista

    Nos tempos que correm, passe a expressão coloquial, a Arte estende-se para muitas zonas, e uma delas é aquilo que se convencionou chamar de bioarte, que é o uso da biotecnologia como meio na produção de objectos artísticos, sendo por isso mesmo uma arte conceptual de difícil compreensão, como quase todas.

    Essa disciplina percebeu muito bem o comportamento humano e as sua engenharia associada, sendo por isso muitas vezes praticada por pessoas ligados à ciência e aos seus dúbios mercados.

    Ilustração de Alex Farac

    Especialistas acham mesmo que há uma relação directa em regime de parceria, entre os caminhos que a bioarte vai tomando e a galeria Tavistock. Já para não mencionar a ligação ao fantasma do sinistro projecto MK-Ultra levado a cabo pela CIA nos anos 60, ainda que considerado um projecto obscuro e perigoso principalmente porque não controlado por artistas.  

    Acredita-se que a primeira obra de bioarte foi criada em 1936 por Edward Steichen, e apresentada no Museum of Modern Art, em Nova York (Lipton, 2003), embora cientistas sociais mais contemporâneos contraponham essa moldura, dizendo que a bioarte é muito mais extensível à vida e aos seus sofismas que aos confins de galerias e laboratórios, uma vez que segundo princípios hodiernos muito em voga, a arte já saiu das galerias há muito tempo e foi dar uma curva até Big Billards (Bilhar Grande em português), para nunca mais voltar à casa de partida.

    E assim chegamos a A. Fauci, um artista de Brooklin, New York que devemos ter em conta e por isso acompanhamos o seu trabalho com interesse, pelo menos aquele que não está no segredo dos Deuses do Olimpo (MoMa).

    Ilustração de Alex Farac

    A Fauci é um criador e cientista ligado às artes performativas/visuais dos Estados Unidos há muito tempo. As artes aí nesse país, ao contrário do que muita gente pensa, são financiadas e produzidas em regime de co-produção com o próprio Governo, tendo tido um incremento e significativo avanço durante o legado do governo Obama, através de subsídios do Reserva Federal, pensa-se, não sendo um assunto muito claro para alguns especialistas. Ao contrário do que é comum pensar-se, os EUA não são um país de índole apenas capitalista ou mesmo liberal, como muitas vezes é eufemisticamente apelidado, e para o provar temos a obra pública deste renomado artista plástico, que não se deixa cativar só pelas feiras de Veneza e pelos Fóruns de São Paulo (ainda hoje controlados pelo curador Lula da Silva, outro artista de calibre magnum), mas também pela arte pública contemporânea já hegemónica em muitos países, com

    artistas revolucionários a ocuparem imensas fachadas locais e mesmo estações de metro e pastelarias.

    O mundo mudou definitivamente.

    Hoje sabe-se por exemplo, que a própria CIA financiou Jason Polock, mostrando não ficar à época atrás do KGB, que também financiou inúmeros artistas soviéticos, incentivando-os mesmo a brutais e magnificas performances para além de residências na Sibéria, que muitas vezes acabavam na morte dos próprios criadores naquilo que se chamou de Gulagart.

    Sabe-se hoje que a bioarte acarreta os seus perigos e não fossem os Estados a financiarem os criadores, seria uma arte de difícil expansão e aceitação, tendo mesmo na esfera pós-moderna ido para além da moral e até mesmo da ética como infelizmente adivinhamos que terá de ser, uma vez que esse é um dos apanágios da própria disciplina para que a evolução aconteça. Senão, como teríamos saído das cavernas?

    Ilustração de Alex Farac

    Michele Foucault e muitos outros legitimam teoricamente estas acções de intoxicação voluntária, pelo menos queremos acreditar, até mesmo pelas experiências corporais infringidas pelo próprio filósofo numa cultura sado-masoc, para se insurgir e desconstruir (e bem quanto a nós), a mediocridade e hipocrisia do poder dominante ainda elencado por pessoas e políticas conservadoras ligadas a Vichy. Também acreditamos que se trata de uma difícil tarefa para os artistas que não deixam também de ser vitimas de si mesmos, se olharmos para a psicanálise, ou mesmo para se tornarem mártires pós-modernos a quem muito temos de agradecer pelos seus sacrifícios a bem da humanidade e do progresso (não estando a ser cínico evidentemente mas sim clinico como mandam as regras do bom jornalismo).

    Podemos atirar as “culpas” também a outro vulto chamado Charles Darwin, apelidado por alguns dadaístas de monkey-artist (artista-dos-macacos), tendo sido a sua teoria da transmutação da espécie aceite pelo sistema depois de fortes polémicas.

    Não só as artes agradeceram a generosidade destes artistas, como também a própria ciência de onde provém inicialmente A. Fauci, vindo, no entanto, a doutorar-se mais tarde em Artes Performativas, sendo sempre agraciado pelos distintos governos, tanto democratas como republicanos, provando que a sua criatividade ultrapassa horizontes e fronteiras tanto horizontais como verticais.

    Fauci também tem ligações profundas a laboratórios de pesquisa na China onde tem feito e incentivado residências, nomeadamente na cidade de Huan, onde esfomeados morcegos se alimentam de ingénuos pangolins, tornando-se um terreno fértil de pesquisa no singular país dos dois sistemas.

    E por falar em fauna, sabemos também que o performer americano fez experiências com cães de raça com um exorbitante contrato federal de 1,8 milhão de dólares para performances científicas com cães de uma raça específico que por falta de dados não conseguimos apurar (tendo também em conta toda a desinformação que existe na Net).

    Ilustração de Alex Farac

    Este caso levantou sérias preocupações e questões a senadores conservadores que nada percebem de arte conceptual nos EUA, dedicando-se muitas vezes a doar fundos para igrejas e para “artistas” evangélicos. Naquele caso foi Joni Ernst do inefável e ignorante Estado do Iowa, que observou que experiências anteriores financiadas pelo Governo Federal, em cães sob a tutela de Fauci, incluíram cortar as suas cordas vocais, infestar os cães com pequenos aracnídeos ectoparasitas hematófagos, e ainda colocar os mesmos em gaiolas com moscas infecciosas em regime de co-habitaçao. Experiências artísticas com animais já tiveram melhores dias, mas Fauci não quer limitar-se a canídeos já que pretende fazê-lo também com humanos.

    Mas os caminhos já haviam sido abertos há muito pelo coelho de Beuyes, ou pelas ovelhas de Dolly, passando pelos tubarões de Damian Hirst ou pelos elefantes dos caçadores colonialistas. Temos pena.

    É preciso haver progresso.

    Sabe-se pelo Economist e, ainda que não tão detalhadamente, pelo New York Times, que A. Fauci prepara uma performance duradoura, arriscada, minuciosa e claro, como todas as geniais, sofrida, a nível mundial, em que os diferentes governos dos muitos países se propuseram financiar numa epopeia mais que transatlântica. Mas, devendo-se a um natural e aceitável segredo artístico-científico, sabemos apenas de alguns pormenores.

    Confirma-se, no entanto, a expectável excitação da maior parte dos artistas dos diferentes países, tanto conhecidos como menos, tendo já estes declarado o seu entusiasmo publicamente, chegando mesmo a voluntariarem-se uma boa parte para auxiliar na difícil tarefa performática a que o artista se propõe.

    Sabe-se também da anuência dos diferentes canais mainstream a nível global em que se incluem países diferentes como a Polónia, a Itália ou mesmo a Hungria do ditador Orban. O estranho aqui, mas digno de festejo, é a exuberância e entusiasmo dos diferentes quadrantes políticos desde a extrema-esquerda à extrema-direita que têm aderido ao quase-manifesto do artista norte-americano, provando que a arte esbate fronteiras sempre que seja o Humano a estar em jogo para nos unir nesta epopeia com contornos de novela gráfica.

    Ilustração de Ruy Otero

    Sabemos hoje que somos todos iguais, mas como diz Orwell ainda há uns mais iguais que outros. Ora é mesmo esse um dos paradigmas que o artista quer evidenciar criticamente.

    Temos conhecimento também que tem o apoio, entre outros monstros assinaláveis, da Bayer e mesmo da esquecida Pfizer. Ouvimos pela própria boca do artista que será na China onde a primeira performance terá lugar, o que só prova também a abertura democrática do país insular.

    Outro dos aspectos que se ouve falar em off é a do pedido especial às populações de todo o mundo, mesmo contando com a Tanzânia, para o uso prolongado da máscara hospitalar e da permanência em casa durante pelo menos quinze dias, de forma que o artista possa aplanar a curva em segurança.

    Ruy Otero é artista media


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  • América: um sketch teatral

    América: um sketch teatral

    Donald Trump está na sua Trump Tower. Toca o telefone vermelho feito de carbono.

    Uma das raparigas que desfila pelo luxuoso espaço aveludado, encaminha-se até ao telefone, a mando de Trump.

    A rapariga vê o número e diz ao ex. Presidente que é Jo Bi quem está a ligar. O homem do cabelo laranja veste o roupão e dirige-se para a mesinha onde está o telefone. Atende.

    – Olá, Jo. Se é para gozares comigo, mais vale ligares para o Martin.

    Atira logo à queima-roupa.

    – Não, aliás estou cansado demais para isso.

    Responde Jo Biden.

    E continua, depois de uma pausa em que pigarreia para aclarar a voz.

    Ilustração de Alex Farac.

    – Queria mesmo era falar do debate. Uma boa parte do mundo viu mas fomos os menos vistos dos últimos anos.

    – Que se foda!

    Responde Trump.

    – Digo-te já que não gostei nada daquilo que disseste do meu filho.

    – Jo… Eu não queria…

    Biden interrompe.

    – É que ele é muito pior do que insinuaste.

    E desata a rir.

    – Ah bom! Quase me assustaste.

    Trump sente uma espécie de alívio.

    – O anormal do Hunter só não está preso por causa de mim. Sempre foi estúpido o parvo do rapaz.

    – É como a Melania. As pessoas acham que ela é esperta só porque não fala muito.

    – Mas ainda é gira.

    – Que se foda! A beleza para mim é coisa do departamento da filosofia.

    – Sim, eu sei. Não gostei foi daquilo que disseste a propósito do golf, sabes que tenho um grande orgulho do meu jogo. Aí mentiste mesmo… Ou é impressão minha?

    – Não, não. É mesmo verdade que estou menos gordo e ainda bato bem. Talvez tu carregues melhor e sejas mais perspicaz na análise dos buracos, mas eu sou bom no green. O meu pai ensinou-me a jogar e eu sempre fiz tudo para ser melhor que ele.

    – Também disseste que eu próprio não percebia o que dizia às vezes. Tinhas razão. Eles deram-me uma merda esquisita para não sei quê, e estive um bocado à toa. Quase que dizia que era contra o aborto.

    – Mas tu és contra o aborto Jo.

    Riem ambos.

    – Jo… Sabes… Acho que vou ganhar, man.

    Disse Trump sem grande entusiasmo.

    – Espero bem que sim. Eu disse-lhes que, ou metem o holograma, ou não faço mais o espectáculo. Estas merdas já me cansam e eu agora queria desfrutar um bocado da vida. Sempre fui um desgraçado, tu sabes. E ainda tens cabedal para aquilo. Tu és um bom palhaço Donald, nunca te esqueças.

    – Obrigado, Jo. E já agora, sabes que temos aí um plano muito interessante na manga…

    – Boa!

    – Já alguma vez levaste com uma bala?

    – O que é isso?

    – Um balázio Jo!

    – Oh claro. Só de raspão.

    – Dói?

    – Depende. Porquê?

    – Tive um sonho muito estranho. Nada de importante.

    Diz Trump cabisbaixo.

    – Ouve, está a resultar isto das pessoas acharem que me estou a agarrar ao lugar.

    Trump mostra algum desconforto por Jo não ter dado muita importância ao tema do sonho. Biden continua.

    – Sempre foste é um desastre nos negócios, um looser… Tive de o dizer. Foi mais forte que eu. Ninguém me escreveu a frase. Saiu-me.

    Ilustração de Alex Farac.

    – Não tens de estar a lembrar-me sempre disso. O Obama também tem essa mania. E o Michael ainda é pior.

    – Tens razão. Já me esquecia. Não digo mais “verdades”, pelo menos sem audiência por perto.

    – Certo. Andas muito esquecido, Presidente!.. E já agora… Verdades?.. É para gozar, não?

    Desatam a rir.

    – Claro. Ainda damos cabo da pós-verdade.

    – Qual pós verdade? Andamos mesmo muitos esquecidos, não é Jolito?

    Jo está deveras bem disposto. A amizade é o melhor do mundo. Jo continua:

    – E ainda não viste nada. No outro dia lá na Casa Branca confundi uma girafa com uma jarra. O pior é que fui dar festinhas à jarra como se fosse a Molly.

    – Oh! Quando estive lá, aconteceu-me muito pior. Nem te vou contar as coboiadas man. Tu até estás bem. Acho que a táctica está a resultar. Deixa a maralha pensar que estás demente enquanto o próprio mundo se medica. Não tomes é aquelas merdas verdes. Esses comprimidos são perigosos. São cristais. Se tiveres problemas, já sabes que a lixívia resulta.

    – Essa história da lixívia foi muita bem metida.

    – Sim eu sei.

    Responde Trump.

    – Sim, eu sei também… Quanto aos comprimidos, claro. Não estou maluco.

    Responde Biden.

    – Já agora Jo, não gostei muito de teres dito aquilo referente à prostituta.

    Ataca Trump sem atacar.

    – O que é que eu disse? Queres ver que cometi uma gafe das minhas outra vez!..

    – De certa maneira sim. Disseste que eu devia estar com a minha família, enquanto estava com a prostituta.

    – Desculpa. Foi sem intenção.

    Lastima Biden.

    – Devias era ter dito a verdade. Que eu estava com dez.

    Desatam a rir novamente.

    – Mas se eu ganhar, aquela ameaça que fiz ao Zelensky é para manter. Ainda ninguém me deu ordens do contrário. O anão não leva mais papel.

    – Claro, claro.

    Responde Biden sem qualquer emoção.

    – É que o ucraniano já anda a abusar. E depois vai para a Vogue fazer aquelas figuras. Não achas, Jo?

    – Sim, sim. Está a levar-se muito a sério. Ando a pensar um dia chamar-lhe Putin, como se fosse uma das minhas gafes

    Ilustração de Ruy Otero.

