Custam agora, cada uma, menos de 8 cêntimos. Já chegaram a ultrapassar mais de 1 euro no auge especulativo da pandemia, ao longo de 2020. Mas em Março de 2021, as máscaras FFP2 custavam, no mercado grossista, menos de 30 cêntimos. Contudo, para garantir um donativo para a campanha “Todos por Quem Cuida”, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, consentiu em valorizar um donativo em género da farmacêutica Merck em mais de seis vezes o seu valor real. O esquema fez com que a empresa alemã tivesse artes de transformar um donativo (que é, por princípio, uma despesa para o doador) numa operação financeiramente lucrativa. Com estes esquemas até admira não haver mais beneméritos.
No dia 17 de Março do ano passado, a autarquia de Vila Nova de Gaia comprou à empresa Elastron 500.000 máscaras descartáveis FFP2, no âmbito da política municipal de combate à pandemia, pelo valor de 138.300 euros. Com prazo de entrega de dois meses, o preço deste equipamento de protecção individual, que se usara aos milhões, já então não atingia os preços astronómicos de 2020, quando qualquer empresa literalmente de vão-de-escada vendia máscaras como se fosse ouro. Contas feitas, mesmo assim a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia pagou quase 0,276 euros por cada máscara FFP2.
Se se comparar com os preços actualmente praticados, convenhamos que estavam ainda bem “carotas”. Praticamente um ano depois, consegue-se encontrar no Portal Base valores muito mais baixos: por um exemplo, num contrato assinado de 18 de Março deste ano pelo hospital de Ponta Delgada – já com a pandemia “normalizada” (e com a descontinuidade no uso generalizado de máscaras no quotidiano) –, o preço de cada FFP2 foi de apenas 0,077 euros.
A unidade de saúde pagou assim por 700.000 máscaras apenas 53.900 euros. Se fosse ao preço unitário (0,276 euros) pago pela autarquia de Vila Nova de Gaia há um ano, o hospital açoriano desembolsaria 193.200 euros. Um absurdo?!
Não tanto. Porque, na verdade, em tempos de pandemia, valeu tudo. Até um “favorzinho” da Ordem dos Médicos para que um donativo da farmacêutica Merck se transformasse afinal num esquema fiscal lucrativo para aquela empresa alemã.
Com efeito, no mesmíssimo dia em que, a Norte, em Vila Nova de Gaia, o município comprava máscaras FFP2 a 0,276 euros – pagando assim 138.300 euros por 500.000 máscaras –, a Sul, na lisboeta Avenida Gago Coutinho, o bastonário Miguel Guimarães apunha a sua assinatura num contrato para selar um donativo da farmacêutica alemã, de modo a receber de “borla” 190.000 unidades do mesmo equipamento para a campanha “Todos por Quem Cuida”.
Carta de Miguel Guimarães à Merck, que acompanhou o contrato assinado em Março de 2021 entre a Ordem dos Médicos e a Merck. Nunca antes a Ordem dos Médicos aceitara acordo similar.
Dir-se-ia, um excelente negócio para a Ordem dos Médicos, um bater de palmas pela capacidade negocial e diplomática de Miguel Guimarães, que assim conseguiu, a expensas das lucrativas farmacêuticas, poupar (aos preços então de mercado) qualquer coisa como 52.440 euros…
Só que não foi bem assim…
Na verdade, apesar de aparentar uma transparência imaculada – com a assinatura de um contrato bilingue e o registo do portal do Infarmed –, o acordo entre Miguel Guimarães e a farmacêutica alemã não foi mais do que um esquema fiscal que, em última linha, trouxe um lucro líquido à Merck, e um prejuízo ao fisco português ou alemão.
Isto porque, de acordo com o contrato, a Ordem dos Médicos aceitou que a Merck, pelo donativo em géneros, atribuísse as máscaras FFP2 um valor unitário hiperinflacionado à época: em vez de um valor a rondar os 30 cêntimos, o acordo entre Miguel Guimarães e dois executivos da farmacêutica alemã (Frank Gotthardt e Petra Wicklandt) estabeleceu um valor unitário de 2 euros, ou seja, quase sete vezes superior ao valor de mercado.
Deste modo, a farmacêutica alemã – que se tivesse nesse mesmo dia comprado as 190.000 máscaras FFP2, para depois as doar à Ordem dos Médicos, pagaria menos de 55 mil euros, pode assim apresentar uma despesa de 380.000 euros, o valor validado que surge no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.
A valorização desse custo (hiperinflacionado) das máscaras, aceite e validado por Miguel Guimarães, permitiu assim transformar, do ponto de vista fiscal, uma despesa em lucro líquido. Isto porque, mesmo assumindo a inexistência de qualquer benefício fiscal extra, a farmacêutica alemã pôde sempre, no exercício económico do ano passado, apresentar o donativo supostamente de 380.000 euros como despesa, reduzindo assim os lucros.
Com efeito, como esse valor de 380.000 euros reduziu os lucros – ou seja, sem esse suposto donativo, o montante em causa seria lucro de 380.000 euros –, a Merck deixou assim de pagar IRC sobre esse montante. Ou seja, assumindo um IRC de 28%, a farmacêutica alemã pagou menos 106.400 euros de impostos apenas por causa deste donativo. Ora, como o valor real do donativo (a preços de Março de 2021) foi de menos de 55 mil euros, conclui-se assim que, graças ao “favor” de Miguel Guimarães, a farmacêutica alemã teve artes de transformar um donativo em negócio lucrativo.
A Merck declarou um donativo de 380.000 euros à Ordem dos Médicos por máscaras FFP2 que valiam cerca de 55.000 euros. Ganhos fiscais permitiram transformar um donativo numa operação lucrativa para o doador.
Contactada a Merck Portugal, apenas foi adiantado que “a doação foi realizada pela Merck KGaA à Ordem dos Médicos em Portugal a qual se responsabilizou pela sua distribuição pelas entidades beneficiárias pelo que remetemos para a Ordem dos Médicos a resposta à questão levantada sobre a listagem das entidades beneficiadas”, acrescentando ainda que “relativamente à valorização unitária das máscaras objeto da doação, o valor mencionado no contrato foi aquele que a entidade doadora forneceu.”
O PÁGINA UM insistiu com a Merck Portugal no sentido de ser remetida factura da compra das máscaras que viriam a ser doadas – para aferir a valorização –, mas já não obteve resposta. Também não se conseguiu confirmar se a operação fiscal foi aplicada na Alemanha ou em Portugal, ou seja, se o prejuízo fiscal se registou no Estado alemão ou português.
Na consulta do PÁGINA UM aos documentos contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida”, observa-se também a falta de inúmeros comprovativos da efectiva entrega (nota de quitação) daquelas máscaras FFP2, havendo dezenas de situações em que não existe assinatura a comprovar a recepção.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.
A representante legal da Ordem dos Médicos garante que as 190.000 máscaras da Merck foram entregues “nas instalações da empresa Torrestir que, a título gratuito, colaborou na ação solidária promovendo o transporte de todos os bens para as instalações das entidades beneficiárias”, adiantando ainda que “aquelas máscaras foram distribuídas por diversas entidades havendo evidência dessas entregas nas notas de quitação e nas guias de transporte.”
O PÁGINA UM possui documentos fotografados que mostram o contrário, à data da consulta, após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.
N.D. Esta é a segunda parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.
Hoje, em breve entrevista no Correio da Manhã, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, tentou defender o indefensável. Diz ele que o fundo “Todos por Quem Cuida” é “à prova de bala”.
Primeiro, não deixa de ser curioso verificar que Miguel Guimarães tenha sido muito diligente em responder ao Correio da Manhã, que lhe colocou duas simpáticas perguntas.
Miguel Guimarães, actual bastonário da Ordem dos Médicos, ao centro
Ao PÁGINA UM – que teve de recorrer ao Tribunal Administrativo, e lutar contra duas ordens profissionais com advogados instruídos para argumentar no sentido de convencer a juíza a não permitir acesso aos documentos contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, Miguel Guimarães começou, via sua secretária, por “informar que, no prazo legal de 10 dias úteis, ser[iam] remetidos os respectivos esclarecimentos” a um conjunto de 11 perguntas. Esse prazo legal, enfim, nem existe. Acabou por responder muito parcialmente, em conjunto com Ana Paula Martins (ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos) e Eurico Castro Alves, através da advogada Inês Folhadela.
