Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Banco de Portugal: Sociedade de advogados começa sempre a trabalhar sem contratos para depois facturar milhões

    Banco de Portugal: Sociedade de advogados começa sempre a trabalhar sem contratos para depois facturar milhões


    Podia ser só de vez em quando, uma excepção a quebrar a regra. Mas não. O contrato assinado na quinta-feira passada, neste caso para assessoria jurídica no processo do Novo Banco, entre o Banco de Portugal e a sociedade de advogados Vieira de Almeida segue uma regra basilar: primeiro, dá-se ‘luz verde de boca’ para se começar a prestar serviços jurídicos, por vezes durante meses ou até mais de um ano, e a seguir assina-se um ajuste directo com efeitos retroactivos, argumentando-se com excepções do Código dos Contratos Públicos. Este expediente sui generis de muito duvidosa legalidade e de ética mais do que questionável tem sido proveitoso para a Vieira de Almeida: sem concorrência, acumula 27,3 milhões de euros em 10 contratos desde 2014. A Cuatrecasas, a segunda sociedade na lista de favoritos do Banco de Portugal em ajustes directos, está a 17 milhões de euros de distância.


    A sociedade de advogados Vieira de Almeida esteve, desde Dezembro de 2022 até à quinta-feira passada, a prestar assessoria jurídica ao Banco de Portugal sem estar suportado em qualquer contrato. Um ajuste directo assinado na quinta-feira passada, para um período de três anos, no valor global de cerca de 2,2 milhões de euros (IVA incluído), foi o expediente usado para tentar legalizar este procedimento, mas nos documentos a que o PÁGINA UM teve acesso verifica-se que a decisão do contrato somente foi tomada há cerca de um mês, em 19 de Setembro, pela Comissão Executiva para os Assuntos Administrativos e de Pessoal do regulador presidido por Mário Centeno. Ou seja, terá havido uma combinação prévia para que esta sociedade de advogados começasse a executar tarefas antes da celebração de um contrato público, mas havendo garantia de ser paga sem ter de competir contra outros concorrentes.

    Tudo numa base de confiança, até porque esta não é a primeira vez que tal sucede – é já a 10ª vez, pelo menos. Mas já lá vamos.

    No caso do mais recente ajuste directo, em causa está a assessoria jurídica ao Banco de Portugal para o acompanhamento, entre outros, da execução acordo parassocial e do contrato de compra e venda e de subscrição de acções do Novo Banco entre o Fundo de Resolução e a Nani Holdings, do Acordo de Capitalização Contingente e do acordo de servicing, celebrados entre o Fundo de Resolução e o Novo Banco. O Banco de Portugal decidiu definir um preço de 600 mil euros (sem IVA) por ano, sendo que somente estão garantidos os primeiros dois anos, sendo o terceiro, de igual montante, opcional.

    Embora haja referência no caderno de encargos deste contrato a um preço hora pelos serviços, não se encontra nos documentos no Portal Base qualquer valor em concreto do preço a cobrar por hora em função da experiência dos advogados. Em contratos similares, um advogado sénior de uma grande sociedade pode cobrar mais de 300 euros, enquanto os serviços de um estagiário ou de um recém advogado acenderá aos 100 euros.

    Mas como não se coloca nenhum valor, deduz-se assim que a Vieira de Almeida garantirá um valor muito próximo do máximo contratualizado – como tem sido prática nos mais recentes contratos com o Banco de Portugal já integralmente executados. Para fazer o quê em concreto dentro do vago objecto deste contrato? Também não se sabe, mas será certamente assessoria jurídica que nenhuma outra sociedade de advogados seria capaz.

    Mário Centeno, governador do Banco de Portugal desde Julho de 2020.

    Isto pelo menos a atender ao facto de o Banco de Portugal aludir à norma do Código dos Contratos Públicos onde se justifica que o ajuste directo pode ser o procedimento legal caso “não exista concorrência por motivos técnicos”. Ou seja, sem explicitar em concreto o que a Vieira de Almeida tem de especial, o Banco de Portugal passa um atestado de incompetência a todas as outras sociedades de advogados.

    Como tem sido hábito em outros contratos destacados pelo PÁGINA UM, o Banco de Portugal simplesmente invoca uma norma de excepção, para evitar um concurso público (com livre e justa concorrência, que visa a melhor qualidade-preço), não procurando sequer ocupar uma linha com uma justificação concreta para a inexistência de concorrência por motivos técnicos.

    Este não é, como já se disse, o primeiro ajuste directo entre o Banco de Portugal e a Vieira de Almeida. E nem sequer o único que comete o ‘pecado’ de usar o mesmo expediente: os advogados começam a trabalhar para o regulador sem qualquer contrato e depois, passados uns quantos meses, por vezes mais de um ano, surge então um contrato por ajuste direito com recurso às excepções para não se ter de fazer concurso público.

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    Assim, desde 2011, esta conhecida sociedade de advogados já celebrou 12 contratos sem o incómodo da concorrência, isto é, por ajuste directo. O novo contrato da quinta-feira passada nem sequer é o mais chorudo. Em Junho de 2018 foi assinado um contrato de 5,97 milhões de euros (IVA incluído), por um prazo de três anos, para serviços de assessoria jurídica e de patrocínio jurídico, que se desconhecem por não constarem no Portal Base. Este contrato abrangeu logo os 179 dias de trabalho anteriores, uma vez que foi assinado em 25 de Junho de 2018, mas entrou em vigor retroactivamente a partir de 28 de Dezembro do ano anterior.

    Foi a partir de 2018 que a facturação da Vieira de Almeida com o Banco de Portugal passou para outros patamares. No primeiro ajuste directo, em 2011, a sociedade de advogados conseguiu apenas previsão de facturar 800 mil euros (IVA incluído), mas acabou por receber um pouco menos de 200 mil euros, porque tudo foi contabilizado à hora. O mesmo sucedeu com o contrato de 2013, que estava previsto atingir também os 800 mil euros, mas ficou-se pelos 100 mil. Nestes dois contratos não é possível saber se tiveram efeitos retroactivos porque não constam documentos no Portal Base.

    Entre 2014 e 2017, a Vieira de Almeida começou a ter direito, por rotina, a assinar um contrato por ano no valor máximo de 1,85 milhões de euros, tendo arrecadado praticamente toda a verba. E foi aqui que começou o expediente de começar a trabalhar antes para garantir o ajuste directo depois. No contrato de 2014, a Vieira de Almeida trabalhou 144 dias antes da assinatura do contrato, no de 2015 foram 266 dias, no de 2016 contabilizam-se 207 dias e no de 2017 são 244 dias. Em 2015 ainda houve um pequeno ajuste directo, que se previa de 246 mil euros, mas a sociedade de advogados só facturou pouco mais de 36 mil. Até neste o início da prestação de serviços é anterior à data do contrato: 75 dias antes.

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    Com o contrato de 2018, no valor de 5,97 milhões de euros, subiu-se a parada, até porque se foram acumulando contratos em vigor. Por exemplo, quando foi assinado o contrato de 2018, ainda não tinham sido integralmente executados os contratos de 2016 e 2017, uma vez que estes abrangiam três anos.

    Assim, embora em 2019 não tivesse sido assinado qualquer contrato, ainda estavam em vigor dois. Na verdade, estariam três, mas um deles só se soube em 2020: em 31 de Janeiro desse ano foi celebrado mais um ajuste directo, no valor de 1,1 milhões de euros, mas o Banco de Portugal considerou que a prestação de serviços começara 609 dias antes, em 1 de Junho de 2018. Ou seja, um ano e oito meses!

    Independentemente de se saber ao certo, em determinada data quantos contratos afinal estavam em vigor, certo é que em 2021 o Banco de Portugal entregou dois contratos à Vieira de Almeida. O primeiro foi assinado em Fevereiro, no valor de quase 5,4 milhões de euros e com duração de três anos; e o segundo assinado em Novembro no valor de cerca de 3,1 milhões de euros e com a duração de dois anos. Mas, enfim, ambos já tinham afinal começado no ano anterior, respectivamente em 1 de Dezembro e 1 de Agosto.

    Data dos contratos por ajuste directo entre o Banco de Portugal e a Vieira de Almeida, as datas de início de vigência, os dias de prestação de serviços sem contrato e os valores financeiros envolvidos em euros. Fonte: Portal Base. Análise: PÁGINA UM.