    – Essa é muita boa.

    – E à Kamala vou chamar-lhe… Adivinha!

    – Tina Turner?

    – Não. Trump.

    – Pára Jo. Ainda tenho um enfarte, só de rir.

    – Sabes que lá em Hollywood já estão a preparar um filme com o Zel?

    Pergunta Jo

    – Sim. Mas não vai ser bem ele, pois não?

    – Sim, vai. O contrato era esse. Ele gosta mesmo de representar. Não está velho como nós. Mas não é grande actor, digo-te já. O Putin safa-se melhor, mas é frio como tudo. Eu falei com o KGBs (alcunha de Putin no meio diplomático), e parece muito em baixo. O tempo lá em Moscovo também não ajuda, e os aviões têm andado parados. Há umas greves e não sei quê… Comunistas; sabes como é que é. Boa gente, mas…

    – Ai sim?

    – O último filme do Clint Eastwood já foi com A.I. não foi Jo?

    – Dizem que sim. Até acho que o Clint já morreu. Ele e os westerns.

    – Pena. Mas não é morrer, morrer.

    Lamenta Trump.

    – Não. Mas não te liguei para falar de codrilhices digitais. Queria mesmo saber se vais amanhã ver os Chicago Bulls?

    – Posso ir sim. Tenho tido bastante tempo desde que sou um avatar de mim mesmo.

    Riem, e Biden quase que se engasga.

    – Essa… Está…. bo… a!

    – Está não está? Saiu-me.

    Diz Trump nitidamente contente com a frase

    – Agora me lembro, foi também por isso que te liguei.

    Ilustração de Alex Farac.

    Continua Jo, que, entretanto, superara a tosse do engasgo. E continuou.

    – Queria ter uma vida normal. Começo a ficar seriamente cansado desta palhaçada. Levo a outra cara, se é que me entendes…

    – Entendo muito bem.

    – …E até posso pedir cachorros que ninguém me reconhece. Donald, a tecnologia foi o melhor que nos aconteceu. Esta vida no século XX dava mesmo trabalho e não se ganhava muito. As pessoas nem imaginam. Tu aí nem querias sab…

    Trump interrompe.

    – Jo, desculpa, mas vou ter de atender mesmo. É o Musk. Ele está em Marte e se não atender em 10 segundos, a merda da chamada ainda não aguenta mais tempo de espera e cai.

    – Sim atende. Eu também já falei há uns dias com ele. Está a apanhar uma grande seca lá em Marte.

    Confirma Jo.

    – Então deixa-me atender. Tchau, meu velho!

    – Velho, eu?

    (CAI O PANO. O PÚBLICO BATE PALMAS ENQUANTO TRUMP E BIDEN AGRADECEM, MAS TRUMP QUANDO SE AGACHA PARA O AGRADECIMENTO TEM UMA DOR NAS COSTAS QUE O PARALISA. O PÚBLICO RI E BIDEN AJUDA. O PÚBLICO RI AINDA MAIS).

    FIM

    Ruy Otero é artista media


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  • 1984: uma exposição

    1984: uma exposição

    Estava a fazer scroll no meu iPhone quando o aparelho estremeceu. Para os metais roubados ao Congo que sustentam o telemóvel foi um terremoto de grau 9. Até me assustou. Era a Teresa e atendi.

    – Então man!

    Man? Sucumbiste aos estrangeirismos?

    Respondi, perguntando com maldade.

    – E tu! Que estás sempre a dizer layer em vez de camada!

    – Tens razão. Tás boa?

    – Estou. E tu? Já viste as notícias no telejornal?

    – Vai-se andando. Estás a ligar-me por isso? 

    – Não. Claro que não, mas repara que Paris está a arder. 

    Disse ela com leveza.

    – Paris já está a arder há muito tempo. 

    – Chamem os bombeiros! (Ri-se).

    – Agora não tenho aqui nenhum ecrã à frente. Quando chegar a casa, ligo a CNN. Eles sabem tudo o que não se deve saber sobre terror. 

    – (Interrompendo) E o meu texto para o PÁGINA UM?

    Perguntou à bruta.

    – Ah, então era por isso!..

    – Também. 

    A razão destas palavras  é uma exposição da Teresa que está a decorrer na Galeria da ZDB e que acaba dia 20 de Julho. Disse-lhe que escreveria um texto sobre ela. A exposição chama-se 1984.

    Continuei,

    – Não sou uma máquina de escrever Olivetti, calma! Não é fácil escrever sobre isso do controle e da lobotomia. Lobotomia vem de lobo?

    – Não. Vem de Nobel. Não sejas parvo!

    – Não posso escrever um texto parvo? Agora, ficaste séria?

    – Podes, podes. Os textos já não são escritos para serem lidos. Se calhar porque hoje, principalmente reescreve-se demais. Inventa-se pouco. 

    – De qualquer forma, vou fazer uma analogia com os media provavelmente, é inevitável, mas esses, em geral, não fazem lobotomia às massas, fazem outra coisa bem pior. Tornam tudo abstracto. As tuas peças não são abstractas, muitas vezes até são chapa 4 e aqui nesta exposição há uma impossibil… (Ela não deve ter ouvido esta parte, ficou sem rede). 

    – … Disseste o quê?

    – Fiquei sem rede. Estava num túnel e estava a dizer que posso também escrever sobre a ZDB.

    – Vais dizer mal da ZDB?

    – Não. Não vou dizer nada sobre a Galeria. Dizer mal não me fica bem.

    – É melhor. (Rindo)

    – És feminista? Ando há meses para te perguntar mas tenho-me esquecido. É para o texto. 

    – Feminista como? Tás a gozar comigo! É por aí que vais pegar? 

    (Não consegui conter o riso). 

    – Não. Estava a tentar ser contemporâneo. É que sou pela ig…

    (interrompendo)

    – Estou a ficar sem bateria. Aparece lá amanhã em minha casa à u… 

    Caiu a chamada. Deduzi que quisesse dizer à uma.

    Eu e a Teresa somos das pessoas mais pontuais que existem e, por isso, à uma em ponto do dia seguinte, a Teresa abriu-me a porta do sexto andar do seu apartamento em Benfica. Trata-se de um prédio dos anos 70 com e sem alma, nunca percebi. Subi de elevador e ía morrendo.

    Estava um calor normal para o mês de Julho e não deixei de pensar no aquecimento global. Mesmo quando o tempo é normal, pensamos no aquecimento global. Fui na minha Yamaha e percebi nesse dia que Lisboa ainda podia ter salvação. A Teresa e eu somos lisboetas a sério.

    Abriu-me a porta com aquele seu andar apressado. 

    – Então estás bom? O meu texto?

    – Não vim cá para isso propriamente. E isso é assim logo a abrir?..

    – Vieste porquê?

    – Tive de ir à Loja do Cidadão ali em baixo e prefiro falar ao vivo que na minha câmara de filmar.

    Menti.

    – Hã?…

    – Sim. O telemóvel é a minha câmara.

    Aqui não menti.

    – Ok.

    – De qualquer forma tínhamos combinado.

    – Não tínhamos não.

    – Tínhamos, tínhamos. Está escrito lá atrás quase no início. Isto aqui é como o Big Brother da TVI fica tudo registado.

    – Tás a ver. É por isso que nas minhas exposições falo do controle.

    – Percebo. Ontem estava com o Cabral ao telefone e enquanto íamos falando eu tirava notas acerca do que ele dizia da tua exposição. É uma táctica que uso muitas vezes. Ouve: (vou às notas do IPhone).

    “A artista está constantemente a fazer-nos uma pergunta, ou melhor a pôr-nos uma questão inextinguível: onde fica a fronteira, o traço que nos divide, que nos exclui/inclui da actividade artística face à esfera social’”…

    – Ele disse mesmo assim ao telefone? (Interrompeu com surpresa).

    – Não. Claro que não. Assim, assim não. Ninguém fala assim. Ele dizia coisas e depois eu ía anotando, depois compus mais ou menos nas notas. Mas ouve o resto. Não interrompas. “… Por entre a deriva em explicar a Arte, na sua quietude e finitude, alcançamos, como pressuposto, uma ideia, por vezes, muito simples – ou seja, na tentativa de a compreendermos melhor, tentamos avaliá-la, ainda, em torno da sua antiga e discutível dicotomia – figurativo/abstracto, do maior ou menor emprego de valores tidos como simbólicos ou do modo como determinados procedimentos são empregues, entre outros”.

    – Uau! Isso é tudo verdade. Estou a gostar man.

    – Sabemos lá o que é a verdade.

    – É o contrario da m…

    – Ouve o resto. Falta pouco. “Neste contexto, deveremos colocar a irrecusável tentação de recorrer a tendências ou a correntes nas quais se podem filiar os objectos, bem como a tudo aquilo que nos possa ajudar a situá-los para além de um plano meramente artístico.

    – Posso assegurar-te que esta parte disse-a assim tout court.

    E continuei:

    – “É o caso da Escultura da Teresa Milheiro, que nos oferece aquilo que é a génese artística, o paradoxal – como pode a Arte ser feita como se fosse uma jóia, um precioso adorno sem, no entanto, colocar esse ditame em causa? A escultura dela apresenta-se sob a forma de uma jóia, é certo, mas recusa disponibilizar-se enquanto tal, é a Arte, na sua justa luta, do dia-a-dia, a manifestar-se”.

    O telemóvel da Teresa toca.

    – Desculpa tenho de atender o telefone. Sou capaz de demorar um quarto de hora. É da Turquia. Mas está espectacular.

    – Ok. Está como se estivesses em tua casa.

    Gracejei sem que ela ouvisse e sentei-me no sofá da sala.

    Escrever para esta nova exposição da Teresa não é evidente! Ela engendra objectos cada vez mais estranhos e escultóricos e é uma constante perguntar-me acerca do que é que se pode e deve abordar num texto. Do método? Dos temas? De nada? Da vida do artista com uma nota biográfica? Do processo e dos materiais? Soa-me sempre quase tudo a falso e aparecem sempre textos a despachar. Hoje, há pouco tempo para tudo e o pouco que há, não é para mandar um cego cantar e ficar a ouvir. 

    Pego no meu iPhone e vou até às notas onde tinha apontado o texto do Cabral que para mim ainda não cobria o essencial. Tinha anotado alguns items depois de uma conversa com a minha amiga:

    Fragilidade/Paradoxo. Forte. Resistente. Aceitação. Fragilidade do vidro. 

    Agressividade. Metal. Leucotomia/Lobotomia. Controle.

    Notas de merda que não servem para nada. Pensei que mais valia estar quieto e ir até à praia.

    Tangas contemporâneas que não querem dizer nada. Vejam as peças e perceberão logo isso… Ou não. O vidro por exemplo não é só representativo da fragilidade, o metal não é forçosamente a resistência, a lobotomia não é necessariamente uma metáfora. No mundo da linguagem, a paleta de cores é muito mais vasta e diversificada. Mas sim, precisamos da palavra, hoje mais do que nunca, mas da palavra certa no momento errado, duma palavra que não se auto-banalize, que não se auto-destrua à primeira má interpretação. 

    As peças dela já são por si um organismo, é isso que a define. Acima de tudo, as peças são ela. Têm o seu carácter, falam por si a maior parte das vezes. São acutilantes e irónicas, por vezes delicadas como ela. As palavras podem estar a dizer outra coisa, podem estar a apontar noutras direcções, podem pertencer a outros mundos paralelos, podem ser só sons e podem não implodir com o que resta da vida. 

    A Teresa apareceu de rompante ainda com o telefone na mão e perguntou se já tinha almoçado.

    – Não. 

    – Queres vir almoçar?

    – Não. 

    – Estás chateado comigo?

    – Não. Claro que não. 

    – Só dizes não?

    – Sim. 

    – Estás a pensar em quê? Estás sempre entre paradoxos. Lê lá outra vez essa ultima parte do Cabral!

    Concentrei-me, levantei-me do sofá e olhei-a nos olhos. 

    – Tu e eu, as tuas peças, este texto, a nossa ligação, estar aqui agora e tu aí, a linguagem que usamos para nos entendermos, tudo junto, é que é a melhor obra. E pode já não haver palavras para a definir. Aquilo que nós sabemos ser a grande obra, a mais poderosa, aquela que está para além da morte. Aquela que é vida a toda a hora. Já somos a própria representação, as tuas esculturas já fazem delas mesmas, fazem de ti porque deitas para lá todo o teu sangue. 

    – Não fales em sangue que me faz logo lembrar… Sangue.

    – As tuas peças, se queres que te diga, são a maior metáfora disso. São meta. Pelo menos enquanto residirem aqui. Mas dizer metáfora está errado, não há folha de sala que não nos bombardeie com essa palavra que ficou oca de tanto a gritarem. Estas peças não têm nada a ver com a lobotomia, ou com o 1984. Têm a ver com uma certa linguagem, com uma certa crueza e transparência que há em ti e isso não é traduzível para texto

    – Estás acelerado. Pareces o Nico Rosberg.

    – Estou só concentrado.

    – Mas continua, estava a gostar 

    – A lobotomia pode ser a origem da inspiração, mas a lobotomia não tem beleza e isto não é uma ilustração da brutalidade. A violência em que a tua criatividade mergulha é que é assinalável. As melhores peças são aquelas que nos inspiram criatividade e a lobotomia faz justamente o contrário. Às vezes, penso que somos uma espécie de guerrilheiros urbanos que andamos por aí, pela rua, entre os inimigos e, nesse caso, as tuas peças são as minhas armas. Queres melhor? Tornas-te subjectiva e útil ao mesmo tempo. E, nesse caso, temos muitos combates ainda para fazer. De certa forma, a estética da violência une-nos. E há uma beleza contida na violência, mesmo na verdadeira. E tu não tens medo dela. Fazes uma guerrilha à própria violência. E eu escrevo-te assim. Não é giro?

    – Giro? 

    – Não vou escrever nada sobre os media tradicionais, nem fazer analogias com o Poder, nem com a fragilidade de seres mulher ou com o feminismo, pelo menos aquele que está em voga. Tu não tens nada a ver com isso. 

    E ela interrompe como se não estivesse a perceber partes:

    – Ainda estou atónita com essa tua conversa. Não queres mesmo ir até lá abaixo almoçar? Vamos ali à esplanada e vemos uns turistas a andar de trotinete para espairecer. Até Benfica já tem turistas.