Mas vamos analisar as respostas de Miguel Guimarães fornecidas ao Correio da Manhã. Diz ele que “a entidade bancária, CGD, explicou que a criação de uma conta institucional levaria mais tempo”. Convenhamos: leva, sim. Talvez duas semanas. Ora, entre a assinatura do protocolo entre as três entidades (27 de Março de 2020) e o primeiro donativo recebido (6 de Abril) distam 11 dias. Portanto, não se abriu conta institucional por causa de três dias?
Além disso, qual a perda que isso representaria (ter a conta institucional), uma vez que estava garantido o apoio financeiro (que atingiu cerca de 1,3 milhões de euros, 92% do total) da Apifarma e das farmacêuticas?
Acelerar o processo não é justificação válida, além de que é falso que “para a movimentação [da conta] seriam sempre necessárias duas assinaturas“. É verdade que deveria ser assim, mas raramente foi.
Nos documentos contabilísticos – e este é que dizem a verdade, constam várias ordens de transferência para fornecedores, detectadas pelo PÁGINA UM, apenas com uma assinatura, ora apenas a de Miguel Guimarães (vd. aqui um exemplo), ora apenas de Ana Paula Martins (vd. aqui um exemplo), ora apenas de Eurico Castro Alves (vd. aqui um exemplo).
Miguel Guimarães pode enganar o Correio da Manhã. Mas não engana a verdade.
Na verdade, Miguel Guimarães tem razão numa coisa, quando diz, nas suas respostas ao Correio da Manhã, que “está tudo contabilizado”. E o problema para ele, e também para Ana Paula Martins (que vai agora gerir o principal centro hospitalar do país) e para Eurico Castro Alves – e, de igual forma, para as duas ordens profissionais e para a Apifarma –, é estar, de facto, tudo bem documentado… mesmo se os documentos são irregulares e/ou ilegais.
É exactamente por isso, através de documentos operacionais e contabilísticos, que ficámos a saber que Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves não pagaram 139 mil euros de imposto de selo.
E que também não declararam os montantes recebidos à Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed, ignorando-se assim uma realidade cada vez mais preocupante: a promiscuidade de figuras gradas da Medicina com as farmacêuticas.
Miguel Guimarães esquece, ou quer que esqueçamos, que as boas causas têm de ter bons procedimentos – e não maus. Só poderia ter maus procedimentos se ele não fosse bastonário da Ordem dos Médicos e todo o dinheiro fosse dele. Aliás, na verdade, nem sequer consta nos extractos bancários consultados pelo PÁGINA UM (onde se consegue ver parte dos nomes dos doadores particulares) que Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves tenham dado, vá lá, um euro dos respectivos patrimónios, para o fundo que eles geriram e que recolheu 1,4 milhões de euros. Ou pelo menos 20 cêntimos, que foi o montante individual mais baixo dos donativos.
Dossiers da campanha “Todos os Quem Cuida”, consultados pelo PÁGINA UM após uma sentença favorável do Tribunal Administrativo de Lisboa.
E também esquece Miguel Guimarães que a mentira tem perna curta.
Claro que está tudo contabilizado. Está contabilizado que uma conta solidária detida por dois médicos e uma farmacêutica recebeu muito dinheiro de farmacêuticas e alguns donativos de outras empresas e particulares para comprarem bens, mas meteram as facturas todas na Ordem dos Médicos criando condições para um “saco azul” descomunal acima de 968 mil euros. O PÁGINA UM apresentou todas essas facturas. Miguel Guimarães teve a “fortuna” de o Correio da Manhã não lhe perguntar…
Independentemente das ilegalidades destas falsas facturas – e também das falsas declarações a favor das farmacêuticas –, convém saber onde está esse dinheiro: se em caixa na Ordem dos Médicos; ou se em casa de alguém. Mais do que um auditoria ao fundo, talvez seja mais prudente uma auditoria à Ordem, porque a haver uma entidade prejudicada é a Ordem dos Médicos como instituição.
E não se atire agora com a auditoria à conta do fundo, que aliás será paga pelos dinheiros da própria campanha, pois nunca serviu nem servirá para detectar irregularidades nem ilegalidades.
Acta de 27 de Abril deste ano da comissão de acompanhamento da campanha “Todos por Quem Cuida” que revela preocupação pela investigação do PÁGINA UM então em curso.
Serviu e servirá, sim, para tentar salvar a pele e as ambições de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, que quiseram, com o dinheiro das farmacêuticas, darem ares de bons samaritanos, pensando que tudo valia.
A ideia de realizar uma auditoria ao fundo teve apenas uma causa: a investigação do PÁGINA UM. Não é presunção: é a verdade.
No dia 27 de Abril deste ano, na acta da comissão de acompanhamento da campanha escreveu-se: “O mais recente artigo do jornal Online ´Página Um´ sobre o Fundo ´Todos Por Quem Cuida´, publicado na semana passada, refere que o site do Fundo não disponibiliza informação detalhada sobre a alocação de verbas/ quantidade de material disponibilizado e o nome das entidades beneficiárias e que, caso essa informação não lhe seja disponibilizado no prazo de 10 dias, de acordo com a recomendação da CADA, avançará para uma intimação no Tribunal Administrativo com o objectivo de ser imposta uma obrigatoriedade sob pena de multas pecuniárias por cada dia de atraso”[sic].
Na semana seguinte, no dia 4 de Maio, já estava a Apifarma a sugerir o encerramento do fundo, “uma vez que já não se justifica a sua existência”, sugerindo-se então que, em reunião com os dois bastonários, se realizasse “uma auditoria externa e independente”, além de saber qual o destino da parte remanescente. E no dia 11, já a decisão estava formalmente tomada.
O PÁGINA UM viria a intentar a intimação no dia 23 de Maio deste ano, e a suposta auditoria encomendada serviu exclusivamente como argumento jurídico dos advogados da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos para evitar que a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa as obrigasse a facultar toda documentação contabilística e operacional.
Desejavam – e compreende-se – que a juíza apenas determinasse que o PÁGINA UM tivesse acesso a uma auditoria que, obviamente, seria cozinhada. A intenção era essa; não era fazer a auditoria, que aliás, está em banho-maria. E mesmo que agora saia, paga por quem paga, jamais revelará aquilo que o PÁGINA UM fará, porque a juíza não foi no “canto do bom samaritano”, e obrigou os promotores da campanha, por sentença, a abrirem os arquivos. E mesmo assim o PÁGINA UM não conseguirá fazer tudo, porque isto, na verdade, é um “caso de polícia”.
Amanhã, aqui, no PÁGINA UM, saber-se-á ainda mais.
LEIA AQUI A PRIMEIRA PARTE DA INVESTIGAÇÃO AO FUNDO “TODOS POR QUEM CUIDA”
Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Caso prefira apoiar por outro método, consulte AQUI.
Contabilidade paralela, ausência de declarações de transparência, fuga ao fisco, declarações falsas, abuso de benefícios fiscais, facturas falsas e uma promiscuidade institucional sem limites – eis o tenebroso resultado de uma análise do PÁGINA UM aos documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”. Publicamente promovida pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, através da Apifarma, esta campanha tinha como objectivo ajudar instituições a lutar contra a pandemia, tendo recolhido mais de 1,4 milhões de euros sobretudo destinados à compra de equipamentos de protecção individual. Após meses de luta no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a estes documentos, o PÁGINA UM revela, neste primeiro artigo de um (extenso) dossier, como uma boa causa pode estar enxameada de maus procedimentos. Mais do que um caso de jornalismo de investigação, aqui se revela um “caso de polícia”.
