O PÁGINA UM é um órgão de comunicação social regido pela Constituição Portuguesa, e cumpre os preceitos da lei portuguesa, não tendo, até à data, cometido qualquer tipo de de irregularidade e ilegalidade.
Ao invés, o PÁGINA UM tem sido, largamente, o órgão de comunicação social português que mais tem recorrido para acesso a informação escondida por entidades públicas, incluindo Governo, sendo prova disso os diversos pareceres favoráveis da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e as intimações no Tribunal Administrativo. Lembremo-nos, a propósito, que o PÁGINA UM até já venceu um destes processos contra o Conselho Superior da Magistratura (que entretanto recorreu).
Tecnológicas como a Meta (Facebook) aplicam ferramentas de censura sob o disfarce de bloquear desinformação.
Tenho, como director do PÁGINA UM, seguido escrupulosamente as regras éticas e deontológicas da profissão, mas sem divergir da linha de independência e de denúncia, mesmo quando envolve outros órgãos de comunicação social ou as entidades que regulam os media (ERC e CCPJ). Não me surpreende assim que haja ataques dessas entidades e nenhuma solidariedade por parte dos media face aos ataques a que estamos sujeitos. Se os criticamos, não podemos depois lamentar a falta de apoio.
Na última semana tem-se intensificado a censura do Facebook, onde se mostra evidente que já não é apenas exercido por um “cego” algoritmo. A divulgação de duas notícias verídicas, confirmadas e confirmáveis, foram banidas pelo Facebook sem sequer dar uma hipótese de se recorrer nem fazer qualquer exposição.
Uma das notícias banidas é sobre o processo de intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Infarmed. O nosso “crime”, para o Facebook, será estar a lutar nos tribunais pelo acesso a informação sobre reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir. Para o Facebook, a notícia do PÁGINA UM constitui “desinformação com potencial para causar danos físicos“.
Para o Facebook, um jornal português lutar no Tribunal Administrativo de Lisboa pelo acesso ao Portal RAM que contém informações anonimizadas sobre reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir constitui um acto de “desinformação com potencial para causar danos físicos“, ameaçando com restrições e desactivação da conta.
A outra publicação do PÁGINA UM banida pelo Facebook foi o podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre as declarações do ministro alemão da Saúde, Karl Lauterbach, na passada semana. Os efeitos adversos das vacinas têm sido um tema de crescente interesse na Alemanha, como se pode verificar na cobertura do tema pela ZDF.
Entretanto, há cada vez mais leitores que divulgam as nossas notícias e que têm recebido castigos do Facebook por causa disso.
Sei qual o objectivo: criar um selo de desqualificação do PÁGINA UM, considerar o PÁGINA UM de site de desinformação.
Comentários a declarações de ministros? O Facebook censura.
Não permitirei isso. Bem sei que esta rede social tem um impacte importante na nossa comunicação – o PÁGINA UM tem quase 20 mil seguidores no Facebook –, mas começa a ser demasiado penalizador mantermo-nos numa rede social que, a cada dia, trata mais de descredibilizar um órgão de comunicação social inteiramente independente do que ajudar na divulgação.
O PÁGINA UM, tendo em conta os seus poucos recursos, não se pode dar ao luxo de esgotar tempo e dinheiro a lutar contra uma rede social que nem sequer tem rosto – não há ninguém sequer a quem se possa expor o que seja.
Por esse motivo, vamos no final do dia de hoje desactivar (veremos se definitivamente) o mural do PÁGINA UM no Facebook.
O jornal continua, obviamente, a sua missão (aliás, estamos numa forte remodelação do design do site, que deverá estar concluída nos próximos dias), pelo que vos convidamos a visitar-nos quotidianamente. Não precisamos do Facebook. Não permitiremos que o Facebook nem outra qualquer empresa sem rosto nem controlo defina o que é verdade, o que é informação. Aliás, convém sempre lembrar-nos que o Facebook é o principal financiador dos conhecidos fact-checkers de origem e rigor muito duvidosos.
Reforçaremos a comunicação através da newsletter (podem subscrever no site) e nas outras redes sociais, nomeadamente no Twitter, no Telegram e no LinkedIn.
Fazemos votos e lutaremos para que a Censura não vença. Damos um passo atrás para, desviando-nos de quem é a favor da obscuridão, avançarmos (e contribuirmos) para um mundo mais transparente.
O senhor Miguel Guimarães, o senhor Filipe Froes e o senhor Luís Varandas, não satisfeitos com as negociatas alimentadas pelo pânico que foram fomentando desde 2020 na gestão da pandemia – e com as quais beneficiaram publica e monetariamente – apresentaram uma queixa-crime contra mim. Sou, desde hoje, formalmente arguido do processo 1076/22.5T9LSB, com o competente termo de identidade e residência.
Não é propriamente novidade. Já em 17 de Agosto do ano passado, eu revelara que os ditos clínicos – usando (e abusando) do estatuto e dos dinheiros da Ordem dos Médicos, porque recorreram e vão continuar a recorrer aos advogados desta associação profissional de direito público – tinham interposto esta queixa-crime e enviaram-na como “elemento de defesa” e como estratégia de diversão no decurso de uma intimação que corria no Tribunal Administrativo de Lisboa para eu aceder aos documentos operacionais e contabilísticos da campanha Todos por Quem Cuida. Queriam, com este truque, influenciar a decisão da juíza de um processo administrativo. Esta sentença foi-lhes desfavorável, como se sabe, mas os ditos médicos não desistiram da queixa-crime.
Miguel Guimarães (terceiro a contar da esquerda) e Filipe Froes (quarto) na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia com o presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, e o investigador Henrique Oliveira, autores de relatórios auto-intitulados como “esboço embrionário, que consubstancia uma mera análise para um eventual relatório).
O fito (único) desta queixa-crime, eu sei qual é.
O Doutor Filipe Froes quer ver-se livre do jornalista que foi responsável por denunciar as suas relações promíscuas com as farmacêuticas, e que provocou um processo de averiguações pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). O Doutor Filipe Froes quer ver-se livre de um jornalista que tem insistentemente pressionado a IGAS para conhecer o desenvolvimento de um processo disciplinar que lhe foi aberto há mais de um ano (em 19 de Fevereiro de 2022), e que assim se mantém aberto por tempo indefinido para supostamente justificar o secretismo das acusações – e assim a culpa cair no esquecimento até morrer solteira [o PÁGINA UM vai intentar novo processo no Tribunal Administrativo para aceder às conclusões do processo de averiguações e ao despacho do inspector-geral da IGAS de 19 de Fevereiro de 2022, por já ter decorrido mais de um ano].
Quanto ao Doutor Miguel Guimarães – para o qual a História, quando for feita de forma isenta, lhe reservará o cognome de Doutor Torquemada [e pode ele queixar-se disto, que eu também me defenderei, até por ser autor de um romance sobre a Inquisição ibérica] –, bem sei que não me perdoa o ultraje de eu não ser um jornalista que o bajula, e que pelo contrário o questiona. E que quis saber o que estava por detrás de uma campanha supostamente de beneficência, mas que acabou, como o PÁGINA UM revelou já, por ser uma montanha de irregularidades e ilegalidades, as quais, num país decente, lhe daria direito a sentar-se no banco dos réus.
Recebimentos de Luís Varandas das farmacêuticas em 2021 e 2022. Directamente da Pfizer foram 12.257,15 euros. Fonte: Infarmed.
Sobre o Doutor Luís Varandas, não tenho muito a acrescentar sobre; apenas mais isto: penitencio-me por não o ter criticado ainda mais, que pouco sempre seria. Um pediatra avençado da Pfizer e que defendeu a vacinação contra a covid-19 em menores de idade (com uma taxa de letalidade de 0,003%), perante os efeitos adversos ainda não totalmente conhecidos, não merece palavras menos que duras.
Da Ordem dos Médicos não se espere nada diferente nos próximos anos. Se o novo bastonário Carlos Cortes escolheu para seu mandatário uma pessoa com o perfil de Filipe Froes, que vista então esse “pobre hábito” que o fará um “rico monge”.
Não havendo muito mais a dizer, nesta fase, sobre o processo, apenas duas coisas acrescento. Primeiro, garanti, por escrito, quando esta tarde fui ouvido, que não aceito, em nenhum momento, qualquer género de acordo ou de suspensão de processo. E, por outro lado, opus-me à eventual desistência de queixa dos três médicos e da Ordem dos Médicos. Ou seja, vai haver mesmo julgamento.
Por mim – espero que também pelos leitores do PÁGINA UM – quero mesmo que este caso, que esta queixa-crime – chegue a um julgamento. Quero vê-los sentados num tribunal, mesmo se eles estejam no sítio errado. Quero que se apure a verdade, porque a minha absolvição será a condenação deles.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos (e judiciais, em geral), incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO.
Eu respondo por ele, citando-o: “Encontrei o equilíbrio que sempre procurei entre as letras e os números quando, há 16 anos, me tornei jornalista ligado à Economia e, em especial, aos Mercados Financeiros. Nascido em Águeda e licenciado em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, trabalhei quatro anos com a delegação em Lisboa da agência Dow Jones Newswires. Passei, depois, mais quatro anos na secção de Mercados do Jornal de Negócios, onde acompanhei de perto a crise da dívida da zona euro. Estou no Observador desde setembro de 2014 e, além da Economia, da Banca e dos Mercados, interesso-me pelas áreas da Tecnologia e da Inovação – tema de uma newsletter que assinei no Observador entre 2016 e 2019. Obrigado por me ler.”
Eu leio o que escreve o Edgar Caetano; e li o que Edgar Caetano e muitos outros jornalistas escreveram durante a pandemia, metendo foice em seara alheia, tocando rabecão sem sequer serem sapateiros, e contribuindo assim para uma certa narrativa única, para um afunilar de supostas verdades factuais, dogmáticas e inquestionáveis, pouco importando se, no meio disto, ostracizavam, silenciavam e difamavam.
Luc Montagnier (1932-2022)
O Edgar Caetano surge aqui como exemplo; mas há muitos mais, que poderiam ser citados – e que, às tantas, terei um dia de os elencar, a todos, porque mostra-se fundamental ser conhecida e discutida uma lista de nomes. A podridão tem de ser libertada para que novos ares pairem sobre a nobre função do Jornalismo.
Mas centremo-nos, por agora, no Edgar Caetano, que hoje, no Observador – tal como muitos outros media mainstream – fez eco da “convicção de Christopher Wray, diretor do norte-americano FBI, que acredita que poderá ter havido um ‘incidente’ num laboratório e que o regime chinês ‘tem feito o seu melhor para ofuscar’ os esforços para identificar a origem do vírus”.
E o ‘nosso’ Edgar Caetano acrescenta ainda que o The Wall Street Journal avançou este fim-de-semana a existência de “um estudo classificado, referente a 2021, do Departamento de Energia dos Estados Unidos, e que foi fornecido à Casa Branca por legisladores americanos”, que também aponta para a criação em laboratório do SARS-CoV-2.
Aquilo que Edgar Caetano, e tantos outros (supostos) jornalistas se esqueceram foi de, à laia de post scriptum (vulgo, P.S.), fazer um mea culpa – de culpa inteira – sobre o seu papel na campanha de desinformação e de difamação que alimentou o público durante os últimos três anos.