    – Sim. Na tua cabeça. Ou melhor… Na minha.

    – Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelada por uma. Nunca te aconteceu?

    Perguntou em tom irónico.

    – Claro que sim. Está sempre a acontecer-me. Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelado por uma também. Ali, precisamente junto ao jardim Zoológico. Se não tivermos cuidado, somos sempre atropelados junto a qualquer coisa. Estou agora a lembrar-me que estava contigo quando íamos sendo atropelados por um turista. Se queres saber a verdade… não, não estava. É que eu não estou sequer agora aqui contigo; pensando bem, nem há pouco estava contigo e, pensando ainda melhor, nem muito menos me ligaste ontem. Pior, ontem não existiu e para complicar tudo ainda mais… Não existe tempo.

    – Estás a brincar comigo?

    – Talvez. Mas então é por aí que devo ir, que estou a brincar contigo, ou então dizendo que não há tempo e que as tuas peças são de alguma forma intemporais… Existem fora do tempo e até do próprio espaço. Estas palavras deveriam ser as tuas jóias, mas por outros meios como a guerra e a política. As tuas jóias, para mim, valem ouro, porque ao olharmos para elas, vêm-me palavras à cabeça. E as palavras acima de tudo precisam de ti. O mundo precisa de palavras. E os teus objectos são a possibilidade da palavra.

    – Mas eu estou aqui ou não?

    – Tu é que sabes.

    Respondi sem responder. 

    – Sou só palavras pensadas por ti?.. Ou isto é tipo um filme estúpido de terror do AXN em que a personagem está, depois não está, depois volta a estar… Desaparece… Aparece… Há tempo, depois não há tempo… 

    (NÃO) EPÍLOGO:  Este texto prescinde de um epílogo já que, enquanto o autor estava na iminência de o redigir, apareceu o Timóteo com uma bola na mão a chamá-lo para irem dar uns toques até à Alameda. Assim, por falta de tempo, marca da actualidade, o epílogo não foi escrito. A caminho do local onde a jogatana se iria dar e a pedido do autor, o Timóteo leu no smartphone o texto até este falso epílogo, e sugeriu que o texto acabasse justamente assim. Mesmo assim.

    Ruy Otero é artista media

    Fotografias de Eduardo Sousa Ribeiro


    1984 – exposição de Teresa Milheiro

    20.05.24 — 20.07.24

    Galeria Zé dos Bois

    Rua da Barroca nº 59
    1200-047 Lisboa, Portugal

    Horário ARCOLisboa:
    21 a 26 de Maio 12:00 — 22:00
    Entrada livre.

    Horário 27 de Maio a 20 de Julho:
    Segunda a Sábado 18:00 — 22:00
    Entrada: 3€

    Curadoria: Manuel Costa Cabral e Natxo Checa


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  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte II

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte II

    (SEGUNDA PARTE)

    [Pode, ou se calhar deve, ler a primeira parte desta crónica AQUI]

    O mundo dos humoristas não anda lá muito católico – isto já para não falar do mundo dos católicos, que anda para poucas brincadeiras. Isso é missa para outra igreja, como se costuma dizer nos Himalaias.

    Nem de propósito, ou a despropósito, o nosso RAP (Ricardo Araújo Pereira) foi ver o Papa, e tentei pesquisar alguma coisa de interesse na Net sobre esta epopeia a Roma.  Nada encontrei de relevante, mas tropecei no óbvio, reparei que qualquer pessoa no planeta virtual tem os seus detractores, e como se trata ainda para mais de alguém famoso, sobretudo através dos típicos comentários, é natural que traga à tona o pecado da inveja, que dizem ser pecado mui português.

    Eu acho que é pecado universal, mas, propositadamente, acho que o humor do RAP nem é pecaminoso nem universal.

    É coiso… Só.

    Mas agora até tem a benção… do Papa.

    Temos então um humorista nada crente, que vai ver o Papa quando o Papa manda, e quase agrada a gregos e a “não sei quem que há-de vir”, como vociferava o José Mário Branco aos “cabrões de vindouros“. Quando disse gregos deveria dizer esquerda (donde ele vem), e direita (donde o Papa deveria vir) era “não sei quem que há-de vir”, mas, e porque os pontos cardeais andam tortos e como duvido que o cómico saiba hoje definir geografias políticas actualizadas e demarcadas, (o que não quer dizer acertadas), já nem se percebe para onde vai o seu humor.

    Estará ele a ficar jesuíta?… como o Papa.

    Continuemos. Em política, a fantasia continua a ser a norma. E nada melhor que o comunismo e os seus ideais de igualdade para nos permitirem pensar diferente. Todos diferentes, todos iguais foi uma frase instalada no território de uma certa juventude nos anos 90, tendo a Benetton sido a marca (verde) associada. Foi um capitalismo até dizer chega, disfarçado de comunismo até dizer basta. Daí não ser difícil agradar a gregos e a “não sei quem que há-de vir”, quando se disputa o jogo da democracia abstracta, do humanismo à-la-carte. Mas o papel do Bobo da Corte já era. O Tempo não anda para brincadeiras.

    Na verdade, é ser bobo da corte estar sempre a dizer que se é Bobo da Corte. Mas como os reis alteraram a morada do palácio, talvez os bobos já nem com GPS se safem. Não faz rir – e já não é uma boa desculpa, uma vez que o RAP se assumiu muitas vezes como tal.

    Caramba: se houvesse Comunismo a sério e já agora, Liberalismo, é que era.

    Ao menos podia-se discutir política nos moldes clássicos, em que dizer barbaridades até podia cair bem, consoante os contextos, como ainda foi possível nos anos 90, e mesmo nos 00 deste século, que pesam muito num tipo de “artistas” nascidos profissionalmente numa época onde se permitia quase tudo no humor. Sinal dos tempos, alguns habituaram-se mal (bem).

    Mas faça-se justiça e traga-se, já agora, também o Herman para as contas desse rosário num Portugal que andava a tentar acertar o passo europeu com Euros e Expos.

    Houve liberdade quando o Ricardo começou a escrever para o Herman. Aprendeu alguma coisa.

    Ao Herman, estranhamente, perdoa-se tudo.

    Gosta-se. Faz parte, não sei explicar. Falava dos seus relógios e dos seus iates, mas não dizia que era comunista. Mesmo não cantando assim tão bem, e tendo o hábito de interromper vezes demais os seus convidados, ainda que muitos nada tivessem para dizer. Hoje não o imaginamos sem o seu piano algures num Music Hall a encarnar o Feiticeiro de Oz.

    Mas outros, não vá o trabalho faltar, ainda têm de andar a pedir desculpa pelo que fizeram e disseram nesses anos loucos de liberdade, coisa que o RAP julgo nunca o fez. Ganha pontos aí.

    O estatuto é realmente uma conquista. Como o fez para sobreviver já não sei, uma vez que a minha especialidade é analisar crustáceos do Curdistão para o Porto Canal.

    A cultura woke que prolifera na atmosfera do poder mediático, fechou certamente os olhos a certos sketches dos Gato Fedorento, até porque, num ou noutro, chegou a fazer de africano. E a parodiar.

    Ainda bem.

    A cultura do cancelamento quase sempre é exagerada, senão mesmo estúpida, e aí percebemos que o Ricardo é ainda Charlie Hebdo.

    Recuemos. Assisti com interesse ao aparecimento do fenómeno Gato Fedorento, momento de explosão de vários humoristas em Portugal, e que se deveu a dois factores: à influência das Produções Fictícias, que praticamente dominavam o mercado de humor com o chefe e dúbio Nuno Artur Silva à frente de um grande elenco, e também ao Levanta-te e Ri da SIC, onde cabia todo o tipo de humoristas, desde os péssimos e brejeiros, até aos mais sofisticados que viam o Seinfeld e sabiam quem era o John Cleese, incluindo o próprio RAP e até o Bruno Nogueira, que era muito jovem dando nesse programa os primeiros passos.

    Ficou conhecido com a piada do senhor do bolo que era o Balsemão, o nosso intocável chairman dos Bilderberg.

    Para quem não souber o que é isso com nome de hotel, pode comprar o livro de Frederico Duarte Carvalho que anda por aí à venda, e talvez se surpreenda e até aprenda alguma coisa sobre o mundo, mesmo que sendo a Wikileaks dos pobres (porque ninguém pode lá entrar) conspira o suficiente para acreditarmos na literatura. Já não é pouco. E o Frederico é bastante bem humorado e faz bem à vida. Aqui no PÁGINA UM é um herói para mim. 

    A boa comédia é uma conspiração, se virmos bem.

    A boa vida é uma conspiração contra ela própria, se ainda virmos melhor.

    Duvido que o RAP tenha lido esse livro. E se o leu não diz a ninguém.

    O Poder existe, e o Poder tem poder e talvez ele conheça a redundância toda-poderosa.

    O Bruno saberá, porque também teve de comer a fatia do bolo que a SIC amassou, mas sempre arriscou muito mais do que o rapaz do kickboxing. Há, apesar de tudo, mais sofisticação no Bruno, mesmo que tenha sido um radical covidiano atentando contra as liberdades individuais, princípio que o humor não deverá abdicar nunca. Tiramos o chapéu ao Rui Sinel de Cordes e à sua incompreendida coragem.

    O morcego não devia ter chamado um figo ao pangolim e os humoristas deviam ficar às vezes sossegadinhos nos seus escritórios a inventar piadas masé. 

    Ainda assim nunca esqueceremos O Último a Sair.

    Avancemos. O RAP é o cómico dos pobres, mesmo se os menos pobres junto com os betos também se riam, mas estamos peranta uma evidência: Portugal dança uma permanente valsa com a pobreza. Ainda assim, sejamos justos, bate aos pontos o Markl: esse é mesmo insosso, ou sonso, e faz parte da maralha tipo Unas, que riem das próprias piadas e pedem desculpa por serem irreverentes, quando ainda por cima nunca o foram.

    Vão ver o Cabaret da Coxa e o enxovalho generalizados aos homossexuais, por exemplo. Outros tenpos.

    Nem ele, nem quase ninguém se mete com o obscuro. E aí reside a pobreza. Lembro-me logo de Lenny Bruce e da sua luta.

    O Poder é tramado e criticar os alvos certos não é para todos, não rende como a Worten. Dá  trabalho e depois ainda gozam connosco.

    E isso percebo e aceito bem; pode até custar caro. A História tem sido pródiga em criar vítimas. É mesmo a doer.

    Também encontro valor em manter o status quo, o problema é que o humor devia ser um desporto diferente num mundo mais sustentado.

    Em humor devíamos jogar hóquei patins sem os patins, e usar o stick para dar outras stickadas.

    Dá trabalho e perde-se trabalho. É tramado. É que o humor tem poder e é estranho tanto desperdício, sobretudo quando há talento.

    Mas Worten sempre.

    O Ricardo luta pelo comunismo na SIC e fez do Chega o seu Vietname.

    Mas, por outro lado, parece evidente que nos canais actuais, com as dividas e agendas do nosso zeitgeist, não seja lógico (ou prudente) gozar com quem controla. Assim, opta-se claramente por gozar com quem baralha. Ou trabalha – já estou baralhado.

    Só em países mais sofisticados se pode exercer essa arte dentro do mainstream. Mas é paradoxal.

    É assim a vida, mas terá sempre a sua poética, esteja o vento para sul ou norte. Ou mesmo a norte de nenhum sul.

    Intróito. Aconselho a ler o Fernando Pessoa e o seu Banqueiro Anarquista para perceber a contradição.  Segundo um grande amigo, Ricardo Escarduça, que já foi e ainda é engenheiro do tempo perdido, o humor é uma pulsão que convida à relação, que lança no descobrimento e faz luzir o cuidado afectuoso do ser humano com o outro, com as coisas e consigo. Une – ou deverá.

    Portanto, RAP está demasiado ocupado a olhar o espelho encontrado no lixo, gosta de gozar com quem fala dos Illuminati por exemplo. É fácil gozar com aquilo que não se vê. E há por aí muitos tarados (chalupas como se banalizou) a precisar de psicotrópicos. Sabemo-lo bem. É fácil demais.

    O elo mais fraco, é mesmo mais fraco. E nas redes, através dos comentários, as marés estão sempre a voltar-se contra os marinheiros.

    E o RAP não é maré. Mas também não é bem marinheiro, nem de água doce. Haverá algum mistério, dê-se ainda o benefício da dúvida ao matulão. A vida tem coisas…

    O Herman gosta demasiado de humor para navegar nas águas turvas cujo fundo não se vê, e  quando vende o peixe, percebemos sempre que é da lota errada. É estranho, mas é assim. O Mr. Watch tem um dom.

    Mas nas redes existem inúmeros canais que fazem outro desenho, até o próprio ex-Gato Fedorento Tiago Dores é um exemplo – e parece bem mais honesto, intelectualmente, do que o kickboxer. E é mesmo cómico nos seus esquiços (sketches).

    Bom, mas mesmo assim, tem de vender a Prozis, mas, enfim, isso na área mais liberal é normal, não se tendo ainda arranjado outra fórmula de subsistência, já que em Portugal é difícil viver dos consumidores quando o produto cultural a consumir é de qualidade acima da média.

    Eu compro Prozis.

    Não compro nada: estava a brincar!

    Continuemos. Ao nosso Ricardo Araújo não lhe falta mais liberalismo – sendo esta uma palavra mal conotada hoje, estupidamente. Na verdade, falta-lhe é liberdade, porque somos capazes de reconhecer no cómico bastante potencial evolutivo. Noutro contexto, se o medo não fosse um dos actores principais, acho que estávamos a falar de alguém mais aberto à linguagem. 

    O medo devora a alma disse o Fassbinder. Para mim, esconde.

    O problema em Portugal éque ninguém puxa por ninguém. É um país pobre de espírito, e o humorista sofre as consequências disso.

    Quando muito, iria parar ao Porta dos Fundos, mas ainda assim, ele é melhor que o franchise brasileiro.

    Não percamos o fio à meada. RAP pouco deve ao HIP-HOP, foi comunista, e talvez ainda o seja, mas gosta de fazer publicidade ao “Capitalismo”. Comprem um telemóvel da Worten, mas dividam-no pelos cinco que vivem aí em casa. Tem é de ser na Worten, certo? Mas se todos puderem comprar um cada um, ainda melhor.