    Para se ter uma ideia da trapalhada legal, se no dia 31 de Dezembro de 2020 alguém quisesse saber quantos contratos existiam entre o Banco de Portugal e a Vieira de Almeida, a resposta seria: um – o contrato de três anos que se iniciara em 1 de Junho de 2018. Porém, no dia 2 de Fevereiro de 2021 afinal ficou-se a saber que havia outro, que se iniciara em 1 de Dezembro, e depois, em 31 de Novembro de 2021 ficou-se também a saber, por um outro contrato, que afinal no dia 31 de Dezembro de 2020 havia em vigor um terceiro contrato. Confuso, não? Ou dever-se-á dizer antes que é ilegal?

    O segundo contrato de 2021, no valor de quase 3,1 milhões de euros, constitui o cúmulo da irregularidade jurídica na contratação pública: sendo assinado em 18 de Novembro de 2021, a cláusula segunda que diz que “o contrato reporta os seus efeitos a 1 de Agosto de 2020 e mantém-se em vigor pelo prazo máximo de 2 (de dois anos)” Ou seja, quando foi assinado um contrato de dois anos, afinal já teriam sido executados serviços ao longo dos 15 meses e 18 dias anteriores.

    Tudo somado, e mesmo sabendo-se que o Banco de Portugal possui um departamento de serviços jurídicos, a Vieira de Almeida já sacou, com estes expedientes sob a forma de ajustes directos desde 2014 um total de 27,3 milhões de euros em serviços jurídicos, dos quais quase 18 milhões desde 2018.

    De acordo com a consulta do PÁGINA UM ao Portal Base, a Vieira de Almeida destaca-se, com larga distância, da concorrência em contratos de mão-beijada: a segunda sociedade com mais ajustes directos com o regulador é a Cuatrecasas que, desde 2015, ‘só’ conseguiu oito contratos desta natureza no valor global de 9 milhões de euros (IVA incluído).

    Suceder tudo isto com o regulador do sector financeiro e bancário e envolvendo uma das mais conceituadas sociedades de advogados, perante a passividade do Tribunal de Contas e do Ministério Público, mostra bem o estado da gestão dos dinheiros públicos. E parecendo isto ser uma opinião jornalística, é na verdade a conclusão honesta com base em factos comprovados por documentos oficiais.

  • Casa Pia 1.1

    Casa Pia 1.1


    Algo transformar-se, no decurso do tique-taque do universo, num clássico não é, na verdade, necessariamente positivo. Por exemplo, o farnel com que sou presenteado nas minhas visitas à Varanda da Luz, para escrever esta crónica, é chapa-três: baguette, barrita de cereais, peça de fruta e água ou sumo. Hoje foi água. Não me estou a queixar, apenas a constatar que tem sido sempre a mesma ementa, qualquer que seja o jogo, Porto ou Casa Pia – ou seja, sempre a mesma coisa quer nos jogos mais fáceis quer nos jogos mais difíceis. Por esta ordem.

    Eu estou verdadeiramente confiante que, com o tal tique-taque em curso, discorrendo o tempo, a realidade ilumine o córtex, os lobos temporal, parietal e occipital, os gânglios de base e o corpo caloso, mesmo dos mais cépticos e crédulos, incluindo os adversários do Benfica, de sorte que a todos assim fique patente a minha capacidade de talismã – ou seja, estando eu na Varanda da Luz, sai sempre vitória…

    (nem de propósito, esvoaça a águia Vitória, não sei se com reforço alimentar)

    … e que, provando-se isso, e quero que seja com critérios objectivos, revistos pelos pares, comecem a ofertar-me acepipes a preceito, a saber: caviar de beluga ou sevruga do Mar Cáspio, foie gras Mont d’Or, salmão defumado escocês, que o da Noruega dá-me azia, e uns queijinhos Roquefort, Gruyère e Parmigiano-Reggiano; e para molhar o bico, talvez um Dom Pérignon e um Moët & Chandon, para não ser demasiado exigente, e talvez também um Bordeuax à falta de um Château Mouton-Rothschild. Dispenso uísque e bourbon.

    (entretanto, começa o jogo… Di Maria no banco, Arthur Cabral como terceiro central do Casa Pia)

    Já estou a imaginar os leitores, incrédulos, aqueles poucos que acompanham futebol (e fazem muito bem): então, mas o Benfica já não vai em quatro derrotas esta época em jogos oficiais? Claro que vai! Uma desgraça… Ainda mais porque bem perdidos, porque muito mal jogados… Mas eu nunca assisti ao vivo a nenhuma desses desaires, nem àquelas duas que já ali em baixo sucederam, no caseiro gramado, onde, aliás, se desenrola um jogo de passes falhados e pouca objectividade.

    (objectividade: lá estou eu com os jargões futebolísticos)

    Portanto, não vi a derrota no Boavista, em Agosto, nem as derrotas contra o Salzburgo, em Setembro, e em Milão, contra o Inter, e nem sequer a derrota desta semana contra a Real Sociedad. Comigo aqui sentadinho, a escrevinhar bitates, só vitórias… E assim se escreverá daqui a cerca de uma hora… Espero, senão desespero.

    (vamos lá ver se não me estatelo com esta minha decisão de hoje dissertar sobre ser eu um porta-sorte para o Benfica… ali em baixo, o jogo já vai nos 38 minutos, e, apesar de umas boas oportunidades, falta-nos um Gonçalo Ramos, ou um Félix do Barça)

    Está, de facto, o intervalo a chegar – e eu a ver isto mal encaminhado…

    (goloooooooo… chiça, estava difícil… ainda por cima, um remate de belo efeito, mais um jargão, do João Mário, que nos jogos mais recentes andava que metia nojo)

    Ufa! Agora que estou mais calmo – e a vitória se começa a desenhar –, vou revelar porque estava, e estou, tão confiante, pelo menos neste jogo em concreto, sobre a minha presença nesta Catedral manter a invencibilidade, melhor ainda, ser-se invicto. Hm! invicto, não! Isso faz lembrar a coragem do Porto nas Guerras Liberais do século XIX, e agora estamos no século XXI e quem fala de Porto numa crónica futebolística, logo se remete para o Futebol Clube do Porto, que aqui na Luz deu, há umas poucas semanas, menos trabalho do que este Casa Pia. Fiquemo-nos, enfim, por imbatível.

    (entretanto, lá temos a segunda parte a começar)

    A confiança provém, na verdade, da Estatística que, no futebol, não ganha golos mas é um ‘posto’…

    (merda! O Florentino a fazer porcaria com uma rasteira clássica dentro da grande área; nesta nem VAR é preciso, que até eu míope daqui de cima vi… E estava eu confiante… esqueço-me da existência de jogadores com paragens cerebrais… ai… ai… ai… GRANDA DEFESA DO Trubin!!! Como se chamava mesmo aquele grego que foi recambiado para o Nottingham Forest?)

    Portanto, continuando isto em versão Casa Pia 1.0, expliquemos que, pela Estatística, o Benfica tem 100% de probabilidades de vencer este jogo…

    (Jesus! Maria! José! Isto hoje vai ser só sobressaltos. Mais uma grande intervenção do Trubin)

    Repitamos, que já me estou a irritar: o Benfica já antes defrontou o Casa Pia por 11 vezes, embora apenas três vezes neste século. Não interessa: sempre vitórias, sendo que a duas últimas foram na época passada e a mais recente em Fevereiro passado, com um seco 3-0. Presumo, pelo andar da carruagem, mesmo se agora entrou o Di Maria, que isto chegue a esse patamar sequer. E não vai ser, desta vez, que trucidamos com um 10-1, como as águias fizeram aos pobres casapianos no longínquo 16 de Abril de 1939, pouco mais de quatro meses antes de Hitler invadir a Polónia…

    (e agora se não se importam, interrompo isto um bocadinho, para dar uma olhadela mais atenta ao jogo, e começar a paginar, que hoje ainda tenho de ir a um jantar e discursar sobre liberdade de expressão, informação e jornalismo)

    Faltam 15 minutos, e agora já só me interessa a vitória, para manter a esperança no ‘meu’ beluga no saquinho do farnel….