Foram eles – e com redobradas responsabilidades, atendíveis as suas funções de jornalistas – mais perniciosos na criação de fake news e de manipulação do que os teóricos das conspirações estapafúrdias (que também os há) atrelados (sempre, claro) à extrema-direita (que também os há, e cada vez mais, como falência democrática).
Mas vejamos o caso concreto do ‘nosso’ Edgar Caetano – e a razão, vista está, da minha fúria.
Em 19 de Abril de 2020 – está agora a fazer quase três anos –, o mesmíssimo Edgar Caetano escrevinhou uma “peça” – chamemos-lhe assim como sinónimo de asco – de pura difamação sobre um notável virologista, recentemente desaparecido, Luc Montagnier – e que, mesmo agora morto, perceberá mais de Ciência do que este ‘nosso’ Edgar Caetano com uma overdose de Memofante.
Reza assim essa infame “peça” de Edgar Caetano: “A teoria circula há vários meses e já foi desmentida por vários cientistas. Mas um controverso virologista francês laureado com o prémio Nobel pela pesquisa sobre o HIV, Luc Montagnier, acredita que o vírus saiu de laboratório em Wuhan e defende que a explicação mais consensual – uma transmissão com origem num ‘mercado vivo’ da cidade chinesa – é uma ‘história da carochinha’. A declaração está a causar polémica, com outros investigadores a descredibilizar Montagnier, considerando que o investigador premiado tem estado ‘em decadência acelerada nos últimos anos’.”
Notícia de Edgar Cardoso usou tweet de obscuro estudante de doutoramento, Juan Carlos Gabaldon, como prova de uma suposta decadência física e mental de Luc Montagnier.
Para “confirmar” a tal “decadência acelerada nos últimos anos” de Luc Montagnier, Edgar Caetano não encontrou melhor ‘prova’ do que um tweet de um estudante de doutoramento de doença das Chagas, um tal Juan Carlos Gabaldón.
E para confirmar o suposto desmentido de “vários cientistas”, Edgar Caetano remeteu simplesmente para um artigo da Nature de 17 de Março de 2020, cujo autor principal é o dinamarquês Kristian G. Andersen, de um instituto de investigação (não-universitário) norte-americano, que a partir daquele singelo artigo coleccionou financiamentos federais, a começar pelo de 8,9 milhões de dólares do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), então liderado por Anthony Fauci.
Note-se que, através de e-mails “vazados”, e verídicos, soube-se, entretanto, e o próprio The New York Times destacou, que Kristian G. Andersen até suspeitara inicialmente da origem manipulada do SARS-CoV-2. Tal como Luc Montagnier.
Na mesma linha, e usando exactamente o mesmo tweet do obscuro estudante de doutoramento para sustentar o descrédito de Montagnier, seguiu a jornalista Teresa Campos, da revista Visão, em 20 de Abril de 2020. Descredibilize-se o mensageiro para descredibilizar a mensagem – eis a receita infalível dos cretinos.
[Sou apologista de descredibilizar a mensagem para descredibilizar o mensageiro; este editorial tem essa função]
Enfim, foi assim, com os Edgares Caetanos de certa vida airada do jornalismo, que se criou rapidamente uma Narrativa. Tudo inquestionável. Tudo facilmente descartável se fosse diferente. Tudo menorizado, se fosse controverso. Tudo tachado de “falso”, se soasse a crítica. Tudo feito, alegre e diligentemente, por acríticos escribas, a maioria sem qualquer formação científica, sem qualquer capacidade crítica, sem quaisquer princípios deontológicos.
Isolar, misturar e conspurcar – foi esta a estratégia. Isolar da comunidade científica quem fugisse da narrativa. Misturar essa pessoa com as mais estapafúrdias teorias (que as há) para a tornar menos racional. Conspurcar a sua credibilidade, bastando escribas de serviço para lhes colocar epítetos, deficiências e outras demais maleitas, servindo tudo para escarmento dos demais.
[Vejam no dicionário o significado de escarmento, se não souberem, porque era termo muito usado pela Inquisição – onde muitos jornalistas desta geração se sentiriam bem como esbirros –, de sorte que uma punição não servisse apenas para o castigado.]
Em três páginas apenas, acompanhadas por um gráfico, o artigo de Kristian Andersen “oficializou” a origem natural como causa do surgimento do SARS-CoV-2, refutando todas as hipóteses, que a imprensa mainstream tratou de descredibilizar. O artigo tem, neste momento, 5.599 citações científicas. E agora?
Aliás, quando Luc Montagnier questionou a origem do SARS-CoV-2, lestos foram os fact-checkers (em Portugal e por esse mundo fora) a analisarem afirmações – nunca confirmadas – de um outro Prémio Nobel, Tasuku Honjo – para sobretudo denegrirem o virologista francês e garantir a irrefutável certeza da origem natural do vírus atribuída pelo agora afortunado (no sentido monetário) investigador dinamarquês.
O Polígrafo, por exemplo, foi em Portugal um dos ponta-de-lança mais activos nesta campanha, “desenterrando” muitas vezes, teorias da conspiração – quanto mais estapafúrdias melhor – para negar a possibilidade de debates sérios. Veja-se o caso de um fact-checking de Gustavo Sampaio de 20 de Março de 2020, onde a pretexto de uma hipotética e absurda tese (vinda de um simples post de origem não identificada das redes sociais) de alguém ter criado um vírus para matar 1% da população (como se houvesse essa possibilidade de “programação”), se insiste na irrefutável origem natural do novo coronavírus.
[Já agora, o “artigo” de Gustavo Sampaio teve o ”Alto Patrocínio” da Direcção-Geral da Saúde e do Facebook, o que convém sempre destacar. E também convém relembrar que o Polígrafo participou num projecto de suposto jornalismo colaborativo denominado CoronaVirusFacts Alliance, uma união de fact-checking para “verificar” (aspas minhas) a veracidade das informações colocadas a circular online]
Também sobre o tema da origem laboratorial do SARS-CoV-2, o Observador até fez, na altura, dois fact checkings, em 9 de Fevereiro e em 18 de Março de 2020, sempre pela jornalista Marta Leite Ferreira – mais uma ponta-de-lança do jornalismo português para a criação da dogmática narrativa oficial da pandemia – que, agora, a devia fazer corar de vergonha, se a vergonha fosse atributo que ela reconhecesse.
A forma como a diligente imprensa mainstream, através de jornalistas sem coluna vertebral e sem princípios deontológicos, tratou supostos “dissidentes” da narrativa pandémica – na origem do vírus, na eficácia das máscaras, nos certificados digitais como estratégia de controlo da transmissão, na necessidade de vacinação de menores e jovens saudáveis, na “justeza” da discriminação de não-vacinados, na recusa de debater efeitos secundários das vacinas, etc. – ficará como uma Página Negra (que digo!, uma enciclopédia inteira) do Jornalismo.
Veja-se ainda, por exemplo, o que, a páginas tantas, a jornalista Clara Barata, do Público, escreveu recentemente, em 12 de Janeiro, à laia de obituário de Luc Montagnier, com uma passagem completamente infame:
“E continuou [Luc Montagnier] a avançar com as suas ideias controversas. Por exemplo, em 2020, afirmou numa entrevista a um site e depois na televisão CNews (uma espécie de Fox News francesa) que o vírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19, teria sido fabricado em laboratório a partir do vírus VIH-sida. ‘Não é natural, é um trabalho de profissional, de biólogo molecular, de modificar as sequências [genéticas]. Com que objectivo? Não sei (…) Uma das minhas hipóteses é que queriam fazer uma vacina contra a sida’, disse na televisão.
A tese de Luc Montagnier – que não convence a comunidade científica – era muito parecida com a de um estudo indiano publicado online, sem ter sido submetido a avaliação pelos pares, e muito contestado pelos especialistas, relata o Le Monde. O artigo evocava ‘uma semelhança estranha’, ‘que tem poucas hipóteses de ser fortuita’ nas sequências de aminoácidos de uma proteína do SARS-CoV-2 e outra do VIH-sida.
Apesar de desacreditado pelos cientistas, este artigo fez sucesso entre os aficionados das teorias da conspiração, e correu muito pelos sites sensacionalistas, antes de ser retirado pelos próprios autores. Aquelas sequências de aminoácidos eram afinal banais, e podem ser encontradas em inúmeras proteínas.”
Em 13 de Março de 2020, numa famosa homília que deveria envergonhar um jornalista, Rodrigo Guedes de Carvalho disse: “Aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra. A vocês pedem-vos para ficar no sofá. Tenham noção“.
Aquilo que Clara Barata merecia agora, se fosse cientificamente possível, era uma visita fantasmagórica de Luc Montagnier para levar com uns calduços.
Enfim, depois disto, espero que Edgar Caetano, Gonçalo Sampaio, Marta Leite Ferreira, Clara Barata e tantos outros aqui não citados (mesmo merecendo), “tenham noção”, como disse, num também infame contexto, Rodrigo Guedes de Carvalho. Aliás, este, por tudo aquilo que fez e disse, nem perdão merece. Apenas asco.
A Dra. Licínia Girão, actual presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), tem vindo a recusar o acesso a documentos administrativos ao PÁGINA UM, nomeadamente o acesso a processos e pareceres já concluídos ou iniciados há mais de um ano, às simples actas das reuniões do Plenário (integrando apenas jornalistas) – que não contêm sequer dados nominativos na acepção do Regulamento Geral de Protecção de Dados – e remunerações e senhas de presença.
Além disso, a CCPJ tem fechado os olhos a um conjunto de denúncias sobre promiscuidades dos jornalistas e de grupos de media, considerando, por outro lado, que as notícias que temos publicado sobre a sua presidente – e o seu paupérrimo currículo face ao que a lei exige (jurista de mérito) – são uma perseguição.
Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, eleita por supostamente ser “jurista de mérito”
De entre esses documentos está, por exemplo, o processo iniciado em Dezembro de 2021, após denúncias do PÁGINA UM, ao jornalista-director e administrador da Global Media Domingos de Andrade por estar envolvido em contratos comerciais com autarquias. A CCPJ a contragosto aplicou já este ano uma multa irrisória de mil euros e nada mais. Parece que o Ministério Público vê agora infracções criminais, muito mais graves, do jornalista Domingos de Andrade, que candidamente ainda ostenta a carteira profissional.
A CCPJ protege este tipo de jornalistas, este tipo de gente que conspurca a nobre função de jornalista, enquanto, na verdade, persegue quem denuncia as promiscuidades na imprensa mainstream.
Por isso, a sanha da CCPJ e dos seus membros (todos jornalistas) ao PÁGINA UM e, particularmente, a mim.
Começou em Agosto do ano passado através de um vergonhoso parecer ou recomendação – aparentemente nunca feito para outro jornalista (essa é uma das questões que a CCPJ não pretende esclarecer, mesmo depois do parecer da CADA) –, assinado por Licínia Girão e Jacinto Godinho, a pedido de António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia por causa de notícias publicadas pelo PÁGINA UM.
