O PÁGINA UM analisou o desempenho do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao longo da pandemia, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, face aos períodos anteriores. Duas evidências: Janeiro de 2021 foi um descalabro inimaginável nos hospitais portugueses; e a culpa não foi apenas da covid-19. Houve “departamentos” hospitalares importantes que pioraram as taxas de mortalidade ao longo da pandemia, mesmo com muito menos doentes.
O colapso do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia, sobretudo no Inverno de 2020-2021 – em que se assistiu a um recorde de mortes nos hospitais portugueses –, não se deveu somente aos casos de covid-19.
Mais uma análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS revela, desta vez, que o incremento na mortalidade hospitalar, em especial em Janeiro de 2021, atingiu níveis elevados sobre os internados com covid-19. Mas também os internados por doenças do aparelho respiratório e por doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B da CID – Classificação Internacional de Doenças), e outras doenças, tiveram menores chances de sobrevivência do que aqueles que sofreram dos mesmos males antes da pandemia.
De acordo com os registos dos internamentos e dos óbitos por mês, desde 2017, para cada grupo de doenças, o mês de Janeiro do ano passado mostrou uma situação catastrófica nos hospitais portugueses, com uma taxa de mortalidade global de 14,1%. Em termos comparativos, o mês homólogo nos quatro anos anteriores situou-se entre 6,9% em 2020 e 7,6% em 2017. Este ano, este rácio “normalizou”, fixando-se em 7,5%.
O peso da covid-19 para este descalabro foi importante, mas longe de ser único. Com efeito, em Janeiro de 2021, efectivamente a mortalidade hospitalar dos internados atingiu valores máximos (31,7%), muito acima do valor médio desta doença desde que surgiu em Portugal a partir de Março de 2020 (22,4%).
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para todas as doenças. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, sobretudo nas doenças infecciosas e parasitárias, e também nas doenças do aparelho respiratório, o mês de Janeiro de 2021 foi também de hecatombe. Ou seja, quem esteve internado com doenças daqueles tipos nos hospitais viu a sua chance de sobrevivência baixar significativamente.
No caso dos internados por doenças do aparelho respiratório, a taxa de mortalidade em Janeiro de 2021 foi de 27,8%, muito mais do dobro dos valores registados no mês homólogo dos quatros anos anteriores.
De facto, no ano imediatamente anterior – em vésperas da chegada da covid-19 e num período em que a gripe e subsequentes infecções respiratórias estavam pouco agressivas –, a taxa de mortalidade hospitalar situou-se apenas nos 11,8%. Nos anos anteriores foi um pouco mais elevada, mas longe do desastre de 2021: atingiu os 14,2% em 2017 (com um surto gripal de alguma agressividade), e foi de 12,7% e 12,9% em 2018 e 2019, respectivamente.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as doenças do aparelho respiratório. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Este ano, a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias foi de 16,1%, muito inferior ao valor do ano passado, mas mesmo assim bastante superior aos valores normais para esta época do ano.
Relativamente às doenças infecciosas e parasitárias dos grupos A e B do CID, a situação em Janeiro de 2021 foi também dramática, tendo a taxa de mortalidade hospitalar atingido os 38,7%, ou seja, mesmo acima da covid-19 para aquele mês. No mês homólogo de 2017 a 2020, esta taxa situou-se no intervalo entre 24,5% e 27,0%. Em Janeiro deste ano, este rácio já se normalizou, tendo ficado nos 27,1%.
Embora o mês de Janeiro de 2021 evidencie um agravamento colossal – na verdade, um colapso – da capacidade de resposta do SNS, apesar da redução de 270 mil internados em 2020 e 2021 face ao biénio anterior, ao longo da pandemia as taxas de mortalidade pioraram em quase todos os grupos de doenças.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B). Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Com efeito, de entre os grupos de doenças de prognóstico de internamento mais incerto – com taxa de mortalidade hospitalar acima dos 10% antes da pandemia –, apenas nas neoplasias se observou uma ligeira redução, passando de 12,5% nos 23 meses anteriores à pandemia (Abril de 2018 a Fevereiro de 2020) para os 11,9% entre Março de 2020 e Janeiro de 2022 (23 meses).
Contudo, durante a pandemia, face ao período anterior, foram internadas menos 33.175 pessoas com doenças oncológicas. Ou, pelo menos, não foram internadas como sofrendo de cancros. Nem os óbitos, se ocorreram, tiveram essa causa apontada.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as neoplasias. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Mas nos casos das doenças infecciosas e parasitárias dos grupos A e B e das doenças do aparelho respiratório a taxa de mortalidade média durante a pandemia foi substancialmente superior à do período anterior. No primeiro grupo subiu de 20,0% para 25,6%; no segundo grupo cresceu de 13,1% para 17,2%.
Em termos globais, incluindo a covid-19, e confrontando os dois períodos acima referidos, a taxa de mortalidade hospitalar subiu de 6,1% para 7,3%. Significa que a taxa de mortalidade hospitalar sofreu um agravamento de 20%. Porém, se se retirar os internamentos e óbitos da covid-19, o agravamento para as outras doenças também se verifica, embora em menor grau (mais 9%), passando de 6,1% para 6,6%.
Taxas de mortalidade hospitalar por grupo de doenças no período pré-pandémico (Abril de 2018 a Fevereiro de 2020) e pandémico (Março de 2020 a Janeiro de 2022) e variações de internados e de óbitos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Convém, contudo, destacar que, se se não contabilizar os internados-covid, os internamentos por todas as outras doenças entre Março de 2020 e Janeiro de 2022 decaíram 21,4% (menos 360.266 internamentos) face ao período entre Abril de 2018 e Fevereiro de 2020.
Essa variação deve-se sobretudo à queda nos internamentos das doençasdo aparelho respiratório, em parte devido ao “desaparecimento”da gripe (e das pneumonias associadas) durante a pandemia.
Mas assistimos asima um estranho paradoxo: uma menor pressão hospitalar nas áreas dedicadas a doenças não-covid acabou por resultar, afinal, num agravamento das respectivas taxas de mortalidade, o que mostra que nem todas as responsabilidades sobre o excesso de mortalidade se pode assacar ao SARS-CoV-2 e à covid-19.
Existe, contudo, um aspecto que deverá merecer maior investigação.
O agravamento das taxas de mortalidade nas outras doenças não se deveu a um maior número de óbitos – na maior parte dos grupos de doenças houve um decréscimo absoluto –, o que pode indiciar que tanto os internamentos como os óbitos em determinadas doenças estarão subestimados porque foram “endossados” à covid-19 apenas devido a, no momento da hospitalização, os doentes estavam com teste positivo.
Nota: Nesta análise, as taxas de mortalidade foram calculadas em função do número de óbitos e de internamentos ocorridos em cada mês. Obviamente, este indicador mensal não reflecte a taxa efectiva de mortalidade durante cada um dos períodos (ou, se assim se desejar, o risco de morte por internamento), porque os óbitos ocorridos em determinado mês são também de doentes internados em meses anteriores. No entanto, este rácio, assim calculado, e na falta de dados mais discriminados, constitui um adequado indicador de desempenho do SNS.
Uma análise de dados oficiais feita pelo PÁGINA UM revela que dar prioridade máxima ao tratamento da covid-19 teve um efeito secundário inesperado (ou não): os internados por doenças respiratórias não-covid tiveram um risco acrescido de morte. E a grande surpresa é que, em determinados períodos, sobretudo na Primavera e Verão de 2020 e 2021, as doenças respiratórias até registaram taxas de mortalidade hospitalar superiores à da covid-19. E mais: a opção inicial de entubar doentes idosos terá sido catastrófica.
Durante a pandemia, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, a taxa de mortalidade hospitalar dos doentes-covid foi apenas 30% superior à registada nos internados com doenças respiratórias. Esta é uma das principais revelações da análise feita pelo PÁGINA UM aos dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas esta situação deveu-se também a um outro problema: com a pandemia, e uma priorização à covid-19, os doentes com doenças respiratórias não-covid viram a sua chance de sobrevivência diminuir.
De acordo com a análise, a taxa de mortalidade hospitalar dos internados-covid – medida de uma forma simplista, face à ausência de informação mais detalhada, pelo número de mortes em cada mês em função dos internados nesse mês – foi de 22,4% entre Março de 2020 e Janeiro deste ano. Ou seja, em cada 1.000 internados acabaram por morrer 224.
Essa taxa é calculada face ao número oficial de internamentos por covid-19 nos hospitais públicos naquele período (59.916 pessoas) e ao número efectivo de óbitos nos hospitais do SNS causados por covid-19 (13.397 mortes).
Convém referir que o Ministério da Saúde não explicou ainda como cerca de um terço dos óbitos por covid-19 anunciados pela Direcção-Geral da Saúde não ocorreram afinal numa unidade de saúde, face à infecciosidade da doença e ao facto de o agravamento do estado de saúde recomendar sempre um internamento.
Em todo o caso, esta taxa de mortalidade hospitalar da covid-19 (22,4%) pode ser considerada bastante mais elevada face ao que se registava no período pré-pandemia para as outras doenças respiratórias, mas já não tanto naquilo que veio a suceder durante o período pandémico.
Com efeito, segundo os dados do SNS, entre Janeiro de 2017 e Fevereiro de 2020 (38 meses), a taxa de mortalidade hospitalar em internados por doenças respiratórias foi de 13,2%, correspondente a 43.715 óbitos em 330.341 internados.
No entanto, com o surgimento da pandemia – e a menor atenção concedida a todas as outras afecções –, a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias deu um pulo, atingindo um agravamento de 4 pontos percentuais.
Ou seja, se antes da pandemia, por cada 1.000 internados por doenças respiratórias morriam 132 pessoas, após Março de 2020 passaram a morrer 173 por cada mil. Este agravamento também se observa pela variabilidade da taxa de mortalidade.
Taxa de mortalidade (%) geral dos internados nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Se antes da pandemia, o risco de mortes nos hospitais por doenças respiratórias não sofria grandes variações ao longo do ano – variando entre os 11% e os 16% –, os “desarranjos” nos hospitais do SNS causaram oscilações caóticas, superando em alguns meses os 20%.
Em determinados períodos, a taxa de letalidade das doenças respiratórias chegou a ser mesmo superior à da covid-19 em dois períodos longos: entre Março e Setembro de 2020 e entre Março e Agosto de 2021.
Mesmo no pico da letalidade da covid-19 – Janeiro de 2021 –, em que a taxa de mortalidade desta doença atingiu um máximo de 31,7% (ou seja, quase uma em cada três pessoas internadas por causa do SARS-CoV-2 acabaram por não sobreviver), a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias alcançou os 24%, isto é, o dobro da situação habitual num Inverno.
Mas a análise do PÁGINA UM também conseguiu destacar os níveis diferentes de letalidade em função da idade dos internados, confirmando não apenas que o risco é incomensuravelmente superior nos mais idosos, mas também indiciando que, na fase inicial da pandemia, algo terá corrido mesmo muito mal nas decisões terapêuticas, sobretudo nos maiores de 65 anos.
De facto, se se confrontar a taxa de mortalidade dos menores de 65 anos, a covid-19 não se mostrou uma catástrofe em termos efectivos nesta faixa etária: em cada 1.000 internados, 58 não sobreviviam. Se se analisar os mais jovens, então o risco de morte foi extremamente baixo.
Taxa de mortalidade (%) dos internados com menos de 65 anos nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Contudo, mesmo assim também a gestão hospitalar no período pandémico permitiu que as doenças respiratórias neste grupo etário se agravassem. Se antes da pandemia, raramente a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias nos menores de 65 anos se situava acima dos 3%, com o surgimento do SARS-CoV-2 o panorama mudou.
Em alguns meses, as doenças respiratórias não-covid registaram uma taxa de letalidade nesta faixa etária acima dos 5%, atingindo mesmo os 8,3% em Janeiro de 2021. Releve-se, contudo, que naquele mês a covid-19 atingiu um pico de 9,9% de mortalidade nos internados nesta faixa etária, mas esse foi um período de completo colapso do SNS.