    (e lá se vai o beluga… depois de fazer excelentes defesas, incluindo um penalty, o Trubin leva com um remate defensável por baixo da ‘rata’… Regressa Vlachodimos, que estás perdoado!)

    Enfim, faltam sete minutos até aos 90, e já que a Estatística não resolve, e nem os jogadores, e muito menos o Schmidt, comecemos a ter Fé… num milagre.

    (entretanto, sete minutos de desconto para que Deus Nosso Senhor tenha piedade do Benfica, mesmo se o adversário é o Casa Pia)

    Não houve milagres…

    Sai um coro de assobios para a mesa do Roger Schmidt e jogadores, à conta de um péssimo jogo com pior resultado. Mas têm a minha promessa de regresso no próximo jogo, com direito, espero, ao farnel habitual… que está sempre muito saboroso e aconchega, diga-se. Parafraseando Ilsa Lund, interpretada por Ingrid Bergman no filme Casablanca, aqui na Varanda da Luz, mesmo com maus resultados, “we’ll always have baguette“…

  • A morte do jornalismo: a notícia mais lida do Observador foi um patrocínio da EDP

    A morte do jornalismo: a notícia mais lida do Observador foi um patrocínio da EDP


    Este editorial não precisa de ser grande. Pela madrugada, abri o Observador e passei os olhos pelo destaque das notícias “Mais Populares” nos últimos dois dias. No topo surgiu, antes mesmo da notícia sobre uma grávida com o bebé morto mandada para casa pelo crónico Hospital Beatriz Ângelo, e de uma louvaminha ao novo bispo de Setúbal (transformado pelos media em nova coqueluche eclesiástica), um artigo com o típico piscar de olhos para o clique (com o ponto de interrogação final): “2024 é o ano para comprar um carro eléctrico?

    Antes mesmo de ser seduzido para a leitura desta notícia-pergunta, respondi ironicamente: claro que sim, sobretudo se tiver um carro anterior a 2007 e dinheiro para comprar um carro eléctrico – o que me parecem duas condições economicamente incompatíveis entre si.

    Notícia mais popular do Observador nos dias 26 e 27 de Outubro foi escrita por um ‘ghost writer’ do Observador Lab, criado para parcerias comerciais.

    Mas lá vou, para dentro da notícia. Ou melhor ‘notícia’: ainda consigo ler o lead – onde, num estilo pessoal e intimista, surge a informação de que “se a ideia de comprar um carro elétrico não lhe sai da cabeça, fique a saber que não é o único: em Portugal, as vendas de viaturas 100% elétricas cresceram 149%, entre 2020 e 2022”.

    Aprestava-me para continuar a leitura, fazendo scroll sobre fotografia de um carro eléctrico a carregar (usei um computador), quando o meu olhar se desviou para a esquerda e leio o nome do ‘jornalista’: Observador Lab, com a indicação de “conteúdo patrocinado por EDP”. Com o logótipo da dita empresa.

    Não sei se a direcção editorial do Observador tem a noção da gravidade desta situação – e se são como David Pontes, no Público, ou João Vieira Pereira, no Expresso – só para citar aqueles que mais “comércio de notícias têm feito –, que clamam por independência enquanto “amaciam” patrocinadores.

    E também duvido que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e o seu Conselho Deontológico (que no meio do pântano nacional, decidiu agora ‘marrar’ contra um jornal regional por noticiar fait divers e life style) tenham a noção da caixa de Pandora que aqui se abre.

    Printscreen retirado hoje às 04:00 horas

    Na verdade, por este caso – e que terá tendência a repetir-se –, há três coisas que me causam urticária como jornalista.

    Primeira: é extraordinário que a própria direcção editorial do Observador – e não me digam que é um bug – permita que, num ranking de notícias, não se separe aquilo que são textos jornalísticos (feitos por jornalistas com, carteira profissional e código deontológico) e aquilo que são textos comerciais (feitos por ghost writers, que às tantas são jornalistas a fazer uns biscates). Talvez a direcção editorial do Observador já não os consiga distinguir.

    Certamente, se não foi intencional esta mistura, de fazer passar conteúdos comerciais por notícias – até porque no Google News o texto da EDP surge como notícia –, a EDP ficará bastante satisfeita pela prestação de serviços. Repetirá a dose, no futuro, porque misturando-se isto tudo pode ter maior projecção. Talvez passe a pagar em função dos cliques.

    Aviso que não quero ser sequer ‘mauzinho’, especulando que o dito texto patrocinado pela EDP foi, de início, artificialmente ‘inflacionado’ para surgir no ranking, suscitando assim que, por curiosidade (como a minha), os leitores o visitem… Há gente para tudo, mas eu não quero aqui insinuar nada, embora me apetecesse…

    Segunda: com este modelo de textos patrocinados por empresas – e daqui a nada por Governos, e, porque não, por partidos políticos –, e se for economicamente bem sucedido, está a alimentar-se uma casta de “jornalismo prostituto”, onde directores editoriais se transformam em directores comerciais, que passam a buscar clientes para textos de promoção em vez de buscarem notícias para os leitores.

    Terceira: com o sucesso deste tipo de textos patrocinados por empresas (ou Governos ou partidos políticos, um dia…), deixa de haver espaço para o jornalismo de investigação, de denúncia, de pressão, de consciência cívica, daquele jornalismo que incomoda e que, lamentavelmente para os ‘directores comerciais’ travestidos de jornalistas, podem afugentar potenciais patrocinadores de textos que seguirão para o topo dos “Mais Populares”.

    Miguel Pinheiro, director executivo do Observador.

    Como isto anda, tenho a convicção de que haverá, em breve, consumando-se este processo de prostituição do jornalismo (notem que não meti aspas), haverá mais do que um “imoral despedimento colectivo”, como o da Bola, criticado (obviamente) pelo Sindicato dos Jornalistas.

    Mas quando esses eventos se massificarem, expectáveis pela crescente degradação da ética nesta profissão (afinal, para que servirá, se basta no futuro saber escrever para agradar a clientes?), o Sindicato e todos os outros que se calam agora, assobiando para o ar (enquanto garantem o salário por ‘bom comportamento’), só terão então uma coisa a fazer: culparem-se pela omissão. E nem será culpa por negligência. Será por dolo: os jornalistas, em tempos alcandorados como a consciência cívica das sociedades, serão os culpados por se tornarem vítimas, porque aceitaram esse papel.

    Ah, e já agora, e de que se tratava afinal a notícia mais popular do Observador nos últimos dias? Ora!, poupem-me…

  • O jornalismo mata-se com hipocrisia: o caso David Pontes, director do Público

    O jornalismo mata-se com hipocrisia: o caso David Pontes, director do Público


    Ontem, o PÁGINA UM foi obrigado, pela segunda vez no espaço de uma semana, por deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, a publicar um direito de resposta do director do Público, David Pontes. Em causa estiveram duas notícias factuais do PÁGINA UM que revelavam as promiscuidades comerciais entre este órgão de comunicação social e, no primeiro caso, entidades públicas (Biopolis e Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) com vista à prestação de serviços de ‘feitura’ de notícias de ambiente; e, no segundo caso, uma farmacêutica (Sanofi), com vista à ‘promoção’ de uma doença (infecções pelo vírus sincicial respiratório) para a posterior ‘promoção’ e venda de um fármaco.

    David Pontes justificou, em ambos os casos, que as notícias – factuais e evidentes – do PÁGINA UM afectavam o “bom nome” daquele jornal. Sou de opinião de que o “bom nome” de alguém, ou de um jornal, é afectado sobretudo pelas suas próprias acções, e mal seria se um mensageiro ou um denunciante, dizendo a verdade, fosse agora culpado pela perda desse suposto “bom nome”. O jornalismo é, sobretudo, não assumir que o “bom nome” é algo perene, que não pode ser colocado em causa.

    Bem sei que o instituto do direito de resposta é sagrado – e o PÁGINA UM só não o aceita de imediato, como sucedeu aos pedidos de David Pontes, quando, através dessa resposta, se transmitem falsidades sobre o meu trabalho e sobretudo se notar ali posturas de hipocrisia. Nesses casos, somente publicarei direitos de resposta sempre sob protesto, em consequência de deliberações da ERC.