A Dra. Licínia Girão e o Prof. Jacinto Godinho decidiram criticar o rigor e objectividade das notícias do PÁGINA UM, omitindo descaradamente que essas notícias por mim assinadas eram não apenas factuais como resultaram num processo de contra-ordenação e na destituição de António Morais de consultor do Infarmed.
Eis o prémio da CCPJ ao jornalismo de investigação e incómodo, que denunciou a evidente e comprovada promiscuidade entre sociedades médicas e a indústria farmacêutica: uma “censura”. Feita a um seu par, que nem sequer quiseram ouvir e nem sequer o informaram previamente sobre aquilo que estavam a “cozinhar”.
Jacinto Godinho, jornalista da RTP, professor de Comunicação Social na Universidade Nova de Lisboa e membro do Secretariado da CCPJ.
Há patifes com mais ética.
E continuou a CCPJ com as atitudes arbitrárias contra o PÁGINA UM e contra mim – em proporção aos contínuos casos de denúncias das promiscuidades na imprensa que temos revelado (vd. aqui este exemplo, mas há tantos mais) –, como seja a não aceitação de uma participação para a abertura de um processo (mesmo que, depois, justificadamente, o pudessem arquivar) contra os jornalistas da CNN Portugal que me difamaram – e difamaram o PÁGINA UM – logo nos primeiros dias de existência de um projecto independente, e por isso incómodo.
Apresentando uma queixa formal ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Leitura aprazível para quem acha que o Jornalismo ainda não desceu ao fundo do poço – e, por uma questão de transparência, deve ser publicamente conhecida.
Primeira página da queixa de Licínia Girão enviada ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
O mais curioso no relambório de 16 páginas e 88 “quesitos” que constituem a douta queixa da Dra. Licínia Girão nem sequer será o facto de, em grande parte, remeter-se para notícias do PÁGINA UM de Agosto do ano passado, sobre matérias que, por duas vezes, nem sequer quis esclarecer.
O mais curioso também nem sequer será o facto de o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas ter diligentemente já tratado da “acusação” – demorou 10 dias corridos – com questões sobre estilos de escrita, usos de adjectivação (produto de interpretação e qualificação de factos) e até uma capciosa pergunta sobre se eu “sabia ou procurou saber se existiria algum contexto que explicasse o desempenho da denunciante [Licínia Girão] nos referidos exames [do CEJ, em que “chumbou” com péssimas notas]?.
Não. O mais curioso na queixa da presidente da CCPJ (que comprova, por si só, que de fecto, não pode ser uma jurista de mérito, porque isso pressupõe valores dos quais carece) são dois pormenores – que darão uma tese.
Primeiro pormenor, a Dra. Licínia Girão quer usar o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – e manipular uma entidade que se presta a fazer o jogo sujo. Por uma razão simples: este Conselho Deontológico tem uma relevância apenas de carácter censório, mas sem qualquer dever de cumprimento de normas procedimentais que garantam uma apreciação justa e equitativa. Se os membros do Conselho Deontológico me quiserem censurar de forma injusta, nada mais me resta do que eventualmente processar os seus membros por difamação.
Mas uma censura – mais uma censura – é sempre uma tentativa de descredibilização do meu trabalho, do rigor e independência do PÁGINA UM, para que, desse forma, elimine as denúncias sobre as promiscuidades entre a imprensa mainstream (com muitos jornalistas a “venderem-se”) e o mundo político e empresas privadas. E não estamos a falar de uma denúncia ou outra. Foram dezenas, envolvendo praticamente todos os grandes grupos de media. E mais estão na forja. Todas de grande gravidade.
Aliás, note-se bem: a estratégia de descredibilizar o PÁGINA UM com “processos”, “deliberações”, “recomendações”, “queixinhas” e quejandos já foi seguida, por duas vezes, pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Já por duas vezes o regulador da comunicação social tomou deliberações contra o PÁGINA UM após publicarmos notícias que acabaram por dar processos instaurados pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
Meteu a ERC depois a viola no saco – incluindo a desistência de uma queixa judicial por alegada difamação –, mas conseguiram denegrir-me. Ainda hoje, em pesquisas no Google, encontro referências ao suposto episódio de Agosto do ano passado na sede da ERC onde eu teria tido alegados comportamentos impróprios.
Sede da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Enfim, sei – todos sabemos – e conheço as tácticas de guerrilha para “matar” (denegrir) o mensageiro para que não exista mais mensagem…
Mas voltando à vaca fria, isto é, à Dra. Licínia Girão – ou melhor dizendo, à queixa da Dra. Licínia Girão, não se vá dizer-se que lhe estou agora a chamar nomes –, deveríamos colocar-lhe uma questão: por que razão a CCPJ solicitou uma intervenção ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas quando, alegadamente, estarão em causa violações (minhas, presuma-se) do código deontológico com implicações disciplinares?
É que, hélas, a CCPJ tem acção disciplinar sobre mim, conforme estabelece o Estatuto Disciplinar dos Jornalistas. Mas, nessas circunstâncias, a Dra. Licínia Girão ver-se-ia obrigada a seguir um procedimento detalhado, incluindo instrução, o que implicaria várias coisas.
Implicaria a necessidade de explicitar e justificar em concreto as minhas supostas violações éticas e deontológicas.
Implicaria conceder-me direitos de defesa.
Implicaria eu poder indicar testemunhas e exercer muitos outros direitos.
Uma chatice. A Dra. Licínia Girão arriscar-se-ia a, querendo tosquiar-me, sair tosquiada.
Palácio Foz, sede da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.
Por isso, das duas, uma: ou o envio de uma queixa para o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas é uma assumpção da incompetência da CCPJ em me fazer um julgamento justo, ou então considera que existem melhores condições para me censurarem encontrando quem se predisponha ao frete de fazer jogo sujo.
Na verdade, pelo tom pidesco com que me pediram já “comentários” – e aqui divulgo o “interrogatório” do dito Conselho Deontológico, também por transparência e para que se possa discordar da minha visão –, dá para perceber que estão disponíveis para executar a tarefa. Se me quiserem mesmo ouvir terá de ser presencialmente e tudo gravado – já lhes fiz saber. De contrário, façam todos bom proveito do frete.
Não é a primeira vez, como se viu em Janeiro do ano passado, quando o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, através de um então seu membro (Filipe Caetano, da CNN Portugal, estação que vilmente difamara o PÁGINA UM), me quis também levantar um processo por violação do código deontológico.
Na primeira vez, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas meteu a viola no saco. Mas há sempre uma segunda vez…
Domingos de Andrade, o primeiro de muitos “casos de polícia” da imprensa mainstream portuguesa.
Enfim, estar a CCPJ, com as competências que detém, a apresentar uma queixa contra mim ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas seria o mesmo que um juiz de um tribunal criminal se queixar de mim à Provedoria da Justiça.
Por fim, o segundo pormenor interessante da queixa da Dra. Licínia Girão.
No final de um vasto rol de “acusações”, que ela me atira, até sobre aspectos que nunca antes quis esclarecer, desfere ela – ou tenta desferir – um fino ferrete sobre mim nesta época de wokismo e de #MeToo.
No ponto 87 da sua extensa queixa, escreve a Dra. Licínia Girão, à laia de epílogo, o seguinte: “Ou seja, os conteúdos desonrosos, fantasiosos, falsos e ofensivos sobre a peticionária queixosa [ela, claro] começaram a surgir três meses depois de a denunciante assumir funções na CCPJ e depois de uma outra jornalista ter desempenhado as mesmas funções.”
Portanto, o Pedro Almeida Vieira é um misógino! É isso? Claro. Fogueira com ele, portanto, não é? Claro. Que sirva eu de escarmento para os demais que critiquem e exponham a insindicável Dra. Licínia Girão, que lhe descubram incongruências, as chico-espertices e as inaptidões para uma função de inegável interesse para o jornalismo, mas que ela tão maltrata por acção e inacção.
Por alguma razão – aliás, por muitas – acusei Licínia Girão e Jacinto Godinho, seu compagnon de route no Secretariado da CCPJ, de serem os carrascos do Jornalismo. Esperemos que os casos de polícia, que agora se iniciam com o caso de Domingos de Andrade, não se amontoem até terem de chegar um dia às portas do Palácio Foz, à sede da CCPJ.
No 16º episódio de Que nos salves, São Francisco de Sales, o padroeiro dos jornalistas, Pedro Almeida Vieira faz uma resenha das críticas de jornalistas e opinion makers que zurziram nas medidas “fascistas” da nova lei do tabaco por ir contra o livre arbítrio e o direito de opções individuais. Mas onde estavam estas pessoas quando calaram ou até apoiaram medidas discriminatórias, segregacionistas, autoritárias e totalitaristas contra quem, legal e voluntariamente, optou por não se vacinar contra a covid-19, mesmo se tivesse imunidade natural garantida?
Onde estavam estes defensores da liberdade, que agora classificam a nova Lei do Tabaco como fascista, quando foi imposto um certificado digital sem razoabilidade epidemiológica, e quando os não-vacinados não podiam viajar, entrar em restaurantes, em espectáculos e em ginásios? Não andaram eles até a chamar negacionistas a torto e a direito? E afinal, tal como o fumador, o não-vacinado também, na pior das hipóteses, se prejudica a si próprio… e estava a exercer o livre arbítrio e o direito de escolha sem prejudicar os outros (porque nunca houve imunidade de grupo e o risco de transmissão era praticamente similar aos vacinados).
Esta gente que critica a Lei do Tabaco esteve calada antes porquê?
No início deste ano, a Casa das Letras – uma das chancelas da Leya – publicou uma obra colossal, de grande profundidade investigativa, da inglesa Judith Mackrell que, fugindo da sua zona de conforto – é especialista em dança –, produziu uma obra de fôlego sobre “seis mulheres [jornalistas] extraordinárias na linha da frente da II Guerra Mundial”. Espero, na PÁGINA UM, ter ainda oportunidade de escrever sobre esse livro de extensas mas preciosas 526 páginas.
Presumo que, apesar da excelência desta obra, as vendas não o tornem em sucesso comercial; e no mundo editorial sabe-se bem que há livros que só se publicam por outros havendo, mais comerciais, que os suportam. Um desses livros comerciais, de sucesso garantido, e de uma outra chancela da Leya – a Oficina do Livro –, será o de Helena Ferro de Gouveia, Mulheres na guerra .
Antiga jornalista e actual administradora da Global Media e da Lusa, Helena Ferro de Gouveia é também comentadora da CNN Portugal, onde não se furta em defender intransigentemente as mulheres, enquanto debita sobre os mais variados assuntos, por vezes com as mais desvairadas teses.
Enfim, a discutida nunca mal fez ao mundo – bem pelo contrário. Tempere-se com o posfácio de Ana Gomes. Isto, em Literatura faz vender. Mas aquilo que deve ser o foco de uma recensão é o livro, em si mesmo, a sua qualidade intrínseca. E este de Helena Ferro de Gouveia, sejamos completamente francos e justos, é um perfeito díspar, se o propósito tiver sido mesmo (e desconfia-se que não foi) o de revelar e destacar “mulheres na guerra” ao longo da História – séculos ou milénios, portanto –, “catalogando-as” em combatentes, em comandantes (rainhas), em jornalistas e em espias.