    Mesmo aos imigrantes que o Portugal do Ricardo não sabe acolher, deixando-os na rua, ele vende sem compaixão. No negócio, não há pudor ainda que as marcas vistam bandeiras coloridas.

    Para eles, tudo o que vier à rede é peixe. Mesmo que os filetes, ou os douradito do Capitão Iglo, não tenham sal. É essa a regra instalada. Comprem lá mas é uma máquina de café.

    Portugal, afinal de contas, é a sua propriedade privada. Estranho para quem gosta de dividir. O RAP e alguma esquerda indefinida que todos conhecemos gostam é de dividir o Expresso no Frutalmeidas. Talvez a única coisa que sejam capazes de dividir num mundo que já tresanda a partilha.

    Dividir para reinar – é isso!

    O comunismo afinal é um chalé. O verdadeiro comunismo, uma dádiva.

    Mas não aquele comunismo que matou Eisenstein, ou Meyerhold, passando por Maiakovski. Outro qualquer que um dia apareça, que una em vez de dividir, mas que tenha lido e assimilado Shakespeare.

    O RAP vende tudo o que puder menos a extrema-direita, isso já se percebeu.

    Um dia que tenha de entrevistar por obrigação o líder dos  “feios, porcos e maus”, terá de levar colete à prova de bala. Mas não devia ter medo de reavivar os western spaghetti, dando-lhe cor, crítica e humor. O humor devia existir para lá da política também.

    Podia aproveitar e mostrar-se culto, se o for, claro. Hoje os padrões estão muito baixos.

    Basta dizer Hemingway, e o Jornal de Letras quer logo fazer uma entrevista. Se disseres Simone de Beauvoir ficas logo lá a trabalhar… Sem salário, claro.

    Mas se tiver de acontecer por obrigação alguma entrevista à força, o RAP sairá por cima, certamente, porque jogará mais uma vez em casa.

    Aliás o RAP nunca jogou fora. Nunca esteve para levar goleadas e tanto ele como o líder tipo western spaghetti do twitter jogam no mesmo campeonato, mas em campos diferentes. Visto de um drone a voar alto, são ambos pequenos.

    E são um bocado doidos pelo Benfica. Gritam golo em uníssono.

    Visto de um drone… Da Worten, claro.

    O actor é sem dúvida inteligente para não se dar à humilhação, mas não percebeu que o futuro não está privado de história, e tanto paradoxo à flor da pele um dia rebentará. Os estilhaços cairão provavelmente em cima da festa do Avante. 

    Tal como o Benfica, o cómico é forte com os fracos e fraco com os fortes, disse-me um amigo meu que não brinca em serviço, mas é do Sporting, que há pouco tempo era fraco com os fracos.

    Como actor, RAP não é fantástico, mas usa os clichés certos – de facto, alguns foram inventados por ele e tem alguns trejeitos, mas que são quase sempre os mesmos. Não evoluem.

    Nisto, o Herman é muito mais versátil, soando a verdadeiro na sua artificialidade, no seu exagero. Mas, como a vida, ficou exagerada… Hoje, quase achamos o Herman um artista plástico. Numa época de curadores, talvez lhe saia a sorte grande.

    É inevitável a comparação com o alemão. O pai e tio deles todos.

    E para concluir, ainda que eu não seja especialista (aliás a minha única especialidades são os cannellonis à Lagareiro, confirmada pela TripAdvisor da Brandoa), aceita-se o jogo mediático do humorista, aceita-se os trejeitos em que os gozados são sempre do norte e fazem ‘ch’.

    Aceita-se o pouco ecletismo facial, os tiques na voz e as subidas de volume acompanhadas pelas caretas do costume, o bater na mesa antes de o programa começar tal qual o Jon Stewart faz, a forma como passa de um tema para o outro é pouco menos que catastrófica, e adivinhamos sempre o tom apalhaçado com uma vozinha reconhecível, sendo nestes pormenores que devia aparecer a arte. Também não é fixe o dress code, que colou como imagem de marca. Na verdadem pesa-lhe, não é humoristicamente ergonométrico. Enfim, de uma forma geral, não se devia colar tanto ao Jon Stewart, o papa da maralha do humor, que voltou, entretanto, às lides do infotainment, talvez para chatear o Trump.

    Não fica bem.

    Conclusão: Ricardo, não me conheces, mas por aqui não passa nada. Eu escrevi isto antes do jogo da Eslovénia, mas hoje, dia da publicação, até o Diogo Costa concorda comigo. Eu já te vi: eu é que sou o gajo de Alfama.  

    Ruy Otero é artista media

    Este texto foi inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    (PRIMEIRA PARTE)

    Nos tempos que correm, não é fácil falar de pessoas muito menos para dizer bem. As redes sociais deturparam as relações que já não eram famosas antes do planeta Google. 

    Nada parece credível, soa sempre a ressabiamento. “Se ele está a escrever aquilo é porque deve ter alguma coisa contra” pensarão alguns. “Se está a dizer bem, está a engraxar”.

    Não!!!

    A crispação ganhou o campeonato e qualquer opinião irá sempre parecer uma arma de guerrilha ou uma vingança. A desconfiança é o novo mapa-mundo num contexto em que os socialistas e comunistas acham que vivemos num sistema neoliberal, e os neoliberais acham que vivemos num mundo comunista ou socialista.

    É culpa das pessoas também.

    Mas vou tentar escrever sobre o Ricardo Araújo Pereira sem entrar nesse campeonato desolador.

    Às vezes pergunto-me, o que não pensaria o provocador e magnífico Thomas Bernhard acerca destes tempos extremados em que o norte anda a sul!

    Sabemos que, para invocar aquilo que de melhor os humanos têm pressupõe haver valores e, ainda para mais aqui tratando-se do cómico mais proeminente e com mais (aparente) piada do país, não se vislumbra tarefa fácil criticá-lo estando num mundo em que todas as pessoas já devem ter uma opinião generalizada, (na maior parte das vezes, aferindo-se basicamente pelo gosto, o que é normal, não se tratando de especialistas), e também porque não sou especialista em esventrar cómicos.

    A minha única especialidade são as amêijoas à Bulhão Pato (confirmado pela TripAdvisor de Chelas).

    E, tendo em conta também o difícil que é pôr as pessoas a pensar numa opinião divergente ou simplesmente diferente da sua, já formulada e reforçada pelo algoritmo humano, ainda se torna mais tramado, porque a fronteira é ténue entre a opinião e a piadola, e talvez seja essa a genialidade dos bons cómicos: fazer uma envolver-se na outra da forma mais natural possível.

    Apesar de todos os ventos contrários, sinto-me preparado para a batalha interna que aí vem ao ter de olhar para o herói. 

    Comecemos com uma nota didática.

    Os portugueses dizem comediante que vem do inglês comedian, mas eu gosto da escola francesa em que comédien não é necessariamente ser cómico. É mais vasto, é ser actor.

    É representar, e essa velha escola ainda tem glamour mesmo que a França esteja a perder o perfume. Por isso nunca me referirei a RAP como comediante. No entanto, entre a cultura estadunidense e francesa, ganha obviamente a primeira no poder de influência. No Ocidente já não se fala francês.

    Indo ao assunto:

    O entertainer tem características favoráveis: a capacidade de trabalho é um exemplo; tratar do olho cuidadosamente para, em terra de egos, continuar a ser rei será outro; não misturar a vida pública com a privada ou a capacidade de dizer os textos sem se enganar, mostrando uma boa coordenação motora e rítmica; estar no Governo Sombra (que tem outro nome) há bastante tempo e continuar a fazer rir os colegas de painel com análises sobre a actualidade, sobretudo a de manter alegre o risonho e deslumbrado moderador do programa que continua, ao fim de tantos anos, embevecido com as capacidades intelectuais do matulão, será também de sublinhar.

    Contrariamente é facto não tão abonatório, não conseguir arrasar o Presidente da República que bem merece, ainda que se perceba.

    Quem andar atento sabe que está sentado ao lado de um dos seus guardiões, o homem transparente, impoliticamente correcto: o assessor Pedro Mexia.

    O cómico, às vezes parece que chateia não chateando (técnica tradicional da sociedade do espectáculo e que vem em todos os manuais), com a cumplicidade do próprio presidente que é insuportável e que já só se contenta em testemunhar os afectos e os sentidos torpes que ainda representa. Há quem diga que está maluco. Politicamente maluco, se é que não o foi sempre, mas com a simpatia dos media em geral para quem era uma raridade em inteligência e intuição.

    Absurdo.

    RAP habita também esse programa para fazer o contraponto ao direitolas de esquerda, João Miguel, que parece apreciar a vida em todo o seu esplendor e bem na minha opinião, ainda que ligeirinho demais. Mas não resulta muito bem. Aquilo parece um coro gregoriano de meia-idade.

    Enfim, globalismo à la carte, mas disfarçado de não-sei-quê, é-nos oferecido semanalmente por estes governantes-sombra.

    Mas esta é só a minha verdade possível de um mundo onde nada é estável, no qual tudo é fluxo.

    Destaco ainda a capacidade que mostrou por ter conquistado estatuto inabalável, viajando anos a fio pelo centro mediático a ofender quem quiser, (desde que sejam os de baixo), não ficando sujeito ao ricochete, mantendo até o status sem qualquer efeito boomerang, mesmo que nada tenha a acrescentar intelectualmente digno de nota, como o próprio afirma repetidamente com muita leveza no género auto-depreciativo como mandam as regras do humor inteligente.

    Acha-se palhaço. Percebe-se a esperteza.

    Faz o trabalho sujo ao fim de semana e lava daí as suas mãos no Expresso e nos livros.

    Sujo porque foge a confrontos e bate no senhor do acordeão vezes demais.

    Puxa a corda para os dois lados e o status vai legitimando a corda.

    Parece o sobe-e-desce dos jardins infantis que estão sempre no mesmo lugar ainda que em movimento quando humanizados. 

    E não será difícil a IA inventar um clone do herói deste texto, porque o Ricardo é sempre o Ricardo. Não há um Ricardinho fora do sítio, não há um copo a mais, um texto que rasgue, nunca se viu publicamente pôr o pé fora da argola.

    Nunca não pôs a máscara. Nunca foi ofuscado pela “realidade”.

    Nunca fez humor sem querer… que eu saiba.

    O sistema gosta. É previsível.

    O sistema do humor quando pensa a sério, não gosta tanto. Os pares quando analisam são sempre fodidos, assim como o amor.

    A técnica é o azeite dos humoristas, vem sempre ao de cima, quando já não são engraçados. Em televisão há que estar sempre bem oleado… E bronzeado. A televisão tem sempre a garantia da técnica. É uma máquina desumana.

    Nisso o Herman é sábio, mas como cresceu sobretudo nos anos 80 com a CEE, perdoa-se mais. A ironia, o sarcasmo, o absurdo e a sátira penetravam melhor na realidade, não havia Internet.

    Não era humorista qualquer um. Mas também havia Badarós que inevitavelmente só podiam acabar mal.

    Os anos 80 eram o próprio ácido. As televisões alcalinavam, fazendo o contraponto.

    A MTV cresceu com o Herman. Vídeo killed The Radio Star e por isso perdoa-se o Herman e a sua lavagem de políticas cavaquistas com o Parabéns.

    Hoje o Herman pode ser impoliticamente incorrecto.

    Tiro a isso o chapéu (que não uso).

    Ele é VHS, o Gato Fedorento DVD. O Herman não precisa de menus, e como todo o bom retro resiste ao tempo. Esperemos que o Gato Fedorento também. Mas os DVDs afinal não duram assim tanto como se anunciava, estragam-se e desaparece o código sem deixar rasto, enquanto os VHS deteriorando-se, ainda têm o fantasma lá bem arrumado, aparecendo com uns saltos, chuva e umas linhas esverdeadas que até ficam bem no mundo digital. Dá excelentes remixes.

    A parte chata, é que por todas estas razões este género de pessoas como o matulão, podem representar perigo. São eles, que em sistemas mais musculados e apertados podem dar cabo dos dissidentes… Ou não.

    A História não é muda.

    Escrevem bem como se costuma dizer, e trazem credibilidade por se instalar no inconsciente colectivo a ideia de que são muito inteligentes, mas não me parece que tragam um pensamento gangster na possibilidade do pensável e risível.

    Mas neste sobe-e-desce o Ricardo, como é também esperto, sabe bem que os parques infantis são feitos por adultos. E Portugal muitas vezes parece um parque infantil cheio de carrosséis.

    Quanto às suas crónicas, não as leio assiduamente, mas do que conheço, é menino para desancar os do costume com umas piadas sempre originais e a desafiar o cliché das más políticas, coisa que poucos sabem fazer como ele.

    Imaginemos que só escrevia crónicas e artigos, certamente este texto não faria sentido.

    Mas tudo é um todo.

    Sem dúvida que agrada em geral, e para o comprovar, um dia no Frutalmeidas na Avenida de Roma, lugar de muita betalhada, ouvi uma rapariga dizer à sua mãe enquanto o lia no Expresso, que o Ricardo era muito engraçado e que era bom em tudo o que fazia, vendia bem electrodomésticos, fazia rir, gozava com os políticos e era sobretudo muito sério nas análises do quotidiano,  mas sempre com a sua graça e muita acutilância no humor de observação. A mãe enquanto lia outra parte do Expresso, confirmava a opinião e ainda acrescentava que gostava muito dos Gato Fedorento e que revolucionaram o humor em Portugal, rematando que escrevia muito bem. Acrescentou ainda que todas as mães do Frutalmeidas gostavam de ter um genro assim. Enfim, acordar e ter logo, uma manhã cheia de superlativos, só naquele lugar. Ali o mundo funciona regado a fruta, mas funciona, ainda se vislumbrando tenuemente o charme discreto da burguesia.

    No Frutalmeidas é muito comum dividir-se o Expresso ao sábado de manhã enquanto se bebe um delicioso sumo e se come um pastel de massa tenra.

    Concluí então que o Araújo era aquilo, um sumo fresquinho com fruta misturada e um pastel de massa tenra divinal, mas que deixa as suas inevitáveis consequências no estômago.

    Ele tem a cara da Avenida de Roma. Ele é o beto perfeito. É como o antigo cinema Londres que também estava localizado nessa avenida, onde os filmes que lá passavam não eram os melhores, entretinham, ganhavam o seu Oscar de vez em quando, mas não chateavam ninguém. Eram sempre para toda a família. Vinham etiquetados muitas vezes de comédias dramáticas e tanto podiam ser americanas como francesas.