    Sobre esta matéria, e porque é vedada a possibilidade de contra-argumentar no próprio dia da publicação do direito de resposta, atente-se agora na parte final do texto de ontem de David Pontes: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais. A redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.

    Nem de propósito, enquanto escrevia este texto, decorre no auditório do Museu do Oriente uma conferência subordinada ao hidrogénio verde, a ser transmitida online, “promovida pelo jornal Público em parceria com as Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, com o apoio institucional da Associação Portuguesa de Energias Renováveis e da Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio e ainda tendo a Deloitte como parceira de conhecimento”. Assim é apresentada. E consta na secção Estúdio P, com a devida referência a “Conteúdo comercial”.

    E é “Conteúdo Comercial” porque, na verdade, mesmo que se ouça ou leia “parceria”, há sim um pagamento pelos ditos “parceiros”, que, na verdade, recebem uma factura pela prestação de serviços, neste caso, a conferência com direito ao uso da chancela Público, como jornal.

    Mas é aqui que a ‘porca torce o rabo’. e é aqui que muitos directores editoriais permitem a promiscuidade que somente uma torpe hipocrisia pode sustentar.

    Pode defender-se que um jornal, ainda mais nestes tempos de multimédia, se comporte como uma estação de televisão ou uma rádio, fazendo conviver programas de entretenimento ou de formação – onde é mais do que aceitável e bastante justificável o patrocínio ou publicidade, devidamente identificados – com programas de informação. Porém, nos programas de informação ou com conteúdos informativos jamais é aceitável que surja directa ou indirectamente qualquer relação comercial externa com a actividade jornalística, mesmo se implicitamente mencionada sob a forma de “parceria”, porque isto é um eufemismo comercial para prestação de serviços a troco de dinheiro.

    E, no meio disto, os jornalistas só podem fazer como o diabo fez à cruz: fugir dali a sete pés. O mundo dos jornalistas é fazer notícias; não é ser um funcionário comercial.

    Ora, no jornalismo, tem de se ser como a ‘mulher de César’. E por isso quem diz: “No PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais“, tem de ter noção do valor das palavras.

    Assim sendo, quem acham que foi o mestre-de-cerimónias da dita conferência comercial sobre hidrogénio verde paga por um leque de empresas e associações?

    Nem mais: David Pontes, director do Público – esse mesmo que, vamos lá repetir, escreveu que “no PÚBLICO, a redacção não sabe nem tem de saber dos negócios que a Direcção Comercial faz com empresas para efeitos de publicação de conteúdos comerciais”, e que garante que “a redacção não faz escolhas editoriais tendo em conta o que sai ou não sai no Estúdio P ou noutro espaço comercial.”

    Como manter a equidistância quando jornalistas noticiam sobre empresas que, por sua vez, são parceiras comerciais em eventos pagos onde esses jornalistas participam activamente?

    Talvez não faça escolhas editoriais em função destes pagamentos – e talvez o facto de o Público ter publicado, ao longo dos últimos tempos, dezenas de artigos noticiosos sobre hidrogénio verde seja apenas por interesse editorial, e que, por exemplo, empresas como a Galp surjam agora sempre como paladinos do ambiente seja porque, enfim, são mesmo paladinos do ambiente.

    Mas se David Pontes quer manter a aparência de jornalista impoluto – batendo no peito a sua independência e mostrando-se ofendido por acusarem o seu jornal de promiscuidades –, não convém então que vista a pele de lobo, querendo com isso parecer cordeiro.

    Não convém nada que, por exemplo, apareça assim numa sessão de boas-vindas de um evento comercial – um dos tais que ele diz não sabe nada nem ter de saber –, a declarar logo no início: “Queria agradecer a todos os presentes e a todos os que fizeram esta conferência possível; obviamente aos nossos parceiros: a Galp, a Hyveritas, a PRF, a SmartEnergy, a Deloitte, como nossa parceira de conhecimento, e ainda obviamente a Associação Portuguesa de Energias Renováveis e a Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio”.

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    Isto foi o que ficou gravado. E imagine-se aquilo que não ficou, entre salamaleques, enquanto a Público Comunicação Social S.A. facturava aos “parceiros” a credibilidade de um jornal com a presença do seu próprio director como mestre-de-cerimónias. Não é essa a função de um jornalista, muito menos de um director que quer ser credível, e que acha que o jornalismo se credibiliza com essa promiscuidades.

    Enfim, o problema disto tudo não é só a hipocrisia; é estar a matar-se, assim, o jornalismo. E achar-se que o ‘mau da fita’ é o mensageiro e não o hipócrita que só torna a degradação ainda mais lastimável.

  • Vírus sincicial respiratório: Sanofi já factura (bem) com novo fármaco ‘apadrinhado’ pela imprensa

    Vírus sincicial respiratório: Sanofi já factura (bem) com novo fármaco ‘apadrinhado’ pela imprensa


    Desde Fevereiro deste ano não há registos de internamentos em Portugal de crianças com infecções causadas pelo vírus sincicial respiratório (VSR), mas a farmacêutica Sanofi já começou a recolher em Portugal dividendos de uma forte campanha mediática em redor desta doença banal e praticamente inofensiva (sem mortes conhecidas), que foi transformada num suposto problema gravíssimo de Saúde Pública. Conferências e conteúdos comerciais pagos em jornais, como o Público e o Expresso, ajudaram a promover um novo fármaco para ser administrado a todos os recém-nascidos, substituindo um antigo, apenas usado em prematuros e bebés com comorbilidades graves. O negócio é literalmente de milhões. Este mês, a Madeira deu o ‘pontapé de saída’ comprando 2.400 doses, quando nascem 1.700 bebés por ano, e gastando 560 mil euros. Se no Continente se optar pela mesma bitola, o negócio vai chegar aos 26 milhões por ano. Não existem evidências sobre o benefício de um novo medicamento em crianças saudáveis, até porque em França e Itália já se contabilizam reacções adversas ao novo fármaco.


    O mais recente boletim de vigilância epidemiológica da gripe e de outros vírus respiratórios, relativa à semana 41 deste ano (9 a 15 de Outubro), aponta para “ausência de casos notificados de infeção por VSR [vírus sincicial respiratório] em crianças internadas menores de 2 anos”. O relatório da semana 40, diz o mesmo. Na semana 39, idem. Igualmente na semana 38. Idem para a semana 37.

    Na verdade, é preciso recuar à semana 8 deste ano, em finais de Fevereiro, para se encontrar um destes relatórios do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) que reporte casos de internamento por VSR, uma das infecções respiratórias mais comuns no início de vida (até aos dois anos), mas geralmente benigna, excepto em prematuros ou recém-nascidos com problemas respiratórios e cardíacos. Mas mesmo nos casos muito raros, não existe registo em Portugal de qualquer morte tendo o VSR como causa.

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    Mas pequenos surtos ocorridos durante a pandemia da covid-19 – já previstos por investigadores, como resultado do distanciamento social, dos lockdowns e do amplo uso de máscaras, que implicou uma redução da imunidade passiva natural (a partir do leite materno) – transformaram uma “banal doença, muito banal” num mediático fenómeno de saúde pública. Para isso muito contribuíram médicos e comunicação social, mesmo a nível internacional, que trataram de equiparar o VSR à covid-19 e à gripe, falando mesmo há um ano na iminência de uma tripla pandemia tripla no passado Inverno, que nunca aconteceu. E devia ter sucedido, a atender pelos especialistas na matéria que, em Portugal, asseguraram esta fatalidade.

    Em Portugal, este fenómeno também sucedeu com uma crescente abordagem mediática. Conforme o PÁGINA UM destacou em Maio passado, ao longo de 2022 registou-se um invulgar número de notícias sobre o VSR na imprensa portuguesa, contabilizando-se 14 artigos no Diário de Notícias, 12 no Observador, 22 na CNN Portugal, 25 no Expresso e 15 no Público.

    No caso destes últimos dois jornais, coincidentemente, surgiram eventos comerciais pagos pela farmacêutica Sanofi, que em parceria com a AstraZeneca, estavam a promover um novo anticorpo monoclonal – o nirsevimab, um substituto de um outro fármaco similar (palivizumab), que há já vários décadas era administrado apenas a prematuros ou crianças com comorbilidades muito específicas.