Quanto ao risco de morte por covid-19 nos internados com mais de 65 anos, a análise do PÁGINA UM apurou que foi mais de cinco vezes superior (12.178 óbitos em 38.797 internados, ou seja, 31,4%) ao da faixa etária dos menores de 65 anos. Neste caso, se se comparar com a letalidade das doenças respiratórias, a covid-19 teve, sem dúvida um impacte significativo, mas longe de constituir uma catástrofe inédita.
Com efeito, no período de Janeiro de 2017 a Fevereiro de 2020, a taxa de mortalidade destas doenças rondavam os 192 óbitos por 1.000 internamentos. Significa, assim, que a covid-19 constituiu um acréscimo de risco de morte 64% face às doenças do aparelho respiratório para o grupo dos mais vulneráveis.
Taxa de mortalidade (%) dos internados com mais de 65 anos nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, a pandemia trouxe também, como atrás referido, um agravamento significativo do risco de morte pelas habituais doenças respiratórias, uma vez que a taxa de mortalidade hospitalar subiu, nesta faixa etária, para 24,5%, quando antes da pandemia se situava nos 19,2%.
Relevante também é observar que a taxa de mortalidade atingiu valores perfeitamente absurdos em dois períodos para os maiores de 65 anos: em Janeiro de 2021 (com uma taxa de 40,1%) e em Março de 2020 (55,9%). No primeiro caso, deveu-se, em grande medida ao enorme fluxo de internamentos, a par de uma vaga de frio e do colapso do SNS.
Já quanto a Março de 2020 – o primeiro mês da pandemia em Portugal –, a elevada taxa de mortalidade hospitalar terá sido devido à opção, então seguida em outros países, como a Itália, de colocar todos os doentes com dificuldades respiratórias, mesmo idosos, em ventilação mecânica. A prática médica viria a revelar que esta foi uma opção com graves efeitos negativos.
Nota: Saliente-se que a taxa de mortalidade hospitalar não deve ser confundida com a taxa de letalidade de uma doença, que se mede em função dos óbitos por caso positivo, e independentemente do grau de gravidade. Não deve ser também confundido com a taxa de internamento. Destaque-se que até Janeiro deste ano se registaram cerca de 2,7 milhões de casos positivos, pelo que, tendo havido 59.916 internamentos, se contabiliza apenas uma taxa de internamento de 2,2%. Ou seja, por cada 1.000 casos positivos, 22 são internados. Se 22,4% dos internados acabam por não sobreviver, a taxa de letalidade é, deste modo, de 0,5%. Ou seja, 5 óbitos por cada 1.000 casos positivos.
A justiça, como forma de reconhecimento, deve ser concedida em vida. E, de facto, seja reconhecido, a multifacetada obra de João Abel Manta tem estado bem viva e bem-vinda se tem mostrado, agora que ele acaba de perfazer 94 anos.
Formado em Arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1951, João Abel Manta tem obra feita nesta área – onde o exemplo mais emblemático é o conjunto de edifícios da Avenida Infante Santo, na capital –, mas foi sobretudo como artista plástico, no desenho e arte pública – por exemplo, o desenho em calçada portuguesa da alfacinha Praça dos Restauradores ou o painel de azulejos da Avenida Calouste Gulbenkian –, e na pintura e no cartoon político que mais se destacou.
Para uma geração mais jovem – ou mesmo para aqueles com idade inferior aos 60 anos –, João Abel Manta pouco poderá dizer – e é pena. Mas, nas décadas de 50 e 60 – e em especial nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao 25 de Abril foi ele um dos mais proeminentes cartoonistas, primeiro no Diário de Lisboa e depois sobretudo n’O Jornal.
Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, obra originalmente publicada em 1978 e agora reeditada pela Tinta da China, faz jus à excepcional obra de João Abel Manta, não apenas por ser a “visão” de um cartoonista durante um período conturbado da nossa sociedade, mas sobretudo por mostrar um processo de “exorcismo” do autor perante os fantasmas do fascismo que sobrevoavam então a sua mente no pós-25 de Novembro de 1975.
Preparados num período de auto-exílio em Londres, os cartoons de João Abel Manta, revolucionários para a época, não retratam apenas Salazar – muito pelo contrário; mostram, sim, a mentalidade do país de um ditador – de um país secular sempre pouco livre –, sempre omnipresente, sempre retrógrado, sempre lamentável.
Num traço inconfundível, intrigante, por vezes de uma violência sádica (como nos cartoons sobre a Guerra Civil de Espanha), muitas vezes a necessitarem de reflexão para um melhor entendimento, os 139 cartoons que constituem este livro – num esmerado trabalho gráfico em papel que destaca as cores e num necessário formato oblongo – mostram-nos uma “procissão” de figuras históricas ou populares, patéticas, grotescas, tétricas, lúbricas, sinistras e, enfim, com todos os adjectivos que se queiram.
Neste cortejo podemos assim assistir a nadadoras expondo-se ao lado de um lascivo D. Henrique; aos retratos de vice-reis congregando um passado colonial pouco edificante, à omnipresente religião católica – com a Nossa Senhora de Fátima protegendo a Selecção de futebol ou sendo a esperança de uma trupe de aleijados e frankensteins – ou ainda à veneração de um Santo António, ora famélico, ora bonacheirão, ora inquisitorial, ora sedutor.
Todos os cartoons vivem muito das expressões, dos pormenores, das dimensões escolhidas com propósitos claros por João Abel Manta, quase nunca “normais”, explicitamente caricaturadas, porque nada surge ali por um acaso – e muito menos quando os diferentes cartoons constituem séries, como as dos cupidos no bloco Idílio, ou os diversos Camões.
Mas, claro, o fantasma de Salazar “corporiza-se” em pleno na sequência final, em que o ditador surge, primeiro, a comandar a Universidade, depois os militares, a seguir a Igreja, homens engravatados, e por fim, crianças. Aqui, apenas um Salazar, envelhecendo-se neste percurso, tem o seu característico perfil, bem desenhado e perfeito, sempre o mesmo, estático como o país; todos os que o vão acompanhando possuem meras cabeças disformes, dir-se-ia acéfalas. Como o país.
O esclarecedor e esclarecido posfácio de Pedro Piedade Marques – historiador, designer gráfico, tradutor e editor, e principal responsável por esta reedição – é de grande utilidade para o entendimento desta obra-prima do cartoonismo político português do século XX.
A gestão da pandemia, com a criação dos “covidários” e o adiamento de muitas intervenções cirúrgicas não aliviou apenas os hospitais; fez “desaparecer” hospitalizações em todas as unidades de tratamento de doenças. Se nas alas covid e nas unidades de cuidados intensivos se deu o ‘litro’, em muitos outros departamentos houve médicos e outros profissionais de saúde que tiveram vida folgada durante a pandemia. Um paradoxo, porque em 2020 e 2021 se registou um acréscimo de mortalidade de 23 mil óbitos em Portugal, dos quase 19 mil atribuída à covid-19, embora para estes casos aplicando-se critérios muito discutíveis.
A covid-19 causou uma paradoxal redução generalizada dos internamentos em todas as valências hospitalares. De acordo com a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), durante 2020 e 2021 – os dois primeiros anos da pandemia – registaram-se quase menos 280 mil pessoas internadas do que nos dois anos anteriores (2018 e 2019).
Isto mesmo considerando que a covid-19 – a única doença que integra o grupo de “códigos para fins especiais” –, que só surgiu no final do primeiro trimestre de 2020 contribuiu com 57.227 internados entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2021.
Um dos aspectos mais surpreendentes destes dados, agora analisados pelo PÁGINA UM, é a forte queda de internamentos por todas as causas, e envolvendo mesmo áreas sem qualquer ligação directa à covid-19.
Em certa medida, esta redução deveu-se à criação dos “covidários”, para onde seguiam, independentemente da gravidade, todas as pessoas a necessitarem de cuidados médicos, mesmo se sofressem de outros problemas de saúde mais prementes.
Contudo, também se deveu muito à redução das intervenções cirúrgicas com internamento – que resultaram de uma estratégia política – e, de igual modo, ao medo incutido que afastou muitas pessoas de irem aos hospitais mesmo em caso de sintomas agudos de elevada gravidade. Muitos terão morrido por esta opção. Recorde-se que se registou um acréscimo de mortalidade no biénio 2020-2021, face a 2018-2019, de 23.017 óbitos, sendo que 18.974 foram atribuídos à covid-19.
A queda no número de internados por todas as causas observou-se de forma marcante logo em Março de 2020. Com efeito, nos três anos anteriores à pandemia, os hospitais do SNS recebiam habitualmente entre 70 mil e 80 mil pessoas a necessitarem de internamento em cada mês, mas no início da pandemia, em Março de 2021, baixou para um pouco menos de 65 mil. Curiosamente, os dados do SNS indicam que houve um doente internado com covid-19 ainda em Fevereiro de 2020.
Em Abril de 2020 ainda desceu mais: 46.558 pessoas foram hospitalizadas. Nos meses seguintes, e até Dezembro do ano passado, o número de pessoas hospitalizadas por mês nunca recuperaram para os níveis pré-pandémicos.
Durante a pandemia, o mês com mais internados por todas as causas foi Outubro de 2020 com 67.080 pessoas. Em Dezembro do ano passado foram hospitalizadas apenas de 55.070 pessoas, um valor atípico. Por exemplo, no último Dezembro antes da chegada da pandemia tinham sido internadas 74.087 pessoas.
Número de pessoas internadas por mês (entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021) por todas as causas em hospitais públicos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
As unidades de tratamento hospitalar das doenças do aparelho respiratório não-covid foram as que mais “beneficiaram” com o surgimento da pandemia, sem prejuízo da covid-19 exigir uma logística e tratamento mais complexo. No entanto, tendo em conta que o SARS-CoV-2, a par com as medidas não-farmacológicas – uma redução substancial (ou desaparecimento efectivo) de vírus e bactérias causadoras de doenças respiratórias, os hospitais acabaram por beneficiar, nesse aspecto, de uma redução significativa da procura para tratamento.
Com efeito, de acordo com os dados do SNS, no biénio 2020-2021 foram internadas por doenças respiratórias não-covid menos 76.119 pessoas do que em 2018-2019. Significa isto que se se juntar os internados por covid-19 em 2019 e 2020 (um total de 57.227) aos internados por doenças respiratórias não-covid nesse período, então conclui-se que em 2018-2019 as unidades de pneumologia do SNS tiveram um fluxo maior de doentes.
Número de internados por mês (desde Janeiro de 2017 a Dezembro de 2021) de doenças do aparelho respiratório e de covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na verdade, embora com taxa de letalidade maior do que a das pneumonias vulgares para as populações mais idosas, a covid-19 não implicou uma pressão descomunalmente superior nos hospitais do SNS, uma vez que se registou uma profunda queda no número de internados por pneumonias e doenças afins.
Se no período de 2017-2019 o número de internados por mês devido a doenças respiratórias se situava entre os 5.000 e os 15.000 – com os valores mais baixos a ocorrerem no Verão e os mais elevados no Inverno –, este padrão modificou-se substancialmente nos últimos dois anos.
Com o surgimento da covid-19, mesmo no Verão o decréscimo de doentes foi brutal. E no Inverno, as quedas foram completamente atípicas. Aliás, os dois piores meses da pandemia – Janeiro e Fevereiro de 2021, com 10.137 e 10.457 internados, respectivamente – coincidiram com os mais baixos números de internados por doenças respiratórias: para aqueles dois meses foram de apenas 4.396 e 3.558, respectivamente.
Se se comparar o número de internados por doenças respiratórias nos dois primeiros meses de 2021 – um total de 7.954 – com os internados nos meses de Janeiro e Fevereiro 2017 – com um surto gripal relevante, que levou à hospitalizações de 25.821 pessoas –, fica-se com uma ideia clara do impacte ao nível da pressão hospitalar do “desaparecimento” da gripe durante a pandemia.
No entanto, a pandemia aliviou fortemente outras áreas hospitalares como foram sobretudo os casos das unidades de tratamento de doenças do aparelho circulatório e digestivo e também de neoplasias (cancros).
Segundo os dados do SNS, confrontando o período 2018-2019 com 2020-2021, houve menos 37.800 internados (redução de 15,7%) por doenças do aparelho circulatório, menos 34.443 internados (redução de 19,5%) por doenças do aparelho digestivo e menos 30.759 internados (redução de 17,4%) por neoplasias.