    De quando em vez, lá aparecia um filme exótico para desenjoar.

    Será a vida do RAP assim?

    Hoje o Cinema Londres é uma loja do chinês.

    Um amigo reforça que ele é como o Monte Velho, faça sol ou faça chuva é sempre vinho da mesma uva.

    Neste tempo desolador e delirante, a desobediência quer dizer obediência, desde que disfarçada com humor.

    Quem sabe, sabe.

    E o rapaz, observa muito bem como realçou a rapariga do sumo de ananás com pitaia à mãe. O que o RAP observa os outros alcançam. É certo, mas o humor é muito mais que isso. O Seinfeld, por exemplo tem alma e podemos ver, sentir, cheirar, abominar Nova Iorque num simples diálogo, para além de fazer rir, mesmo que o estúdio da série Seinfeld seja em L.A.

    Assim como em Larry David que com o humor negro nos faz apreciar a vida.

    Julgo que às vezes os humoristas são mais poetas que cómicos.

    Mas no Ricardo, instalou-se uma vulgar loja do chinês e podemos sentir a falsa porcelana, aquela que o Herman destruía com tiros.

    O Herman deve andar desejoso de partir o RAP. 

    Mas apesar disto tudo não estamos a falar aqui das ordinarices do Fernando Rocha que já nem é ser cancelado, é ter-se tornado na própria cancela e esperar que os automóveis eléctricos que vêm da esquerda o abalroem sem dó.

    Para quem é branco, hétero e do PCP (ou foi), o cómico de Alfragide tem-se safado bem. Teve de encontrar certamente muitos artefactos retóricos e linguísticos para passar pelos pingos da chuva que vai escasseando por aqui pela Península. Mas nunca choveu tanto como neste ano.

    Por falar em sol, o RAP sabe o que é um solário, pelo menos parece sempre bronzeado de Inverno.

    Um solário, vistas bem as coisas, é uma boa imagem do actual humor mainstream. Queima, mas não torra, aquece, mas não consola, pinta, mas não borra.

    Non sense.

    É certo que o clima tem direito ao seu non sense, que também sofre de alterações.

    skeches absurdos dos Monty Phyton que hoje parecem realismo, por exemplo.

    Este humorista embora seja um profissional da opinião, parece não a ter quando é preciso. Não basta ser Charlie de vez em quando.

     

    Queriam comédia para falar de comédia?

    Para quem não sabe, oitenta por cento tem a ver com a técnica. Há livros no mercado e pdfs na Net a ensinar a ser-se um cómico. Há quem diga que é noventa por cento. Por isso o GPT pode hoje substituir uma parte dos cómicos na boa. O raio do algoritmo também já sabe dizer piadas.

    Quero lá saber. Para mim ou tem piada ou não tem. Não sou especialista. A minha única especialidade é editar casamentos no Premiére.

    O cérebro pode ser um órgão sempre aberto a correntes de ar, mas o RAP  vai ficando preso ao tempo, e depois não há vacina que o salve. Nem o fantástico Herman, o actor do big-bang televisivo português, com a sua terapia germânica lhe valeria na luta de voltar a apanhar o transporte.

    Mas não sei se o rapaz dos Gato Fedorento alguma vez quis apanhar o comboio, não deixando, porém, de ser verdade que em tempos velozes, o TGV passa a grande velocidade. E depois com o passar dos anos vem o comboio do esquecimento. Como o Herman sabia ser ácido e alcalino e nos seus piores momentos, os dois ao mesmo tempo, nunca deixou de ter o bilhete em dia.

    O Humor é uma arte para alguns, porque pode dar-nos a radiografia do Tempo, mas a cores e invertida.

    As Tragédias nos gregos e na sua origem, tornavam as personagens melhores que aquilo que eram na verdade. 

    A Comédia, tornava-as piores.

    Imagino que o Ricardo tenha lido os gregos e deve ser essa a sua tragédia interior.

    O humor pode simplesmente ser um trabalho sobre a Linguagem.

    O Gato Fedorento fazia-o bastantes vezes, uma vez que consumiu Monty Phyton ao pequeno almoço e gostou do que não viu.

    Fazer rir dá trabalho.

    Fazer rir de quem trabalha, não dá assim tanto porque uma pessoa que trabalha expõe-se muito. O trabalho não liberta como escreviam os nazis à porta de Auschwitz. O trabalho dá trabalho.

    Contudo há excepções.

    E o Araújo Pereira também dá trabalho aos argumentistas por exemplo, aos técnicos, aos políticos, mantendo a máquina em ebulição,  que assim vai lavando mais branco como um bom detergente.

    Ter um humorista do seu lado é ouro para a política.

    Aos humoristas e aos jornalistas mainstream paga-se para que não escrevam. É uma indústria, um enlatado com as próprias gargalhadas já incluídas. Apanha-se as canas e faz-se a festa e como se vê, os políticos andam sempre por lá. O guião é sempre o mesmo.

    Na indústria do humor nem sempre há trabalho porque às vezes a realidade já tem humor que chegue.

    Na pandemia não houve muito, nem realidade, nem humor, nem trabalho e poucos se queixaram.

    O raio do morcego não devia ter comido o pangolim. 

    Há assuntos interditos, por isso talvez não o vemos crescer. Mas crescer para onde?

    Perguntaria João César Monteiro.

    Nos jornais há um vazio critico ao qual já nos habituámos. Os jornais mataram os jornais.

    Um haraquíri pouco simpático com consequências avassaladoras. Um tiro na própria equipa, uma dentada no próprio cão.

    Mas entre Joanas Marques e Araújos Pereiras, a diferença ainda assim é grande. Os Araújos têm cultura. As Joanas têm receitas.

    Haters há muitos, assim como os chapéus que hoje os humoristas têm de usar para se protegerem do sol que quando nasce afinal já não é para todes.

    Mas há solários em que só se queima quem quer.

    O Ricky Gervais é muito mais branco, muito mais hétero e muito mais cómico e quando se queima, queima-se nos Golden Globe. 

    O Ricardo queima-se na SIC do Balsemão.

    Isto não é dizer mal. 

    Tragam o Halibute.   

    (CONTINUA)

    Este texto é inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

    Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

    Fargo é uma série televisiva com poucos anos, mas é também o título de um filme dos irmãos Coen, realizado em 1996.

    Um grande objecto cinematográfico que tem, como protagonistas, as personagens mais estúpidas do cinema, pelo menos em filmes sérios, ainda que com humor negro entrelaçado lá pelo meio – marca dos realizadores.

    Para mim, claro.

    Não pretendo ser absoluto e muito menos totalitário nas ideias, como alguns que por aí andam na política, e, sobretudo, na horticultura, mas isso é sumo para outro copo… sustentável, claro.

    Nesta fita, dois criminosos de terceira linha, e não muito credíveis, são contratados para raptar a mulher de um vendedor de automóveis.

    Acontece que quem os contrata é o próprio vendedor de automóveis que anda com problemas financeiros, fruto de esquemas trafulhas não muito claros para o espectador, para assim receber, através de um resgate, o dinheiro que será pago pelo pai da vítima, o seu sogro e dono do stand onde o contratante trabalha.

    O homem de 70 anos é relativamente rico, gosta muito da filha e, aparentemente, fará tudo por ela. Pelo menos, na cabeça do vendedor. A ideia seria, depois, o marido dividir o dinheiro com os criminosos contratados, e voltaria tudo ao normal.

    Como se nos filmes dos irmãos houvesse normalidade.

    Se até a própria realidade já não é normal quanto mais o cinema em Hollywood…

    Mas corre tudo mal, claro.

    O plano absurdo é sabotado pelo próprio cinema, como mandam as regras, e por isso entre malas de dinheiro, neve, sangue, sangue na neve, formas de falar características da região saloia onde se abusa do YA, mentiras e estupidezes relativamente evidentes, com mortes à mistura, a trama vai aparecendo, por sinal… Bastante tramada. 

    A personagem principal é uma xerife, gravida de vários meses, a quem foi incumbida a tarefa de capturar os raptores e de resolver os três assassinatos que, entretanto, se deram na sua jurisdição por causa do rapto mal engendrado.

    Como se sabe, os americanos não são conhecidos por serem muito espertos nem bons a raptar.

    Não querendo ser spoiler, creio que este resumo, sobretudo para quem conhece os filmes dos irmãos Coen, e que por sinal são bastante populares, será claro – e perceberá o alcance da história, para assim nos aventurarmos nas metáforas e analogias com a realidade e as sinopses das comédias negras portuguesas, travestidas de crime real ou não.

    Como se o Direito ainda tivesse os seus direitos. Quem não conhece o filme, que o veja. É uma ordem.

    Alguma semelhança com a realidade?

    Toda.

    Podemos hoje questionar a realidade e as suas diferentes facetas. Mas isso é vaso para outras flores – ou para outros canteiros, como dizem os chauvinistas dos franceses.

    Tudo isto a pretexto, na verdade, do que tenho assistido pela TV ao ‘caso de polícia do momento’, e por isso tirei  alguns apontamentos para um filme digno dos Coen. Não é uma sinopse, nem mesmo uma ideia. Acrescento, no entanto, alguns comentários e limito-me a reproduzir a trama de forma tão atabalhoada quanto a própria história.

    Zé Vieira é conhecido por ser uma das, ou um dos, principais socialites da fauna portuguesa. Os media em geral deram-lhe sempre muita atenção, convidando-o muitas vezes para animar canais televisivos, pouco importando a credibilidade, destacando-se mais o palhaço para animar o circo onde os trapezistas de serviço até agora se têm aguentado.

    Ao menos este não escondia o nariz.

    Chegou mesmo a pulular por Quintas das Celebridades e programas do género. Nada contra.

    É casado com uma senhora agora com 95 anos, de nacionalidade estadunidense, e tem um enteado de 77 anos que vive em Miami num prédio que tem como vizinho um dos filhos de Donald Trump. O enteado odeia-o e, numa fotografia que circula, estranhamente parece-se com o Cavaco Silva.

    Qualquer semelhança com a realidade será, portanto, puro entretenimento.

    Zé tem um amigo chamado Pedro, que também já andou por Big Brothers e coisas do estilo. Tem um ar pouco credível, mas simpático, não deixando de parecer um pouco tonto.

    Por sua vez, Maya é uma senhora bastante duvidosa no que toca ao conhecimento de astrologia – e, já agora, no que toca a outras vertentes, como por exemplo ser apresentadora de programas cor-de-rosa na CMTV. Bom, também como se sabe, os portugueses não são conhecidos por serem grandes apresentadores de televisão, assim como os espanhóis não são por serem apreciadores de caracóis. Já os franceses matam-se por eles. Ah, e anda por aí, de igual modo, que os turcos… não!, desses não convém falar…

    Voltemos a Maya. Uns tempos antes do episódio que levou a Lady B. para o hospital por supostamente ter sido empurrada pelo marido Zé, afectando o fémur, Maya fez grandes elogios no seu programa colorido ao ex-travesti por ser um grande cuidador e sobretudo um excelente marido.

    E também não é verdade que a violência doméstica quase sempre se pratica na obscuridade? E não é um facto que a descoberta da identidade dos grandes serial killers sempre se mostra uma surpresa para os vizinhos e até para a família, quando estes são apanhados?

    Nunca se vê em documentários os conhecidos do criminoso a dizer que se via logo que era ele, ou sempre desconfiei, aqueles blazers não me enganavam, ou ainda que o carrasco tinha mesmo cara de serial killer.

    Nesta história parece haver também bastante testosterona tóxica por parte dos protagonistas – Zé e Pedro – que até são vistos num vídeo caseiro a darem estaladas e murros um ao outro. Ou coisa parecida.

    Mas também não deixa de ser verdade que noutro vídeo filmado pelos próprios, estão numa cama aos beijos e abraços ainda que sem erotismo. Parece…

    Numa das noites da Maya, até chegámos a ver ao mesmo tempo, no ecrã, os dois vídeos caseiros, um de cada lado, com os comentadores cor-de-rosa ao meio. Na esquerda dão estalos, na direita, beijos.

    Genial! O paradoxo da condição humana.

    Zé garante que nasceu homem e morrerá homem, e que é heterossexual. Um paradoxo interessante para explorar. Ou não. Pode sempre haver dias em que ele se sentirá o que quiser sentir-se. Afinal, no + do LGBTQIA+ cabe + do que o L, o G, o B, o T, o Q, o I, o A e o próprio +. Um looping infinito que nos proporcionam estes interessantes tempos do wokismo.

    Nestes programas são sempre usados muitos superlativos e há transgressão politicamente incorrecta.

    No meio de tanto confetti e lantejoula, também há verdade, e isso faz-nos mergulhar num mundo que se esforça para se afastar de clichés, os grandes inimigos da complexidade. Mas quase sempre não o conseguem.

    Não é fácil. E exige arte. 

    A marca para a qual Zé estava a trabalhar, chamada Feira dos Sofás, lançou entretanto um comunicado a anuncia o fim da parceria com o socialite.

    Num dos vídeos feitos para a marca, Zé, apontando para um sofá no qual se irá sentar, diz para o “empregado” que o móvel é pindérico, mas depois senta-se e fica tremendamente confortável, mandando de seguida o “empregado” comprar o sofá.

    Tudo filmado na vertical e com muita chunguice. Eu não compraria um sofá daqueles. Horrível, é – mas confortável, segundo o reclame.

    Nisto, Maya será importante porque é através do seu programa nocturno que vamos conhecendo os melhores ingredientes desta historieta.

    Estes ingredientes, com aparentes contradições e muito suspense, poderão apimentar o filme, caso seja esse o objectivo. E sobretudo caso ainda haja espaço para a continuidade do Cinema com c grande também, já que, com tanta história tridimensional e tanta auto-representação que anda por aí, uma pessoa já nem sabe. 

    Se a vida é um filme, como dizem, com o Zé são dois.

    Mas, a ser feito, será um meta-filme, de forma que o público se percepcione na realidade, mas dentro de uma sala de cinema.

    Giro, giro, seria o Zé e o Pedro aparecerem de rompante num dos cinemas,  no meio de uma sessão, plateia adentro a fazer das suas. Ou estalos, ou beijos.

    Ou não… Até poderiam ser hologramas.

    Mas, seja como for, possivelmente o público já não se surpreenderia.