    Em 4 de Novembro do ano passado, o pneumologista Filipe Froes ‘anunciava’ no Diário de Notícias a iminência de uma pandemia tripla: gripe, covid e vírus sincicial respiratório (VSR). Falhou triplamente, mas contribuiu para o alarmismo e para alcandorar a VSR ao estatuto de grave problema de Saúde Pública.

    A articulação entre parcerias comerciais e notícias favoráveis aos interesses económicos da Sanofi ficou bem patente no caso específico do jornal Público. No seguimento de outros eventos comerciais, incluindo conferências, a Sanofi fez publicar, na edição em papel de 29 de Abril, um inaudito conteúdo comercial de quatro páginas em texto ao estilo jornalístico, com chamada de primeira página.

    Nesse texto, surgia um pediatra, Luís Varandas, a anunciar “um novo anticorpo monoclonal, já autorizado pela Agência Europeia do Medicamento, de administração única, a recém-nascidos e lactentes, no início da estação do VSR”, omitindo-se que se tratava do niservimab, comercializado pela própria Sanofi.

    Duas semanas depois, o Público daria destaque a um artigo na revista científica da Ordem dos Médicos sobre a incidência da VSR em 2021, salientando ter sido uma “epidemia ‘de época’”, com 37 semanas, mas sem que surja, nessa análise, qualquer reporte de mortes. E, por fim, ainda nesse mês de Abril surgiria uma manchete no Público a anunciar um alegado parecer, nunca revelado oficialmente, da Sociedade Portuguesa de Pediatria – que no ano passado recebeu 108 mil euros da Sanofi – que fora entregue na Direcção-Geral da Saúde recomendando a administração do nirsevimab a todos os recém-nascidos. Só depois de questionado pelo PÁGINA UM, o Público viria a identificar que este fármaco era comercializado pela Sanofi, com indicação dessa alteração no final do artigo online.

    Sanofi conseguiu, através de conteúdos comerciais e conferências pagas a órgãos de comunicação social, ‘promover’ uma doença banal a um caso grave de Saúde Pública. Depois de pequenos surtos decorrentes da gestão da covid-19, não há hospitalizações de crianças com infecções por VSR desde Fevereiro, mas há o negócio de novo anticorpo monoclonal.

    Embora não exista conhecimento de uma decisão da DGS ou do Infarmed para a compra deste fármaco, e a sua administração às cerca de 80 mil crianças que nascem em Portugal por ano –, a Sanofi já começou a recolher dividendos da mediatização do VSR nos últimos anos. Com efeito, o PÁGINA UM detectou já uma avultada compra de nirsevimab – comercializado pela Sanofi sob a marca Beyfortus – este mês pelo Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM).

    Assinado no passado dia 13, a empresa pública que gere o Hospital Nélio Mendonça adquiriu 2.400 unidades deste fármaco injectável (em doses de 50 e 100 miligramas), cada uma custando 220 euros. Preço total: 528 mil euros, o que, com IVA, alcança quase 560 mil euros. Como o fármaco é de administração única e tem um prazo de validade de apenas dois anos, significa que, em princípio, esta compra não visa injectar apenas os prematuros e recém-nascidos com comorbilidades, uma vez que, por ano, nascem pouco mais de 1.700 crianças, segundo dados da Direcção Regional de Estatística da Madeira. O PÁGINA UM pediu esclarecimentos e informações, na passada segunda-feira, à Secretaria Regional de Saúde e Protecção Civil da Madeira, mas não obteve resposta.

    Considerando que em Portugal nasceram um pouco mais de 84 mil crianças por ano no último quinquénio (2018-2022), se houver uma decisão similar para comprar à Sanofi o seu anticorpo monoclonal no sentido de uma administração generalizada, então a factura atingirá mais de 27 milhões de euros por ano.  

    Sanofi e AstraZeneca já começaram a vender um fármaco a ser administrado a todos os bebés. Desde Fevereiro não há registos de internamentos causados pelo vírus sincicial respiratório.

    Este valor potencial é incomensuravelmente superior ao que se tem gastado com o palivizumab, o antecessor do nirsevimab. Pela consulta dos contratos no Portal Base, desde 2008 foram comprados 9,1 milhões de euros deste anticorpo monoclonal, sendo que em 2014 se registou o maior gasto: quase 2,2 milhões de euros. No ano passado despendeu-se 713 mil euros – mesmo se houve supostamente surtos graves.

    Mesmo podendo-se ser populista em matérias de Saúde Pública, certo é que gastos excessivos com baixos (ou mesmo nulos) benefícios podem resultar em balanços muito negativos. Por exemplo, em 2011, um artigo científico apontava que na Flórida “o custo da imunoprofilaxia com palivizumab excedeu em muito o benefício económico de prevenir hospitalizações, mesmo em lactentes com maior risco de infecção por VSR”. Isto porque o preço por tratamento era extremamente elevado. Por exemplo, em prematuros com menos de seis meses de idade, a imunoprofilaxia com este anticorpo monoclonal da AstraZeneca custava entre 3.092 mil e quase 915 mil euros.

    No Canadá, onde este fármaco é comercializado pela AbbVie – devido a um acordo comercial –, o preço de venda atingia há poucos anos os 15.000 dólares por grama, sendo esta farmacêutica acusada de tácticas de vendas agressivas. Segundo uma notícia da CBC, no período de 2015-2016, o Canadá gastou 43,5 milhões de dólares para imunizar apenas 6.392 crianças, o que significou, em média, à cotação actual, um custo de quase 4.700 euros por criança.  

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    Além disso, e no caso do nirsevimab, não é prudente começar uma administração generalizada num medicamento tão recente, apenas aprovado pela Agência Europeia do Medicamento em Novembro de 2022 e pela Food and Drug Administration, no Estados Unidos, em Julho passado. Neste momento, apenas com registos da França e Espanha, foram reportados ao sistema da EudraVigilance um total de 28 reacções adversas, das quais 25 classificadas como sérias. Destas, 11 resultaram em hospitalizações prolongadas.

    A consultora Airfinity previu, em Setembro do ano passado, que a AstraZeneca e a Sanofi poderiam atingir uma receita da ordem dos 1,1 mil milhões de dólares apenas por conseguirem a aprovação da imunoprofilaxia contra o VSR antes da concorrência.

  • Público: mercadejar o jornalismo (até à prostituição), assistido por um regulador ‘fora de prazo’

    Público: mercadejar o jornalismo (até à prostituição), assistido por um regulador ‘fora de prazo’


    O PÁGINA UM publicou ontem, por imposição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), um direito de resposta do director do Público, David Pontes, sobre um tema que, aliás, o próprio regulador, desde Junho, não quer comentar: a celebração de contratos entre empresas detentoras de órgãos de comunicação social e entidades públicas, onde se mercadeja o serviço de jornalistas. A resposta do director do Público surgiu em reacção a um artigo que abordava, em concreto, contratos comerciais a executar por jornalistas na secção Azul, dedicada ao Ambiente.

    Não há outro termo nem aspas a usar: são mesmo contratos de prestação de serviços a serem executados por jornalistas, a maioria das vezes, por responsáveis editoriais que são os primeiros a aprestar-se a essa tarefa e a ludibriar os leitores, porquanto, na generalidade dos casos, nem sequer se identifica claramente que há um pagamento de uma entidade externa pela actividade desenvolvida por jornalistas. São tantos que o PÁGINA UM criou uma secção autónoma.

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    Convém referir que a publicação de um direito de resposta – ainda mais neste caso (e haverá ainda outro, que teremos de publicar ainda hoje ou o mais tardar amanhã) – não significa, antes pelo contrário, que o órgão de comunicação social tenha errado na sua notícia, que tenha escrito uma mentira ou que não tenha cumprido regras deontológicas e de rigor.

    Nesse aspecto, a ERC tem tido uma leitura muito abrangente, concedendo o direito de resposta se o visado simplesmente invocar que prejudica a sua fama (mesmo que seja má pelos actos que pratica), uma vez que defende que “o instituto do direito de resposta não é animado do propósito de busca da verdade material – cujo controlo não cabe aos órgãos de comunicação social, nem, tão-pouco, em princípio, ao próprio regulador, por não ser essa a sua vocação”.