Livros deste género – com uma selecção de perfis ou de histórias ou eventos reais – não são novidade; são até banais na Literatura – e, de forma despretensiosa e não necessariamente depreciativa, servem a propósito muito limitados: divulgação histórica e/ ou de leitura prazenteira para aumentar um pouco a cultura geral.
Podemos, em Portugal, destacar a Coleção 10, escrita nos anos 40 e 50 do século passado pelo jornalista Américo Faria (hoje esquecido), composta por cinco dezenas de títulos com os mais variados temas, cinco dos quais exclusivamente dedicados às mulheres: Dez beldades perigosas (nº 16), Dez amorosas românticas (nº 22), Dez rainhas que reinaram (nº 31), Dez mulheres no crime (nº 41) e Dez favoritas reais (nº 47). E que, aliás, merecia maior atenção das editoras para uma eventual republicação [a editora Parsifal reeditou três destes títulos em 2013 e 2014).
Neste género de obras, onde mais rapidamente se falha é logo na selecção, mesmo antes de se começar a escrever – e, nesse aspecto, diga-se, Helena Ferro de Gouveia escreve bem e em forma enxuta, pese embora os capítulos sofram, entre eles, de alguma desarmonia narrativa, permanecendo ausente um estilo uniforme, variando aqueles entre a reportagem e a compilação wikipediana . Sobre dedilhar texto não poderia deixar de se esperar outra coisa numa antiga jornalista que até se arvora de ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”.
E é, de facto, na selecção das suas heroínas que a autora cometa um erro de palmatória: mostrou que a sua intenção não foi divulgar mulheres automáticas, mas sim compor uma obra panfletária, tão panfletária que a torna ridícula. A si e à obra.
Com efeito, a tarefa de escolher um leque de mulheres que, efetivamente, “merecem” ser destacadas num livro deste gênero nunca seria fácil. E quanto mais se reduz o lote, para duas dezenas (na verdade, em Mulheres na guerra são 19), mais exige ser os critérios para a inclusão das eleitas numa lista final, na lista definitiva, apresentada aos leitores.
E foi aqui – nas suas escolhas – que Helena Ferro de Gouveia se estatelou ao comprido, deu tiros nos pés, mostrando que este livro lhe serviu somente para “piscar o olho” – como faz a militar que empunha a arma na capa do livro – aos leitores, colando-o à Guerra da Ucrânia.
Quem ouve Helena Ferro de Gouveia na CNN Portugal compreende que, aos seus olhos, a invasão da Rússia de Putin (um ditador que, convenhamos, não “nasceu” em Fevereiro de 2022) é a primeira e única barbárie cometida ao cimo da Terra desde que Deus criou Adão e depois Eva.
Mas daí até seleccionar, num livro que destaca apenas 19 mulheres na História da Humanidade – sendo que a primeira é Fu Hao, uma das esposas do imperador Wu Ding, da dinastia Shang, que viveu no século XIII antes de Cristo –, duas jovens mulheres ucranianas (com um papel pouco mais que simbólico) é estar a gozar com a História. E com os leitores.
Não tenhamos dúvidas que são enternecedoras as recentíssimas histórias de coragem de Kateryna Polishchuk – que ficou conhecida por Birdie, durante o cerco de Azovstal – e de Olesia Vorotnyk, a bailarina da Ópera Nacional da Ucrânia que pegou em armas pelo seu país. Provavelmente, darão bons enredos hollywoodescos. Mas, caramba!, há que ter noção: quando se oferece ao prelo um livro sobre “mulheres na guerra”, pegando em toda a História, como se pode colocar estas duas ucranianas, nossas contemporâneas, ao mesmo nível das restantes 17?
Não confundamos, num contexto histórico, a beira da estrada com a Estrada da Beira.
Como podem, na História, estas duas ucranianas “destronar” (porque Helena Ferro de Gouveia as omitiu) mulheres como a rainha celta Boadiceia, Joana d’Arc, Isabel I de Inglaterra, a Rainha Ginga, Anita Garibaldi, Catarina a Grande, Harriet Tubman, Maria Quitéria ou até Dilma Rousseff, se se quiser chegar à contemporaneidade? E isto, hélas, sem aqui incluir a famigerada Brites de Almeida, a portuguesíssima Padeira de Aljubarrota. Ou a injustiçada na História de Portugal, Teresa de Leão, condessa de Portucale e mãe de D. Afonso Henriques.
Na ânsia de promover duas simples ucranianas – sem desprimor da coragem – ao pináculo das heroínas ímpares da secular História da Humanidade no feminino, Helena Ferro de Gouveia aparenta nem sequer se ter aconselhado previamente com o prefaciador da sua obra, Duarte da Costa, porquanto este até elenca muitas figuras femininas de grande proeminência que deveriam, obviamente, por tão evidente, estar incluídas nos seus capítulos.
Por fim, além de tudo isto, se o seu objetivo era escrever sobre mulheres guerreiras ao longo da História, sempre deveria Helena Ferro de Gouveia ousar-se mais nas pesquisas: em vez de usar somente nove obras como referências – as que cita na bibliografia , sendo que a mais antiga é muito recente, de 2003 –, talvez não tivesse sido má ideia procurar no Google. No Google Scholar – entenda-se –, porque aí encontraria infindáveis conceituados estudos sobre o papel das mulheres, e de muitas mulheres em concreto, entre dois períodos de paz.
Talvez até, por essas pesquisas, pudesse então sim, com propósito, incluir uma heroína da Ucrânia no seu livro, assumindo a sua existência: a lendária Marusia Bohuslavka, que consta ter libertado, sozinha, 700 cossacos detidos pelos turcos num episódio mítico em volta do século XVII.
Na segunda parte da conversa aberta com o PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, fala dos avanços que nos permitem dar vida e mais esperança às crianças que nascem com problemas congénitos, mas aborda também os desafios e problemas que se colocam na saúde dos mais jovens. Se é certo que existe uma maior capacidade de detectar doenças crónicas mais cedo (e tratá-la com maior sucesso), Amil Dias relembra os factores ambientais e sociais que estarão a contribuir para haver, no futuro, adultos com comorbilidades mais cedo. E alerta também para as dificuldades no processo de transição dos cuidados médicos pediátricos para o “mundo adulto”. Leia também a primeira parte desta entrevista, aqui, que se debruça sobre o vírus sincicial respiratório.
A mortalidade infantil em Portugal diminuiu de forma muito significativa no último século. Chegou a rondar os 6% no final dos anos 70; agora está nos 0,2%, o que é um valor extremamente baixo, mesmo à escala mundial. Atribui essa evolução favorável às vacinas, ao saneamento básico ou ao papel da Pediatria e contributo dos médicos pediatras?
A resposta não é simples. Com as devidas diferenças, é um pouco como na Fórmula 1. Há 30 anos, um tipo mudava o tipo de pneus, e ganhava dois segundos. Ou mudava a suspensão, ou o que seja, e ganhava mais dois ou três segundos. Hoje, fazem investimentos milionários nos túneis de vento, no deflector, enfim, num pisca qualquer, para ganhar um milésimo de segundo. Há 30 anos, foi-nos fácil modificar o panorama da mortalidade infantil sobretudo porque houve um senhor chamado Torrado da Silva, que foi encarregado pelo Ministério da Saúde de ir pelo país discutir com as várias maternidades dos hospitais onde é que havia condições para as criancinhas nascerem com segurança. E este médico viu que não havia condições em muitos sítios, ora porque as instalações não eram adequadas, ora porque o movimento anual não permitia manter competências. E pelo simples encerramento de maternidades de maior risco, e em coordenação com os outros; pela implementação do programa de vacinação infantil; pela criação da especialidade de Medicina Geral e Familiar, conseguiram-se avanços fantásticos.
Mas a evolução tem um limite…
É claro. Quando a curva começa a espremer, a espremer… O básico e aquilo que garante qualidade de vida à grande maioria das crianças, isso está perfeitamente consolidado. Hoje, para conseguirmos um pequenino avanço temos de seguir técnicas muito mais sofisticadas, porque continuam a nascer crianças de elevado risco – sejam os grandes prematuros, sejam aquelas com doenças metabólicas graves. Para conseguir que estas crianças sobrevivam é preciso investimentos tremendos. Há doenças, nomeadamente as metabólicas, em que se necessita de gastar milhões para ganhar uns anos da vida. Portanto, a resposta à pergunta: é possível melhorar, só que é cada vez mais complexo, mais caro e sofisticado conseguir uns pequeninos avanços.
Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos.
Nos casos de doenças congénitas ou metabólicas sabemos que, há uns 20 ou 30 anos, as crianças acabavam por morrer ao fim de uns meses ou de poucos anos, mas agora podem ter uma sobrevida muitos anos. Mas envolvendo uma grande complexidade no sistema de saúde e com um custo brutal, não é?
Por exemplo, a fibrose cística era uma doença que matava as crianças no fim da infância ou no início da adolescência. E hoje chegam à idade adulta. E como esta, há uma lista enorme de situações. Portanto, houve de facto um avanço tremendo, mas essencialmente à custa de medidas básicas que influenciaram a grande maioria da população. De facto, neste momento, para conseguir pequeninos avanços, temos de ser muito mais sofisticados.
As mortes por malformações congénitas eram muito frequentes há algumas décadas. Hoje, com os diagnósticos durante a gestação pode-se fazer interrupções da gravidez se se detectarem problemas. Tem ideia de quantas interrupções se fazem por este motivos em cada ano?
Não, não sei. Existem seguramente dados sobre isso, mas não os tenho… É uma questão mais do domínio dos cuidados obstétricos, e eu não faço ideia dos números.
Diz-me muitas vezes que é contra-natura os pais enterrarem os filhos, mas há um século quase todas as famílias tinham de fazer funerais de crianças. Por exemplo, nos anos de 1930, cerca de 40% das mortes em Portugal era de crianças com menos de cinco anos. Agora, ronda 0,25%, mas existe um medo constante em redor das crianças…
As crianças tornaram-se hoje um bem muito mais precioso do que eram há 50 ou 60 anos. Nessa altura, os casais tinham quatro, cinco, seis, oito, nove, dez filhos; sabiam que um, dois ou três se calhar ficavam pelo caminho, mas os outros iam aguentando. Ajudavam na agricultura ou no comércio; enfim, onde os pais trabalhavam. E, portanto, os filhos tinham este peso também de contribuição social; eram um investimento de retorno relativamente rápido. Hoje, os casais têm zero, uma, duas crianças… Quem tem três crianças, tem uma família enorme. E, portanto, nestas novas circunstâncias, as crianças passaram a ser um bem muito mais precioso. E ainda bem que assim é. E, naturalmente, quando se perde a vida de uma destas crianças, isto é uma tragédia enorme para a família e para a sociedade.
Mas nem tudo está bem com as nossas crianças e adolescentes, apesar dos avanços de que já falou…
Temos, de facto, do ponto de vista social, um problema que me preocupa muito mesmo, e já tentei sensibilizar as autoridades, mas não tive muita sorte… Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas, seja a obesidade, seja doenças alérgicas, inflamatórias, endócrinas. Temos um aumento da prevalência de várias doenças que conhecíamos na idade adulta e que hoje vão invadindo também a população pediátrica. Isto quer dizer que daqui a 10 ou 20 anos vamos ter um peso significativo de doenças crónicas em adultos jovens.