Que se pode dizer – citando os argumentos transmitidos ao PÁGINA UM pela representante legal de Miguel Guimarães (bastonário da Ordem dos Médicos), de Ana Paula Martins (antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e recém indigitada para presidente da administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte) e de Eurico Castro Alves (ex-secretário de Estado da Saúde e actual candidato à secção Norte da Ordem dos Médicos) de “uma iniciativa, que surgiu num contexto muito particular e excepcional, logo após a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República, em Março de 2020, [que] disponibilizou, através de donativos da sociedade civil, diverso material médico e material de proteção individual essencial para que as instituições de saúde portuguesas pudessem, diariamente, prestar os cuidados de saúde necessários aos doentes com covid-19”?
Que se pode dizer de uma iniciativa que financiou “instalações em alguns hospitais que permitiram aumentar o número de camas de cuidados intensivos e melhorar as condições de funcionamento dos cuidados de infecciologia”?
Ana Paula Martins, ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e indigitada para a presidência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, e Miguel Guimarães, actual bastonário da Ordem dos Médicos.
Que se pode dizer de uma iniciativa em que “as recolhas de donativos foram autorizadas pelas autoridades competentes nos termos do Decreto-Lei 87/99, tendo sido sempre identificada a conta bancária para onde os donativos podiam e foram realizados, conta essa exclusivamente afeta a esta campanha”?
Podem-se usar todos os elogios, rasgados até, mas convém acrescentar um famoso adágio popular nacional: de boas intenções está o inferno cheio.
Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, mas numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.
Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estados dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”. A gestão ficou a cargo de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, continuando a ser coadjuvados por uma comissão de acompanhamento de sete pessoas, entre representantes das duas Ordens (três, cada) e da Apifarma, com obrigação de actas de reunião.
Eurico Castro Alves (o único sem máscara, em recente acção de campanha eleitoral da Ordem dos Médicos, no interior de um hospital) é médico cirurgião do Centro Hospitalar Universitário do Porto, foi secretário de Estado da Saúde no (curto) segundo mandato de Passos Coelho, e ainda ocupou a presidência do Infarmed (2012-2015).
A campanha solidária pública teve, de imediato, uma grande adesão de figuras públicas que prestaram depoimentos, como os músicos Rui Veloso, Mariza, Pedro Abrunhosa, João Gil, Luís Represas, Camané e Ana Moura; o escritor Rui Zink; os jornalistas Carlos Daniel e Júlio Magalhães; os apresentadores Fernando Mendes e Manuel Luís Goucha; os futebolistas João Moutinho, João Félix e Luís Figo; e ainda o antigo presidente da República Ramalho Eanes e o actual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.
Apesar de ter sido sempre apresentada publicamente como uma campanha da sociedade civil que, em menos de dois meses angariara mais de um milhão de euros que teriam sido doadas pelos portugueses [as contas finais apontam para 1.422.962 euros], na verdade o grosso do financiamento proveio das farmacêuticas. De acordo com os extractos consultados pelo PÁGINA UM – por autorização obtida através de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, apenas pouco mais de 38 mil euros vieram de donativos particulares, ou seja, 2,7% do total. As empresas farmacêuticas, incluindo a Apifarma, canalizaram 1.313.251 euros, ou seja, 92,3% do total.
No entanto, não foi por aqui que esta campanha por uma boa causa mostrou os seus maus procedimentos.
António Guterres, actual secretário-geral das Nações Unidas, foi uma das figuras públicas a dar a cara pela campanha para incentivar donativos particulares. Mas dos cerca de 1,4 milhões de euros angariados, um pouco mais de 1,3 milhões de euros vierem das farmacêuticas. Donativos particulares só acumularam 38 mil euros.
A génese de um vasto conjunto de irregularidades e ilegalidades envolvendo esta campanha, algumas com eventual consequência penal, começa no simples e evidente facto de a conta solidária da campanha “Todos por Quem Cuida” não pertencer nem à Ordem dos Médicos (que foi quem garantiu a logística da operação) nem à Ordem dos Farmacêuticos, apesar de serem estas entidades que pediram a autorização necessária para angariações deste género de campanhas junto do Ministério da Administração Interna.
Na verdade, a conta foi criada, a título individual, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Os documentos do balcão da Portela de Sacavém da Caixa Geral de Depósitos não deixam, a esse propósito, quaisquer dúvidas sobre essa titularidade da conta solidária, sendo que nos cheques surge o nome de Miguel Guimarães, apresentando-o como “cliente há mais de 31 anos”.
Mesmo já tendo abandonado funções como bastonária na Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro deste ano, Ana Paula Martins – que foi vice-presidente do PSD em final de mandato de Rui Rio, e esteve como administradora da Gilead nos últimos meses, até ser indigitada para administrar o centro hospitalar da região norte de Lisboa, onde se integra o Hospital de Santa Maria – mantém-se como co-titular desta conta.
Conta bancária da campanha, para onde seguiram os donativos das farmacêuticas, de outras empresas e de particulares, foi aberta no dia 2 de Abril de 2020, em nome de Miguel Guimarães (como titular principal), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Todos os pagamentos da campanha foram efectuados através desta conta.
O actual bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Mota Filipe, não quis explicar ao PÁGINA UM as razões para prescindir de assumir a co-titularidade da conta, em substituição de Ana Paula Martins. Mota Filipe apenas salientou ao PÁGINA UM a sua convicção de que “esta iniciativa foi essencial para proporcionar os melhores cuidados de saúde aos pacientes infectados com SARS-CoV-2 e proteger os profissionais de saúde que os trataram”.
Não sendo essa a questão – o mérito, em teoria, de uma campanha de solidariedade –, acrescente-se também que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, através de representante legal, ainda não esclareceu formalmente o PÁGINA UM sobre os motivos para não ter sido aberta uma conta institucional para recolher os donativos quer das farmacêuticas quer de outras empresas, em geral, e de particulares.
Porém, sendo evidente que a conta solidária é de três particulares, surgem aqui vários problemas graves, uma vez que, desde 6 de Março de 2020 – dia do primeiro depósito na conta titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves – se contabilizam 41 donativos superiores a 500 euros, totalizando 1.394.017 euros.
Sendo legais esses donativos a particulares [na sua génese, o PÁGINA UM, antes de passar a ter gestão empresarial, funcionou com base em donativos de leitores endereçados ao seu director], para esses casos não se aplica a Lei do Mecenato, pelo que deveriam ser declarados à Autoridade Tributária os montantes desses 41 donativos, sendo exigível o pagamento de imposto de selo de 10% do montante total. Ou seja, Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente à Autoridade Tributária cerca de 139 mil euros.
Nos documentos consultados pelo PÁGINA UM não consta qualquer menção a esse pagamento, sempre exigível a particulares independentemente do bom propósito da campanha. E também nos extractos bancários consultados e fotografados pelo PÁGINA UM, não há qualquer transferência para a Autoridade Tributária. Nenhum dos três visados prestou esclarecimentos ao PÁGINA UM sobre esta matéria. Note-se que os restantes 48.945 euros amealhados pela conta solidária não têm aquela obrigação, porque se referem a transferências de valor igual ou inferior a 500 euros. Nestes casos, são considerados “donativos conforme os usos sociais”.
Mas houve outro tipo de declarações também em falta – aqui com repercussões mais de índole ética. Como Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves são médicos e Ana Paula Martins é farmacêutica, as empresas farmacêuticas beneméritas tinham a obrigação de declarar os montantes doados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando os beneficiários, que os deveriam validar. Esta obrigação manter-se-ia mesmo se tivessem sido as Ordens a receber os donativos.
Conta solidária (para a campanha “Todos por Quem Cuida”) e cheques têm como primeiro titular Miguel Guimarães. Os donativos nunca entraram na conta da Ordem dos Médicos, mas as facturas das compras aos fornecedores (para os bens a doar a instituições) entraram, apesar dos pagamentos serem feitas através da conta solidária, que tem como co-titulares Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
Ora, consultando o Portal do Infarmed não consta qualquer referência aos 20 donativos da Apifarma entre 14 de Abril de 2020 e 6 de Abril de 2021 – num total de 1.251.251 euros – nem aos donativos da Apormed (5.000 euros), Bene Farmacêutica (20.000 euros), Bial Portela (20.000 euros), Ipsen Portugal (12.000 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros). A representante legal dos três titulares da conta solidária – saliente-se que o PÁGINA UM remeteu questões específicas a cada um deles, que optaram por não responder individualmente – diz que “não compete às entidades que promoveram a ação solidária declarar os donativos no Portal da Transparência e Publicidade, mas às entidades que (…) fizeram os donativos”, acrescentando que “a Ordem dos Médicos validou todos os donativos que foram declarados no Portal da Transparência e em que foi identificada.”