Número total de internados por grupo de doenças nos biénios 2018-2019 e 2020-2021. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O cenário, contudo, foi generalizado para todas as doenças e afecções, mesmo até em internamentos por lesões, acidentes, transtornos mentais e doenças dos olhos. Na análise realizada pelo PÁGINA UM, observam-se nove grupos de doenças com reduções superiores a 20%
Esse efeito observou-se mesmo nos internamentos relacionados com a gravidez (menos 12,4%), malformações congénitas e similares (menos 17,8%) e condições originadas no período perinatal (-29,0%), mas aí a causa foi outra: as opções da estratégia política do Governo que resultou numa incerteza económica que retraiu os casais na decisão de terem filhos.
Pela segunda vez em dois meses, o PÁGINA UM coloca um processo de intimação no Tribunal Administrativo contra o Infarmed por recusa na disponibilização de documentos administrativos. Agora está em causa o acesso à correspondência trocada pelo regulador português, criado para defender os interesses dos cidadãos, e a Agência Europeia de Medicamentos. O Infarmed defende que é tudo “confidencial”.
O PÁGINA UM intentou ontem um novo processo de intimação contra o Infarmed junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. Esta é a segunda vez que o regulador do medicamento terá de se justificar perante a Justiça sobre as razões para não ceder o acesso à consulta de documentos administrativos relevantes na esfera da saúde individual e pública.
No mês passado, o PÁGINA UM intentou um processo similar porque o regulador recusou o acesso à base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir. Esta decisão do Tribunal Administrativo está prevista para breve, por se tratar de um caso urgente.
Desta vez, o PÁGINA UM teve de recorrer novamente ao Tribunal porque o Conselho Directivo do Infarmed – liderado por Rui Santos Ivo, que já ocupou o cargo de director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) – se recusou a facultar qualquer tipo de correspondência, desde 2020, entre esta entidade reguladora nacional e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
No âmbito deste pedido, o PÁGINA UM também desejava, em concreto, que o Infarmed identificasse, através de cópia da comunicação da EMA, qual o defeito de qualidade detectado no lote 000190A da vacina COVID-19 Spikevax, que foi retirada do mercado em Abril passado, uma vez que o comunicado público transmitido pela entidade chefiada por Rui Santos Ivo referiu apenas que se tratava de um “corpo estranho no frasco da vacina”.
Este lote continha 746.900 doses e os frascos tinham sido distribuídos pela Noruega, Polónia, Suécia e Espanha a partir de uma fábrica de Málaga. O Infarmed nem sequer quis confirmar se era verdade que fora encontrado um mosquito dentro de um dos frascos, ou se afinal o problema era mais vasto.
Apesar do evidente interesse público, ademais tendo o pedido sido feito por um órgão de comunicação social – cujo acesso à informação surge consagrado na Constituição, com um estatuto jurídico muito superior a qualquer decreto-lei –, o regulador declarou ao PÁGINA UM, em final de Abril passado, que o diploma que regula os medicamentos “prevê um dever de confidencialidade que se traduz num regime especial em matéria de acesso a documentos administrativos apresentados ao Infarmed ou a este transmitidos pela Agência ou pela autoridade competente de outro Estado Membro”.
Saliente-se que o diploma em causa – o Decreto-Lei nº 176/2006 – tem como objectivo, segundo o preâmbulo, “permitir uma maior oferta e concorrência, no mercado nacional”, mas “sem prejuízo da necessidade de assegurar o respeito pela saúde pública e pelos interesses dos consumidores”.
Ou seja, para assegurar o respeito pela saúde pública e o interesse dos consumidores mostra-se fundamental o acesso às comunicações integrais, sem qualquer censura, entre as entidades nacionais e externas, sobretudo quando estão em causa defeitos em medicamentos que levam mesmo à sua retirada do mercado.
O PÁGINA UM poderia ter optado, como habitualmente, por recorrer à Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), mas como o parecer desta entidade não é vinculativo – e o Infarmed já negou uma vez cumprir as determinações daquela entidade –, foi então tomada a decisão de proceder de imediato ao processo de intimação, que é considerado urgente e alvo de uma sentença.
Este segundo processo no Tribunal Administrativo (Processo 1335/22.7BELSB) foi já distribuído ao juiz João Cristóvão que deverá agora, no início da próxima semana, conceder um prazo de 10 dias para o Infarmed, como réu, se justificar factualmente.
Recorde-se que os processos de intimação do PÁGINA UM têm tido o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Na próxima semana serão entregues outros processos, em prol da transparência da Administração Pública, a anunciar.
Para apoios exclusivamente dos custos processuais e de defesa em tribunais, apoie o PÁGINA UM na plataforma do FUNDO JURÍDICO ou contacte através do e-mail geral@paginaum.pt.
São 14 os gráficos. O PÁGINA UM faz nova análise à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desta vez pesquisando um indicador fundamental da pressão hospitalar: o número de dias de internamentos por mês desde 2017. Vimos cada um dos hospitais… em, pois bem, durante os dois primeiros anos da pandemia, houve muitos hospitais do SNS, a começar pelos de Lisboa, que nunca tiveram tanto “descanso”. O Ministério da Saúde fez-nos crer o contrário.
A pressão hospitalar sempre foi tema quente desde a chegada da pandemia da covid-19 a Portugal. Está de novo na hora do dia, graças a um histriónico director das urgências do Hospital de São João do Porto a pré-anunciar uma catástrofe apenas por um ligeiro acréscimo no fluxo de doentes nas últimas semanas. Como noutras ocasiões, desde Março de 2020.
A mensagem política e social ao longo da pandemia foi sempre no sentido de a covid-19 não sobrecarregar os serviços hospitalares e sobretudo as urgências, num país com mais de um milhão de pessoas sem médico de família.
Ficaram mesmo célebres as ambulâncias em frente ao Hospital de Santa Maria. Meta-se as palavras “hospitais” e “entupidos” no Google News, e encontraremos uma lista de notícias, umas mais clássicas anteriores à pandemia, outras mais recentes, de 2020, 2021 e mesmo deste ano.
Mas será isto mesmo verdade? Teremos médicos, enfermeiros e mesmo administradores hospitalares à beira da exaustão, como se nada houvesse parecido àquilo que sucedeu nos últimos dois anos.
Fomos fazer contas à vida nos locais onde se evita a morte. Melhor dizendo, o PÁGINA UM foi analisar, em detalhe, um dos indicadores fundamentais da pressão hospitalar: o número de dias acumulados de internamento nas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os dias de internamento constituem não um retrato, como sucede nos picos conjunturais de afluência, mas sim um balanço de um período alargado (geralmente, um mês, um trimestre, um ano), permitindo aferir se existe uma variação relevante na procura de recursos materiais e humanos (médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e auxiliares) para tratamento de doentes em situação mais delicada.
Para isso, recorremos a dados indesmentíveis – ou, pelo menos não desmentíveis, porque oficiais – pelo Ministério da Saúde ou pela imprensa que segue a “espuma dos dias”: a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Independentemente de ter ocorrido, efectivamente, uma maior pressão em diversos sectores hospitalares – sobretudo dos profissionais de saúde que estiveram alocados ao tratamento dos doentes-covid, em grande parte pela maior logística e disponibilidade que exigiu –, os dados do SNS afinal revelam, globalmente, uma evidência que destoa da visão mais “popular”: desde 2017 – período a partir do qual existem registos mensais contabilizando dias acumulados de internamento –, o ano com menor pressão foi o ano passado.
Com efeito, no total dos 12 meses de 2021, contabilizaram-se 5.931.618 dias de internamento, o que contrasta com 6.411.908 dias registados em 2020, que incorporou 10 meses (Março a Dezembro) já afectados pela pandemia. Se considerarmos a média mensal de 2020-2021 (cerca de 514.313 dias de internamento) com a de 2017-2019 (597.694 dias), a queda é de 14%.
Na verdade, antes da pandemia, a pressão hospitalar – medida pela “procura” (ou ocupação) de camas para internamento –, mantinha-se mais ou menos estável, até porque dependia da disponibilidade dos hospitais, tanto em camas “físicas” como em pessoal para tratar os doentes.
De acordo com a base de dados do SNS, os dias de internamento por mês entre Janeiro de 2017 até Fevereiro de 2020 – em vésperas da chegada do SARS-CoV-2 a Portugal – variavam entre os 540 mil e os 660 mil, com os valores mais elevados a ocorrerem, geralmente, no primeiro trimestre de cada ano.
Porém, com a chegada da pandemia em Março de 2020, tudo mudou, sobretudo no mês seguinte, onde quem estava doente via um hospital como se fosse o diabo a ver uma cruz: fugia. Por esse motivo, Abril de 2020 nem sequer contabilizou 440 mil dias de internamento, uma descida de quase 27% face ao mês anterior.
Número de dias de internamento em cada mês na totalidade das unidades do Serviço Nacional de Saúde desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Nos meses seguintes registar-se-ia um ligeiro aumento do número de dias de internamento, até que em Outubro de 2020 a pressão hospitalar atingiu valores considerados normais.
Contudo, com a intensificação da pandemia, e sobretudo com o surgimento da pior fase da covid-19 entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, registou-se nova redução neste indicador.
Mas passada a tempestade, e apesar da manutenção das restrições, justificadas em parte para não sobrecarregar os hospitais com doentes-covid, o número de dias de internamento foram suavemente diminuindo. E mesmo com a chegada do último Inverno. Na verdade, desde Maio de 2021 o número acumulado de dias de internamento estiveram sempre abaixo dos 500 mil por mês. Ora, entre 2017 e 2019 contabilizam-se 16 meses acima de 600 mil dias de internamento.
As realidades foram, contudo, bastante distintas de unidade de saúde para unidade de saúde.
Para fazer uma análise mais fina, o PÁGINA UM seleccionou os centros hospitalares ou hospitais que, entre 2017 e 2019, registaram mais de 500 mil dias de internamento. De forma clara, evidenciam, em quase todos, um impacte brutal entre Março e Abril de 2020, no período de maior pânico, mas as evoluções são depois muito distintas.
Por exemplo, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a queda no internamento foi impressionante. Antes da pandemia, raramente havia um mês com menos de 40 mil dias de internamento. Em Abril de 2020 desceu para apenas 24.393 dias, uma redução da ordem dos 40%.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Ao longo de 2020, a pressão hospitalar, medida por este indicador, aumentou mas nunca chegou ao patamar da “normalidade” anterior à pandemia. Em Dezembro ultrapassou-se ligeiramente os 36 mil dias. Em seguida, ao longo de todo o ano de 2021, observou-se uma tendência de decréscimo, bastante acentuada mês após mês, de sorte que, em Dezembro do ano passado, se atingiu um novo mínimo desde 2017: somente 23.468 dias de internamento.
Situação ainda mais drástica observou no Centro Hospitalar de Lisboa Central – que agrega, entre outros, os hospitais de São José, D. Estefânia, Curry Cabral e Santa Marta. Com número de dias de internamento por mês a situar-se, geralmente, entre os 30 mil e os 40 mil antes da pandemia, a quebra foi bastante acentuada logo em Abril de 2020: contabilizaram-se um pouco menos de 25 mil. Uma queda de quase 33% face ao mês anterior.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Até Dezembro desse ano, o indicador manteve-se sempre em redor dos 25 mil dias, iniciando depois nova queda acentuada, com excepção de Março de 2021. O mês de Dezembro do ano passado foi um período nunca visto desde 2017: somente 11.566 dias de internamento. Face ao máximo mensal registado no período (40.609 dias em Março de 2018), significa uma queda de 72%.
O padrão do “vizinho” Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra, entre outros, os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – foi idêntico, embora com uma queda ainda mais acentuada após a chegada do SARS-CoV-2, que trouxe uma debandada geral às unidades de saúde.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Se antes da pandemia, o fluxo de internamentos mensais situava-se entre os 25 mil e os 32 mil, em Abril de 2020 decaiu para baixo dos 16 mil, um tombo de 47% face ao mês anterior. Houve depois uma “recuperação” nos meses seguintes até Outubro desse ano, mas seguiu-se uma acentuada tendência de descida nos dias de internamento, incluindo mesmo nos meses de pico da pandemia do Inverno de 2020-2021, quando o Hospital de Santa Maria era palco mediático de ambulâncias em fila indiana para “despejar” doentes. Problemas de logística, na verdade. Os últimos dois meses de 2021 ficaram ambos abaixo dos 15 mil dias de internamento – valores que representam cerca de metade da “normalidade” pré-pandemia.