    No entanto, convém referir que na sua análise que implicou a obrigatoriedade de publicação do direito de resposta do director do Público (com um dia de destaque), em consequência de um artigo da minha autoria em 5 de Junho passado, os três membros ainda restantes de um Conselho Regulador já fora do prazo de validade – se é que alguma vez teve –, tecem algumas considerações que merecem comentário.

    De forma mais ou menos explícita, embora prometendo analisar o caso em concreto (já lá vão quase cinco meses), a ERC tende a manifestar já que os dois contratos de prestação de serviços do Público – um com a Biopolis (uma associação de direito público que integra universidades) e outro da Comissão de Coordenação da Região Norte (CCDR-N), com uma forte componente política – são banais, aceitáveis e, quiçá, passíveis de serem multiplicados no futuro. Chegam mesmo, os ditos três membros do Conselho Regulador da ERC, a sustentar que a interpretação do PÁGINA UM sobre as cláusulas dos contratos em causa – e em particular do da Biopolis – “é manifestamente desprovida de sustentação e, inclusive, abusiva”.

    Portanto, a ERC – que recentemente já tinha sido pífia na não-responsabilização de directores editoriais pela existência de ‘jornalistas comerciais’ – obriga-me a retomar o assunto. E com assertividade, até porque há actualizações. E daquelas que ainda pioram mais a postura do Público.

    Não será surpresa nenhuma – porque tenho vincado isso, aqui, por diversas vezes – que eu diga que o estado pantanoso, mais ao estilo de uma cloaca do que de um ecossistema lacustre, da imprensa portuguesa se deve, primeiro, a directores editoriais que se transformaram em directores comerciais, mercadejando notícias; e, segundo, a uma regulação frouxa, comprometida e interessada em não beliscar um negócio (media) em profunda crise financeira, grave por ser uma crise sustentada em falta de credibilidade. O caso da Global Media é disso um exemplo. Como já não consegue vender notícias ao leitores; já vende jornalistas para vender promoção de clientes. Morrerá no dia em que os clientes que lhe pagam a promoção verificarem que essa promoção é vista pelo boneco.

    Mas regressemos ao foco. Independentemente das interpretações – que basicamente constituem a aplicação literal das cláusulas contratuais dos acordos comerciais entre a empresa do Público e a CCDR-N e a Biopolis para financiar uma secção jornalística denominada Azul – há um facto incontornável, indesmentível, indelével: há um elefante na sala. E esse elefante chama-se contrato de prestação de serviços para a execução de tarefas jornalísticas por jornalistas.

    Só a simples previsão, teórica, de contratos de prestação de serviços de jornalismo (que deveria ser sinónimo de isenção e independência) envolvendo entidades públicas (e privadas) deveria causar engulho, vergonha, generalizada desaprovação – e opróbrio para quem, sendo jornalista, se permite assinar e executar este tipo de tarefas. Venha a direcção do Público, ou outra qualquer, justificar-se com muitos murros no peito ufando a palavra independência. Venham os reguladores fora do prazo que vierem, digam eles o que quiserem, mesmo que sentenciem ser “abusivo” alguém interpretar que contratos de prestação de serviços envolvendo jornalistas é mercadejar o jornalismo. E até se pode dizer mais, e que se diz porque estamos perante uma opinião: é prostituir o jornalismo.

    Se isto serve em teoria, recordemos em concreto os contratos do Público, e as suas cláusulas. No caso da Biopolis, a troco de 90.000 euros, o Público comprometeu-se publicar “26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não está no Portal Base nem a ERC quis saber dele], que resultem de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis, entre os projectos científicos disponibilizados por esta, a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para contratos em causa. A publicação dos artigos daqui decorrentes far-se-á acompanhar da referência ‘Promovido por Biopolis”. E acrescenta-se depois que “o Público obriga-se ainda [é extraordinário um jornal obrigar-se a cláusulas a quem lhe dá dinheiros para escrever 26 artigos editoriais] ao cumprimento das seguintes obrigações:

    1. Sujeitar-se à verificação da Biopolis, no que diz respeito, em exclusivo, ao cumprimento dos prazos definidos;
    2. Prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que assim o requeira;
    3. Garantir os recursos humanos e materiais por forma a prestar o serviço contratado;
    4. Executar um serviço de qualidade;
    5. Executar o serviço, que lhe for adjudicado, com absoluta subordinação aos princípios da ética profissional, isenção, independência, zelo e competência;
    6. Garantir sigilo quanto aos dados pessoais de que tomem conhecimento com a prestação de serviço

    Quem – a não ser, claro, a administração, a direcção comercial e a direcção editoral do Público, e também os três membros do Conselho Regulador fora do prazo – pode achar normal este tipo de cláusulas ao melhor estilo de ‘vendilhão de templo’?

    Alguém defender que quem assume um contrato desta natureza pode fazer jornalismo isento e independente, não está só a mercadejar o jornalismo; está a prostituir o jornalismo, porque isto é pornográfico. E, sobretudo, está a gozar com a cara de quem é jornalista e que não quer ver a credibilidade da classe assim conspurcada. Para manter empregos não vale tudo, sobretudo se se quer ser jornalista.

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    Aliás, perante contratos desta natureza, nem eu já sei, por exemplo, no caso concreto da secção Azul do Público, se os dois artigos da jornalista Patrícia Carvalho sobre projectos da Biopolis envolvendo o sisão – publicados em 29 de Junho e em 15 de Julho deste ano – se enquadram no contrato de prestação de serviços ou se foi uma ‘borla’, até porque nunca surgiu até agora, em qualquer artigo, a tal prometida referência a “Promovido por Biopolis”. O mesmo se aplica a uma notícia a promover um dos responsáveis pela Biopolis, o biólogo Nuno Ferrand de Almeida, escrita em 30 de Junho deste ano pela jornalista Teresa Firmino.

    Aliás, o problema deste tipo de contratos no jornalismo é esse mesmo: havendo um contrato de prestação de serviços com uma entidade, a partir desse momento, como proceder? Se for feita uma notícia no âmbito do contrato sobre essa entidade passa a escrever-se “Promovido por Fulano de Tal”, e se for publicada de forma autónoma passa a aditar-se “Não promovido por Fulano de Tal”? Já viram a caixa de Pandora que se abre?

    Quanto ao contrato entre o Público e a CCDR-N – uma entidade, repita-se, fortemente politizada –, a situação ainda se reveste de maior gravidade: a troco de 31.000 euros pagos no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.

    woman wearing brown coat playing violin

    Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.

    No seu direito de resposta, hoje publicado no PÁGINA UM, e que foi escrito originalmente em 29 de Junho passado, o actual director do Público, David Pontes, teve a desfaçatez de escrever que aquele contrato de prestação de serviços “corresponde ao início de um processo e não ao seu resultado”, acrescentando que “na proposta apresentada pelo PÚBLICO e aceite pela CCDR-N, é salvaguardada a total independência do Azul e, ao contrário do que foi escrito, não há lugar a qualquer análise prévia dos conteúdos que os jornalistas irão fazer sobre os trabalhos de cooperação e investigação científica do espaço Atlântico”.

    Dizer que um contrato público, depois de assinado, é para cumprir de outra forma, revestir-se-ia de enorme gravidade num país decente, mas a indecência prevalece sob o silêncio do próprio presidente da CCDR-N, que nunca respondeu às questões do PÁGINA UM. Sabe-se agora que o presidente da CCDR-N, António Cunha, assina contratos em que o ajdudicatário diz que o contrato não é para ser levado escrupulosamente a sério. Ou seja, o contrato é fake.

    Mas, afinal, como evoluiu afinal este contrato de prestação de serviços entre o Público e a CCDR-N?

    Pois bem, evoluiu para a mentira – ou, vá lá, para a omissão, que é a ‘siamesa’ da mentira. Além disso, foi um ‘brinde’.

    Fresh Snapper on a Weighing Scale

    Com efeito, entretanto, habemos podcast. No âmbito deste contrato, a secção Azul do Público criou um projecto denominado “Mudar o Atlântico em quatro vagas”, apresentado como sendo “uma série editorial sobre as potencialidades das regiões atlânticas europeias e os desafios que enfrentam a nível ecológico e de crescimento económico, social e territorial”. E acrescenta-se que “esta série editorial tem o apoio do Programa Espaço Atlântico 2014-2020”, surgindo depois o logotipo Interreg Atlantic Area.