O PÁGINA UM pediu esclarecimentos sobre estas matérias ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo – com função de fiscalização no âmbito do regime jurídico dos medicamentos –, apresentando comprovativos de que a conta solidária era titulada por Miguel Guimarães. Ainda não obteve qualquer reacção, mas fica patente, neste caso, que o Portal da Transparência e Publicidade apresenta falhas graves, não sendo os seus dados de confiança por evidente falta de fiscalização por parte do Infarmed.
Se estes casos já revelam graves irregularidades e até fuga ao fisco – pelo não pagamento do imposto de selo no valor de cerca de 139 mil euros –, pior ainda se mostrou, do ponto de vista da legalidade, a gestão contabilística e operacional da campanha, que esteve sempre sob supervisão directa de Miguel Guimarães, por ter sido feita pelos serviços da Ordem dos Médicos.
Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.
Ora, numa situação normal – e uma vez que a conta receptora dos donativos não era de qualquer das Ordens, mas sim formalmente de três pessoas em concreto (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) –, as compras de equipamentos e outros géneros – a serem doados a diversas entidades, incluindo instituições particulares de solidariedade social (IPSS), associações e mesmo organismos estatais e empresas privadas – deveriam ser, por princípio, facturadas a quem as contratava. Ou seja, aos titulares da conta solidária. Mas não foi assim que sucedeu.
Apesar de a generalidade dos pagamentos (feitos sempre a pronto) provirem da conta solidária – titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves –, os fornecedores receberam instruções para as facturas serem em nome da Ordem dos Médicos. Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram assim na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Ou seja, sem saída de dinheiro de qualquer conta pertencente à Ordem dos Médicos.
As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.
Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Guimarães, Martins e Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, não foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.
Dossiers da campanha “Todos por Quem Cuida”, contendo documentos administrativos e operacionais, que o PÁGINA UM consultou após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Esse “crédito informal” criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um “saco azul” ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.
Mas mesmo na hipótese académica que não tenha sido criado nem usado qualquer “saco azul” – matéria que é do foro judicial, e não jornalístico –, qualquer revisor oficial de contas já teria detectado facilmente uma desconformidade nas demonstrações financeiras, por haver documentos atestando avultadas saídas de dinheiro (facturas a pronto de pagamento), mas sem qualquer fluxo de caixa correspondente. E estamos a falar em 978.167,15 euros ao longo dos exercícios de 2020, 2021 e 2022.
Pagamentos das compras da campanha “Todos por Quem Cuida” não foram feitos por contas bancárias da Ordem dos Médicos, mas as facturas entraram como despesas “passíveis de saque” à margem da lei, e sem deixar rasto.
Em todo o caso, mesmo que as autoridades venham a concluir, após investigação, que não houve “desfalques” na Ordem dos Médicos, a correcção desta “anomalia” contabilística – através, por exemplo, de declarações formais de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, de terem feito os pagamentos e, assim, terem “transferido” os donativos angariados – mostra-se problemática. E agravaria ainda mais uma outra ilegalidade fiscal da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Com efeito, apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos. Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.
Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.
Assim, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.
A realidade foi simultaneamente mais simples e complexa: a Gilead – neste caso, que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas – terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, seriam essas três pessoas – e não as entidades beneficiadas com os géneros doados – que deveriam passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.
Donativos para a conta solidária com montantes superiores a 500 euros, que deveriam ter pago imposto de selo (10%).
Ora, a emissão de centenas de declarações falsas pelas entidades beneficiadas – que assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que estas não conseguirão comprovar através de facturas porque não foram elas que compraram os géneros – configura uma gigantesca fraude fiscal envolvendo centenas de entidades. De facto, considerando que, com este estratagema, os donativos à campanha “Todos por Quem Cuida” passaram a ser enquadráveis no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado –, as farmacêuticas puderam levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue.
Assim, sabendo que, globalmente, as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, acabaram por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, algo que não seria possível se assumissem, como efectivamente sucedeu, que os donativos seguiram para uma conta solidária de três pessoas. Este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros.
Este montante engloba também os casos em que os donativos foram aceites por diversos hospitais como sendo das farmacêuticas, mesmo quando as verbas foram também provenientes da conta solidária, e até previstas as transferências por protocolos entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e três centros hospitalares: Lisboa Central, Universitário do Porto e São João (Porto). No primeiro caso para apoiar a criação de uma farmácia ambulatória no Hospital Curry Cabral, e nos dois hospitais portuenses para financiar parte de novas unidades de internamento.
Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos assinaram protocolos com três hospitais, mas os pagamentos foram afinal feitos pela conta solidária titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, embora as farmacêuticas (como a AstraZeneca, vd. foto) tenham recebido declarações para efeitos de benefícios fiscais. Serviços Partilhados do Ministério da Saúde aceitaram este esquema.
Nestes casos específicos, os centros hospitalares receberam o dinheiro da conta solidária, mas não entregaram quaisquer facturas em nome da Ordem dos Médicos, optando por apresentar declarações de recebimento de donativos a diversas farmacêuticas por indicação expressa de Miguel Guimarães. Nenhuma das administrações destes três centros hospitalares responderam aos pedidos de comentários do PÁGINA UM. Estas declarações foram aprovadas pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), tutelada pelo ministro da Saúde.
No caso de outros bens recebidos por diversas unidades do Serviço Nacional de Saúde – sobretudo ventiladores da Sysadvance e câmaras de entubamento da Gravoplot [e que merecerão artigo específico do PÁGINA UM] –, a “solução” encontrada foi similar à já referida para os equipamentos de protecção individual: assumiu-se, recorrendo a declarações falsas, que quem doou os géneros foram as farmacêuticas, não sendo sequer referido que houve participação da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Confrontado o presidente do SPMS, Luís Pinheiro Goes, sobre estas comprovadas falsas declarações, a resposta foi lacónica: “As declarações emitidas pela SPMS foram elaboradas nos exatos termos solicitados pelas entidades beneficiárias das doações”, isto é, pelos hospitais.
O PÁGINA UM ainda insistiu junto de Luís Pinheiro Goes, perguntando se nunca houve verificação documental pela SPSM para confirmar quem eram os efectivos doadores, e se seria feita alguma diligência suplementar, mas não teve resposta. Por sua vez, a representante legal de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves diz que o despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais “autorizou ainda a interposição de entidades mediadoras entre o mecenas e o beneficiário”, pelo que, “deste modo, a SPMS emitiu os documentos que se encontrava autorizada a emitir.”
Este expediente é, sem dúvida, de legalidade duvidosa, e nem sequer foi usado noutra circunstância no decurso de um apoio extraordinário feito pela farmacêutica alemã Merck em Março de 2021, mas que envolveu apenas géneros. Neste caso, de acordo com a lei, a farmacêutica decidiu assinar um contrato com a Ordem dos Médicos, doando-lhe 190 mil máscaras FFP2, e declarando esse donativo (com um valor monetário específico) no Portal da Transparência e Publicidade. O beneficiário que ali consta é, obviamente, a Ordem dos Médicos, e não nenhuma das muitas entidades que terão recebido as máscaras FFP2 doadas. Em todo o caso, o PÁGINA UM também detectou irregularidades neste donativo, de âmbito fiscal, que abordará em outra notícia.
Ora, mas acabando todos os envolvidos por assumirem na generalidade dos casos – e mesmo se através de um esquema fiscalmente nada ortodoxo e com documentos falsos – que os donativos foram entregues em géneros pelas farmacêuticas, a Ordem dos Médicos terá deixado então de poder justificar a existência de facturas a pronto pagamento em seu nome sem qualquer fluxo de saída de dinheiro.
Manuel Pizarro, ministro da Saúde.