    Público que, aliás, neste caso também faz parte do guião. As pessoas, porque não vamos meter aqui o homónimo jornal para não tornar isto ainda mais degradante.

    (ah!, e caso o filme seja realizado, e se um dia passar num cinema em Budapeste, não se admirem se os húngaros não o entenderem, pois, os húngaros são conhecidos por não perceberem nada de cinema).

    Mas isto ainda não terminou, até porque é preciso acrescentar ao guião que o Pedro arrendou a casa à Betty para depois a poder subarrendar ao Zé para aí fazer os seus “espectáculos” de cabaret.

    Como se sabe, em tempos foi Zé a Tatiana Romanova, e esteve perdidamente apaixonado por Pedro, segundo Pedro, que parece ter mau carácter – e, nisto, Zé sente-se vítima de uma cabala orquestrada pela Chanel. 

    No meio disto, o cabeleireiro de Zé é dos poucos amigos que dão a cara nos media, enquanto lhe continua a arranjar o cabelo, não se sabendo, porém, se agora é uma borla, já que a imprensa afirma que a ex-drag queen está sem dinheiro.  

    As TVs vão dando cobertura a todas estas informações oferecidas pelos próprios protagonistas, através de vídeos para as redes, e mesmo de telefonemas gravados pelos próprios.

    As TVs deverão, aliás, funcionar como convém: promovendo primeiro para matando depois, e fazer isto como se não tivessem culpa nenhuma. Para dar força a esta ideia. dever-se-á dar relevo à história do dentista da TVI, que está a ser investigado por uma jornalista da CMTV que foi despedida da TVI. Talvez a jornalista o faça também por vingança pessoal, quem sabe…

    Pensando bem, a ser feito um filme ao estilo dos Coen, se estes nos derem os direitos, deverá haver um capítulo dedicado a este dentista sádico.

    Para quem estiver confuso por não ter visto as reportagens, este dentista terá chegado, dizem as supostas vítimas, a arrancar os dentes todos da boca sem anestesia de umas quantas pessoas que, entretanto, fizeram queixa às autoridades.

    Isto surge aqui porque estas reportagens da CMTV têm potencial e estão a coincidir no tempo com a história do famoso socialite e do Pedro. Parece mais um daqueles casos de ‘o que interesssa é aparecer’. Nunca percebi o exibicionismo e a necessidade de que falem de nós, nem que seja para dizer bem…

    Sou argumentista e não dentista – e por isso, junto histórias; não separo dentes de gengivas.

    Portanto, chegados aqui, com a sociopatia aparente do Pedro, o narcisismo estético do Zé e o sadismo do dentista, sempre coadjuvados com os programas das Mayas, teremos um filme profícuo de neurose contemporânea dando cabo de vez da figura do Direito e da possibilidade desse estandarte da democracia existir. E sei qualquer ordem a pôr cobro na desordem.

    Talvez, neste caso, por causa de tantos policias e ladrões a pulularem permanentemente pelos canais televisivos, em programas de manhã, à tarde e à noite.

    Aliás, quem não se lembra também do ex-agente da Judiciária que veio a ser vice presidente do Sporting, mas que também depois tinha um gangue que assaltava casas de idosas em Cascais? Foi comentador muito tempo.

    E eu próprio estou a ficar baralhado já.

    E outros também. Os protagonistas desta história, por exemplo. O Zé e o Pedro viram certamente o Truman Show e baralharam-se.

    Depois veio o Matrix, o 11 de setembro, o século XXI, e as grandes conspirações tipo Zeitgeist, mais tarde as extremas-direitas meteram a cereja no topo do bolo da discórdia. Agora, aqui estamos cheios de fulgor para ser os actores e os espectadores ao mesmo tempo nesta novela em tempo real. E baralhados.

    Bom, mas entretanto, Lady B. pede o divórcio e deixa a entender que quer recomeçar a vida, dito por um dos comentadores que sempre que se refere a Zé e a Pedro, chama-lhes “os artistas”

    (Aqui há um pequeno exagero de humor negro já que o comentador não disse que a senhora queria recomeçar a sua vida, mas fica a nota do autor com a sua liberdade para o sarcasmo).

    Durante as primeiras semanas, uma nata de comentadores revisteiros do jet-set que aparentemente conheciam os confins do casal atípico, vão criticando a neurose do momento, como se eles fossem os médicos e psicólogos de serviço no ambiente asséptico dos estúdios em croma.

    Não deixam de dizer o que pensam nesses estúdios-clínica.

    Pelo menos, parece haver uma certa liberdade para isso.

    Poderemos depreender que Pedro e Zé tinham uma espécie de plano para ficar com a casa em Sintra, um palacete, segundo Pedro.

    Poderá ser este o clímax.

    A verdade, no entanto, quanto a esta hipótese ainda está por apurar.

    Saiu, entretanto, uma notícia que definitivamente sugere mesmo que Zé empurrou Lady B. pelas escadas do hotel.

    Os médicos confirmam que poderá haver crime público e a queixa é apresentada.

    Zé passa uma noite detido.

    A prisão não é desenhada por Santiago Calatrava.

    Nos media, em geral, há sempre um talvez definitivo.

    Nunca se sabe. É talvez essa a fórmula de ainda manterem alguma audiência. 

    Ficamos a saber também que o idoso e enteado de Zé, também sofre de problemas de saúde, justificando-se assim a sua não vinda para acompanhar a mãe no hospital.

    Esperem! Afinal, veio. Chegou a Lisboa, com os competentes jornalistas a cobrirem o acontecimento.

    Entretanto saiu uma lista dada por Lady B. indicando quem a pode visitar no Hospital.

    Gui, o filho de Zé e enteado de Lady B., não é um dos felizes contemplados dessa lista. Porém, mais tarde, num telefonema exibido pela CMTV, Pedro insta Zé a falar com o filho para ir ao hospital propor a compra da mansão por 700 mil euros, sendo que metade ficaria para o Zé.

    Imaginamos que a mansão valha milhões.

    Zé diz, contudo, que não tem direito a essa metade devido à separação de bens.

    Pedro cai em si e responde:

    -Pois é, caralho. (Longa pausa).  Mas dou-te 30 mil.

    Corte.

    Aqui morro a rir como se tivesse mesmo a ver um filme dos bro Coen.

    A pausa matou-me.

    Surge ainda a notícia que Zé deverá estar a mais de um quilómetro da mulher, ou futura ex-mulher, através do controlo de pulseira electrónica

    Por meio de telefonemas dos protagonistas, vamos percebendo a estupidez dos planos, tipo Fargo.

    Quem manda para lá as gravações aparentemente é o próprio Zé, queimando-se a toda a hora por falar e aparecer demais. Segundo os jornalistas, devia era estar calado.

    Mas queimar-se em televisão não parece ser assim tão mau. Até é bom, digo eu.

    Pelo menos para o programa.

    Como se trata de violência doméstica, Pedro faz um apelo nas redes para comprarem algumas t-shirts originais desenhadas pelo próprio, embora  confesse não ser designer, e diz que o dinheiro irá para os cofres de várias instituições que acodem vítimas deste tipo de crime.

    Ele próprio irá comprar uma a si mesmo.

    Pouco tempo depois, as instituições negam o acordo.

    Pelos vistos, o número da conta é a do próprio Pedro. A forma de pagamento seria através de PayPal.

    Horas depois, é dito nas notícias que Pedro já foi agressor num caso que chegou a tribunal de violência doméstica e apanhou uma pena suspensa, por ameaçar de morte o seu então marido.

    Ainda querem melhor do que isto?!

    Um dia depois, o site das t-shirts sai de cena. Error 404.

    Tchau t-shirts.

    Indignados, os comentadores massacram Pedro, dando a entender que não está bem mentalmente.

    As t-shirts têm a imagem de Zé, entre outras – e são horríveis. O mau gosto vem ao de cima. Mais uma vez.

    Pedro ainda entrevista uma antiga empregada do casal que confessa que, depois de alguns jantares em Sintra, iam todos para o quarto do casal comprar jóias por baixo da mesa, sem recibos.

    A empregada, porém, jura que as jóias eram junk

    Entretanto, a CMTV passa imagens antigas de Zé no sentido de contextualizar o seu passado criminoso, mostrando-o no aeroporto, anos atrás, a filmar-se a si mesmo depois de roubar um perfume, negando o roubo, e afirmando que a rapariga-segurança que vai aparecendo em fundo, com o ar mais humilde do mundo, só quer é ter os seus 15 minutos de fama.  A rapariga parece assustadíssima. Só fez o seu trabalho.

    Ficamos a saber que o roubo aconteceu mesmo, e Zé Vieira acabou a fazer trabalho comunitário e pagou um multa.

    E nós que pensávamos que todo o trabalho do Zé já era comunitário!…

    Depois de Pedro confessar novamente, e em directo, que havia um plano sinistro de Zé para ambos sacarem o palacete assim que Lady B. morresse, ficamos com a certeza de que qualquer semelhança com um filme dos Coen é puro cinema.

    A minha proposta final, portanto: peguemos nestes apontamentos que compilei (haverá com o tempo muito mais, à velocidade que os protagonistas vão abrindo a boca), e tentemos isto bem vendidinho aos irmãos Coen, para que façam um brilharete em Cannes.

    Mas já sei que não vai resultar. Os portugueses são conhecidos por não saberem vender guiões a Hollywood.

    Quem é bom nisso são os turcos. Ou os indianos…

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • Tabaco e Revolução

    Tabaco e Revolução

    Leio com alguma surpresa uma notícia que dá conta da nova lei do tabaco em Inglaterra. Uma espécie de lei gasosa, se pensarmos na lei seca que se impôs nos Estados Unidos de 1920 a 1933, que proibia o acesso ao álcool.

    A notícia acabava assim: A idade a partir da qual as pessoas podem comprar cigarros e tabaco na Inglaterra deve aumentar anualmente, acrescentando um ano de idade a cada período, para que em algum momento ninguém possa comprar, afirmou o primeiro-ministro Rishi Sunak.

    Mas ao mesmo tempo passavam na televisão imagens do período do 25 de Abril de 1974, em que se fumava muito e a palavra liberdade era exaustivamente proferida.

    E pensei sobre o assunto.

    Há um filme admirável de Alain Resnais chamado Smoking/No smoking que na realidade se trata de um díptico e para o qual será preciso prestar alguma atenção. Também há paisagens e automóveis admiráveis, mas não são assunto para este texto, qual é o problema? Vive-se uma época de crispação. Qual é o problema?

    Qualquer dia há para aí uma guerra. 

    Estava a brincar (ou mesmo a jogar), já que parece cada vez mais que estamos dentro do Big Brother e a diferença entre jogo e não-jogo está a ficar aceleradamente mais ténue, tipo blade runner, em que no filme com o mesmo nome, não era fácil perceber quem era humano e quem não era. Qual é o problema? Vive-se uma época de crispação.

    Ah, já disse!

    Accionemos o isqueiro e vamos ao que nos traz aqui.

    Ora bem, fumar ou não fumar um cigarro poderá fazer toda a diferença para a narrativa daquele filme feito a partir de uma peça de teatro intitulada Intimate Exchanges de Alan Ayckbourn. Este princípio dá para muitas situações, tipo teoria do caos que esteve muito em voga nos anos 90.

    Enfim, desde que remetesse para acções banais, mas que pudessem alterar o futuro, dependendo de fazer-se uma coisa ou outra. O exemplo mais comum era o de que o bater de asas de uma simples borboleta em Nova Iorque poderia influenciar o curso natural das coisas e, assim talvez provocar um tufão do outro lado do mundo. Neste caso, fumar ou não fumar um cigarro (acção que não pratico neste preciso momento), altera o curso dos acontecimentos no filme. Se eu fosse agora o comentador Daniel Oliveira diria já lá vou. Mas felizmente não sou esse comentador, mas já lá vou à mesma, pronto!

    Qual é o problema?

    Ao rever as eternas imagens da Revolução dos Cravos que todos os anos alimentam as televisões nesta época primaveril, percebemos que os actores da famosa e libertária operação estão muitas vezes a fumar, assim como os jornalistas de serviço.

    Parece mentira, mas as imagens mostram apresentadores de telejornal a fumar em directo e durante a emissão. Fialho Gouveia e Joaquim Letria, eram exemplo disso, mas não propriamente nas emissões desse dia de 25 de Abril. Torna-se muito claro a apoteose fumadora no dia das eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras em democracia, algum tempo depois do dia 25 de Abril, dia fundamental para a esquerda, já que para uma certa direita será o dia 25 de novembro. Têm o número em comum. Já não é mau.

    Epá, mas tanto à direita como à esquerda ou ao centro, fumava-se que se fartava. Também é certo que nem todos o faziam, embora fosse recorrente fumar-se para cima de inocentes sem que isso fosse um grande problema. Havia poucos ou nenhum estudo que fizesse disparar o alerta tabágico. Ainda hoje me pergunto, como é que foi possível viver tempos sem estudos a toda a hora, sem especialistas e comentadores a emitir opinião a todos os minutos. E já agora, muitos não acreditam que chegou a haver vida sem internet…

    Bolas!

    Tenho mesmo a certeza que os militares, para discutirem as estratégias a adoptar para tomar Lisboa, ostentavam sempre um cigarro ao canto da boca. Provavelmente SG Filtro, ou SG Gigante, talvez os mais cowboys ainda fumassem o Português Suave sem filtro inspirando-se em John Wayne e nas suas coboiadas musculadas, mas que por sinal era um facho de primeira, segundo a minha tia que era comunista e uma excelente pessoa.

    A Tabaqueira ganhou muito com a revolução. Os nervos andavam à flor da pele e é do senso comum que o tabaco ajuda a descomprimir. Pareciam dragões.

    “Epá capitão apague lá isso que ainda fuma o filtro”, parece que estou a ouvir isto no meio de uma névoa de fumo na cantina dos militares. Ouço também “Ò Fernandes vá ali à papelaria e traga-me três maços de Ventil”. O Fernandes seria o soldado raso de serviço que também aproveitava e comprava um maço de Três Vintes para ele. Ou ainda, “O Antunes fuma que nem um cavalo”. “ Mas os cavalos não fumam, ò meu major!” – diria um cabo menos adepto de metáforas.

    No ano de 74 também revejo com prazer imagens em que o futebolista Johan Cruijff durante o intervalo de um jogo, enquanto ajusta as meias do equipamento da selecção da Laranja Mecânica, tem um cigarro ao canto da boca.