Como já sucede muito nos Estados Unidos?
Pois. E o tratamento para cada uma destas doenças é cada vez mais caro. Portanto, daqui a 20 anos teremos um peso de adultos jovens com doença crónica. E com custos de saúde significativos. Provavelmente, todos com declarações de deficiência e redução de obrigações fiscais, e por aí adiante. Vamos ter depois, cada vez mais, uma população idosa com morbilidades próprias e a exigir os cuidados de saúde, os quais têm direito pela vida toda em que contribuíram. Aquilo que há muitos anos era a chamada pirâmide etária, neste momento já é uma pirâmide invertida, e ainda por cima com o peso da doença a começar muito mais cedo. E eu não sei muito bem quem é que vai pagar isso tudo.
Esses problemas advêm sobretudo da nutrição?
Tem a ver com várias coisas. Hoje, nós sabemos muito – não sabemos tudo, mas sabemos cada vez mais – sobre factores precoces de risco. Sabemos que a maneira como se nasce, o facto de se ser amamentado ou não, e o tipo de medicamentos que se toma nos primeiros meses de vida, tem uma influência que pode ir a dezenas de anos de distância. E, particularmente, os dois primeiros anos de vida são um período de extrema vulnerabilidade e de risco, que pode condicionar riscos para crianças em idades mais avançadas, e também na vida adulta. E eu acho que não estamos a investir adequadamente nessa área, e isso devia ser devidamente ponderado.
Em que aspectos?
Por um lado, estamos a formar pediatras hospitalares que conhecem doenças complicadíssimas e sabem fazer coisas sofisticadas, e que competem tranquilamente com especialistas de outros países. Mas, pelo menos metade desses pediatras quando acabam a sua formação, dizem: “eu não estou para esta vida hospitalar tão pesada, eu prefiro ir trabalhar na clínica tal e ganhar a minha vidinha sem me chatear tanto“. E o que vão fazer nessa clínica é pediatria básica, pediatria de prevenção de cuidados de saúde, para o quais não receberam formação sólida, que hoje é possível oferecer. Portanto, estamos a formar profissionais desfasados; ou pelo menos uma parte. É evidente que precisamos de intensivistas, de cardiologistas, enfim, de especialistas de ponta e que saibam tratar coisas complexas. Mas precisamos também de ter a noção que uma boa parte destes médicos vão trabalhar em medicina de crianças saudáveis; e que deveriam ter recebido uma formação cuidadosa para, enfim, tentar minimizar tanto quanto possível os factores de risco de doença crónica. E isto não está a ser feito.
O que é preciso fazer?
Era preciso que os dois primeiros anos de vida das crianças fossem particularmente protegidos através de profissionais que tivessem recebido uma formação específica. Os médicos de Medicina Geral e Familiar são profissionais seguramente excelentes, mas que não receberam essa formação. Os pediatras são médicos excelentes e não receberam essa formação. Enfim, são conceitos que todos nós conhecemos das muitas reuniões e do que estudamos. Mas uma coisa é eu ter esta noção em geral; outra coisa é receber uma formação específica sobre isso. Nenhuma criança fica com uma doença inflamatória do intestino ou uma alergia por ter tomado um antibiótico em determinado momento dos primeiros meses de vida; se não tivesse tomado se calhar tinha morrido da doença infecciosa e a situação acabava ali. Mas, sabemos que estatisticamente, determinadas práticas condicionam um risco maior. E, portanto, isto devia obrigar-nos a ser mais cuidadosos e, enfim, ter sempre esta perspectiva global em vista. E ver o que é que se ganha e o que é que se perde. Por exemplo, a prática que houve, durante muitos anos, de um menino ir à urgência, tinha febre, chorava, tinha o ouvido vermelho e saía com antibiótico, se calhar tem de ser revista. Tem de se ser mais parcimonioso.
Deduzo que, na sua opinião, isso se aplique também às vacinas contra a covid-19, onde teria sido mais sensato uma maior ponderação em relação às crianças e jovens. Foi um dos profissionais de saúde que participou num abaixo-assinado a pedir a suspensão da vacinação de crianças, tendo em conta o risco-benefício…
A história da covid-19… Eu julgo que, neste momento, felizmente, o assunto está encerrado.
Eu não sei se está encerrado. Aqui em Portugal, no caso dos adolescentes e crianças, talvez. Mas noutros países vacinam-se crianças com seis meses…
Não queria ser eu a reabrir essa discussão. Todavia, a história da covid-19… Todos nós fomos confrontados bruscamente com uma situação inteiramente nova para a qual ninguém no Mundo estava preparado. Quer dizer, havia alguns teóricos que tinham imaginado que um dia haveria uma pandemia não-sei-do-quê, mas em termos práticos ninguém estava, e os serviços não estavam, preparados para isto. E, portanto, houve um pânico inicial, e justificável, porque morreu muita gente; mas depois foi uma espécie de formação em exercício. E a situação que nós temos hoje, felizmente, é de as variantes em circulação terem uma alta difusão mas uma letalidade relativamente baixa, embora de maior risco em determinados grupos etários ou com outras doenças. E, exactamente pela mesma razão que se recomenda a vacinação contra o pneumococo ou contra a gripe a determinados grupos etários, para a covid-19 a lógica é a mesma.
Portanto…
Em relação à vacinação da população infantil, houve algum pânico; houve a ideia de que vacinando as crianças se prevenia porque se acreditava que as crianças eram o reservatório da doença, e assim não iriam contagiar ninguém. Aquilo que se veio a verificar, com documentação, é que, de facto, as vacinas não foram testadas para a prevenção da difusão. Isto é, poderiam ter alguma eficácia em evitar que o próprio ficasse doente, mas não impediam que ele passasse a doença aos outros. E, portanto, surgiu o argumento de que vacinando as crianças – por serem responsáveis pela difusão da doença – se controlava a difusão… Agora dizem: “bom, de facto, quer dizer, isto não foi testado“. Neste momento, a lógica das vacinas é a de proteger o próprio. Eu tomo a vacina contra a cólera para não apanhar cólera, se for a um país onde a cólera existe. Esta é a lógica global das vacinas, com pequeninas excepções, como sucede com a da rubéola, por exemplo. Ora, se a doença nas crianças não era um problema grave, então qual era a lógica de as vacinar? “Ah, é para não contagiar“, diziam. Mas, então, afinal o que se viu é que a vacina não impedia o contágio. É preciso que nos falem com verdade. Como se costuma dizer, não nos atirem areia para os olhos.
O Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos tem reunido e falado sobre estas questões, ou não?
Vai desculpar, mas, enfim, esses assuntos internos… Os Colégios de especialidade são órgãos consultivos da direcção da Ordem dos Médicos. E como tal, sempre que os colégios são confrontados com alguma situação, ou por solicitação de corpos directivos da Ordem, ou porque se deparam com alguma situação de preocupação especial, elaboram documentos internos que submetem ao Conselho Nacional e ao bastonário. E depois cabe ao Conselho Nacional apreciá-los, e convocá-los ou não. As agendas de trabalho dos colégios são assuntos que vão decorrendo das condições que existem, mas são submetidas internamente à direcção.
Independentemente de querer falar sobre isso, pode-me dizer se sente que, antes da pandemia, havia maior liberdade de debate e de discussão sobre questões de saúde pública? Tanto no seio da Ordem dos Médicos como fora?
Havia seguramente menos confrontação, porque pisávamos todos um terreno mais conhecido do que esta situação [da pandemia] que, de repente, saiu completamente do controlo. A Ordem dos Médicos provavelmente precisará – na sua renovação, e os seus corpos vão ser renovados muito brevemente – de analisar a transparência do funcionamento. E uma gestão transparente de documentação. Todos os colégios e os órgãos técnicos da Ordem submetem determinados documentos à direcção, e depois cabe à direcção, como lhe disse, aprová-los ou não. E, enfim, gerir as agendas conforme entende que o deve fazer. Mas sempre houve situações em que uns pensavam de uma maneira e outros pensavam de outra. Acontecem seguramente situações em que a opinião desta especialidade é num determinado sentido e a opinião de outra especialidade é num sentido diferente. Por exemplo, a questão da criação da Medicina de Urgência é um assunto que não é pacífico. Os maiores colégios dentro da Ordem dos Médicos têm uma opinião diferente da maioria dos outros colégios.
Hoje pressente-se que há uma espécie de veto de gaveta, que determinado tipo de pareceres chegam ao bastonário e não vão ao Conselho Geral. Isso também aconteceu com os outros bastonários?
Não sei dizer. Eu só conheço a minha “paróquia” [Colégio de Pediatria]. Não tenho uma visão global para ter uma opinião informada.
Mas houve pareceres do Colégio de Pediatria que nunca foram desengavetados?
Repare, há numerosas situações com as quais a Ordem dos Médicos lida no dia-a-dia, onde o ponto de vista de determinada especialidade pode colidir com o ponto de vista de outra especialidade. Por exemplo, em relação à criação de algumas áreas de subespecialidade. Portanto, o conhecimento médico vai evoluindo; costuma dizer-se que um tipo começa por saber quase nada sobre quase tudo, e depois vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos, até que um dia sabe quase tudo sobre quase nada. E o conhecimento médico tem muito disso. Há áreas em que a tecnologia de diagnóstico, de terapêutica, da fisiopatologia, avançou com tal rapidez, e com tal profundidade, que é impossível dominar todos os assuntos. No caso da pediatria é um pouco como a Medicina Interna das crianças. Toda a gente compreende que se um tipo está doente do coração, tem um cardiologista; se está doente da “tripa“ tem um gastroenterologista, enfim; e por aí adiante. A pediatria era vista como a especialidade dos leitinhos e das papinhas.
E não é…
Ora, não é. É uma medicina interna do grupo etário com uma diferenciação extrema em numerosos domínios. E por isso faz sentido, do nosso ponto de vista, que haja médicos que se dedicam mais à nefrologia ou à oncologia pediátricas porque é diferente. E por isso nós defendemos que haja subespecialidades em determinadas áreas em que se justifica. E isto colide com o ponto de vista de colegas da especialidade paralela de adultos, que acham que eles é que vão a todas. E, por exemplo, a criação da subespecialidade de alergologia pediátrica é uma situação de conflito extremo, que chegou até aos tribunais! Há anos criou-se um ciclo de estudos especiais para alergologia pediátrica – portanto para pediatras que se quisessem dedicar-se especificamente a isso e que durante dois anos se dispusessem a trabalhar especificamente nessa formação –, e o Colégio de Alergologia dos adultos tentou impugnar em tribunal. Portanto, há interesses que são contraditórios mesmo no interior da Ordem dos Médicos. E pelos motivos que bem conhece, e não precisa que seja eu a explicar-lhe.
[risos] Bom, na verdade a própria Sociedade Portuguesa de Pediatria, é quase como uma…
É uma federação… e hoje é cada vez mais.
Com idade inferior a 18 anos, em Portugal temos um pouco menos de dois milhões de pessoas, portanto 20% da população. As complicações de saúde em idade pediátrica são assim tantas que justifique tanta subespecialização?