    E onde aparece a referência à CCDR-N?

    Não aparece. Omite-se. Mente-se.

    Se o objectivo não fosse mesmo esconder (com a conivência da própria CCDR-N) o contrato de 31.000 euros, dir-se-ia que o Público era ingrato, porque os podcasts não foram nada mal pagos, pois serão apenas quatro. O primeiro episódio, intitulado “Conhecer o oceano”, saiu no passado dia 5 de Outubro e basicamente foi uma conversa com dois oceanógrafos de 15:20 minutos. O segundo episódio, no dia 19, teve também duração de 15:20 minutos, e foi um quase monólogo de Pedro Sepúlveda, director de serviços de Acção Climática e Sustentabilidade da Direcção Regional do Ambiente e Alterações Climáticas da Madeira, sobre lixo marinho.

    Presume-se que os dois episódios seguintes tenham também 15 minutos, o que significa que o contrato com a CCDR-N rendeu ao Público 31.000 euros por hora de emissão, sendo a existência de uma relação comercial com uma entidade da Administração Pública omitida aos ouvintes. Para o ‘frete’, o Público não encontrou nenhum jornalista da casa; e está a usar sim uma recém-jornalista freelancer, Inês Loureiro Pinto (CP 8264), que está assim a ser uma tarefeira para cumprir um contrato de prestação de serviços escindido dos ouvintes.

    Earth with clouds above the African continent

    E, pronto, é nisto que se tem tornado o jornalismo nacional.

    E sabem quais serão as consequências?

    Com esta ERC, nenhumas. Com esta ética no interior da classe jornalística, nenhumas.

    A única coisa que se pode aguardar, na verdade, depois deste meu texto, será um novo pedido de direito de resposta de David Pontes… se for mesmo um cara de pau sem vergonha.

    P.S. No seu texto de direito de resposta, escrito em 29 de Junho, David Pontes escreve: “O Azul e o PÚBLICO pautam-se pela total transparência na relação com os seus parceiros, não tendo qualquer problema em revelar os contratos que firmam com eles, o que irão fazer muito em breve em local próprio“. Quase quatro meses depois, estou, estamos, a aguardar a revelação de tais contratos.

  • Esclarecimento preventivo e necessário

    Esclarecimento preventivo e necessário


    Tomei ontem conhecimento, por uma ocasional pesquisa no site da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas (CCPJ), sem que outra informação prévia me tenha sido prestada, que Nuno André, um dos sócios do Página Um Lda. – a empresa gestora do PÁGINA UM –, com uma quota muito minoritária (5% do capital social), foi sujeito a um processo de contra-ordenação naquele órgão regulador por “prestação de falsas declarações sobre os requisitos legais à obtenção de um título de acreditação”, no caso, de jornalista-estagiário.

    Foi-lhe aplicada, segundo informação constante na CCPJ, uma coima de 1.500 euros. O seu título terá sido cassado a partir da data da decisão, 21 de Junho passado, uma vez que o seu nome já não se encontra registado.

    Gostaria de salientar, como director do PÁGINA UM e gerente do Página Um Lda., e para evitar eventuais especulações, que, embora Nuno André tenha publicado alguns textos e outros trabalhos neste jornal ao longo do ano passado, o processo em causa nada tem a ver com o PÁGINA UM. Refere-se sim à sua passagem pela rádio Mafra FM, tendo as alegadas falsas declarações sido cometidas em parceria com a jornalista Maria Moreira Rato, com o processo a ter tido ainda mais dois arguidos, cujos processos foram arquivados.

    Em todo o caso, o último texto de Nuno André no PÁGINA UM foi publicado em 2 de Setembro de 2022. Desde essa data não mais o contactei, excepto para lhe comunicar a forte intenção de lhe (re)adquirir a quota (simbólica) de 5% no Página Um Lda., proposta que nunca obteve resposta, o que se lamenta, uma vez que pessoalmente preferia quebrar até a mais ténue ligação entre ele e este jornal. Mas a venda de quotas é um processo voluntário. Como é do conhecimento público, no sector da comunicação, Nuno André é agora comentador da CMTV.

    Lisboa, 23 de Outubro de 2023

    Pedro Almeida Vieira

    Director do jornal PÁGINA UM Sócio maioritário (70%) e gerente da empresa Página Um Lda.

  • Carreira de tiro: queixas de PSP e GNR contra ilustradora da RTP falham alvo

    Carreira de tiro: queixas de PSP e GNR contra ilustradora da RTP falham alvo


    É através de ‘mais discurso’, e não da repressão do discurso, que poderá ser rebatido o pensamento expresso no cartoon. Esta é a conclusão de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) como reacção a queixas formais da direcção da PSP e da GNR, e de quase uma centena de pessoas, que não apreciaram um cartoon que colocava a tónica do racismo das forças policiais. A ilustradora Cristina Sampaio, que concebeu o vídeo no rescaldo da morte, em Junho passado, de um jovem magrebino francês pelas autoridades policiais, diz-se “satisfeita” por a ERC ter reconhecido que “a essência do cartoon é a sátira e o humor, que devem ser exercidos em total liberdade” numa sociedade democrática.


    Que se discuta, mas que não se reprima – este é o sentido de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), hoje divulgada na íntegra, sobre o polémico cartoon que aborda o racismo nas intervenções policiais, transmitido pela RTP no passado dia 7 de Julho, no intervalo da emissão televisiva do NOS Alive. A deliberação surge como efeito de queixas formais da Guarda Nacional Republicana (GNR) e da Polícia de Segurança Pública (PSP), que também apresentou já uma queixa no Ministério Público, mas que acaba por ficar ‘esvaziada’ com a análise do regulador dos media.

    O cartoon, em formato vídeo, da autoria da experiente e ilustradora Cristina Sampaio – que integra o colectivo Spam Cartoon – retratava um polícia numa carreira de tiro a disparar contra vários alvos, constatando-se por fim uma gradação comprometedora gradação no nível de “acerto”: o primeiro alvo. representando um homem branco, tinha apenas um tiro, mas ao lado do corpo, enquanto o quarto “alvo”, representando um homem negro, estava ‘fulminado” com certeiros sete tiros na cabeça e 11 tiros no tronco.

    Embora o cartoon fizesse alusão ao jovem francês Nahel, de 17 anos, de origem magrebina, morto a tiro pela polícia de Nanterre, no passado dia 27 de Junho, e independentemente da hora tardia da transmissão do cartoon, os dirigentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) não apreciaram, o mesmo sucedendo com diversos partidos políticos como o PSD e o CDS, e ainda o Chega, que chegou a propor audições parlamentares da RTP e ERC.

    O próprio Governo mostrou então desconforto, com o ministro da Administração Interna a dizer que contactara o presidente do Conselho de Administração da RTP “para manifestar desagrado com o facto de um ‘cartoon’ daquela natureza ter sido exibido num festival que tem tantos milhares de jovens”.

    A própria direcção da PSP anunciou mesmo, três dias depois da emissão do cartoon de Cristina Sampaio, ter avançado com uma queixa-crime ao Ministério Público por considerar que “propala[va] factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devida” àquela força policial. Em comunicado, a PSP disse então que fora já “elaborado auto de notícia (…) com referência aos factos apurados até ao momento e à informação que consideramos ter relevância criminal”.

    Tal como também prometera, a direcção da PSP formalizou uma queixa na ERC, o mesmo tendo-se verificado com a GNR. Aliás, além destas, o regulador foi ‘metralhado’ com quase uma centena de queixas particulares. A primeira entidade sustentava que “o vídeo, ao apresentar os polícias como xenófobos e racistas, não contribui para a desejável paz social, podendo, pelo contrário, contribuir para uma perceção de ilegitimidade do uso da força pública, com potencial para afetar a desejável paz e harmonia social, que os polícias da PSP diariamente se esforçam por manter e defender.”

    A GNR, por sua vez, seguiu o mesmo diapasão, referindo, de igual modo, que o vídeo fora “transmitido quando a audiência é essencialmente jovem, com grande capacidade de divulgação através de redes sociais” e que tinha potencial de “forte projeção pública”, sendo “facilmente acessível na internet ou através da respetiva aplicação móvel”. E acrescentava ainda que, mesmo “reconhecendo a liberdade de imprensa e meios de comunicação social”, se deveria “repudiar este vídeo que afronta coletivamente e individualmente todos aqueles que exercem funções policiais em Portugal”.