O Centro Hospitalar Lisboa Ocidental destoa deste padrão. Houve efectivamente uma queda abrupta entre Março e Abril de 2020, mas rapidamente se passou para um padrão de “normalidade” pré-pandemia, sobretudo ao longo do ano passado. Porém, até Dezembro de 2021 nunca se chegou a ultrapassar os 20 mil dias de internamento em qualquer mês, algo que sucedeu por vezes no período 2017-2019.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Ocidental desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Fora dos grandes centros urbanos, alguns centros hospitalares também mostraram este padrão. Foi o caso do de Tondela-Viseu. Neste caso, a queda de dias de internamento no início da pandemia foi mais curto – apenas entre Abril e Setembro de 2020 –, mas quando se pensava que os valores deste indicador começariam a estar próximos da “normalidade”, houve nova e mais persistente queda. No último mês do ano passado contabilizaram-se apenas 8.241 dias de internamento, uma queda de 58% face ao mês com maior pressão hospitalar desde 2017 (Julho de 2019).
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Tondela-Viseu desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Muito parecida foi a evolução das unidades de saúde na Região Autónoma da Madeira: uma descida abrupta em Abril de 2020, seguindo-se uma “recuperação” para níveis próximos da “normalidade” pré-pandémica, que perdurou até Março de 2021. A partir desse mês registou-se uma queda acentuadíssima, com o valor de Dezembro do ano passado a rondar apenas os seis mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês nas unidades de saúde da Madeira desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No concelho do Porto observaram-se duas situação muito díspares. No Centro Hospitalar Universitário do Porto, que integra o Hospital de Santo António, registou-se mesmo, após o “susto” inicial de Abril de 2020, um aumento da média de dias de internamento, com um pico em Outubro daquele ano. Porém, a partir de Agosto do ano passado, este indicador desceu para valores bastante baixos, inferiores a 15 mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Porto desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Já no outro hospital da cidade do Porto, o do São João, o cenário foi bastante diferente: apenas os meses de Abril, Maio e Junho de 2020 se registaram dias de internamento abaixo da “normalidade” pré-pandemia, ficando depois sempre em valores sensivelmente idênticos ao período 2017-2019.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de São João desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na mesma linha se encontra o Centro Hospitalar Universitário do Algarve – que integra os hospitais de Faro, Portimão e Lagos –, que após uma repentina descida de um pouco mais de 20% nos dias de internamento entre Março e Abril de 2020, foi depois caminho para uma “normalidade” pré-pandémica.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Algarve desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No Hospital Amadora-Sintra a situação também foi quase similar. Se antes da pandemia o número de dias de internamento se situava quase sempre entre os 20 mil e 25 mil dias por mês, a emergência da covid-19 provocou um abaixamento nas hospitalizações, com o mínimo a ser atingido em Junho de 2020 (16.381 dias). A partir desse mês, o crescimento tem sido gradual, mas ainda não chegou sequer aos 23 mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Amadora-Sintra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No Hospital Garcia de Orta, em Almada, a pandemia não trouxe alterações relevantes na pressão hospitalar. É certo que houve uma queda percentualmente relevante logo no início da pandemia (entre Março e Abril de 2020), mas a a seguir as variações estão dentro de um padrão de “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Garcia de Orta (Almada) desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Situação semelhante se viveu no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro – que integra os hospitais de Vila Real, Chaves e Lamego. Houve, efectivamente, uma queda na pressão hospitalar acentuada nos primeiros meses da pandemia, passando de cerca de 14 mil dias de internamento em Março de 2020 para 10 mil em Maio daquele ano, mas depois os valores regressaram aos padrões de “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Por fim, o Hospital de Braga foi o único, de entre os seleccionados, que acabou o ano de 2021 com níveis de pressão, medidos em termos de dias de internamento, ligeiramente acima do “normal” antes da pandemia. No mês de Dezembro do ano passado registaram-se 20.294 dias de internamento, o segundo valor mensal mais elevado desde 2017.
No entanto, o percurso deste hospital nortenho foi semelhante aos demais com a chegada da pandemia: queda abrupta dos internamentos entre Março e Abril de 2020. Depois continuou sempre em crescimento até atingir valores ligeiramente acima da “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital de Braga desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em suma, a análise do PÁGINA UM mostra, com base em dados oficiais, que foi criado um mito em redor de uma alegada existência de uma pressão hospitalar incomportável criada pela pandemia, e que justificaria restrições sociais e a suspensão de operações programadas.
Na verdade, uma das explicações para esta quebra nos internamentos em grande parte dos hospitais será mesmo a redução de intervenções cirúrgicas programadas, e que resultariam em internamentos de recuperação. Quais as consequências destes adiamentos? O Ministério da Saúde poderá, certamente, responder. Ou melhor, deveria responder.
Será difícil, nos tempos vindouros, encontrar peça jornalística mais infame. Ademais, complementada pelas balelas do mais mercantilista “vendedor da banha da cobra do país” que ostenta (ainda) uma cédula passada pela Ordem dos Médicos.
Este é um sinal dos tempos modernos, do Novo Normal: do conluio entre uma imprensa sem escrúpulos e vergonhosa, alicerçada em médicos que mandaram Hipócrates à merda e que se vendem por 29 dinheiros, porque até se comercializam abaixo da cotação de um Judas.
Hoje, pelas 10h15 horas, na edição online da revisa Visão Saúde, a jornalista Mariana Almeida Nogueira – que, pelo seu número elevado de carteira profissional (CP 8227), não deve ter tido ainda tempo de ler o Código Deontológico – escreve o mais descarado artigo de propaganda de marketing de que tenho memória. Ou melhor dizendo, publicidade pura e dura. E tenho (ainda) muito boa memória.
Para sustentar esta peça: as opiniões de um vendedor encartado pela Ordem dos Médicos, e não investigado a preceito pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS): o pneumologista Filipe Froes.
Qual o tema?
Notícia de hoje na Visão Saúde, assinada pela jornalista Mariana Almeida Nogueira.
Já viram na imagem em cima: Paxlovid, um antiviral contra a covid-19 da farmacêutica Pfizer, apresentado logo no título como o “antiviral campeão de vendas nos EUA”, e que, acrescenta-se ainda, “pode [sempre a velha questão do pode, que pode significar o contrário, ou seja, pode não] pôr a salvo os doentes de risco”.
O lead não seria melhor escrito por uma agência de comunicação; e mal não lhe ficaria.
Mas a imprensa, e um(a) jornalista não pode ser uma agência de comunicação.
O texto da Visão Saúde, através de uma (suposta) jornalista encartada, não pode ter um lead assim: “E se existisse um antiviral capaz de complementar a ação da vacina e de reduzir a probabilidade de estes doentes de risco irem parar ao hospital, terem doença grave e morrerem? E existe mesmo. Chama-se Paxlovid, mas ainda não está disponível no nosso País, nem se sabe quando estará”.
Se fosse a Cristina Ferreira ou o Manuel Luís Goucha a dizer isto do Calcitrin, a gente até aguentava. Mas isto não é “banha da cobra”: é um medicamento que arrisca custar-nos, se levados por esta intrujice de vendedor, muitos milhões de euros sem préstimo. Na melhor das hipóteses.
De facto, toda esta (alegada) notícia é escrita como se fosse inexplicável o não-aproveitamento deste milagre da Pfizer.
Como se estivéssemos perante uma inexplicável negligência do Estado.
Não é o caso. Na verdade, a notícia é puro marketing para favorecer (sem aspas) uma farmacêutica, criando pressão mediática sobre o Governo e o Infarmed para a concretização de um negócio de milhões.
Mas, afinal, do que falamos quando falamos do Paxlovid – questão de pouca relevância para a Visão Saúde, mais preocupada em panfletar o fármaco milagroso da Pfizer?
O Paxlovid é, na verdade, uma combinação antiviral, de toma oral, constituída por dois medicamentos: o nirmatrelvir e o ritnonavir. O primeiro destes medicamentos já tinha sido criado em 2002 para combater o primeiro SARS, mas sem qualquer utilidade prática. Com o advento do SARS-CoV-2, a Pfizer começou então a testá-lo, em conjunto com outros. Apenas em Novembro do ano passado, a Pfizer anunciou um ensaio provisório envolvendo 774 pacientes com sintomas ainda leves ou moderados de covid-19, sobre os quais se avaliava o seu risco de internamento e morte. Em menos de um mês e meio, a farmacêutica apresentou então os resultados finais e, sem grandes demoras, em 16 de Fevereiro passado, saiu um artigo na revista científica New England Journal of Medicine.
Se acham estranha a rapidez da publicação deste artigo – assinado por investigadores da Pfizer (que admiração!) – numa revista científica, que dizer então da celeridade na autorização de comercialização pela Food and Drug Administration (FDA)?
Apenas 11 dias após a imprensa – que passou a constituir a fase crucial para convencer Governos e reguladores – ter divulgado os resultados obviamente extraordinários do Paxlovid, a Pfizer pediu autorização à FDA. Estávamos em 11 de Novembro do ano passado. No dia 22 de Dezembro, quase sem pestanejar, a FDA concedeu uma “autorização de uso de emergência”.
Nunca outro medicamento teve aprovação tão rápida. E isto não é uma boa notícia.
Israel seguiu logo os passos dos Estados Unidos, com uma autorização em 26 de Dezembro. E depois foi em cascata: Reino Unido em 31 de Dezembro e, por fim, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou a autorização de comercialização condicional em 27 de Janeiro passado, deixando aos reguladores dos países europeus solicitar ou não mais testes.
A euforia com que o Paxlovid foi recebido nos últimos meses somente encontra paralelo com o anúncio das vacinas contra a covid-19. Lembram-se?! Daquelas que iriam ter uma eficácia de quase 100%, que concederiam imunidade de grupo e até maior protecção contra as infecções. Lembram-se? Pois bem, os resultados são bem mais modestos, e tanto assim que as autoridades de Saúde – incluindo a nossa DGS – os escondem para uma avaliação independente.
Mas para escoar o Paxlovid, a máquina de marketing da Pfizer ainda está mais oleada, mostrando uma “eficácia” extraordinária na perspectiva de obtenção dos máximos lucros no mais curto espaço de tempo.
De facto, sem uma justificação plausível – e muito menos transparente –, o preço de cada tratamento de cinco dias de Paxlovid nos Estados Unidos custará quase 530 dólares, ou seja, aproximadamente 510 euros. Este deverá ser o preço estabelecido para a Europa.
Os preços dos medicamentos já não reflectem, em grande parte dos casos, os custos de investimento, mas sim os previstos benefícios para a saúde individual e colectiva. Como o Plaxlovid está a ser “vendido” como um fármaco milagroso – apenas com base em ensaios clínicos realizados pela empresa e sem uma análise independente de longo prazo –, anunciando-se uma redução de 88% das hospitalizações, então a farmacêutica pode pedir um valor elevado desde que inferior ao custo de internamento dos doentes que seriam hospitalizados se o medicamento não existisse.
Mas isso é fazer futurologia. O Paxlovid é um medicamento que não mostrou ainda provas. Não justifica compras massivas.
Aliás, em epidemias, muitos medicamentos prometeram muito, e deram pouco, mas custaram muito. Tamiflu, há uma década, ou o Veklury (remdesivir), na pandemia da covid-19, surgem logo à lembrança. Milhões entregues de bandeja às farmacêuticas; resultados zero. Aliás, sobre o Tamiflu, da farmacêutica suíça Roche, corre ainda um processo judicial nos Estados Unidos por falsificação de dados que sobrestimaram efeitos benéficos.
Artigo científico que “explica” como a Roche actuou para vender o Tamiflu em 2009.
Aliás, quem quiser entender como funcionam as estratégias de marketing farmacêutico em tempos de pandemia, basta ler o artigo científico de 2017 intitulado “Pharmaceutical lobbying and pandemic stockpiling of Tamiflu: a qualitative study of arguments and tactics”, no Journal of Public Health.