Sim, e numas áreas mais do que outras. Repare; há um número importante de doenças que começam cedo, cada vez mais cedo. Têm a ver com a exposição ambiental, que se vai modificando; mas também com factores genéticos. Se eu pegar no caso, por exemplo, da doença inflamatória do intestino – como a doença de Crohn ou a colite ulcerosa –, num adulto ou numa criança são quadros substancialmente diferentes. A componente genética é claramente mais importante quando a doença aparece aos cinco ou aos 10 anos do que quando aparece aos 40. E é preciso ter isto em devida ponderação. As crianças com doenças congénitas que precisam de transplante de medula óssea – e que são por imunodeficiências – precisam de uma medicação diferente da dada ao tipo que faz um transplante porque tem um cancro. Se não houver este conhecimento específico – e do tipo de medicamentos que se usam antes e depois em cada um destes casos –, os resultados naturalmente não são satisfatórios. Por exemplo, numa área que domino melhor: a colite ulcerosa num adulto geralmente é uma colite segmentar, de uma pequena porção do intestino grosso, enquanto a grande maioria das crianças com uma colite, esta envolve todo o intestino grosso. O risco cirúrgico e de complicações é diferente. Isto é verdade também para as outras áreas.
As crianças e os jovens estão agora menos saudáveis do que estavam há dez ou vinte anos atrás?
Não acho que estejam menos saudáveis. Há mais doenças com expressão precoce; há mais diagnóstico precoce. Portanto, há situações que há uns anos eram diagnosticadas ao fim de cinco ou seis anos de doença e que hoje são diagnosticadas muito mais cedo. Por isso, não tenho uma resposta clara sobre se há mais ou não. Em algumas doenças há seguramente mais, mas em relação a outras há mais conhecimento e, portanto, há uma identificação mais precoce, e há condições de tratamento mais eficazes.
É um bocado como aquela velha piada: não há pessoas saudáveis; só há pessoas mal diagnosticadas…
[risos] É isso…Um tipo são é um doente mal estudado… Deixe-me dar mais um exemplo também muito corrente: a doença celíaca. Os pediatras conhecem a doença celíaca há uma data de anos, e os médicos dos adultos começaram a conhecê-la há muito menos tempo, porque os doentes adultos nem sequer iam ao gastroenterologista. Andavam no reumatologista, porque tinham dores nas articulações; no hematologista, porque tinham anemia; na ginecologia, porque não conseguiam engravidar. Enfim, tinham manifestações que não apontavam para a origem real do problema e andavam noutras áreas. E como este, há vários outros exemplos que se podem citar.
Antigamente, se as crianças e adolescentes não estivessem mesmo doentes, não iam com regularidade ao pediatra.
Claro. Também o facto de haver um acompanhamento não só na doença, mas também na saúde, permite que alguns diagnósticos se façam mais precocemente e, portanto, que haja tratamentos mais eficazes. Em algumas doenças significa que se anda mais tempo a ser tratado, mas também se ganhou alguma qualidade de vida.
As alterações sociais e ambientais – por exemplo, a poluição ou agora haver mais população urbana do que rural – vieram criar uma maior panóplia de eventuais problemas de saúde na infância?
Sem dúvida nenhuma, e há estudos interessantíssimos sobre essas matérias… Há um colega canadiano que se dedica a estudar especificamente a epidemiologia da doença inflamatória do intestino, e que estuda grupos populacionais, tanto da população local canadiana como de grupos de imigrantes; e em que se mostra claramente que os imigrantes da África ou da Ásia quando emigram para o Canadá têm uma prevalência baixa da doença inflamatória intestinal; mas os seus filhos que nasceram no Canadá, e que comem o que comem os canadianos, têm um aumento dramático da prevalência desta doença. Quer dizer, têm a mesma genética, mas têm uma exposição diferente e o aumento da prevalência dessa doença é enorme. Garantidamente que a nossa exposição ao ambiente condiciona toda a nossa biologia. Ganhamos umas coisas, perdemos outras.
Se os agentes ambientais actuarem na fase de crescimento, isso é um factor de agravamento? Por exemplo, é indiferente, ou é pior, começar-se a fumar aos 15 anos ou começar-se a fumar aos 25 anos?
Uma pessoa cresce mais e mais depressa nos primeiros dois anos de vida do que no resto da vida. E, portanto, numa fase de crescimento rápido, se houver, no início da adolescência, alguma doença que influencie a capacidade de crescimento, obviamente que as consequências são muito mais graves. Graves em termos de crescimento.
Sim, mas ao fim de 20 anos a fumar, é indiferente ter começado aos 15 ou aos 25?
O efeito é cumulativo. Determinados estímulos, como por exemplo o tabaco, são irritantes das mucosas, do epitélio respiratório, e causam algum tipo de displasia e de alteração. Quanto mais o agredir, maior é o risco de haver uma linhagem celular que se afasta do que devia e levar a consequências mais graves. É pouco provável que alguém tenha cancro do pulmão por ter fumado um cigarro. Mas se fumar não sei quantos anos, enfim, o risco é real, para além de doenças vasculares e de outras complicações.
Há pouco estávamos a falar sobre a questão dos pais serem cada vez mais superprotectores. Vê que os jovens têm maiores riscos, sobretudo ao nível da adolescência, por exemplo no consumo de álcool ou de tabaco… Onde se deveria apostar mais para que as crianças e os adolescentes venham a tornar-se adultos mais saudáveis do que nós?
[risos] Se eu soubesse responder-lhe a isso em 30 segundos, tinha ganhado o Prémio Nobel… Bom seria que houvesse alguma resposta mágica para isso.
Mas quais deveriam ser as prioridades?
Aquilo que cada um de nós é depende da genética, dos traumas que se teve, dos amores e os desamores que se teve, com o sítio onde se trabalha, com os hábitos que se tem, com o que se come… Enfim, é uma equação tão complexa e com tantas variáveis que não há uma resposta simples. Em relação à acção possível dos pais, se estes forem superprotectores e tratarem o menino como um frasquinho de cheiro, e o menino vive infantilizado durante a vida toda, provavelmente vai ser um adulto inseguro, frágilzinho, que não é capaz de resolver problemas. Se os pais o deixarem ir para a varanda e fazer o que lhe apetecer, corre o risco de cair e partir a cabeça. Portanto, tem que haver senso, tem de haver uma intervenção multidisciplinar em muitos domínios. A questão, por exemplo, dos filmes e da televisão, da extrema violência: é evidente que se uma criança vir uma cena qualquer de violência sozinha, ou se um adulto estiver ao lado e lhe explicar que isto não se faz, e é um disparate porque causou mal a outras pessoas, ela vai aprendendo a contextualizar, vai aprendendo os valores que se devem prezar e o que é a transgressão. Portanto, é necessário que os pais sejam capazes de ajudar os filhos a crescer, mas compreendam que eles crescem. E que num belo dia têm que sair debaixo das saias dos pais.
Mas os filhos cada vez saem mais tarde da tutela dos pais…
A média nacional já ultrapassa os 30 anos [33,6 anos]… Há uns anos, na Escandinávia, aos 10 anos os pais diziam: “ó meu filho, vais lá para o alojamento do colégio e governas-te“. Gostar muito dos filhos é fantástico, mas convém perceber que eles têm de crescer e aprender a ter as suas próprias defesas e a resolver os seus próprios problemas. E, portanto, este equilíbrio, entre o que é prudente fazer e o que é disparatado e infantilizado, é muito delicado. Na pediatria, nós vivemos isso com alguma frequência nos doentes crónicos, quando os passamos para a consulta dos adultos. Se não tiver havido um processo de preparação progressiva – e não estou a falar ao nível dos médicos –, um dia entregamos os doentes aos médicos de adultos e os miúdos caem do céu aos trambolhões. Há anos, eu tinha uma consulta com um colega de adultos para os doentes que cresciam, e um dia ele telefonou-me a dizer que “já está aqui no consultório o fulano e eu lá fui, passei por ele e fiz-lhe uma festinha na cabeça“. Quer dizer, a um bebé de um metro e oitenta… E o meu colega olhou para ele, pasmado, e disse; “olhe que eu não lhe vou fazer isso“. Se não tivermos alguma cautela, os meninos passam para a consulta dos adultos e dizem: “então o meu papá não vem?“, e os pais ficam em pânico.
Nota agora um certo “atraso no desenvolvimento” dos jovens?
É uma infantilização, que é muito generosa num determinado momento, mas depois pode passar a ser um problema. E hoje a transição de cuidados é um assunto muito sério. Eu estive há pouco numa reunião a tratar disso, e vou estar em mais no próximo ano. Por um lado, nós vamos tentando que os adolescentes nessa fase sejam cada vez mais autónomos e que sejam eles a responder em vez de ser o papá ou a mamã; que sejam capazes de conhecer os seus problemas, os medicamentos que tomam… Mas os nossos colegas que tratam de adultos não estão, por vezes, preparados para os receber. E em algumas doenças nem sequer as conheciam, porque havia doenças que matavam na infância e, portanto, nunca chegavam aos dos adultos. Para algumas doenças metabólicas, há médicos de adultos que nunca tinham visto nenhuma.
Não seria então mais sensato que, em vez de haver essa transição para determinado tipo de doenças, o pediatra continuasse a acompanhar esses doentes na fase adulta?
Isso acontece. Há muitos anos, em 1988, fui pela primeira vez aos Estados Unidos a um congresso, e visitei um serviço que atendia jovens com doença digestiva, e perguntei à enfermeira com que idade é que eles faziam a transição para os adultos. E ela disse-me: “olhe, isso realmente é um problema; eles não querem ir e os médicos não os querem mandar, e por isso já combinámos que quando eles forem mais velhos que as enfermeiras têm de sair daqui“. Portanto, isto há 40 anos, não é? Este problema é muito antigo, existe em todos os sítios, e das duas, uma: ou cada um de nós, da mesma maneira que tem um bilhete de identidade, tem um médico que o acompanha até aos 80 ou 90 anos, ou então temos de definir que cada um trata ao seu nível de intervenção. De contrário, qualquer dia temos na sala de espera um bebé de seis meses e um velhinho de 80 ou 90 anos, ambos à espera de ser consultados pelo mesmo médico [risos].
[risos] Aí é que não havia mesmo pediatras… Já agora, há pediatras suficientes, ou estamos com o mesmo problema que noutras especialidades?
Aqui também a resposta não é simples. Serem suficientes ou não, depende daquilo que precisarmos. Eu tive um director de serviço nos anos 1980, que achava que as criancinhas deviam ter pediatra, tanto o filho do pedreiro como do juiz. E, portanto, os consultórios dos pediatras estavam cheios, não só de gente com muito dinheiro como de gente com menos dinheiro. Depois, com a implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o único sítio onde se encontra um pediatra é dentro de um hospital. E, portanto, isso também explica porque é que os serviços de urgência estão atafulhados. Se acharmos que todas as crianças, pelo menos naquele período mais vulnerável, nos primeiros dois anos de vida, precisam de ter um médico com competências específicas de pediatria, talvez haja margem para mais alguns pediatras. Quem achar que os pediatras devem ficar à espera que alguém os procure nos hospitais ou nas clínicas particulares, provavelmente teremos pediatras que cheguem. O nosso problema não é tanto como em algumas especialidades – que têm carência de especialistas – é mais a sua distribuição e é a maneira como o SNS os atrai. Quando acharam, há uns anos, que o SNS devia ser gerido como uma qualquer empresa, a nível de ofertas e atractivos, façam, mas paguem.