    Nessa altura não proliferavam imagens de doenças nos maços, e até os carros da Fórmula Um tinham as marcas estampadas na carroçaria, já para não falar do Marlboro-man e no reclame publicitário muito popular, em que um homem a cavalo fumava calmamente um cigarro numa ardente paisagem texana. Acho que o cavalo também dava umas passas. Mais tarde dizem que o Marlboro-man morreu de cancro do pulmão e processou a marca. Mas pode não ser verdade, pode mesmo ter sido inventado pelo Trump.

    Eu era muito pequeno e ao ver esses filmes, queria fumar quando fosse grande. Achava que todos os homens fumavam e as mulheres que o faziam, estranhamente tornavam-se sensuais. Ficava a olhar para elas fixamente durante bastante tempo à espera de levar com uma baforada na cara, coisas de puto e de filmes italianos que muito nos influenciavam nessa época.

    Entre epás e muita fumarada, assim se preparou o saudoso ataque a Lisboa, disso não haja dúvidas.

    Fiquei há pouco tempo a saber que a operação teria de acontecer a uma terça, quarta ou quinta porque nos outros dias havia pouca gente nos quartéis, dito pelo próprio Otelo Saraiva de Carvalho numa entrevista dada ao Frederico Duarte Carvalho, no meio de pás e baforadas, imagino.

    O fim de semana era sagrado para os militares e nem mesmo uma perspectiva de golpe de Estado com uma putativa mudança de regime para melhor, abalaria o religioso fim de semana.

    O cravo veio depois e não saiu da cabeça de nenhum militar, ou actor principal desse filme. Também é curioso ver nessas mesmas imagens na sua maioria, que os cravos são cinzentos já que era ainda um mundo a preto e branco. Paulatinamente estamos a voltar a esse mundo, mas com cores garridas a 4K, o que vai dar ao mesmo.

    Está assim contada a história do cravo na Wikipédia:

    Celeste Caeiro, (…) transportava pelas ruas um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Um soldado pediu-lhe um cigarro, mas ela só tinha flores e decidiu então iniciar a distribuição dos cravos aos soldados, que logo os colocaram nos canos das suas armas. Mais tarde as floristas da Baixa continuaram a replicar o gesto (…).

    Claro que só podia ter começado com um cigarro, melhor ainda, com a falta dele. Para fazer raccord e uma analogia com o filme de Resnais e indo lá (tipo Daniel Oliveira como prometido), aqui poderíamos questionar o símbolo do cravo, caso o soldado não fosse fumador. Teria a dona Celeste posto à mesma o cravo na espingarda do soldado desconhecido caso ele não lhe tivesse cravado um cigarro? E se levasse com ela algodão doce em vez de uma flor e achasse que isso ficava bem dentro da arma, ainda que o soldado pedisse à mesma um cigarro?

    Mais tarde os feirantes da Baixa continuaram a replicar o gesto, poderia ser esta a frase da Wikipédia hoje?

    Nunca o saberemos, no entanto, parece que o soldado esqueceu-se de levar tabaco para a revolução. Talvez o stress associado ao momento tivesse tido consequências na sua memória e capacidade de concentração ou então já tinha fumado que nem um cavalo nesse dia e acabado o maço sem se aperceber, ou então ainda podia tratar-se de um fumador casual que apenas lhe apeteceu um cigarro.

    Dizem mesmo que houve um capitão que parou o tanque e foi comprar tabaco a uma papelaria que se mantinha aberta, não fosse o dia terminar só dias depois.

    Esta época teve momentos muito particulares. Para além de todos os benefícios políticos e democráticos que nos trouxe, também nos presenteou com uma espontaneidade que andava esquecida, o que é libertador também.

    Não deixo de rir quando vejo o Pinheiro de Azevedo meses depois a dizer que já foi raptado um par de vezes e que não gosta, é chato. Já para não falar do “é só fumaça”, também proferido pelo mesmo ao microfone na Praça do Comércio, o que faz um raccord linguístico perfeito com o suave aroma a tabaco que o texto deve ter.

    Outro político importante, noutro documentário sobre o verão quente, contou que uns quantos pararam em frente à casa dele às tantas da manhã na tentativa de o aliciarem a dar um golpe de Estado. Estavam num mini, e ainda cabia mais um, ao que o político respondeu dizendo para irem para casa e fazerem o golpe de Estado noutra altura que àquela hora era muito tarde. O político imagino que estivesse de pijama. Conseguimos sem grande imaginação ver um cigarro em cada um dos loucos revolucionários que estavam no Austin. Eu até consigo ver o carro com um Definitivos no tubo de escape tal a voragem fumadora da época. Mas as coisas mudam, como dizem os mafiosos do David Mamet.

    Não estamos a imaginar os capitães a irem à janela fumar um cigarrinho enquanto tratam da logística dos tanques e dos chaimites. “Ò capitão não pode fumar aqui na sala, vamos até à varanda. Isso faz mal à saúde e já agora não chame mariquinhas ao cabo Nelson só porque não quer ir à frente do pelotão. O capitão sabe que ainda pode levar um processo em cima e isso era chato”. Isto, se fosse nos dias de hoje e houvesse revoluções dos cravos mesmo com algodão doce no seu lugar. 

    Claro que aqui o termo não tem a ver com questões sexuais mas não nos esqueçamos da conhecida homofobia em Ché Guevara e em Fidel por exemplo, outros icónicos grandes fumadores, mesmo que isso chateie muita gente, ou mesmo a homofobia nos albaneses de Enver Hoxha que a UDP tanto gostava, não tolerando nada aproximações masculinas corporais que não seriam certamente para jogar basquete em Tirana.

    Mas eram outros tempos em que não interessava muito o politicamente correcto e andavam mais preocupados com o revolucionariamente correcto, o que faz sentido e merece já uma pausa para um cigarro ali à janela, porque eu não me deixo fumar aqui dentro de casa. Isto agora era assim, não?

    A autocensura quando nasce é para todos, assim como a democracia.

    Enquanto fumava, ia pensando em como seria uma revolução hoje, com telemóveis e cigarros electrónicos a organizarem-nos a vida e o vício. Não consigo imaginar o Otelo a carregar um cigarro. Um chaimite hoje até poderia ser conduzido por controle remoto através do Bluetooth e andar a lítio, haveriam soldados vegans certamente que não aceitariam uma sandes de mortadela dada pelo povo.

    Cheguei a ver o protótipo de uma bala que mata como as outras, mas é ecológica e não polui através de um processo químico. Fica dentro do cadáver, mas evapora-se.

    Claro que isto não é nenhuma crítica, é apenas o zeitgeist a que temos direito.

    Mas não é fácil imaginar uma revolução de rua com kit completo, portanto com golpe de Estado e mudança de paradigma como objectivo final.

    Os satélites vêm tudo, e não é fácil quitar telemóveis sem a ajuda de hackers que andam caríssimos, embora nunca tenha havido tantas guerras por aí, isto só para invocar o sempre bem vindo paradoxo que dá cabo das pessoas em geral.

    Mas este texto é sobre fumo, charutos cubanos e cigarros, e não paradoxos fumegantes e incendiários.

    Um amigo meu, alertou-me para o facto de hoje se limparem digitalmente fotografias, subtraindo os cigarros a escritores e artistas por exemplo.

    Irão fazer isso um dia, aos nossos militares? Fico a pensar. No caso deles era melhor limparem logo o pulmão

    Uma amiga minha há uns tempos no meio de uma cigarrada de enrolar, disse que isto era preciso era mais dois 25 de Abril, e um taxista enquanto calmamente fumava um Camel, parado num semáforo confessou-me que para ele isto só ia lá com doze Salazares. O “isto “ referindo-se ao regime, foi utilizado por ambos.

    O que mais me impressiona nestas conversas hiperbólicas, é o uso dos números. Porquê dois 25 de Abril e doze Salazares? 

    Percebo que doze 25 de Abril, seria demais. Ou que dois Salazares para o taxista, também seriam poucos, uma vez que hoje há mais manias nas pessoas. Não tendo no entanto a minha amiga especificado se tinham de ser as duas na mesma data ou ao mesmo tempo, ou se seriam uma de cada vez, no sentido de a segunda colmatar a primeira. querendo com isso acentuar a intensidade.

    E se fosse em junho? Ainda lhe perguntei, deixando-a pensativa. Respondeu-me que isso não importava desde que fosse um 25 de Abril a sério, portanto com enforcamentos à mistura, deixou a entender. Fiquei na mesma.

    Quanto ao taxista salazarista, depois de lhe perguntar porquê doze, respondeu que tinha feito as contas, e onze não chegavam. Ainda lhe falei de clonagem, mas não sabia o que isso era.

    Hoje há Ubers a fazer de táxis, e também numa pausa para um cigarro electrónico, um rapaz brasileiro usou a versão contemporânea dos exageros numéricos, falou-me em seis Bolsonaros para pôr o Brasil na ordem.

    Na próxima Revolução imagino que seja proibido fumar.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • A realidade, esse estranho fenómeno inabitado

    A realidade, esse estranho fenómeno inabitado

    As intermitências da linguagem permitem-nos entender o mundo (seja lá o que isso for). Ou parte dele. Assim como que um truque, ou um drible.

    Há sempre por perto alguém que nos quer enganar, inclusive a nossa própria consciência (inconsciência).

    Aquilo que existe fora da continuidade e do expectável, devolve-nos a alegria de quando achávamos que tínhamos futuro. Um futuro só nosso.

    E é nessa coisa-tempo, dentro dos sonhos, que quando melhor vemos a Realidade, porque ela é linguagem pura e comporta todos os sonhos do mundo, em que tudo faz sentido e o seu contrário, como se houvesse Deus, o que é para rir.

    Como se o Fernando Pessoa tivesse tido uma vida real e até fosse possível desenhar-lhe uma biografia.

    Convém é saber descodificar algumas “línguas” vivas da contemporaneidade para não sermos apanhados na curva… Numa curva carregada de psicotrópicos e de loucos varridos.

    É como se tivesse um pouco de todas as moléculas de toda a gente ao mesmo tempo, ao meu alcance para poder aceder à Realidade. Estão a ver?

    É lindo!

    E liga-nos em êxtase!

    Estarei maluco? Claro que não.

    Há aqueles, como eu, que tentam frequentar a Realidade de quando em quando, mas não a vivem na plenitude porque isso não é efectivamente fácil. Para ser desenvolvida a ideia implicaria mergulharmos noutro paradigma, quando essa acção deveria ser o acto mais natural e acessível de todos, devendo-se isso, a termos frequentemente imaginação a mais, logo sonhos a menos, perdendo-se a espontaneidade. 

    Por isso não convém sermos assim tão hiper-realistas, e caminhar com humildade por entre as palavras, como se se tratasse de uma ilha rodeada de letras que por sua vez compõem frases imperfeitas quase saídas da matemática do Chat-quase-humano, que já se banalizou.

    Confusos?

    Evidentemente que não.

    Claro que todas estas cenas podem não vir da nossa imaginação.

    Dúvidas?…

    Pois claro, quem as não tem?

    Podemos mesmo ter caído no caldeirão da imaginação quando éramos pequenos. Da imaginação dos outros. Tipo Obélix e a poção mágica vinda da cabeça do Goscinny.

    E realmente efectuar a tarefa não se afigura fácil, porque dormimos em excesso acordados, o que nem sempre é mau, mas bolas também há limites.

    É tipo droga, para ser vulgarote.

    Todo o tempo, também a dormir… Era desnecessário.

    E ao contrário do que toda esta circunstância nos possa indicar qual Pedro, qual lobo, qual cordeiro, já não sonhamos, somos sonhados.

    Sim, sim.

    Passemos então à acção com naturalidade.

    No domingo de dia 10 de março, quem ganhou foi a Realidade e não a AD nem o Chega como dizem para aí. Muito menos o Livre muito pouco free.

    Teria de acontecer um dia, por muito que uma pessoa não queira, ou mesmo que um comentador no abstrato não o deseje, que pelos vistos não tem assim tanto poder de influência quanto pensa ou pensava, sobretudo quando a onda se prepara para cavalgar e ultrapassar aquilo que eles consideraram serem as linhas vermelhas. Os comentadores se fossem aos óscares, estariam só a concorrer ao prémio dos melhores efeitos especiais como se ostentassem apenas um curso de audiovisuais mal amanhado da Restart

    A Realidade aparece de vez em quando em força como um tsunami ou uma doença relâmpago, servindo assim para alimentar em fartura o inconsciente colectivo que tem andado bastante apático nas últimas décadas (no mínimo), e a consumir muita ficção, que à força da sua inusitada premência viciante nos fez distanciar uns dos outros, o que às vezes até pode dar jeito, mas que raio… Já chega também. É que a Realidade também corre o risco de ser viciante mais do que estar viciada.

    Quando as coisas correm bem, a vida corre bem como diria algum jogador de futebol algures num banal estúdio qualquer ao acaso.

    Para caracterizar o futebol diz-se que são onze para cada lado e ganha sempre a Alemanha. Aqui e aproveitando o princípio, podemos dizer que as eleições são compostas por muitos partidos a concurso que irão dar 230 deputados, mas ganha sempre o Ricardo Araújo Pereira. O do “olho em terra de cegos”. O cómico engraçado e inteligente. Andam todos a trabalhar para as suas piadas. O Herman e o seu ecletismo mimético engenhoso já foi ultrapassado há muito, mesmo com prémios institucionais, talvez por isso.

    Mas o RAP está a perder a piada assim como a Alemanha a hegemonia futebolística. Se calhar nunca tiveram assim tanta piada ou hegemonia. A História e a estatística que façam o seu trabalho um dia que se façam contas à vida.

    O Chega da nova geração de antiácidos, e que é neste momento a denominada doença nacional e o portador das mensagens do Além, que neste caso e por paradoxal que pareça, assemelha-se a uma representação plausível da Realidade, traz novidades na dança das cadeiras.

    Ninguém está com isto a dizer que a Realidade é uma cena boa e saudável, não convém é ignorá-la porque então corre-se o risco de rapidamente começarmos a marcar consultas em psiquiatras, psicólogos e até em homeopatas e astrólogos, cujo planeta e o futuro cheiram mais a dólares que a erva fresca. Mas os técnicos de saúde mental também precisam de outros técnicos de saúde mental que por sua vez…

    O partido Chega não só a anuncia como também faz parte dessa realidade, e se mais pessoas  tivessem andado atentas durante o período do uso de máscaras (já que elas não só taparam as bocas, mas frequentemente os olhos), perceberiam que o fenómeno estava a normalizar-se por toda a Europa, tendo até nesse período chegado ao seu zénite no Youtube e companhia.