De facto, como as farmacêuticas têm agora, com as declarações (mesmo se falsas) das entidades beneficiadas, uma justificação contabilística para os seus donativos (globalmente, no valor de 1.329.751 euros), já não poderão, em princípio, passar segunda declaração de entrega desse montante nem aos titulares da conta solidária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) nem à Ordem dos Médicos.
Portanto, com tudo isto, está criado, no mínimo, um intrincado imbróglio fiscal com implicações penais. E isto sem incluir a conferência entre as facturas na posse da Ordem dos Médicos no valor de mais de 968 mil euros – para a aquisição de géneros da campanha “Todos por Quem Cuida”, que não foram por si pagos – e os seus fluxos de caixa, para assim se aferir se se criou ou não um “saco azul”.
O PÁGINA UM colocou várias questões ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, que não respondeu.
N.D. Esta é a primeira parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.
Apesar de estar sob suspeita desde Setembro do ano passado, por causa das suas promíscuas ligações à indústria farmacêutica, Filipe Froes mantém, para já, a confiança do ministro da Saúde, mesmo com um processo disciplinar da Inspecção-Geral das Actividades de Saúde que se arrasta, de forma secreta, há 10 meses. Este ano, o pneumologista mantém os valores “habituais”: recebeu já cerca de 4.000 euros por mês do sector farmacêutico, com destaque para a norte-americana Merck Sharp & Dohme.
Apesar de estar com um processo disciplinar, instaurado há 10 meses pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, devido a alegadas ligações promíscuas com a indústria farmacêutica, Filipe Froes pode manter-se confiante nas suas funções de consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS). O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, não lhe vai tirar o tapete, pelo menos até à conclusão de um longo processo disciplinar, sem fim à vista.
Esta posição governamental permitirá assim ao pneumologista manter uma perna nos corredores da autoridade de saúde nacional (DGS), onde se decidem terapêuticas, enquanto mantém a outra perna, bem aberta, para satisfazer solicitações da indústria farmacêutica entre consultadorias, palestras e lobby.
De acordo com nota do Ministério da Saúde enviada ao PÁGINA UM, Manuel Pizarro aguardará a conclusão do processo disciplinar “para se pronunciar”. Ou seja, uma carta branca para Froes manter a sua posição de consultor da DGS e as suas relações comerciais com as farmacêuticas. O pneumologista destacou-se também, durante a pandemia, por ser o líder do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, um órgão não-estatutário que inclusive serviu para perseguir médicos com opiniões distintas do bastonário Miguel Guimarães, como sucedeu com Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria.
Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.
Conforme noticiou o PÁGINA UM há uma semana, Filipe Froes está a ser alvo de um processo disciplinar, em consequência de um processo de averiguação aberto em Setembro de 2021, mas como está em fase de instrução, as razões da acusação estão inacessíveis pela “natureza secreta do inquérito”.
A IGAS não adianta quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, mas informa que este deriva das averiguações iniciadas em Setembro do ano passado a que foi sujeito este conhecido consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), presença assídua na imprensa como alegado perito independente durante os anos da pandemia.
Em 4 de Janeiro passado, o PÁGINA UM tinha já escalpelizado as declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e cruzado com os relatórios e contas dos últimos anos da sua empresa – a Terras & Froes –, detectando sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.
A Merck Sharpe & Dohme “perdeu” a corrida das vacinas, optando pelo desenvolvimento de anticorpos monoclonais. Froes elogiou o seu uso e integrou a sua introdução nas terapêuticas anti-covid.
Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.
De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. Este ano, em 11 meses, vai com uma média mensal de 4.327 euros.
Este ano, Filipe Froes tem dado especial atenção às solicitações da farmacêutica norte-americana Merck Sharp & Dohme (MSD) , contando já com oito colaborações que lhe renderam 21.083 euros. Mas teve relações com mais nove, entre as quais a AstraZeneca, Gilead e Sanofi. Estas relações não o coíbem, contudo, de integrar, por exemplo, a equipa de consultores da DGS que define as terapêuticas anti-covid, onde passaram a constar este ano os anticorpos monoclonais da MSD, o molnupiravir, comercializado sob a marca Lagevrio.
Em diversas ocasiões, Froes tem promovido, de forma entusiástica, o uso dos anticorpos monoclonais (produzidos pela Pfizer e pela MSD) e a integração da vacina da covid e da gripe numa só dose (comercializada pela Sanofi).
Saliente-se, contudo, que estes rendimentos podem pecar por defeito, uma vez que cada vez se torna mais patente que o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed apresenta falhas enormes, porque as farmacêuticas se “esquecem” de registar donativos e patrocínios a médicos e outras entidades, entre as quais os media mainstream, incumprindo o Estatuto do Medicamento.
Recorde-se que, em Novembro passado, Filipe Froes lançou um pequeno livro com as crónicas que foi publicando no Diário de Notícias, em co-autoria com Patrícia Akester, e o patrocínio da Bial. A farmacêutica portuguesa – que tem como chairman António Horta Osório, que é simultaneamente administrador da Impresa (dona do Expresso e SIC) ainda não colocou o valor do apoio no portal do Infarmed nem sequer respondeu a questões colocadas pelo PÁGINA UM.
Hoje é dia 6 Dezembro de 2022. Há exactamente um ano, no dia 6 de Dezembro de 2021, o PAGINA UM apresentava dois requerimentos ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, para acesso a base de dados (Portal RAM) sobre as reacções adversas às vacinas contra a covid-19 e ao anti-viral remdesivir, comercializado pela farmacêutica Gilead.
O pedido teve logo a recusa liminar do Infarmed – um organismo que tem mostrado estar mais ao serviço das farmacêuticas do que da saúde pública, dirigido por um “homem de mão” daquele sector. Rui Santos Ivo foi director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica entre 2008 e 2011, e está na “máquina” (pouco) reguladora do medicamento desde 1994, com alguns intervalos em cargos burocráticos europeus e nacionais da saúde, mais conhecido por esconder do que revelar informação sensível.
O PÁGINA UM recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que em 16 de Março deste ano considerou que deveria ser facultado o acesso ao Portal RAM, expurgando dados nominativos – o que é aceitável e até recomendável –, até porque, referia-se no parecer, “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”.
Mas o interesse público é uma batata para o grande defensor do secretismo da indústria farmacêutica de seu nome Rui Santos Ivo e mais a sua equipa. E assim, o Infarmed mandou o parecer da CADA às malvas e insistiu na recusa. No dia 1 de Abril deste ano, o regulador defendeu que só deve ser do conhecimento do público “os dados constantes da base de dados EudraVigilance”, mas, como se sabe, estes são apenas apresentados em formato agregado, sem qualquer detalhe informativo.
Perante esta situação, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma petição junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. É um processo considerado urgente que corre termos mesmo em tempo de férias judiciais. Foi o primeiro processo dos 14 já apresentados que teve o apoio imprescindível dos leitores, através do FUNDO JURÍDICO. Foi no dia 20 de Abril deste ano. Passaram já sete meses e meio. Ou, mais precisamente, 230 dias.
Nestes 230 dias, o Infarmed mais não fez do que manobras para ludibriar os já três juízes que pegaram no processo, tentando demonstrar, através da sociedade de advogados BAS – que tem coleccionado contratos por ajuste directo com mais de uma dezena de entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde – que os dados do Portal RAM se encontram na Eudravigilance e que é impossível anonimizá-los. Em suma, dizem que querem proteger a identidade das pessoas que lá constam, quando, na verdade, mantendo na obscuridade os efeitos adversos – porque os relatórios que disponibilizam trimestralmente são apenas números manipuláveis – estão a contribuir para desproteger a saúde das pessoas.
Atente-se: é ridículo alegar a impossibilidade de anonimização de uma base de dados, porque qualquer uma permite seleccionar campos e variáveis, retirando assim o nome das pessoas. Anonimizar dados informáticos relativos à saúde é a tarefa mais banal e fácil do mundo, mas tem sido o argumento mais usado pela Administração Pública para recusar o acesso.
O processo no Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o acesso ao Portal RAM, convém dizer, não tem estado parado, tendo em conta as suas particularidades. E, neste caso, até tem tido uma evolução pouco normal – em comparação com outros processos similares intentados pelo PÁGINA UM.