Mas a máquina da Pfizer quer mais do que vender aos países ricos. Sabe que pode maximizar o lucro se vender o Paxlovid aos países pobres com suposto preço de saldo. Até, supostamente, fica bem na fotografia. Não sejamos ingénuos: as margens de lucro serão muito menores, mas muitas mais vendas sempre dará mais lucro.
E assim, sem perda de tempo, vimos a Pfizer a querer inundar os países pobres com Paxlovid. No passado dia 17 de Março, o Pool de Patentes de Medicamentos, apoiado pelas Nações Unidas, assinou acordos com 35 fabricantes de medicamentos genéricos na Europa, Ásia e América Central e do Sul para fabricar este fármaco e fornecê-lo em 95 países mais pobres.
Dois dias mais tarde, os Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças assinaram um memorando de entendimento com a Pfizer para fornecer Paxlovid com um preço de 25 euros.
No início de Maio, a Pfizer estimava conseguir vender 22 mil milhões de dólares, até final deste ano, de Paxlovid, aproximando-se das receitas da vacina Cominarty (32 mil milhões de dólares).
Obviamente, para esta estratégia ser bem-sucedida, além de uma imprensa ao seu serviço, a Pfizer precisa de pessoas como o Doutor Filipe Froes, um marketeer travestido de médico, que foi “chamado” para a peça da Visão Saúde.
O pneumologista – que já foi o maior “impingidor” de remdesivir, da Gilead, que nos custou 20 milhões de euros sem préstimo algum, a troco de uns bons milhares de euros – está agora vocacionado para vender – e aqui sem aspas – o Paxlovid da Pfizer, tal como virá, certamente em breve, a vender também o Molnupiravir da Merck Sharpe & Dohme (MSD). Ele não é esquisito.
Para que não se tenha dúvidas sobre a índole mercantilista de Filipe Froes – contra todas as regras éticas, deontológicas e até legais, tanto mais que é médico do SNS e consultor da DGS, integrando a equipa que define as terapêuticas anti-covid –, atente-se nas frases usadas pela (suposta) jornalista Mariana Almeida Nogueira (e mais ainda nas aspas que são declarações textuais deste pneumologista; os parêntesis rectos são meus):
1 – Segundo o pneumologista Filipe Froes, perante o que está a acontecer agora em Portugal, a aposta deveria ser feita, precisamente, nas medidas que diminuem o impacto da gravidade da doença, “nomeadamente, o reforço da vacinação e um acesso mais fácil a outras terapêuticas, que já existem noutros países, como os anticorpos monoclonais neutralizantes e os novos antivíricos, dos quais o Paxlovid é um deles”.
2 – Filipe Froes sublinha que “este tipo de medicamentos [novos antivíricos, como o Paxlovid] é muito bem vindo em Portugal e necessário nesta fase de combate à pandemia, que é diferente da fase inicial”.
Filipe Froes
3 – Segundo o médico, o fármaco [Paxlovid] “é essencial, sobretudo na altura em que nos encontramos, por contribuir significativamente na diminuição do impacto da gravidade e da mortalidade nas pessoas mais vulneráveis”.
4 – Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País? Desde janeiro, que a DGS estará a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”, afirma Filipe Froes [que integra a equipa da DGS que define as terapêuticas anti-covid].
5 – O pneumologista considera o medicamento [Paxlovid] “essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”.
Acrescento eu, por fim, apenas mais uma nota: corre na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa contra mim e contra o PÁGINA UM accionada pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), onde Froes tem um lugar de destaque. António Morais – o dito presidente, que também é consultor da DGS e do Infarmed, e não deveria ser por incompatibilidades legais – escreveu que “a SPP é uma associação sem fins lucrativos e não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”, e que “a sua actividade é de natureza científica, recolhendo patrocínios e donativos para os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.
É tudo “gente séria”! Neste caso, as aspas é porque, obviamente, estou a ser irónico.
Os especialistas em oncologia têm estado a alertar para a elevada probabilidade de um aumento significativo de mortes por cancros devido à instabilidade e decisões do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, que levou à redução dos rastreios, diagnósticos e tratamentos. Porém, a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS mostra um surpreendente paradoxo: nunca como nos últimos meses se morreu tão pouco nos hospitais por causa de cancros. Ou os doentes terminais andam a ser enviados para casa ou há embuste…
Em cerca de dois anos de presença da covid-19 em Portugal, não cessaram os alarmes nos últimos meses sobre as consequências da gestão da pandemia nos atrasos nos diagnósticos de cancros. No final do ano passado, a Organização Europeia contra o Cancro estimou que mais de 100 milhões de rastreios não se tinham realizado ao longo de 2020 e 2021 no Velho Continente.
Em Portugal, os especialistas na área Oncologia têm alertado para a iminência de uma “pandemia” de cancros, e de mortes, por via da suspensão e atraso de rastreios e diagnósticos, tanto por razões políticas como pelo medo de muitas pessoas em frequentarem unidades de saúde.
Porém, Portugal é um país suigeneris. De acordo com a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, disponível no Portal da Transparência, o mês com menos mortes causadas por neoplasias foi Janeiro deste ano, o último com informação desde 2017. Mas este não foi caso esporádico.
De acordo com a análise da informação realizada pelo PÁGINA UM, a redução da mortalidade causada pelos mais diversos cancros tem sido anormalmente baixa desde o início da pandemia da covid-19, em Março de 2020. Com efeito, no período pré-pandemia – e desde Janeiro de 2017, data do início do registo –, os óbitos em meio hospitalar por neoplasias situavam-se entre os 800 e os 1050 por mês. Ou seja, sem grandes oscilações.
Geralmente, os valores ligeiramente mais baixos observavam-se no Inverno, mas por uma razão simples: devido à fragilidade de muitos doentes oncológicos, muitas mortes são “antecipadas” por outro tipo de doenças, sobretudos infecções respiratórias como as pneumonias. Ora, tal significava que as doenças respiratórias acabavam por ser consideradas, em alguns casos, a causa do óbito, e não os cancros.
Em todo o caso, com a chegada da covid-19 em território português, as mortes por cancro tiveram uma queda acentuada. Em Março de 2020, os óbitos desceram para 758. Comparando com os meses homólogos do período anterior à pandemia foi uma descida significativa: em 2017 tinham morrido 914, em 2018 foram 873 e em 2019 situaram-se nos 955.
Óbitos totais por mês, por neoplasias, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em Abril de 2020, os óbitos por cancros registados em meio hospitalar ainda desceram mais: somente 678. Nos meses seguintes, apesar de os valores subirem ligeiramente nunca superaram os 830 óbitos.
Com o Outono e Inverno de 2020-2021 – que marcaria o período mais crítico da pandemia, com as mortes por covid-19 a subirem, atingindo, em alguns dias de Janeiro valores a rondarem os 300 óbitos –, os desfechos fatais atribuídos aos cancros reduziram ainda mais. No período compreendido entre Novembro de 2020 e Janeiro de 2021, óbitos mensais situaram-se entre os 700 e os 750. No total, neste trimestre registaram-se 2.173 óbitos por cancro, uma descida de 22% em relação ao período homólogo anterior.
No mês de Fevereiro do ano passado, a queda ainda foi mais notória: 514 óbitos, um valor perfeitamente atípico. Nos meses seguintes, o padrão de anormalmente baixa mortalidade por cancros manteve-se. Sempre abaixo dos 750 óbitos até Agosto, e a partir de Setembro ainda mais baixo. No último mês do ano passado, em Dezembro, as mortes por cancro nas unidades de saúde foi de 554. E em Janeiro deste ano situar-se-ia nos 469 óbitos. Note-se que, nos anos anteriores à pandemia, esta doença matou 900, 967, 980 e 933 pessoas, respectivamente no primeiro mês dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 – ou seja, antes da pandemia.
Óbitos por neoplasias registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O absurdo está assim instalado em Portugal, e será provável que se mantenha, excepto se o Ministério da Saúde esclarecer este paradoxo, que se pode caricaturar: a pandemia “eliminou” mortes por cancro.
Obviamente, na verdade, haverá duas possíveis explicações, que poderão estar conjugadas, mas em qualquer dos casos são graves.
Por um lado, um número muito significativo de doentes oncológicos terminais tiveram – e, provavelmente, em muitos casos de forma injustificada – a covid-19 como causa de morte, inflacionado o impacte da pandemia. E, dessa forma, também de forma injustificada, a estatística dos cancros está enviesada, por subestimada.
Note-se que, nos três anos anteriores à pandemia, as neoplasias causavam por ano cerca de 11 mil óbitos, sem grandes variações, o que é normal face aos padrões epidemiológicos das doenças oncológicas em Portugal. Porém, em 2020 (com nove meses em pandemia) desceu para os 9.398 óbitos, e decaiu ainda mais em 2021: apenas 8.067 – uma descida de 28% face ao triénio anterior à pandemia. São mais de três mil mortes a menos.
No entanto, como estas estatísticas se referem somente aos óbitos registados em meio hospitalar – e, portanto, não se inclui as mortes de doentes oncológicos ocorridas em residências e lares –, poder-se-á sempre dizer – à falta da divulgação de dados oficiais pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), apesar da existência do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – que os cancros passaram a dizimar menos nos hospitais, porque os doentes terminais foram enviados para casa.
Mas, se assim fosse – e significando assim que se abandonariam muito doentes à sua sorte nos derradeiros momentos de vida, o que parece pouco provável do ponto de vista humano –, deveriam então esses dados ser fornecidos de forma clara e transparente, permitindo avaliações independentes sobre o verdadeiro impacte da pandemia na evolução dos cancros.
Se assim não for, se não houver transparência, se o obscurantismo continuar a imperar, uma coisa é certa: o Governo vai anunciar daqui a uns tempos, com pompa e circunstância, que nunca como antes os problemas oncológicos estiveram controlados.
E que o Governo conseguiu recuperar todos os atrasos no rastreio, nos diagnósticos e no tratamento dos cancros. E a Estatística, se o Governo quiser, dirá que as pessoas, de facto, até morrem menos de cancro. Morreram de outras coisas, e cada vez mais, mas não de cancro… E isso será o embuste em todo o seu esplendor.
O PÁGINA UM começa, a partir de hoje, a apresentar um conjunto de análises à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Neste primeiro artigo revela-se que, afinal, houve muitas mortes por covid-19 que “escaparam” a tratamento hospitalar, e que a pressão sobre o SNS foi, na verdade, com excepção de um curto período (Dezembro de 2020-Fevereiro de 2021), atipicamente baixo nos dois anos de pandemia. E essa situação mostra-se evidente sobretudo a partir de Março do ano passado.
São dados oficiais. Indesmentíveis pelo Ministério da Saúde. Os registos da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) revelam que, durante os dois anos da pandemia (2020-2021) morreram afinal menos pessoas nos hospitais portugueses do que nos dois anos anteriores (2018-2019).
E apesar de a covid-19 ter constituído um factor de mortalidade importante (12% dos óbitos nas unidades hospitalares) em 2020 e 2021, estranhamente, ou talvez não, uma parte relevante de doenças mortais acabaram por registar fortes quedas.
A análise do PÁGINA UM a esta base de dados do SNS – com informação detalhada por mês e mesmo por unidade de saúde, incluindo internamentos e óbitos ocorridos em unidades de saúde – desencadeia uma reflexão sobre a forma como decorreu a estratégia política de gestão da pandemia.
Nessa medida, vale a pena olhar para a evolução do registo mensal das mortes em meio hospitalar – que, sem prejuízo do aspecto humano relevante, ademais sabendo-se que houve um acréscimo importante de óbitos fora das unidades de saúde –, pois constitui sempre um indicador fundamental em termos de Saúde Pública. Neste caso, nem que seja por permitir aferir indirectamente o grau de pressão e complexidade dos casos a que sujeita o SNS e os seus profissionais.
Ora, aquilo que se verificou – pegando nos registos das mortes por todas as causas ocorridas em meio hospitalar – é que, com excepção de um curto período, entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, o SNS não denotou uma sobrecarga. No caso de Janeiro de 2021 houve mesmo um evidente colapso com um recorde de 8.590 óbitos. No período anterior à pandemia – e desde 2017, com informação na base de dados do SNS –, nos piores meses contabilizavam-se cerca de seis mil óbitos em meio hospitalar, sobretudo no mês de Janeiro, estando associado aos surtos gripais (causadores de mais mortes por doenças respiratórias) e ao frio (adjuvante de doenças mortais do aparelho circulatório).