    Os organismos oficializados andavam obcecados com casos covid e com mortos pandémicos, não se falava mesmo de outra coisa, e até se achava bem multar pessoas por estarem a comer em carros sozinhas, e era evidente que o mundo não tinha parado, andava mesmo noutras galáxias a negociar à grande, mas as máscaras, os jornalistas e outros actores que não são para aqui chamados faziam tudo para que não se visse.

    Negociava-se à grande e à chinesa por entre morcegos e pangolins. 

    E dividia-se o mundo mais uma vez, mas ia ficar tudo bem. Agora os jornalistas choram por credibilidade e dinheiro.

    Temos pena. Vai ficar tudo bem.

    Não se admirem se em breve virem o Pedro Marques Lopes ou outro(a) parecido a conduzir um Uber porque também chegará a vez deles de ficar de fora na estranha dança das cadeiras. Neste caso talvez o Pinto da Costa se continuar presidente com a sua lábia nortenha e vencedora lhe dê mais uns trocos a ganhar para dizer umas banalidades azuis, já que os comentadores nunca escondem as suas cores clubísticas ao trazerem para estúdio o kit completo na esperança da esmola televisiva.

    Quem quisesse assistir ao jogo fora da pandemia teria oportunidade de ver os patriotas a declararem guerra aos globalistas sem passar pela casa de partida que seria a História (bem ou mal contada, segundo os lados e as academias), passando por cima de todos os vírus e bactérias, sendo mesmo até considerado negacionista quem ousasse pensar.

    Enquanto os comentadores, separados por vidros assépticos iam falando de coisas inimagináveis inseridos na nova narrativa do videojogo.

    Muitas dessas personagens televisivas e jornalísticas desconhecem os criadores de Jogos, uma vez que não havendo Deus, a vida é sempre um jogo como o título de um filme sobre snooker em que o bem e o mal dependem mais do editor que do Papa, que curiosamente vai-se transformando ele mesmo paulatinamente e de acordo com o guião num editor da filosofia woke também. O que é para rir sem pecado.

    Mas ainda nos vendem jornais celestiais impregnados de colectivismo, mas do mau, como o colesterol.

    Por falar em dicotomias, enquanto os maus eram também os vírus e os negacionistas de vírus, a Realidade ia fazendo calmamente o seu trabalho sempre orquestrado pelos do costume que segundo as notícias oficiais do jogo, nos queriam salvar de morcegos, pangolins, e de morcegos esfomeados a comer pangolins debaixo da prosa jornalística cujo actor principal era o inenarrável Rodrigo Guedes de Carvalho que de idiota útil nada tem.

    E pelos vistos salvaram, não foi?

    Agora resta-nos ficar atentos até ao próximo capítulo deste filme que, caso estivesse integrado na grelha da Netflix seria na rubrica de terror contemporâneo que mete muito medo.

    Fará, no entanto, tudo parte da mesma ficção?

    Claro.

    Steve Bannon que o diga.

    Para quem não conheça o homúnculo da nova alquimia política, deveria estudar mais a sua passagem pelas direitas europeias com ligações profundas a Israel, mas este texto não habita um quarto com vista para esse deserto, até porque não temos informação completa e estudada do fenómeno sionista e o próprio Bannon anda desaparecido da Net, o que tornaria a tarefa de investigação mais ao estilo Philip Marlowe e daria certamente pancadaria e sangue na tentativa de chegar a algum lado.

    Como sempre, o caminho da sabedoria e conhecimento deverá ser feito com calma para que um dia possamos vir a dominar assuntos, e que o desejo em si, passe para outro plano, senão corremos o risco de nos tornarmos dogmáticos e depois só podemos jogar futebol dentro da mesma equipa sempre contra os mesmos jogadores, pondo de lado o prazer de ver as jogadas dos adversários reais e plausíveis, em jogos cujos árbitros desapareceram do relvado.

    A democracia tem o condão especial de se auto-sabotar. Assim o jogo torna-se cansativo e chato. E por isso é melhor alguns começarem a pensar já numa second life.

    Nesta fase do campeonato, houve bastantes transferências que abalaram a liga.

    Desde que haja divisão e luta entre as pessoas, com ou sem razão, é sempre positivo para o Poder, segundo os clássicos princípios maquiavélicos, para que o reino tenha sempre os motores a bombar ácido para a maralha… Que somos nós.

    Os jornalistas, comentadores e partidos tipo Chega depois vão fazendo o resto do trabalho sujo, destruindo a realidade com r pequeno.

    Os comentadores de uma forma geral são bastante totós, já sabíamos, talvez por isso sejam comentadores. Não comentam, vomitam palavras e não percebem nada de muita coisa como convém para o espectáculo da democracia continuar a ter os holofotes a bombar watts. Mas alguns queimam-se na floresta mediática. Desta vez serão muitos. Não havendo bombeiro com água na mangueira para apagar as chamas da nova inquisição.

    Não há já muito dinheiro para aguentar tanto verbo e apagar tantos fogos auto-impostos como convém para perpetuar a democracia. Já os políticos da nova mensagem vêem o seu prazo de validade ainda longe, uma vez que a onda ainda vai no adro e ganharam algum espaço de crescimento, o que se verá certamente já nas Europeias que são para os votantes, e mantendo as analogias desportivas, a taça Intertoto da UEFA.

    Enquanto isso o GPT continua à espreita de vítimas circenses que são sempre as melhores e mais apetecíveis, chegando às vezes a ser divertido. Os comentadores andam assustados.

    Sem dúvida que se trata de um western contemporâneo cheio de bons e maus, conforme o ângulo por onde se olhe, transpondo-nos para a clássica literatura que, em simbiose com a Realidade, deu-nos obras de arte cujo resultado provavelmente somos nós, os seres humanos com as suas eternas vicissitudes.

    Soa sempre bem falar em westerns, e tem a ambiguidade necessária para me distanciar dos extremos tão nefastos, então agora que o parlamento está cheio de cowboys.

    Como diz um amigo meu, a esse novo partido-doença só falta ter lá em exposição o índio dos Village People, já que tem polícias e o resto do folclore necessário para se disfarçar de ideologia. Até tem o Marcus, um lutador luso-brasileiro que quer confrontar os racistas de esquerda, segundo o que está escrito no seu velho Twitter.

    Estarão a fazer uma actualização da farsa setentista cheia de cor e kitch antes da mimesis de zeros e uns que deu nova hemoglobina ao sangue e que apareceu de rompante com a internet?

    Haverá sem dúvida muita adrenalina nas casas de banho do parlamento.

    Para assistir ao circo cada vez mais imbuído de realismo, bastou nessa noite eleitoral olhar atentamente para os comentadores habituais das televisões que são mais de cem e que sem dúvida, nos ofereceram um bom espectáculo televisivo em noite de Óscares que também andam pelas ruas da amargura, à espera da dose gélida de neo-realismo (já que falamos de cinema) que lhes apareça como um terremoto politicamente incorrecto pelo veludo da passadeira e dos vestidos grená adentro, para voltarem a ter as audiências que o Trump levou.

    Como se tivesse sido o vento.

    Como se vê, só falamos de boa gente como diz o ex-povo.

    É preciso desconfiar das catástrofes naturais politicamente correctas porque começam a faltar troncos para nos agarrarmos, na esperança da salvação.

    Sabemos, por outro lado que é a própria indústria quem tem o poder de construir ficções, o que noutro tempo esteve entregue às religiões.

    Mas o que é sinal do nosso tempo é a própria indústria ter metido os óculos da Realidade virtual (RV) e não ter tido a capacidade de os tirar a tempo como as religiões fizeram chegado o fim do episódio para passar ao seguinte. As religiões pareciam mais certinhas no acerto do compasso.

    Como se as catástrofes fossem naturais.

    O século XXI prescinde dessas religiões e abraça outras que já não nos prometem a vida depois da morte, mas sim a própria morte, por isso no domingo 10 do 3 de 2024, houve mais alguns actores que perceberam o seu fim vendo por exemplo os seus parcos empregos em risco, embora o caminho para o desemprego em estúdios assépticos já tivesse sido anunciado há muito.

    Os canais televisivos estão em falência técnica. Nem o polígrafo pode desmentir. Polígrafo quase pago na totalidade pelo Facebook.

    Por isso os comentadores são mais que as mães e até já têm juniores a fazer comentário, tipo estagiários a custo zero como sintoma da democracia dos pobres.

    Um dos vitoriosos da noite das eleições foi o Pedro Nuno Santos que dias antes tinha provocado o Ricardo Araújo Pereira, ao assinalar-lhe que o seu canal do grupo Impresa era um dos grandes devedores nacionais, como quem avisa para se pôr a pau. O desconforto do RAP foi evidente. Coitado do rapaz que foi apanhado à traição não estando minimamente preparado para as provocações alheias fora do guião.

    Nos Óscares, os actores principais ainda custam milhões, mas por estes lados lá pelos plateaus ficcionados, imaginamos que estes actores-comentadores andem muito baratos para nos explicar o que vai na cabeça dos políticos. Desta vez, deu mesmo para perceber que as pessoas não são assim tão estúpidas nem os comentadores são assim tão espertos e o resultado trouxe algum espectro de Realidade. Mas só algum.

    Acredite-se ou não, no momento em que finalizo este texto, todos os canais de televisão promovem debates e tertúlias intermináveis sobre o cancro da Kate Middleton, pessoa que eu desconhecia até então. Esses mesmos jornalistas que moderam os debates e tertúlias são aqueles que ostensivamente e moralmente julgam qualquer frase dita por alguém do Chega. Eu também o faço amiúde, também questiono à grande essa inflamação, mas não ando a moderar parvoíces televisivas.

    Tenho mesmo a sensação de que alguns vivem e dormem nos edifícios onde estão os plateaus como o Sebastião Bugalho, que está sempre pronto para ser o bombeiro de serviço. Muitas vezes até o imaginamos de pijama na parte que não é visível. Coitado do puto que ainda não tem autorização para discordar do chefe Ricardo Costa que parece mesmo ter feito desses não-lugares o seu paraíso artificial.

    Mas esse jornalista-director-irmão é mais perspicaz e sapiente que os outros e lá vai sobrevivendo aos abanões de terra como uma térmita bem preparada. Não quer dizer que seja melhor pessoa, mas no jogo do simulacro Debordiano é rei.

    O Sebastião, por quem até nutro alguma simpatia televisiva, parece um desenho animado do Charlie Brown e talvez por isso não costume levá-lo muito a sério. Quando não se tem barba e se tem ar de chavalo, não se deveria usar blazer e muito menos gravata. Parece que este tipo de pessoas está sempre vestido para ir à catequese ou a um casamento. Fica o conselho Gaultier.

    Há uma jornalista-Robocop da CNN que é adorável ver em acção. Já corporiza o novo ciclo que aí vem. Chama-se Ana Sofia Cardoso. Sempre que entrevistar o André Ventura, tentem não perder. Nunca o polícia mau havia chegado tão longe, ainda por cima um polícia mau Robocop.

    Gélida, incisiva e espectacular, embora feitas as contas, o político-espectáculo-do-momento dê ideia de conseguir sacar sempre mais uns votos. A vítima perfeita com um carrasco à altura. Só visto em filmes de acção. De vez em quando os jornalistas têm a mania que são jornalistas e ainda fazem pior. Talvez fazer jornalismo seja ouvir, para o público poder escutar também. Mas a gritaria e cacofonia já não vende tantos champôs, mas pelos vistos continua a render votos.

    O que é curioso e fruto de uma aprendizagem, é que a Realidade não é grande nem é pequena, é a Realidade. Ou cabem todos ou não cabe nenhum. O sol quando nasce deveria ser para todos, assim como os novos jogos da PlayStation.

    E parece que o tempo está a começar a ajustar-se ao espaço televisionado para mal dos protagonistas em que a realidade sem R maiúsculo se torna inimiga, fazendo mesmo, estranhamente, com que os actores se auto desmascarem.

    E quando algo inesperado faz o ajuste, (infelizmente muitas vezes são as estúpidas guerras), parece que o denominador comum faz o seu papel. Por isso o mundo anda sempre à procura de conflito. O Poder sabe isso, mas também vai precisando de raios de sol que brilhem o suficiente até ao seu suicídio, como na Grécia Antiga ou em Roma.

    Desta vez não fazemos ideia se será possível a analogia porque entra um novo player para baralhar, chamado IA. Já para não falar da sempre nefasta possibilidade nuclear.

    Quando o planeta se reajustar à sua verdadeira dimensão, presumo que haja festa à séria e que a violência fique para segundo plano, presumo também, que isso nunca tenha acontecido.

    Vale a pena viver e ter esperança, a magia pode acontecer desde que não se confundam os mágicos com as marés e marinheiros. E há sempre uma primeira vez, como diz o ex-povo.

    Para a grande maioria, a Realidade já era.

    Aquilo que lhes contaram e ensinaram já não se verifica facilmente com contas de cabeça preguiçosas. Antigamente ainda se podia enganar a Realidade porque havia excedentes de muita coisa. O excesso permitia ocultar o tempo, mas ocultar o tempo é a maior das armadilhas,

    sabemos por experiência.

    Contaram-nos uma história de violência engraçada, mas o tiro saiu muito ao lado.

    Assim a Realidade vai ficando sem ninguém como um deserto.  Ela existe, sei-o pelos sonhos, mas quase ninguém anda por lá.

    Ah! E se ela é fresca e cheia de sombras (porque há sol)!..

    A Realidade não tem género inclusivo, tem literatura.

    E se há coisa que distingue a Realidade dos outros jogos cujas regras nos ensinaram, é que lá os mortos falam a nossa língua porque aí, e deixemo-nos de brincadeiras, a morte não existe.

    O que existe somos nós, os “mortos”… De medo de estar a perder alguma coisa de essencial.

    Bem vistas as coisas, e prescindindo das análises dos anormais da moda, a Realidade corre mesmo o risco de existir e de ser recomendável.

    Já viram? Parece sempre tudo a brincar.

    Viver, começa a ser urgente.

    Voilá!

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero


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