Conversa amena entre o presidente do Infarmed e o ex-jornalista André Macedo em serviço para a Afifarma.
No último despacho, desta vez da juíza Sara Ferreira Pinto, ficou finalmente definido, após alegações e contra-alegações de ambas as partes, o “objecto de litígio”:
1) Saber se o designado “Portal RAM” é a base de dados da qual conste informação sobre as reações adversas ao antiviral Remdesivir, sob as formas usadas comercialmente pela Gilead Sciences, desde Março de 2020 até à data e que serviu para a elaboração do Relatório de Farmacovigilância // Monitorização da segurança das vacinas contra a COVID-19 em Portugal;
2) Saber se além da base de dados referida em 1) a requerida possui documentos relacionados com as reações adversas a medicamentos, nomeadamente, ao antiviral Remdesivir, sob as formas usadas comercialmente pela Gilead Sciences, desde Março de 2020 até à data, e/ ou documentos que serviram para a elaboração do Relatório de Farmacovigilância // Monitorização da segurança das vacinas contra a COVID-19 em Portugal;
3) Saber se os dados contidos na base de dados referida em 1) e/ ou nos documentos referidos em 2) permitem a identificação da pessoa a que respeitam, de forma direta ou indireta, especificamente saber se os dados relativos à saúde permitem a identificação da pessoa a que respeitam, de forma direta ou indireta.
Rui Santos Ivo; presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM.
4) Em caso de resposta afirmativa ao TP 3), saber se é possível consultar a base de dados referida em 1) sem que seja possível a quem efetua a consulta identificar a pessoa a que os dados, designadamente os dados de saúde, respeitam.
5) Em caso de resposta afirmativa ao TP 3), saber se é possível expurgar dos documentos referidos em 2) os dados que permitem, de forma direta ou indireta, a identificação da pessoa a que respeitam.
6) Saber se a base de dados EudraVigilance não contém a informação discriminada e detalhada sobre Portugal que existe no Portal RAM.
Para “auxiliar” o Tribunal, a juíza aceitou que o Infarmed indicasse uma testemunha, que deveria exercer o seu depoimento, e ser questionada pelos advogados das partes. O Infarmed indicou uma técnica: Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos.
Fez bem.
Quanto ao PÁGINA UM apresentou um requerimento para que, além desta senhora, seja também exigido o testemunho presencial de Rui Santos Ivo , presidente do Infarmed… Precisamos de saber, pela sua boca, as explicações técnicas, comerciais ou políticas para tanta luta para manter secreta uma base de dados de tão grande relevância para a saúde pública.
Na verdade, um ano depois, mais se deve perguntar: o que esconde o Portal RAM para não ser mostrado? Quem é o amo do Infarmed: os cidadãos ou os políticos e a indústria farmacêutica?
É isto que, na verdade, estará em causa no processo do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Este e outros processos de intimação são suportados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO, na plataforma MIGHTYCAUSE. Caso prefira apoiar por outro método, consulte AQUI.
“Hoje, dia 9 de agosto de 2022, um cidadão de nome Pedro de Almeida Vieira dirigiu-se à ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre pretexto de consultar processos em que o seu nome está envolvido.
Não é a primeira vez que o faz, não aceitando as regras estabelecidas para o funcionamento da ERC e, insatisfeito, com deliberações em que a ERC não lhe dá razão, tem vindo a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem, insistindo, inclusive, em gravar uma audiência de conciliação apesar de advertido de que não o poderia fazer, e fotografar peças processuais.”
Este foi, na íntegra, o inusitado comunicado de imprensa da ERC, presidida por um juiz conselheiro (Sebastião Póvoas), que tecia sobre mim considerações, no mínimo, pouco abonatórias.
Aliás, dois dias depois, no dia 11 de Agosto, repetiu a dose com novo comunicado: “A Comissão de Trabalhadores da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social (CT-ERC) reuniu, esta quinta-feira, com o Senhor Presidente do Conselho Regulador, discutindo-se a perturbação que vem sendo sentida na ERC que coloca em causa o regular funcionamento da instituição e o seu bom nome, bem como a tranquilidade dos seus trabalhadores.”
Certa imprensa e certos jornalistas rejubilaram. Alguns, como a Lusa e o Observador, até fizeram notícias sem, inicialmente, me ouvirem. Até o Sindicato dos Jornalistas, embora criticando generalizações, fez um comunicado moderado, informando que “não faz comentários sobre conflitos entre a ERC e o referido jornalista”. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, essa, muda e queda.
Quase três meses depois, hoje mesmo – na verdade, este Editorial foi mesmo colocado online no interior da sede da ERC –, estive a consultar novamente “peças processuais”. E até as fotografá-las. E sem necessidade de chamar a PSP para identificar pessoas que a mando do Conselho Regulador me pudessem impedir, como em Agosto, que fotografasse peças processuais.
E porquê? Porque o presidente da ERC informou-me previamente (e até já isso fizera outra vez depois de Agosto) ser “possível a utilização de meio próprio de reprodução (telemóvel), ao abrigo do artigo 13º da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei nº 26/2016, de 22 de agosto de 2016, na sua versão atual)”. E já autorizara até noutra minha visita anterior.
Já agora também informo que consultei novamente processos que já antes vira, e sobre os quais me insurgira – digamos assim – por estarem incompletos. Continuavam incompletos, porque a ERC nem respeito institucional tem para com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), ignorando três pareceres distintos relativos a seis queixas que apresentei, nos últimos meses, por vários obstáculos ao acesso à informação por parte do Conselho Regulador.
Sim, três pareceres da CADA, que podem ser lidos AQUI um, AQUI outro e AQUI mais outro – todos desfavoráveis à conduta da ERC, que tinha “regras estabelecidas” que eu, enfim, teimava em não aceitar. Vale a pena ler, sobretudo a parte em que a ERC considerava que os pareceres jurídicos e de índole técnica deveriam desaparecer de circulação. Mas também recomendo por causa dos custos exageradíssimos das fotocópias (seis vezes acima do preço de mercado, pelo menos) ou da emissão de cópias certificadas de actas com expurgos ilícitos.
Primeiras páginas das deliberações da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos analisando as participações do PÁGINA UM contra a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Geralmente, aceito as regras estabelecidas, mesmo sabendo que as posso sempre questionar e denunciar no caso de as considerar inapropriadas e inaceitáveis. Este deve ser o espírito de uma democracia. Mas nem era o caso do “diferendo” com a ERC em Agosto passado. Na verdade, eu não podia, como jornalista, aceitar regras arbitrárias e mesmo ilegais, ainda mais de um regulador criado pela Constituição para defender a liberdade de imprensa.
Fiz, por isso, somente aquilo que devia: pedir às autoridades policiais que identificassem as pessoas que me obstaculizavam o livre acesso a um direito; depois, apresentei participações à CADA, que me veio dar razão.
A ERC, lamentavelmente, não ficou satisfeita em obstaculizar o acesso de um jornalista a peças processuais; tomou ainda a decisão de fazer-me ataques de carácter, tentando um “linchamento público”, e com isto encetar manobras de diversão para “apagar” erros processuais e colocar o papel de odioso a um jornalista incómodo. O tempo veio dar-me razão.
Bem sei que sim, que há jornalistas incómodos. Mesmo chatos, que causam chatices. Tantas que, por exemplo, ainda na semana passada, os advogados contratados pela ERC tiveram de gastar bastantes horas a escrever 44 páginas de um recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, por causa da sua derrota na primeira instância contra o PÁGINA UM, porque desejo mais do que a transparência dos dignos membros do Conselho Regulador deseja. Está a ERC no seu direito de usar os recursos dos contribuintes para negar a transparência. E eu tenho o direito de discordar e usar armas legais.
Mas, hélas, nunca direi que o “cidadão” Sebastião Póvoas me anda a insultar e a exercer coacção só porque ele não me faz as vontades… Nem vou a correr enviar um comunicado de imprensa à Lusa para que esta, diligentemente, “viralize” uma “encomenda”, sem sequer ouvir o contraditório, para tratar da folha de um “opositor”.