Óbitos totais por mês, por todas as causas, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, excluído esse trimestre, ninguém que agora surgisse por aqui sem saber que houve uma pandemia poderia dizer que o SNS esteve sob pressão. Pelo contrário: desde Março do ano passado, o número de óbitos mensais registados nos hospitais do SNS foi sempre atipicamente baixo (sempre abaixo dos 4.000). E esta situação observou-se sobretudo com chegada das estações associadas a uma maior mortalidade (Outono e Inverno). Por exemplo, em Dezembro passado apenas se contabilizaram 3.793 óbitos. No mês homólogo dos três anos anteriores à pandemia, os óbitos em meio hospitalar foram muito superiores: 5.089 em 2017, 4.637 em 2018 e 4.561 em 2019.
O mês de Janeiro deste ano – que já consta da base de dados do SNS – surge com 3.461 óbitos, um valor extraordinariamente baixo, tanto mais que chega a ser inferior aos meses de Verão pré-pandemia.
Mas uma análise mais detalhada desta base de dados suscita ainda mais perplexidades, e muitos questionamentos.
E a começar pelo número de mortes causadas pela própria covid-19. Apesar de ter sido considerada uma doença de elevada infecciosidade – que obrigou, na esmagadora maioria dos casos ao internamento de casos moderados e graves –, constata-se que, afinal, morreram nas unidades de saúde até Dezembro de 2021 um total de 12.837 pessoas devido à acção directa do SARS-CoV-2. Este valor é “apenas” 68% do total dos óbitos contabilizados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) em 2020 e 2021. Ou seja, dos 18.974 óbitos por covid-19 contabilizados até 31 de Dezembro de 2021, houve 6.137 que faleceram fora de unidades de saúde, em lares ou nas suas residências.
Óbitos totais por mês, causados por covid-19 (integrados no grupo “Códigos para fins especiais), registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Saliente-se que, na base de dados do SNS, a covid-19 não surge explicitamente como a causa de morte, mas no grupo das doenças catalogada em “Códigos para fins especiais”. A covid-19 e sequelas associadas (código U) são praticamente as únicas doenças mortais inseridas neste grupo, razão pela qual apenas começaram a surgir a partir de Março de 2020.
Nesse mês, oficialmente morreram nos hospitais portugueses 147 pessoas com esta doença, chegando às 626 no mês seguinte. O período mais negro surgiu, como conhecido, entre Novembro de 2020 e Fevereiro de 2021: no primeiro mês deste período morreram 1.431, em Dezembro 1.643, em Janeiro 3.320 e em Fevereiro 2.512.
Até final de 2021, em mais nenhum mês se ultrapassaram os 500 óbitos. Em Janeiro deste ano – quando se registou uma vaga de casos positivos, com quase 1,3 milhões de casos –, nos hospitais morreram 560 pessoas por covid-19. No entanto, a DGS anunciou, para esse mês, um total de 1.002 óbitos, o que significa que 44% terão falecido fora de unidades de saúde. Ou então os números terão sido empolados.
Se causa estranheza esta relevante discrepância entre óbitos por covid-19 em meio hospitalar e fora das unidades de saúde – o que significará que muitos casos graves causados pelo SARS-CoV, susceptíveis de serem (como foram) letais, não terão assim tido tratamento hospitalar –, maior estupefacção surge quando se confronta a mortalidade por grupos de doenças durante a pandemia com o período homólogo anterior.
Nesta primeira parte, analisamos primeiro as doenças respiratórias – que, supostamente, “beneficiaram” do desaparecimento da gripe e, segundo a DGS, das medidas não-farmacológicas.
Óbitos totais por mês, causados por doenças do aparelho respiratório, registados nas unidades do SNS entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No período 2018-2019, segundo a base de dados do SNS, contabiliza-se a ocorrência 27.285 óbitos por doenças respiratórias. Ou seja, ainda sem influência do SARS-CoV-2. Com a pandemia, durante os anos de 2020 e 2021, as doenças respiratórias não-covid decaíram para apenas 21.171, uma estrondosa queda de 22,4%. Ou, se se quiser, em valor absoluto 6.114 pessoas.
Deste modo, se se juntasse a covid-19 às doenças respiratórias, então durante a pandemia (2020-2021) terão ocorrido em meio hospitalar um total de 34.008 mortes, o que contrasta com 27.285 óbitos no período 2018-2019.
Nesta medida, só por aqui, o impacte líquido da pandemia será muito menor do que propalado: morreu-se muito por uma nova doença, mas, como em consequência “desapareceram” doenças respiratórias que tinham um impacte letal relevante, o saldo não se mostra assim tão elevado.
Óbitos por doenças do aparelho respiratório registados no mês de Janeiro entre 2017 e 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Contas feitas, em meio hospitalar, o acréscimo líquido é de 6.723 óbitos. Mas atenção: na segunda parte da análise, amanhã, veremos que é redutor estar apenas a usar, para calcular o impacte líquido do SARS-CoV-2, apenas as doenças respiratórias.
Aliás, nos últimos meses, a evolução da mortalidade das doenças respiratórias tem sido absurdamente atípica. No ano passado, houve apenas um mês (Janeiro) em que se ultrapassou a fasquia das mil mortes por este grupo de causas. Em 2017 houve sete meses; em 2018 registaram-se oito, em 2019 foram seis, e em 2020 foram apenas três, curiosamente os do primeiro trimestre, ou seja, imediatamente antes e no mês da chegada da covid-19 a Portugal.
Ou seja, literalmente, a covid-19 “sufocou” uma importante parte das doenças respiratórias.
No passado mês de Janeiro – que já consta na base de dados do SNS –, por doenças respiratórias não-covid foram contabilizadas 632 mortes, um valor completamente irrisório para um mês de Inverno. A título comparativo, em Janeiro de 2017 registaram-se, em meio hospitalar, 2.169 mortes por doenças respiratórias, ou seja, cerca de três vezes mais.
Nos livros, o título não diz tudo, ou nem sequer diz nada. O título desta entrevista também não diz, na verdade, nada de muito relevante sobre esta longa conversa com o José Carlos Barros, primeiro que tudo arquitecto paisagista, mas agora o escritor que hoje recebe o Prémio Leya 2021, um dos mais prestigiados da Literatura portuguesa. O galardão serviu apenas como pretexto para se falar, em tom muito informal, sobre o mundo rural, Évora, Arquitectura Paisagista, o ordenamento do território, autarquias, deputados e, já agora, também sobre a Literatura e os sentimentos dos escritores. Afinal, sobre “coisas” que unem pessoas. As fotografias, esta manhã tirada pela lente de André Carvalho, não poderiam ter sido em lugar mais apropriado: o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, desenhado por dois arquitectos paisagistas de eleição: Ribeiro Telles e Viana Barreto.
Partilhamos a mesma alma mater – a Universidade de Évora, e em particular o Departamento de Planeamento Biofísico e Paisagístico, fundado por Ribeiro Telles. Mas eu sou engenheiro biofísico, e tu és arquitecto paisagista. Quando comecei a publicar romances, perguntavam-me o que tinha sucedido para um engenheiro escrever ficção. Ora, conhecendo eu a nossa formação e a tua obra, aquilo que antes te pergunto é: os teus romances seriam diferentes se não fosses arquitecto paisagista?
[pausa] Eu não sei muito bem o que é causa e consequência. Penso que está tudo um bocado misturado. Eu nasci no mundo rural, fui para um curso em que os aspectos do território são essenciais, e continuo agora a viver no mundo rural. Portanto, se não fosse arquiteto paisagista, não sei se não seria à mesma uma pessoa ligada à ruralidade e ao território. Na verdade, olhando para o que escrevo, parece-me evidente haver uma ligação muito grande entre a arquitectura paisagista e a ruralidade.
O pretexto desta conversa é o teu romance As pessoas invisíveis, mas queria abordar o teu percurso de vida. Se pudesses escolher o guião da entrevista, por onde começavas? Pelo arquitecto paisagista que foi assessor do governo socialista, pelo técnico que foi director do Parque Natural da Ria Formosa? Pelo autarca de Vila Real de Santo António? Pelo deputado da bancada do PSD? Pelo escritor, não apenas romancista, mas sobretudo poeta? Ou seja, como te defines de uma forma curta?
Pois, é uma questão complicada. Eu acho que na minha vida escolhi sempre muito pouco. E, às vezes, temos uma presunção que escolhemos muito. Por vezes, há uma força qualquer, à qual alguns chamam destino, e a que outros chamarão matemática. Acredito muito no poder dos acasos, e deixei-me sempre ir muito por eles. Sempre que um acaso me proporcionava uma qualquer situação, uma mudança ou um determinado caminho, aquilo que eu fiz foi apenas deixar-me levar por esses caminhos, pelos caminhos que ia encontrando. Foi por isso que fui parar a Évora, por causa do romance Aparição do Virgílio Ferreira. Eu estava num curso de Ciências, e de repente descubro que se fosse para Évora, havia duas coisas especialmente fantásticas: ia para aquela cidade branca daquele romance, que me tinha fascinado tanto, e podia ser aluno do Ribeiro Telles. Penso que eu fui o único do meu curso que pôs em primeiro lugar a Universidade de Évora. Não propriamente por uma grande escolha, mas porque em determinada altura me lembrei de um livro e de uma pessoa. E o resto foi acontecendo.
Já me estragaste aqui uma pergunta, porque tinha preparado uma para saber como foste para Évora estudar Arquitectura Paisagista [risos]. Até porque nasceste bem longe, na região de Covas do Barroso, em Boticas. Viveste na vila ou em alguma aldeia?
Nasci em Boticas, mas logo no quinto e sexto ano de escolaridade, pedi transferência para a turma B. A outra era a dos meninos da vila, e a turma B era a dos rapazes e raparigas das aldeias. Acho que foi esse o primeiro acaso que me aconteceu.
Havia essa segregação?
Era uma segregação que teria sobretudo razões horárias, de logísticas. As pessoas das aldeias vinham de camioneta para a vila. Não sei se por uma segregação urbana/rural, mas de facto as raparigas e os rapazes das aldeias estavam na turma B. E eu apercebi-me cedo que essa malta parecia mais interessante, porque o seu mundo era mais carregado de coisas: tinha bruxas, animais fantasmagóricos, acontecimentos absolutamente incríveis. E, olhando agora a esta distância, percebo que havia uma ligação relativamente próxima com o sobrenatural. Próxima e quase natural, passo a expressão. O sobrenatural estava muito próximo de deixar de ser sobre.
Ou seja, não terias sido o escritor que és, ou pelo menos com a naturalidade de falar do sobrenatural, se não tivesses passado para a turma B?
Sim, acho que essa foi, de facto, a primeira descoberta importante. Depois, foi o Padre Fontes [António Lourenço Fontes]. Tinha por volta dos quinze anos e fui parar a casa dele. Visitei-o quando ele publicou os seus livros sobre etnografia barrosã. Percebi que alguém estava a valorizar aquilo, ao contrário das outras pessoas que associavam as aldeias ao atraso, e o mundo rural a coisas menores, digamos assim. Portanto, fui para Vilar de Perdizes, e passei alguns fins-de-semana em casa dele. Fui ao Congresso de Arquitectura Popular, onde apareceu, por exemplo, o Nadir Afonso. O destino sempre me reservou umas ligações ao mundo rural, mesmo quando eu parecia sair um bocadinho disso.
Entras num curso e numa universidade, no Alentejo, num meio completamente distinto. Na Arquitectura Paisagista, o teu coração pendeu sempre mais para a parte das paisagens, da Natureza, e menos para os jardins ou espaços verdes urbanos?
Confesso que me fascinam todas as disciplinas da arquitectura paisagista, incluindo o pequeno jardim e pequena intervenção urbana. Aliás, uma crítica que às vezes até se fazia ao meu curso era ser pouco especializado. A ideia de o arquitecto paisagista poder trabalhar com outros técnicos e outras áreas continua a ser das coisas que mais me fascina, e que mais gostaria de fazer. Não faz sentido nenhum estar a separar as disciplinas como por vezes separamos. Ao falar-se de jardins não se deixa de ser falar de Economia. E tudo isso me fascina por igual. É verdade que o meu estágio foi de ordenamento do território, mas fui sendo empurrado mais para aí, para essa ideia de compreensão da paisagem e das ligações do homem ao território. Quando vou de viagem, olho para a maneira como o território foi transformado.