Hoje é muito fácil arranjar uma consulta de pediatria no privado, mas no SNS deve ser muito mais complicado, não?
Não tenho também uma resposta muito clara. Depende da forma como cada serviço se organiza, mas julgo que não é muito complicado. Em algumas áreas, provavelmente mais do que noutras, mas desde que haja referenciações adequadas é fácil, mas há áreas em que realmente a resposta ainda é abaixo do que seria desejável.
Qualquer criança e jovem em Portugal tem hoje pediatra e médico de família?
Depende das zonas do país. Como sabe, há uma parte da população ainda a descoberto dos médicos de família. Há áreas onde os serviços são mais estruturados e têm maior capacidade de resposta. Noutras, infelizmente, menos.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto
A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.
Presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias fala sobre o “vírus do momento”: o vírus sincicial respiratório (VSR), que causa uma das mais frequentes infecções nas crianças de tenra idade. Apesar disso, ganhou nas últimas semanas um mediatismo nunca visto. Em entrevista ao PÁGINA UM, Amil Dias faz notar a coincidência no incremento da “visibilidade” do VSR com o desenvolvimento de vacinas pela indústria farmacêutica. Nesta conversa, a primeira parte de uma longa entrevista, Jorge Amil Dias alerta para os efeitos secundários dos confinamentos nas crianças, durante a pandemia, dando o exemplo das hepatites. E diz mesmo que não podemos ter a ideia que conseguiremos erradicar os vírus e viver sem doenças.
Justifica-se o alarme social dos últimos dias sobre os internamentos de crianças por causa do vírus sincicial respiratório (VSR)?
O VSR é uma das várias infeções que todos os anos ocorrem sobretudo nos meses frios, e que afecta principalmente a população mais jovem. Os lactentes e as crianças pequenas, habitualmente. Isto acontece todos os anos. Mas não se consegue ter um perfil rigoroso de cada um dos agentes individuais que causam essas infeções respiratórias. Temos os laboratórios sentinela – uma rede que comunica os seus dados –, mas não existem em todos os hospitais. Por isso, não é certo sequer que todas as crianças com infecções, seja o VSR o agente claramente identificado, e nem é seguro que os laboratórios reportem todos os resultados.
Estamos a falar apenas de crianças internadas nos hospitais…
Sim, mesmo nos hospitais. A identificação de agentes infecciosos – e não só nas infecções respiratórias, também nas diarreias, por exemplo –, habitualmente só se faz quando há um registo epidemiológico sistemático, o que também não é o caso, ou se a gravidade da doença impõe algumas decisões terapêuticas, se será vírico, se será bacteriano. Nessas situações, os dados laboratoriais ajudam a tomar decisões.
Na base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do SNS, observa-se que, antes da pandemia, tínhamos picos mensais, sobretudo no Inverno, de cerca de 1.800 internamentos de crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. Consegue-se saber qual a prevalência do VSR?
Não, claramente não. Seria preciso que as 1.800 crianças tivessem sido submetidas a testes de diagnóstico, e que os laboratórios pesquisassem especificamente esse vírus. Quando se pede um exame bacteriológico, ou um exame virológico, não se pede um exame em abstracto. Se eu mandar fazer um exame numa situação de diarreia aguda para um laboratório, eu tenho de indicar quais os agentes que devem ser pesquisados. E, portanto, os laboratórios pesquisam por três, ou quatro, ou cinco agentes mais relevantes, que podem estar a causar doença naquele contexto. É necessário que a pesquisa seja activa para os vários agentes, e isso nem sempre é feito.
Portanto, somente num quadro clínico já mais grave ou persistente, ou que se agrave, é que se vai fazer esse tipo de pesquisa, certo?
Sim, e nos laboratórios ou nos serviços com recursos para o fazer. Porque nem todos os laboratórios o conseguem.
E todos os hospitais conseguem a identificação do VSR?
Podem não ter. Quer dizer, a tecnologia vai estando cada vez mais acessível, mas não existe de forma sistemática em todos os hospitais, e não é feita de maneira sistemática em todas as crianças admitidas.
Ou seja, não se consegue dizer se a prevalência do VSR é de 10%, de 20% ou de 30% dos internamentos em pediatria?
Não, e os laboratórios mais bem equipados e mais motivados para fazer essa pesquisa encontram-se nos serviços para onde as crianças vão sendo transferidas, conforme a gravidade das situações. Por isso, a amostragem nos laboratórios dos hospitais centrais sofre sempre de um enviesamento, é a ponta do icebergue, porque também têm doentes mais graves transferidos dos outros hospitais, enquanto estes mantêm os doentes da sua zona de residência com um quadro mais ligeiro.
Tem conhecimento de se estarem a realizar agora mais análises para detecção do VSR do que antes, e por isso há um maior número de casos?
É provável. Não tenho uma resposta informada sobre isso, mas provavelmente sim. A tecnologia de detecção vai estando cada vez mais acessível. Antes, há cinco ou seis anos, as técnicas de PCR eram difíceis de executar em alguns laboratórios, mas hoje há kits e uma simplificação de métodos que permite que esteja mais acessível a mais laboratórios.
Em todo o caso, mesmo com enviesamento, pode dizer-se que o VSR causa uma doença banal, ou é uma doença rara que nos deve preocupar?
Claramente, é uma doença banal, muito banal. Como todas as viroses de Inverno, é muito contagiosa; frequentemente contagiosa antes de ser sintomática, o que quer dizer que quando a criancinha tem febre, já contagiou os outros meninos todos do infantário. E, portanto, quando fica em casa, não é para não contagiar os outros, porque os outros já foram todos contagiados.
E também tem uma baixíssima letalidade, certo?
Tem. Mas há grupos de risco, e por isso existe um programa organizado para administrar a essas crianças, nomeadamente prematuros ou com cardiopatias congénitas, uma profilaxia com um medicamento especial [anticorpos monoclonais] para reduzir o risco de infecção. Nesses grupos de risco, a infecção pode ter um carácter mais agressivo e, eventualmente, até fatal. Esse programa para a VSR já existe há anos para esse grupo de risco específico. Não existe ainda, neste momento, uma imunização ou prevenção universal, mas também convém colocarmos as coisas no devido contexto. O ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.
Em todo o caso, durante o período da pandemia, o número de internamentos por doenças do aparelho respiratório em crianças desceu significativamente…
Claro, se as crianças ficaram em casa e não conviviam com as outras…
E também ao nível da mortalidade. De acordo com dados oficiais, desde Março de 2020 até Setembro de 2022, morreram 17 crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. No período homólogo anterior, antes da pandemia, morreram 42 crianças. Portanto, a superprotecção ao SARS-CoV-2 fez diminuir também o risco de outras doenças do aparelho respiratório..
Certamente que sim, tendo havido menos exposição…
Então, aparentemente, todos estes confinamentos salvaram algumas vidas. Acha então que esse é o modelo que devia ser sempre usado agora e para todo o sempre? Ou seja, impomos o risco zero.
Não, porque tudo isto tem um preço nas crianças. O preço do confinamento foi terem morrido algumas crianças por hepatites fulminantes e outras a necessitarem de transplantes. E, eventualmente, um aumento de alergias. Enfim, tudo isto é um emaranhado tão complexo de relações e correlações – o sistema imunitário, a genética e o ambiente – que, quando manipulamos um dos factores, não sabemos muito bem para que lado é que a coisa vai desequilibrar. É um bocado como quem joga o Mikado. Por isso é que convém, neste caso especificamente do VSR, ter esta noção sensata. O VSR existe há imenso tempo, anda por cá e todos os anos afecta e infecta crianças. Este ano, não me parece que a situação seja particularmente diferente, porque o que aconteceu foi um pico mais precoce de ocorrência de infecções. Tem havido, em vários hospitais e serviços, internamentos de crianças com VSR.
Mas tornou-se este ano mais mediático…
Este ano, o interesse particular por esta situação, e por este agente específico, tem a ver com a indústria farmacêutica, que se mexeu, e que desenvolveu novas drogas. E, portanto, as coisas começam a ser mais visíveis, porque há quem queira dar-lhes visibilidade.
Sim, pelo menos a Pfizer, a GlaxoSmithKline e a Sanofi têm, ou estão a desenvolver, vacinas… Tínhamos uma doença apenas com um tratamento preventivo por anticorpos monoclonais, e de repente, abre-se um leque de possibilidades de vacinação, provavelmente também em massa. Acha que estas coisas estão relacionadas?
[risos] Cada um de nós terá a sua opinião sobre esse assunto, não é? Se o vírus não apareceu só agora; se ocorre como já ocorria nos outros anos; e se a realidade epidemiológica exacta não era bem conhecida, e agora é mais conhecida, porque o assunto está mais na crista da onda; e se a indústria se interessou e desenvolveu produtos que visam especificamente essa doença; enfim, é como diz o outro: se tem cornos, dá leite, e diz mú; não sei que bicho é que será, mas a gente imagina.
Qual deve ser o comportamento ou a postura das autoridades de saúde relativamente a esta situação, tendo em conta que teremos essas vacinas disponíveis? Vacinar quase 100 mil crianças em Portugal por ano, tendo em conta que são as que nascem durante esse período?
Há várias vertentes na resposta a essa questão. Obviamente que todos gostaríamos de evitar que todas as crianças adoecessem. E, particularmente, doenças infecciosas, se tivermos maneira de evitar. Todavia, se nós déssemos este ano a vacina contra o VSR a todas as crianças que nascem, as crianças não iam deixar de ter infecções respiratórias. Porque o vírus não vai desaparecer. Aquilo que aconteceria era aparecerem no próximo ano mais infecções por adenovírus, ou por vários outros agentes. A natureza vai-se ajustando, e se falta uns, aparecem outros. Portanto, é sempre correr atrás de uma quimera. Então, primeiro: não é possível impedir que as crianças tenham infecções respiratórias. Segundo: devemos implementar um programa de vacinação contra a infecção por VSR, uma vez que estas infecções ocorrem muitas vezes em bebés muito pequenos, que ainda não receberam sequer imunizações? Repare que as imunizações muito precoces são pouco eficazes, porque as crianças têm anticorpos durante os primeiros seis meses de vida de origem materna. Podia ser interessante, e não sei se a indústria irá fazê-lo, termos uma vacina para as grávidas, de forma a que os bebés nos primeiros meses de vida estivessem mais protegidos. Mas, mesmo que isso venha a existir, é natural que as autoridades de saúde façam uma análise, como qualquer empresa faz, de ver quanto é que se gasta e o que é que se ganha com isso. O dinheiro não é inesgotável. Se fôssemos gastar – e isto é um número completamente ao acaso, sem qualquer correspondência com a realidade – 5 milhões de euros, ou 10 ou 20, ou o que seja, na prevenção dessa infecção, é preciso ver o que é que se ganha com isso, porque esse dinheiro faltará para alguma outra coisa importante.