Entretanto, quanto aos processos que continuam incompletos, pois bem: nova intimação no Tribunal Administrativo. Água mole em cabeça dura…
A Sonae aumentou em 33% os seus lucros nos primeiros nove meses do ano, para 210 milhões de euros.
Por sua vez, a Jerónimo Martins lucrou 419 milhões de euros, representando uma subida de 29% também nos primeiros três trimestres de 2022.
E entretanto o Banco Alimentar fez, no fim de semana passado, mais uma campanha de recolha de bens alimentares. Onde? Nos supermercados com lucros excessivos, claro, como habitualmente.
Confesso que, por mais que estas campanhas de solidariedade me possam suscitar simpatia, e em particular as do Banco Alimentar – que já leva 31 anos de existência –, cada uma delas me causa alguma irritação e frustração.
Por um lado, porque me vem sempre à memória o dito em 2012 da sua sempiterna presidente Isabel Jonet de que “não podemos comer bifes todos os dias” – e não era um manifesto ecológico nem vegan. A visão miserabilista do pobre ou do necessitado, que não pode almejar comida variada e decente, provoca-me alguns engulhos, ainda mais por estar mais ou menos “convencionado” aquilo que lhe deve ser ofertado: sobretudo alimentos com prazo de validade longo para ser fácil de armazenar e distribuir. Para dar, mas para dar pouco trabalho.
Por isso, como se pode ver na lista de bens doados online no Banco Alimentar, lá temos sempre o mesmo: por agora, 16.153 litros de azeite, 14.213 litros de óleo, 35.534 litros de leite, 29.132 quilos de atum, 25.029 quilos de salsichas e 28.091 quilos de arroz. Não há mais alternativa?
Por mais que possamos considerar meritórios os esforços destas associações – que trabalham com voluntários, e portanto todos fazem mais do que eu, nessa perspectiva –, na verdade, a filosofia está toda errada. Não apenas porque o esforço acaba por ser contraproducente para uma solução condigna face à pobreza crónica, como dá sinais ao Estado – e à sua mastodôntica e ineficaz estrutura de Segurança Social – para continuar a aproveitar-se destes movimentos sociais para pouco ou nada fazer em prol de uma solução profissional.
Aliás, pessoalmente, causa-me estranheza a reacção da sociedade perante os falhanços do Estado profissional, que deveria ser competente porque vive dos nossos impostos: cria estruturas voluntárias, que, embora pareçam atenuar os efeitos da incompetência do Estado, apenas o incentivam a ser ainda mais incompetente. A sociedade deveria sim pressionar mais o Estado a ser competente e eficaz.
Não se acaba com a pobreza, e com a fome, sempre mantendo a mesma receita: quilos e quilos, e litros e litros, de azeite, de óleo, de atum, de salsichas e de arroz. Sempre e sempre os mesmos produtos, sempre e sempre as mesmas soluções, sempre assentes num modelo pseudocristão de compaixão e piedade, mas que se mostra indigno, por se perpetuar.
Além disso, é ainda mais indigno que o Estado até lucre com as campanhas do Banco Alimentar e de entidades similares. E isso encanita-me. Não apenas naquilo que “lamentavelmente” poupa recursos – porque não gasta nas ajudas alimentares à população desfavorecida – como tem receita pelo IVA arrecadado dos doadores que compram os bens.
E, claro, no meio disto, ganham também os supermercados que aderem – claro que aderem, de braços abertos – às campanhas do Banco Alimentar, porque nesses dias aumentam a facturação.
Para atenuar esta hipocrisia do Estado e dos supermercados, pelo menos que existisse um sistema que permitisse a selecção de determinados bens alimentares, especificamente destinados à campanha, com preços especiais, deduzidos do IVA e da margem de lucro dos distribuidores. No limite, os próprios produtores dos bens poderiam também vender sem lucro aos distribuidores os bens para essas campanhas.
E, já agora, criando um sistema de armazenamento e distribuição – ou um modelo de créditos em lojas, que possa incluir frescos, carne e peixe – para que se deixe de doar quase em exclusivo “comida de pobre”. Já chateia, nestas campanhas, ver as “tríades” azeite-óleo-leite e atum-salsichas-arroz.
Um qualquer citadino, talvez fique surpreendido pela grossura do livro Aves de Portugal Continental – que se subintitula Guia Fotográfico, embora seja mais um guia de campo, e tenha mais, muito mais do que fotografias.
De facto, aos tais citadinos – e há cada vez mais, infelizmente, habituados a ver, nos jardins urbanos, quando muito, uns pardais, uns melros e, no seu tempo, umas andorinhas – pode causar pasmo vislumbrar a necessidade de se usarem 448 páginas para catalogar todas as aves portuguesas, e ainda por cima excluindo as dos Açores e da Madeira.
Na verdade, até serão poucas. Até se poderiam dispensar mais, porquanto temos contabilizadas, entre nós, 466 espécies de aves selvagens, havendo 172 cuja observação é rara (ou acidental) e outras 294 bem mais frequentes. É sobretudo sobre este segundo grupo que os autores, Gonçalo Elias e José Frade se debruçam. Ou melhor dizendo, são 294 as aves retratadas através da câmara fotográfica de José Frade, e sob a “pena” de Gonçalo Elias, dois dos mais conhecidos ornitólogos do país.
Mais do que um simples guia de campo – embora numa dimensão necessariamente compacta, em papel resistente de excelente qualidade, como convém a um exemplar que se quer mais a deambular no campo do que parado na estante –, esta é uma obra de divulgação científica e didáctica, que mereceria, talvez, uma outra versão alternativa, mais alargada, dir-se-ia em tamanho “monumental”, para folhear no sofá. Não apenas para se destacarem melhor as excelentes fotografias de José Frade, mas também para dar mais “espaço” e detalhe às notas pedagógicas e esclarecidas de Gonçalo Elias.
Em todo o caso, neste formato compacto, o leitor não fica mesmo nada mal servido com tudo aquilo que este livro – lançado em Maio deste ano e já com segunda edição – lhe oferece. Agrupadas por ordens taxonómicas, as espécies são identificadas pelo nome comum e científico; além de fotografias (uma das quais em tamanho maior), são apresentadas algumas das suas características (dimensão, envergadura, frequência e abundância), bem como informações complementares e breves referências ao habitat e distribuição. De grande utilidade é o mapa de Portugal, dividido por regiões, indicando onde se pode encontrar cada espécie, em função do respectivo estatuto (residente, invernante, estival ou migradora de passagem).
Para passear pelo campo, munido dos sempre necessários binóculos, ou para folhear em casa, este é, sem dúvida, um livro de consulta e leitura obrigatórias – e servirá também para não esquecermos que não andamos aqui sozinhos, e que, pelos céus, há quem nos olhe de cima para baixo. Mesmo quando nós não os respeitamos, e nem sequer conhecemos a sua grande utilidade.
Estrela mediática durante a pandemia, Filipe Froes manteve-se como consultor da Direcção-Geral da Saúde, enquanto acumulava funções de consultor e palestrante de farmacêuticas com fortes interesses no negócio da covid-19. Assumia-se sempre como um perito independente sem conflitos de interesses, apesar de mais de uma vintena de farmacêuticas que, desde 2013, se mostraram interessadas nos seus préstimos. A Inspecção-Geral das Actividades de Saúde, depois de um processo de averiguações, abriu-lhe mesmo um processo disciplinar… que marca passo há mais de nove meses. Já nasceram as crianças que foram concebidas no mesmo dia em que o inspector-geral determinou a instauração deste processo.
A Inspecção-Geral das Actvidades em Saúde confirmou hoje ao PÁGINA UM que o pneumologista Filipe Froes está mesmo a ser alvo de um processo disciplinar devido às suas ligações à indústria farmacêutica, mas o seu processo arrasta-se desde Fevereiro deste ano. A IGAS acrescenta que o processo disciplinar se encontra ainda em fase de instrução e, nessa medida, inacessível pela “natureza secreta do inquérito”.
A IGAS não adianta quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, mas informa que este deriva das averiguações iniciadas em Setembro do ano passado a que foi sujeito este conhecido consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), presença assídua na imprensa como alegado perito independente durante os anos da pandemia.
Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.
De acordo com a entidade fiscalizadora, o processo disciplinar a Filipe Froes vem no seguimento da “informação de avaliação n.º 149/2022”, que mereceu um despacho em 19 de Fevereiro passado do inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, que deu instruções para ser iniciado um processo disciplinar, ignorando-se o “castigo” eventualmente a aplicar.
A decisão de instauração de um processo disciplinar a Filipe Froes após um processo formal de averiguações – revelado em Novembro do ano passado pelos semanários O Novo e Expresso – mostra já, em todo o caso, a existência de fortes indícios de irregularidades e/ ou ilegalidades. De facto, o processo de averiguações só avançaria para uma fase posterior se se tivesse apurado matéria suficiente para uma “condenação” em processo disciplinar, o que não surpreenderá, tendo em conta o que se foi tornando público.
Em 4 de Janeiro passado, o PÁGINA UM tinha já escalpelizado as declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e cruzado com os relatórios e contas dos últimos anos da sua empresa – a Terra & Froes –, detectando sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.
Antologia de crónicas de Filipe Froes no Diário de Notícias teve o patrocínio (ainda não declarado) da farmacêutica Bial.
Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.
De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. Este ano, em 11 meses, vai com uma média mensal de 4.327 euros.
O processo da IGAS pode assim vir a colocar em causa a manutenção de Froes como consultor da DGS e também manchar a sua credibilidade numa fase crucial das eleições para a Ordem dos Médicos. Com efeito, Filipe Froes é mandatário da candidatura de Carlos Cortes a bastonário.
Filipe Froes (ao centro), entregou como mandatário, no dia 21 de Novembro, a candidatura de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.
Por outro lado, uma eventual “condenação” confirmaria ainda mais o seu papel de lobista, acusação que o tem constantemente perseguido. Por exemplo, Froes tem sido um defensor do uso do polémico remdesivir, dentro da equipa de consultores que define as terapêuticas anti-covid, e é, em simultâneo, consultor da farmacêutica (Gilead) especificamente para aquele medicamento. Froes também é um acérrimo defensor da vacinação contra a covid-19 em crianças e adolescentes – cujas vacinas são exclusivamente da Pfizer, farmacêutica para a qual este pneumologista tem passado muitas facturas para cobrar colaborações.
Já este ano, em diversas ocasiões, Froes tem promovido, de forma entusiástica, o uso dos anticorpos monoclonais (produzidos pela Pfizer e pela Merck Sharpe & Dohme) e a integração da vacina da covid e da gripe numa só dose (comercializada pela Sanofi). Saliente-se que só este ano a Merck Sharpe & Dohme e a Sanofi já entregaram oficialmente a Froes um total de 22.261 e 13.583 euros, respectivamente. No total, o pneumologista terá já amealhado 47.602 euros ao longo de 2022.
Saliente-se, contudo, que estes rendimentos podem pecar por defeito, uma vez que cada vez se torna mais patente que o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed apresenta falhas enormes, porque as farmacêuticas se “esquecem” de registar donativos e patrocínios a médicos e outras entidades, entre as quais os media mainstream, incumprindo o Estatuto do Medicamento.
Por exemplo, ainda este mês, Filipe Froes lançou um pequeno livro com as crónicas que foi publicando no Diário de Notícias, em co-autoria com Patrícia Akester, e o patrocínio da Bial. A farmacêutica portuguesa – que tem como chairman António Horta Osório, que é simultaneamente administrador da Impresa (dona do Expressso e SIC) ainda não colocou o valor do apoio no portal do Infarmed nem sequer respondeu a questões colocadas pelo PÁGINA UM.
Recorde-se que o PÁGINA UM teve acesso, este mês, no decurso de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, a cerca de três dezenas de processos levantados pela IGAS, incluindo ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, também por incompatibilidades relacionadas com farmacêuticas.
Por estranhar que não se encontrava no lote o processo de Filipe Froes, o PÁGINA UM insistiu para que este fosse disponibilizado, o que não se mostra legalmente possível por se encontrar em fase de instrução. Contudo, se o processo disciplinar, agora em curso, não estiver concluído até 19 de Fevereiro do próximo ano, a IGAS terá, contudo, de disponibilizar pelo menos o processo de averiguação a Filipe Froes.
Na China, a Matemática vale aquilo que Xi Jinping quiser. Se 1+1 tiver de ser 3; ou for decidido que 1 é igual a 1.000.000, assim se determina sem questionamentos. Ou, quando muito, sob pena de castigos ou morte, com papéis em branco após meses de clausura sem falar, sem protestar, sem comer, mas a ter de calar à mesma.
Isso é na China, que é uma ditadura. Bem gostaríamos que não fosse. Talvez fosse sensato não terem as potências mundiais – chamemos assim à Europa e Estados Unidos – andado ao longo das últimas décadas hipocritamente esperançosos a negociar com a China – e a vender-lhes dívida como se não houvesse amanhã para continuar o regabofe da impressão de moeda –, pensando que, com jeitinho e comércio, se “convencia” os políticos chineses a respeitarem os direitos humanos.
Rotundo fracasso ou exercício hipócrita – qualquer que seja a possibilidade, certo é que aqui temos agora, para o Mundo, uma China que se tornou uma superpotência económica e militar, que domina o mercado internacional e que, hélas, tem 1,5 mil milhões de almas, quase 20% da população mundial, a viverem subjugadas a uma elite.
A China é, portanto, uma ditadura – e acredito que, se antes do “despertar do dragão”, nenhum de nós, quer como cidadão individual quer em grupo, poderia mudar este estado de coisas, penso que agora nenhum político, incluindo Joe Biden e qualquer líder europeu, consegue fazer com que Xi Jinping mude o que quer que seja. Não dá: a China, desejando os seus líderes, continuará uma ditadura, continuará a ser uma ditadura. E vai ser muito difícil mudá-la.
E vai ser ainda mais difícil mudá-la se o mundo democrático continuar a achar que aquilo que se passa actualmente na China são manifestações contra a política “zero covid”; como se, de um lado, tivéssemos uma entidade governamental preocupada em “vencer o vírus” – o alcançado sonho húmido do almirante Gouveia e Melo, lembram-se? – e, do outro, grupos de “negacionistas” egocêntricos e desumanos que, a despeito de um inqualificável desrespeito pelas vidas de outrem, querem ir laurear a pevide. E não uma inqualificável opressão do povo que já luta sem medo da morte, porque a vida assim já é pior do que tal sorte.
Olhem para os números, pelo menos. Não sejam estúpidos, e já que tiveram a sorte de não nascer na China, não queiram aceitar que vos digam que 1 é igual a 1.000.000 – e não aceitem a manipulação da imprensa mainstream, mais as suas agendas. Já nem quero, neste caso, abordar a cobertura da lusitana indigente imprensa, porque, enfim, já se sabe, comporta-se como abjecta caixa de ressonância das agências internacionais ou, na melhor das hipóteses, agrega em si redacções com patentes défices de literacia matemática, que está ao nível de uma primeira classe das antigas – ou seja, olham para um número e vislumbram um gatafunho.
E as mortes não contam? Já não contam como o indicador mais fundamental de uma política de saúde? Onde estão esses números de óbitos para se confrontarem, de modo a se avaliar se as medidas governamentais chinesas são proporcionais ao risco da covid-19 para a saúde pública? Onde estão esses números e esse enquadramento nas notícias, pelo menos da imprensa de países democráticos?
Pois, se não estão; eu digo-vos: nos últimos seis meses morreram sete chineses por covid-19. Todos este mês de Novembro, é certo, mas são 7. Atente-se a este número: 7. Num país com uma população de 1,41 mil milhões de pessoas e uma taxa anual de mortalidade de 0,77%, significa que, desde finais de Maio até finais de Novembro (seis meses), terão morrido, contas feitas, cerca de 5.544.000 de chineses por todas as causas. Sete foram de covid-19. Sete: repito. Em termos relativos, neste último semestre, a covid-19 foi responsável por 0,00013% das mortes. Uma morte por covid-19 por cada 775.500 mortes.
Ainda acham que aquilo que se passa na China é uma questão de saúde pública?