Vives há muitos anos no Algarve. Qual foi o motivo de seguires para o extremo sul depois de uma infância e adolescência no extremo norte? Também foi um livro? [risos]
Foi o fabuloso poder dos acasos: o acaso de me enamorar por uma algarvia, e acabar por me casar.
E ela venceu na escolha do sítio para viverem? [risos]
Eu estou muito ligado ao sítio onde vivo, mas acho que poderia viver em qualquer lugar. Se for uma zona urbana, prefiro que tenha árvores por perto, e espaços onde se possa sentir essa ligação ao que chamamos de Natureza. Por exemplo, umas das coisas que me liga às árvores é quase filosófica: é a ideia de ver o tempo a passar. Eu preciso essencialmente disso. A minha ligação ao território, à Natureza, às árvores e ao campo tem a ver com essa ideia de perceber o movimento do Mundo. Quando saio da porta da minha casa, o que tenho à minha frente são figueiras e alfarrobeiras mais do que centenárias, e algumas já as conheci com o aspecto que hoje têm. As árvores mostram-nos que há coisas que permanecem, e outras que estão sempre a mudar. Essa ideia de permanência e mudança que encontramos na Natureza é bastante importante para mim.
Há pouco falávamos do Ribeiro Telles, que advogava que a paisagem é uma construção humana. Sendo uma construção humana e havendo uma paisagem tão diversificada entre o norte e o sul de Portugal, o que é que molda o quê? É a paisagem que molda o homem ou o homem que molda a paisagem? Ou ambos interagem?
Cada vez mais me parece evidente que a paisagem é o resultado dessa interação. Por um lado, o modo como nos adaptamos às condicionantes, isto se estivermos a falar de comunidades cultas como as comunidades rurais e das aldeias, que conhecem o território. O problema é as comunidades cultas terem deixado de olhar para o território. Cultas no sentido em que percebem os fenómenos naturais e procuram adaptar-se às condicionantes que o território lhes apresenta, e assim transformam o território de maneira a aproveitar os seus recursos. Portanto, a paisagem é, de facto, uma construção humana. O estado do ambiente pode ver-se sempre pelo modo como tratamos a paisagem. Aliás, quando saio de casa e começo a andar na rua, percebo logo que não existe Ministério da Agricultura. A agricultura não está separada do ambiente e do território, e aquilo que vejo, governo após governo, é o Ministério da Agricultura apenas preocupado a distribuir os fundos comunitários. É um bocadinho arrepiante.
Estiveste alguns anos na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e a dirigir o Parque Natural da Ria Formosa. Sentiste essa situação, essa falta de visão? Advém daí a perpetuação dos conflitos quando está em causa a conservação da Natureza e a paisagem?
A paisagem é o reflexo daquilo que nós somos. Por isso dizia há pouco que o estado do Ambiente e da Economia se vê por aí. Para mim isto é evidente há muito tempo, só agora começa a ser consensual que falar de Ambiente é falar de Economia. Não separemos as coisas. Temos um problema de partida: o ordenamento do território é uma disciplina a que ninguém liga ao nível das decisões. Vamos ter não sei quantos milhões da “bazuca” sem que o país esteja preparado para perceber quais os caminhos para chegar aos objetivos genericamente desenhados. Não há apoio para actualizar planos directores municipais (PDM) ou planos regionais de ordenamento do território (PROT). Fez-se, relativamente há pouco tempo, um Programa Nacional da Política de Ordenamento de Território que é sobretudo um plano centralista, muito virado para resolver os problemas de reforço da mobilidade nas duas grandes Áreas Metropolitanas. Mas ninguém ficou muito preocupado com isso. Suscitou muito pouco envolvimento político, mesmo na Assembleia da República, onde eu participei nesse processo. Até parecia um bocadinho estranho que alguém estivesse a perder muito tempo com algo sobre o qual ninguém iria falar.
Referiste a questão de actualização dos planos, mas, se nós formos a ver, os planos anteriores, dos anos 80 e 90, não serviam para muito…
Uma das características do processo de ordenamento do território deveria ser a flexibilidade. Um plano faz-se, e poderia ser alterado depois de uns três ou quatro anos. Esse dinamismo, que devia estar associado aos próprios territórios, nunca foi compreendido. Por exemplo, nos anos 90 fez-se um PDM; passado quatro ou cinco anos houve alterações drásticas das situações e das necessidades e o PDM continuou igual por mais 10 ou 15 anos, já sem capacidade de dar resposta aos desafios que se colocavam. O mesmo com outros planos. Ou seja, nós, de facto, ainda não temos verdadeiramente ordenamento do território.
O facto dos PDM serem tão estanques não se deve também a uma desconfiança relativamente àquilo que os políticos, os autarcas e os decisores podem fazer em benefício de A, B ou C?
Primeiro aspecto: os autarcas e os políticos, de modo geral, fazem aquilo que o povo quer. Eles querem ganhar eleições. A experiência que eu tenho, nomeadamente nos processos de consulta pública em que participei, é de ver que a única preocupação das pessoas era, geralmente, saber se o seu terreno ficava no verde ou no vermelho, se podiam construir ou não. Pouco mais vi, de preocupação, fosse em que plano fosse. Por isso, digo que, em certo sentido, é como se o processo de ordenamento do território ainda não tivesse verdadeiramente começado. Temos dificuldade em passar dessa fase inicial, de entender os planos como coisas que nos dizem se se pode construir ou se não se pode construir. Estes planos, de facto, não dão resposta nenhuma às pessoas, são rígidos e, se calhar, permitem que se olhe para eles conforme os interesses. O meu ponto é este: nós, enquanto sociedade, ainda não valorizamos o processo de ordenamento do território.
No teu romance As pessoas invisíveis, que aliás tem desfecho inesperado, acabas por abordar um curioso e trágico-cómico aproveitamento de informação privilegiada por via de uma decisão política. Inspiraste-te em alguma situação verídica? [risos]
Não. O final do romance é também metafórico. Embora isso não fosse muito evidente, eu gostaria de que a ideia de poder e de ambição fosse atravessando o livro, em várias situações. Portanto, há episódios que eu desejaria que funcionassem como metáforas de poder e de ambição, de coisas que nos desligam do que é essencial.
Mas regressemos ao teu percurso de vida, e à tua experiência autárquica [vereador e vice-presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, entre 2005 e 2013]…
Foi, mais uma vez, o poder dos acasos. Eu era técnico na Direção Regional do Ambiente e na CCDR do Algarve, e fui desafiado para as eleições autárquicas [em 2003]. Como era por um partido que nunca tinha ganhado as eleições [PSD], eu até achei que podia ir à vontade…
Podias candidatar-te à vontade, porque não ias ganhar… [risos]
A verdade é que vencemos durante dois mandatos. E foi uma experiência que muito prezo. Vi pessoas a trabalhar muito nas autarquias, e com uma preocupação de interesse público. Para mim foi muito satisfatório, mas também desgastante, porque é extremamente difícil ser autarca a tempo inteiro, estar muito próximo das pessoas.
Depois tiveste mais dois mandatos como presidente da Assembleia Municipal, certo?
Sim, sem funções executivas. Em Portugal, as Assembleias Municipais não são verdadeiramente valorizadas.
Como é que viveste o caso “bicudo” da anterior presidente da autarquia de Vila Real de Santo António, a social-democrata Conceição Cabrita [detida e acusada por suspeita de corrupção]?
Com normalidade, mas, por um lado, com tristeza, porque me ligava e liga uma relação de amizade. Por outro, também com uma vontade muito grande que a Justiça funcione, e que haja um julgamento e se perceba tudo. De facto, isto descredibiliza não só a política, mas o país todo. Não houve ainda um julgamento, não sabemos que culpas existem. Incomoda-me muito esta ideia de que sejam sistematicamente levantadas suspeitas. De resto, espero que as suspeitas sejam infundadas e, se não forem, pois então, que a Justiça funcione.
Depois, temos o José Carlos Barros deputado…
Fui parar à Assembleia da República por mero acaso.
Mais um acaso… [risos]
Exatamente. Absoluto. Ainda por cima, eu nem era militante do partido.
Ainda não és?
Continuo a não ser. Por nenhuma razão especial. Se calhar não fui ainda seduzido de maneira empolgante. Acho que fui parar à Assembleia da República na sequência daqueles desentendimentos que existem muitas vezes no interior dos partidos. Essa minha experiência como deputado tem aspectos mais positivos e menos positivos. O mais positivo é percebermos como a democracia é uma coisa fundamental, haver diferentes visões do Mundo e que se possam pôr em cima da mesa e discuti-las. Portanto, desse ponto de vista, foi uma experiência extremamente interessante. Agora, nem eu consegui mudar grandes coisas, nem ninguém deve ter ficado muito preocupado com isso. Foram quatro anos em que andei à procura de alguns temas, que não tive a capacidade de demonstrar como eram importantes.
Eu estive a consultar a lista das tuas intervenções, e verifiquei que versaram entre o urbanismo e planeamento, e os assuntos culturais. Mas eu não queria perguntar muito sobre esses aspectos. Prefiro saber com quem trocavas impressões sobre Literatura na Assembleia da República…
Com muito pouca gente.
Queres dizer nomes?
Posso dizer um nome, que nem era da minha bancada: a Isabel Moreira [deputada do Partido Socialista], e inclusive estive ligado, por razões pouco relevantes, à edição de um dos seus livros. É um dos poucos exemplos que te posso dar. Passei quatro anos na Assembleia da República, e a maior parte das pessoas nem sabia que eu escrevia.
E em plenário ou pelos corredores da Assembleia da República, viste deputados com um romance nas mãos?
Não quero ser injusto, porque eu próprio andava com poucos romances na mão. Não serão todos os deputados que levam a actividade da Assembleia da República a sério, mas no essencial é um trabalho relativamente intenso, nomeadamente nas comissões. Há alguns casos muito absorventes; anda-se muitas vezes em corridas, e sobra pouco tempo para outras questões. De qualquer modo, não me parece que a Literatura seja uma das grandes prioridades na Assembleia da República, tal como noutros sítios da sociedade.
Mas teríamos melhores deputados se todos eles lessem pelo menos um romance todos os meses?
Eu acho que a Arte, de um modo geral, e portanto também a Literatura, alarga o nosso entendimento do mundo. As pessoas têm uma visão mais alargada das “coisas” se não estiverem fechadas para as “coisas da Arte”. Por isso, sim, sou dos que acreditam que ler, em particular ficção e poesia, ou ir a exposições, dá às pessoas um entendimento mais alargado do mundo, embora não as faça melhores pessoas [risos].
Tu és simultaneamente poeta e romancista. Eu nunca arrisquei escrever poesia, porque é muito fácil escrever um mau poema [risos]. Mas sei que são ritmos diferentes no acto de escrita. Já disseste que, quando escreves poesia, podes sempre voltar a um poema de tempos a tempos, que não é um processo tão intenso. Posso deduzir que aproveitaste alguns daqueles plenários mais chatos para ir versejando?
A poesia é, de facto, diferente da prosa, porque o romance exige uma disciplina que a poesia não exigirá. Isso é muito evidente; os métodos são diferentes. Mas há também uma outra característica diferenciadora: a poesia vive muito de um relâmpago, da fulguração, da interrogação, do espanto. E esse questionamento, feito de coisas tão intensas, e às vezes breves, pode apanhar-nos em qualquer lado. Portanto, mesmo quando estava mais entediado em plenários, que tinham temas que me interessavam muito pouco, nunca estaria a preocupar-me com a prosa, que exige de facto um outro tempo e um outro momento. Mas admito que, de vez em quando, fui apanhado por essa fulguração e por esse relâmpago que a poesia, às vezes, nos traz.
Tens já uma obra literária muito vasta, com romances e sobretudo poesia. Tens aliás, mais livros de poesia do que romances, e até já tinhas ganhado por duas vezes o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama. Em todo o caso, o Prémio Leya é um dos mais prestigiados. Vamos ter um José Carlos Barros ainda mais empenhado na escrita?