Deve fazer-se uma análise de custo-benefício…
E para isso é que os epidemiologistas e responsáveis pela saúde pública têm sempre de fazer as análises entre o que se ganha e o que deixa de se fazer em alternativa. E essa análise de custo-benefício que tem de ser feita para reduzir o risco. Deixe-me dar-lhe um exemplo: há anos, surgiu uma vacina contra a hepatite A. E aquilo que se verificou é que realmente a hepatite A diminuiu imenso; enfim, nuns países mais do que noutros. Mas fazendo uma análise depois mais minuciosa da evolução da hepatite A, o que se verificou é que aquela diminuição brutal não terá decorrido só da vacinação, mas de melhorias nos saneamentos e na higiene das casas e das cidades. Ora, ao melhorar os saneamentos, não só se melhorou a hepatite A, como uma data de outras situações. Portanto, tem sempre de se fazer uma análise sensata. É muito fácil desatar a berrar a dizer: “vamos agora vacinar as criancinhas todas contra o VSR”; e depois, daqui a um ano: “vamos vacinar as criancinhas todas contra o adenovírus”; e daqui a dois anos, é contra outra coisa qualquer… a biologia e a vida são um bocado mais complexas do que agarrar num único factor e achar que aquilo é que muda a História da Humanidade.
Então acha que aquele anúncio pelo médico Filipe Froes de que corremos o risco de sofrer uma pandemia tripla com covid-19, gripe e VSR, tem justificação de recearmos uma situação dessas?
Este ano provavelmente vamos ter uma maior incidência de infecções, que não ocorreram há dois anos ou o ano passado. Houve um grupo populacional, particularmente de crianças, que não desenvolveram naturalmente imunidade contra esses agentes, sim. É provável que, se não apanharam nos últimos dois anos, apanhem este ano. E, portanto, que haja uma coexistência de vários agentes que as criancinhas de três anos se calhar teriam apanhado no ano passado; e este ano apanham e talvez apanhem mais do que um. Não sou epidemiologista, não tenho dados específicos, mas faz sentido que, tendo havido uma economia de infecções pelo isolamento em que as pessoas estiveram, este ano possa haver algum excesso. E agora, o que vamos fazer? Andar todos de máscara? Lá vamos discutir outra vez se as crianças não ficam com perturbações de desenvolvimento, porque não conseguem ver a cara das pessoas… Salta-se da frigideira para a fogueira, não é?
Ou seja, veria com preocupação se à conta do VSR, agora se impusesse novamente máscaras nas escolas ou nos infantários?
Como lhe disse, a História da Humanidade desenvolveu-se ao longo de milhões de anos, e nós fomos ajustando-nos ao ambiente onde vivemos. E quando desequilibramos bruscamente esta interrelação com o ambiente, criamos riscos. Deixamos de ter os bois e as galinhas a viver por baixo da nossa casa; mas um dos preços que se paga por isso é que há muito mais alergias. Não só por isso, enfim, por vários outros factores. Mas, isto para dizer que há alguns riscos e custos a assumir. Não podemos correr o risco de pensar que qualquer dia pegamos numa ementa e perguntamos às pessoas que doenças é que querem ter. E pronto, dizemos-lhes como hão-de viver…
Aliás, como vê este tipo de política de saúde que é mais puxada pelo mediatismo em detrimento das prioridades reais? Ou seja, antes era o SARS-CoV-2, agora surge o VSR…
É um problema grave. Inegavelmente, em algumas circunstâncias, o mediatismo dos assuntos tem algum efeito. Todos se lembram que, há uns anos, havia uma enorme discussão sobre o tratamento da hepatite C, que era uma coisa caríssima e não podia ser. Até que um tipo foi para a Assembleia da República e deu dois berros ao ministro, e disse-lhe: “não me deixe morrer”. Pronto, a partir daí negociaram condições aceitáveis para iniciar o tratamento com enorme eficácia. Portanto, há momentos e situações em que as autoridades não respondem com a eficácia e a ginástica adequadas, e é preciso que a pressão da opinião pública influencie um pouco as coisas. Mas é desejável que sejam as autoridades competentes que antecipem os problemas e façam os estudos devidos, e expliquem de maneira clara como é que as coisas podem ser.
Mas há limites…
Sim. Eu podia dizer que só podem circular na rua automóveis de topo de gama que tivessem todos os sistemas de segurança possíveis. É evidente que isto iria diminuir imenso os acidentes e a gravidade, mas não está ao nosso alcance fazê-lo. Portanto, temos de gerir entre o desejável e o possível.
Na semana passada, escrevi que Medina representava o pináculo de um Governo de aldrabões. A mentira, o obscurantismo e a manipulação são, já há muito, marcas de um estilo de vida e de desgoverno desta gente que, confundindo interesses corporativos – no sentido de interesses pessoais – com o interesse público, usam o Governo para abusar do Estado. E abusam de nós.
Sempre sabemos que, na vida, e também na política, que um mal sempre pior pode ficar. Ainda mais quando António Costa, querendo chegar ao fundo do poço com Fernando Medina, ainda arranjou um Galamba para depois escavar ainda mais.
Quando um primeiro-ministro não tem o discernimento para sequer antever o desastre de nomear João Galamba para ministro das Infraestruturas, é porque já passou o prazo de validade. Galamba não podia ser melhor escolhido para um fim de ciclo trágico-cómico: é o típico ministro com faca na liga, a quem se espera sempre dali sair arruaça, que parece ter mesmo sucedido no Ministério das Infraestruturas pela posse de um comprometedor computador.
Por mais que possamos imaginar que o assessor Frederico Pinheiro – que anda em andanças de gabinetes governamentais desde 2017 – seja um incompetente, um violento, um criminoso e o diabo a quatro, os episódios mais recentes envolvendo o gabinete de Galamba, tal como todos os que já apanharam o de Medina, mostram um bando desgovernado em plena queda livre – ironicamente à conta da TAP.
Quem será o Henrique Chaves de António Costa é a única incógnita. Quem quer que seja, certo que involuntariamente prestará um serviço público ao país, mesmo havendo, por aí, um fantasma chamado Chega, que amedronta muitos – eu inclusive, já agora.
Mas antes tudo do que isto. Neste momento, o país já nem sequer está no estado do pântano de Guterres – isto já parece mais uma cloaca. É altura de puxar o autoclismo. Fim de ciclo.
Aos 52 anos, Gonçalo M. Tavares é porventura o mais prolífico escritor da sua geração – e não só –, com uma vasta obra que conta, desde o início deste século, com cerca de meia centena de títulos. Multifacetado, multipremiado e multitraduzido, a sua produção literária criterisamente “catalogada” por si próprio, causa pasmo pela meticulosidade, harmonia e coerência..
Nos últimos anos, surpreendente, talvez, seja “apenas” uma certa desaceleração na sua cadência produtiva: no último quinquénio “apenas” publicou seis obras, o que parece pouco quando, por exemplo, entre 2003 e 2017 foram editadas 17 obras da sua autoria.
A estatística é, porém, um pormenor. A qualidade mantém-se bastante elevada, mesmo quando se aguarda um estilo similar, já conhecido. Gonçalo M. Tavares continua a (saber) criar, com as suas narrativas – chamemos-lhe assim, por simplificação –, estranhos e desafiantes universos, por vezes irritantemente simples, outras vezes desconsertantemente complexos. Tem sido justamente comparado com Kafka, e em certa medida alguma da sua obra assim assemelha- se ao escritor checo, sobretudo quando, como sucede com este O diabo, se debruça sobre a humanidade e sobretudo a maldade, e a incapacidade e impotência de a subverter (à maldade).
Integrado na série Mitologias – que conta também como A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado (2017) e Cinco meninos, cinco ratos, ambos também editados pela Bertrand –, O diabo acaba por ser, dependendo da perspectiva (ou da interpretação), um conjunto de narrativas que, tendo presente um belzebu físico, omnipresente e regendo os humanos, se espraia a maldade humana, não apenas a inata mas em especial a apreendida, a aplicada e a obedecida.
Sabe-se que o diabo está nos pormenores, mas por este livro de Gonçalo M. Tavares está afinal por todo o lado, mas na prática sem sequer se impor aos humanos, pelo medo ou pelo temor. Quase se pode dizer que o diabo é obedecido, e ponto.
Alexandre Palas-de-Cavalo, uma das personagens centrais deste livro, mostra de forma muito particular, de uma forma demasiado crua, como a maldade se pode aplicar sem qualquer noção moral, apenas porque “tem de ser”. E “tudo tem (mesmo) de ser”, quanto mais chocante e perverso se afiguram as cenas e efeitos do mal.
Gonçalo M. Tavares explora assim não apenas o mal, mas a banalização do mal, a aplicação de regras sem nexo, mas surgindo com tal naturalidade que aparentam ser a coisa mais normal e, por isso, necessariamente aceitável.
Embora algumas partes do livro sejam, aqui e ali, cansativas por um certo exagero na criação de personagens fantásticas – entre Kafka e Italo Calvino (nas três novelas de Os nossos antepassados) –, aconselha-se que este livro de Gonaçlo M. Tavares seja de leitura lenta e talvez repetida, para desvendar as metáforas que encerram.
E tal como sucede com muitos outros escritores, as interpretações de cada leitor podem não ser exactamente aquelas pensadas pelo autor – e se assim for, é aí mesmo que está a magia da Literatura.
Para finalizar, havendo imensas passagens marcantes, e muito visuais, neste livro de Gonçalo M. Tavares, que merecem ser anotadas (e discutidas), escolherei uma que, para mim, melhor representa o mundo como ele infelizmente é (maléfico), ou seja, como o poder de certos homens se exerce sobre os demais.
Há um buraco no Grande Armazém – está no chão, num dos cantos –, um poço que acaba não se sabe onde, mas ninguém se atreve a fugir por ali porque cheira terrivelmente mal, e nunca o cheiro foi assim tão eficaz – impede a fuga, eis o cheiro a fazer o que não conseguiria um exército bem armado – e, sim, é para esse buraco que vão as fezes que o Povo-Armazenado produz. Tudo organizado: a comida vem de cima e o animal doméstico, o Povo-Armazenado, levanta a cabeça, como se fossem pequenos animais a receber comida da mãe, e depois baixa-se, próximo do Grande-Buraco, e para ali envia os dejectos. Assim se mantém o Grande-Armazém com o estômago cheio e não demasiado sujo.
(…)
Mas é armazenado para quê, esse povo? Eis a questão. Porque não o eliminam de uma vez? E é essa a pergunta que fazem ao capitão Mau-Mau. Gastamos comida e gasolina nos Helicópteros-Bons – não se percebe o sentido de armazenar um povo inteiro –, esta é a questão que inquieta. O capitão Mau-Mau responde que o Povo-Armazenado pode vir a ser útil no século seguinte. Quem sabe se daqui a cem anos, no início do próximo século, não precisaremos de novo deste povo que agora armazenamos. Sim, são estes os planos do capitão Mau-Mau – nada se pode desperdiçar, odeia tal gesto, o de deitar fora algo, e por isso é um dever armazenar este povo guardá-lo para o futuro. Quem sabe se este Povo-Armazenado não se transformará numa coisa útil, verdadeira, justa e bela. (pp. 63-64)