Primeiro, eu gostaria que este prémio ajudasse a que se olhasse melhor para o que eu escrevi, sobretudo na poesia. Muito daquilo que escrevi é absolutamente desconhecido.
Lamentaste mesmo, há uns meses, que o anúncio do Prémio Leya tivesse “apagado” livros de poesia que tinhas recentemente lançado…
Não sei se “apagou”, mas gostaria que pudesse agora contribuir para lhes dar mais visibilidade. Obviamente, a partir do momento em que foi anunciado o Prémio Leya 2021 [em Dezembro passado], ninguém mais me perguntou sobre o meu livro de poemas Penélope escreve a Ulisses ou sobre os meus Poemas do DN Jovem [1984-1989]. No caso da minha poesia, ainda é muito secreta. [risos] Mas o Prémio Leya não vai mudar muito o meu ritmo, desde logo porque eu próprio tenho dificuldade em explicar porque escrevo. Há talvez alguma vaidade, que não será dos sentimentos mais nobres, que nos leva a escrever.
Eu costumava dizer que, em Literatura, escrever é uma espécie de droga dura, dá prazer e sofrimento, e é viciante até pararmos. Falo por mim, que escrevi quatro romances em seis anos, e mais de uma dezena de livros em pouco mais de uma década. E estou há sete anos sem escrever ficção ou não-ficção…
É capaz de haver qualquer coisa parecida com uma adição, sim; porque para mim não é muito divertido escrever. Admito que para algumas pessoas possa ser, mas para mim não é. É uma coisa que me custa, cada parágrafo sai-me com muita dificuldade. Para conseguir uma página que considere boa, demora-me muito tempo.
Quando eu escrevia três páginas numa noitada, sentia-me completamente feliz…
Por isso digo que não é por vencer o prémio que me vou dedicar de imediato à escrita; acho que não tem influência. Há coisas muito mais divertidas para fazer do que escrever. Vou escrever só quando essa inevitabilidade me obcecar. Caso contrário, não vou outra vez meter-me em frente a um muro com uma folha de papel ou um ecrã em branco.
Certo escritor, não me recordo o nome, terá dito: “não gosto de escrever; gosto de ter escrito”… [risos]
Pois, eu percebo isso muito bem, porque o grande prazer vem depois de muito trabalho. Quando percebemos que, depois de muitas dúvidas, há ali qualquer coisa que parece ter chegado a um bom resultado, não é? Aliás, eu olho, por exemplo, para a vaidade que tinham e têm as pessoas do lugar onde eu nasci quando ganhavam o prémio da vaca barrosã. De facto, ganhar esse prémio implica um esforço e uma dedicação; é uma recompensa.
Acontece-te por vezes revisitar um livro e pensar: “isto nem parece que fui eu que escrevi”? Sentir, como leitor, que aquilo está mesmo muito bom…
Sim. Sim, por vezes, sim. Mas eu gosto pouco de reler o que escrevo, porque estou sempre a temer… Para mim, a escrita tem também muito de matemática ou de música, e eu tenho sempre medo de descobrir coisas que podia ter feito melhor, e que não fui capaz, porque o ritmo não está certo. Porque o que está bem feito, é a minha obrigação. Na verdade, não vale a pena fascinar-me muito com o que encontro de melhor. Se perdi tanto tempo, e se fui cuidadoso, é normal que as coisas funcionem. O meu problema é que, quando me releio, estou sempre a encontrar coisas que não estão muito bem.
O Mário Carvalho dizia que os nossos livros nos fazem momices; e deduzo que se referia ao facto de nos apontarem nos seus defeitos os nossos erros… Enfim, mas consideras que é um luxo ser escritor em Portugal, e que quase se tem de pagar para escrever?
Algumas pessoas perguntaram-me o que é que senti quando recebi o prémio. E eu respondi que me agrada receber o dinheiro, ser pago. E não é porque eu goste muito de dinheiro, mas acho uma desgraça não haver esse reconhecimento, de que o acto de escrever deve ser um trabalho pago. Alguns colegas meus, que sabem que escrevo, dizem que a escrita é o meu hobby, como se fosse algo que faço quando não tenho nada para fazer, em vez de ir beber uns copos. Eu não fico ofendido, mas sinto isso quase como uma provocação. Ninguém pede a uma pessoa para executar determinadas tarefas pensando que as vai fazer gratuitamente. Devemos pagar esse serviço que está a ser feito. No caso da escrita, penso que isso é reconhecido muito poucas vezes.
Tem que se mudar esse paradigma?
Sim, claro que sim, porque não se valoriza esse trabalho. Eu sinto isso, diariamente. E há outro drama: pode-se estar anos a escrever, e a fazer até coisas bem interessantes, mas por determinadas circunstâncias não se chegar a ter um editor. É aquilo que acontece com algumas pessoas. Não sei se foi o Picasso que disse – penso que sim, quando lhe perguntaram se ele acreditava na inspiração – acreditar nela, imenso, mas que esperava que quando essa inspiração viesse o encontrasse a trabalhar.
Agora, vamos regressar ao teu recente romance. Qual a mensagem que pretendeste transmitir com as pessoas ditas invisíveis? O que é que te fez ter, como linha central, pessoas sem rosto, mas ambiciosas?
Isto pode ter várias leituras. Eu acho que os bons leitores alargam o próprio entendimento de um livro, não é? Porque se um livro tiver alguma complexidade, há-de ter camadas que o próprio autor, por vezes, nem identifica muito bem. E é através do processo de leitura e de crítica que um livro vai ganhando o seu verdadeiro entendimento. As pessoas invisíveis foi um título que me apareceu, que se me impôs, quando percebi que algumas das personagens surgiam como se não contassem. Aliás, esta ideia das pessoas invisíveis veio-me quando comecei a intuir que aquilo que designamos por interesse público, que gera quase sempre uma factura paga por pessoas que não contam para nada, que são invisíveis. A industrialização da floresta, por pinheiro-bravo, durante o Estado Novo, foi um processo intenso, e que muitas desgraças deu, feito contra o interesse do mundo rural. O mesmo com as barragens de elevado valor hidroeléctrico. Eu admito que haja um interesse público em fazer essas barragens, mas há um conjunto de pessoas no mundo rural que vão pagar essa factura. O mesmo foi com o volfrâmio, e agora com o lítio. Eu não discuto o interesse público em explorar o lítio, o que seria de nós sem as baterias dos telemóveis, não é? Há-de haver um interesse obviamente público, mas o que eu sei é que as pessoas de Covas do Barroso, que eu conheço, ainda antes de ser emitida qualquer licença de exploração, já tinham explosivos à porta de casa, máquinas a abrir buracos por todo o lado, problemas com a água e encostas que estão completamente mexidas de uma ponta à outra. E isto à custa do único valor que aquelas pessoas têm, que é o seu território e a sua paisagem. E, portanto, estão a pagar o interesse público do lítio porque contam pouco. Nesse sentido, o nome do livro foi-se me impondo de uma maneira um bocadinho metafórica, a pensar que é assim que geralmente acontece com o mundo rural. Pessoas que não elegem deputados, ou que elegem muito poucos, não importam muito para a sociedade.
Falámos já sobre a importância do mundo rural e de fenómenos quase paranormais. A tua escrita denota aquilo que se denomina realismo mágico, que está muito associado ao mundo rural. Ora, o mundo rural está em perda. Achas que o realismo mágico desaparecerá na Literatura com a extinção do mundo rural?
Eu acho que sim, porque o mundo rural é um mundo difícil. Eu escrevi sempre sobre o mundo rural, mas eu gostaria que nunca fosse de um modo muito apologético, no sentido de achar que os seus valores são melhores do que os urbanos. Aliás, muitas vezes, tento desarmar esse romantismo à volta do mundo rural. Na verdade, é um mundo muito difícil, muito dependente de factores como o clima e a meteorologia, onde não havia médicos e o Estado nunca esteve presente para ajudar em nada. Portanto, eu diria que era quase normal que as pessoas daquele mundo tivessem que procurar outras ajudas, que vêm tanto da ideia de Deus como do sobrenatural nas suas diferentes formas. E agora, num mundo em que não estamos tão dependentes da Natureza, em que o pensamento se desligou da mão, como diria a Sophia [de Mello Breyner Andresen] num dos seus poemas, acho que, de facto, esta magia vai, naturalmente, desaparecer.
O romance está estruturado em três partes: a corrida ao volfrâmio, no início do Estado Novo; o massacre de Batepá, em 1953 em São Tomé e Príncipe, que eu, aliás, desconhecia; e no período da morte do Sá Carneiro. Que te fez escolher estes três momentos numa narrativa em elipse?
No caso do massacre de Batepá, eu fiquei muito surpreendido com a dimensão daquilo que aconteceu durante uma viagem, e sobretudo por não saber nada até então, o que é uma coisa que me incomoda imenso. Eu quero escrever sobre o meu tempo, mas não consigo fazê-lo sem olhar um bocadinho para trás, para perceber como é que chegámos até aqui. E o que espoletou foi, de facto, essa ideia do massacre. E para perceber como é que se chega a 1953, fui à procura da política colonial e ao que esteve associado. Eu escrevo por ignorâncias, sobre o que não sei, e tenho de ir à procura. Neste processo, descobri que estava afinal a escrever sobre o Estado Novo. Sobre o Portugal do Estado Novo, um país que tinha colónias, mas que, simultaneamente, era um país rural, supersticioso e pobre. Aí, percebi que tinha que escrever sobre essa ruralidade e, ao mesmo tempo, sobre um país que tinha um Império. Ora, eu queria entrar no 25 de Abril exactamente pelo preconceito que tinha, de que ia ser muito difícil um Portugal democrático, por causa de todo aquele passado e dos primeiros anos a seguir à Revolução. Sabendo que corria alguns riscos, a minha ambição era constituir um olhar possível do que é o Portugal do Estado Novo. Não era esse o propósito inicial quando comecei a escrever, mas foi impondo-se.
Então, como fizeste a construção do romance?
Eu andei com este romance dez anos. Comecei a escrevê-lo por causa do massacre de Batepá. Entretanto parei, depois regressei e aquilo já não estava bem. O meu principal método de escrita, para o bem e para o mal, é não ter método nenhum, mas isto é muito propositado. Eu sei mais ou menos sobre o que é que quero escrever, mas quero que seja o próprio processo que me vai dizendo que personagens devem desaparecer ou que devem entrar.
Coloquei-te esta questão exactamente por entender que podias ter começado o romance pelo meio, e depois recuar e, por fim, avançar…
A vida é feita de imperfeições e de acasos, e a cronologia é uma das coisas que conta pouco para a nossa vida. Eu gostaria que a minha escrita não tivesse esse método muito cronológico, pré-definido. O primeiro capítulo foi das últimas coisas que eu escrevi. Enfim, tudo isto levou a este livro; poderia ser outro qualquer. Mas, se eu tivesse tido disponibilidade, de tempo e também mental, para me poder dedicar à escrita, este livro seria provavelmente mais perfeito, e também desinteressante.
[risos] O próprio Machado Assis também dizia que um livro está sempre a ser reconstruído, e é verdade. Provavelmente, se o voltares a ler daqui a uns anos, talvez tenhas vontade de o alterar. Aliás, o final até abre portas para uma continuação, não é?
Sim, embora me apeteça contar outras histórias. Mas, por exemplo, a determinada altura da escrita, eu percebo que há uma questão mal resolvida, que tem a ver com o fim da escravatura. Pensava que a escravatura fora abolida no século XIX, e ponto final. E, afinal, percebi que, através dos sistemas de contrato, e de outros subterfúgios, o fim da escravatura foi apenas um fim legal, e não um fim real. Em 1947, no conhecido relatório de Henrique Galvão [inspector-geral da Administração Colonial, também escritor e mais tarde opositor de Salazar], denuncia-se uma realidade mais grave do que a criada pela escravatura pura. Pode ser complicado imaginar o que será pior do que a escravatura pura, mas, de facto, um escravo, sendo um objecto para o proprietário, esse não gostaria que o objecto se partisse, e até tinha bons hospitais e condições para o escravo durar mais tempo. Portanto, foi o próprio processo de escrita que me foi levando a estas situações, começando por um ponto e puxando pelo novelo. E por aí fora…