    Esta força militar acrescentava que o cartoon transmitiu ao público a ideia de “existência de uma organização e metodologia para tratamento de grupos sociais de forma diversa, o que atenta gravemente contra toda e qualquer prática atual na GNR, que vem incrementando, nos últimos anos, a formação em matéria de Direitos Fundamentais, facilmente comprovável pelos programas dos diversos cursos e parcerias estabelecidas com instituições de ensino e de defesa dos Direitos Humanos nacionais e, inclusivamente, internacionais.”

    Apesar de toda esta argumentação, os membros do Conselho Regulador da ERC concluíram que, embora o “cartoon objeto das participações tenha uma crítica forte e assertiva, não comporta um teor de humilhação ou vexatório, nem visa gerar o ódio ou desestabilizar a paz social”

    Na sua análise, o regulador considerou, na linha do que já era seu entendimento, que o Spam Cartoon é um micro-programa, tendo mesmo “um genérico de abertura (…) e um genérico de fecho”, que se enquadra no “macrogénero ‘entretenimento’ e no género ‘humor’”, e que nessa linha “integram um género que é, por natureza, transgressor de limites, que recorre à caricatura, ao exagero, ao humor para transmitir uma opinião sobre determinado assunto”.

    Nessa linha, a ERC defende que “o humor, a sátira, os cartoons – entre outros meios de manifestação da liberdade criativa – são formas de expressão do pensamento que não devem estar amarradas às sensibilidades subjetivas e gostos pessoais do público, de modo a permitir a crítica a grupos e figuras da sociedade, comportamentos, estereótipos, pensamentos, etc.”, pelo que, “nesta medida, gozam de um espaço mais alargado no que respeita aos limites à liberdade de expressão e de programação.” Daí salientam que “a violência policial e o racismo são temas que merecem reflexão e que podem, legitimamente, ser o mote para cartoons”.

    Morte de jovem magrebino em França foi mote para o cartoon de Cristina Sampaio, mas PSP e GNR ‘dispararam’ logo com queixas judiciais e na ERC.

    E conclui assim que a RTP1, ao transmitir o cartoon de Cristina Sampaio, “não violou a ética de antena, nem ultrapassou os limites à liberdade de programação”, destacando ainda que “é através de ‘mais discurso’, e não da repressão do discurso, que poderá ser rebatido o pensamento expresso no cartoon.”

    Contactado pelo PÁGINA UM, a Cristina Sampaio diz estar “satisfeita por a ERC ter reconhecido que o cartoon tem um papel fundamental na comunicação social de uma sociedade democrática e que a essência do cartoon é a sátira e o humor, que devem ser exercidos em total liberdade.” A ilustradora, cujos trabalhos marcam também presença frequente no jornal Público, releva também o “apoio incondicional” que tiveram da RTP, cuja administração é presidida por Nicolau Santos.

  • Alterações climáticas, Torre de Belém e os 3I do mau jornalismo: incompetência, ignorância e imbecilidade

    Alterações climáticas, Torre de Belém e os 3I do mau jornalismo: incompetência, ignorância e imbecilidade


    Tenho um lema como jornalista: devo escrever para que o meu leitor mais burro me entenda e que o meu mais entendido leitor não me chame burro.

    Isto a pretexto de uma notícia da edição de ontem do semanário Expresso, da autoria da jornalista Carla Tomás, que escreve sobre Ambiente há já umas boas duas décadas – e, portanto, tem mais do que obrigação (nem que seja para si própria) de não transmitir disparates, nem que estes saiam da boca de outros. Excepto se agora os jornalistas forem apenas pés de microfone ou transmissores de narrativas da moda, forçando tudo a ir até às alterações climáticas, como as dissertações do professor Aquiles Arquelau, especialista em Mitologia, que sempre descambavam na Bruna Lombardi.

    gray concrete castle during sunset

    A dita notícia do Expresso, sob o antetítulo de “Crise Climática”, lança a parangona: “Torre de Belém ameaçada por nível do mar e ondas de calor”. E relata o seguinte: “A acelerada subida do nível médio do mar e as cada vez mais intensas e frequentes ondas de calor estão a pôr em risco um dos ícones da cidade de Lisboa, classificado como Património Mundial. Construído no século XVI, o monumento é frequentemente batido pela ondulação em dias de temporal conjugado com a maré alta e corre o risco de ficar inundado no futuro com consequências para a estrutura que sustenta este monumento, isto quando se projeta uma subida de um metro no nível médio do mar antes do final do século”.

    E acrescenta que “o alerta é feito pela arquiteta americana Barbara Judy, que está em Lisboa a coordenar uma equipa que estuda o impacto das alterações climáticas no Mosteiro dos Jerónimos e na Torre de Belém e que, até novembro, irá apresentar um relatório com sugestões de como minimizar os impactos e adaptar este património cultural a eventos extremos futuros”, informando ainda que “os trabalhos resultam de uma parceria da direção do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém com a embaixada dos EUA, no âmbito do Programa Embassy Science Fellow”.

    Pintura de 1811 da Torre de Belém, por John Thomas Serres (1759-1825).

    O artigo da Carla Tomás também apresenta duas fotos do Torre de Belém, em preia-mar e baixa-mar, sendo que na primeira o monumento está rodeado de água e na segunda se vê uma ‘língua de areia’, o que não é surpreendente atendendo que está em plena boca do estuário do Tejo, onde as variações do nível da água do mar (“culpa” da Lua) rondam os três metros.

    Como não me canso de dizer, existem evidências de alterações climáticas, com um aumento significativo do ponto de vista da frequência de fenómenos extremos – e isto independentemente das suas causas, sendo que se estas forem mesmo derivadas do dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa, bem que podemos meter a “viola no saco”, porque a China está a fazer com que qualquer sacrifício de redução seja em vão.

    Mas uma coisa é a necessidade de assumir a existência de um problema – as alterações climáticas, com as suas cambiantes e especificidades, encontrando medidas de minimização, mitigação e adaptação, de forma racional –; outra é a necessidade de não permitir que se tornem um monotema ambiental – e com isso permitir um pornográfico greenwashing, onde se pavoneiam empresas com passado e presente poluidor travestidas agora de “amigas do ambiente” –; e outra ainda, e muito importante, a necessidade de rigor informativo arredando o sensacionalismo manipulatório.

    Torre de Belém, à esquerda, integrado em mapa de Lisboa do século XVIII, onde também se observa o Mosteiro dos Jerónimos ainda quase banhado pelas águas do Tejo. Sucessivos assoreamentos e aterros aumentaram a área terrestre, ligando o ilhéu à cidade.

    Bem sei que a imprensa vive de soundbites, e sei também que, sobretudo depois da pandemia da covid-19, existe uma enorme tentação nas editorias menos escrupulosas de fazer suceder à emergência sanitária uma emergência climática, onde qualquer tempestade se transforma numa evidência das alterações climáticas, quando na verdade os processos são mais lentos, embora inexoráveis, e até mais afastados da Europa. E nem os impactes serão trágicos como uma crise sanitária se houver planeamento preventivo.

    Por exemplo, se não expandíssemos áreas urbanas para leitos de cheia ou não impermeabilizássemos zonas de drenagem, provavelmente não teríamos tantos estragos em tempestades. Ou se fizéssemos uma prevenção mais activa, em simultâneo com mudanças na estrutura silvícola, porventura os incêndios num mundo rural (cada vez mais desertificado de pessoas) não seriam tão dramáticos.

    Mas não quero falar agora mais sobre isso. Foquemo-nos na notícia do Expresso sobre a Torre de Belém – e nos seus disparates.

    Pintura de Filipe Lobo, patente no Museu de Arte Antiga, retratando o Mosteiro dos Jerónimos no século XVII. Ao fundo, à esquerda, a Torre de Belém, bem dentro do estuário.

    Como disse no início, convém a um jornalista que não lhe chamem burro.

    E, assim sendo, que se pode dizer então de uma notícia que, titulando estar a subida das águas do mar e as ondas de calor a AMEAÇAR a Torre de Belém, se “esquece” de referir que, enfim, este agora monumento estava, quando construído no século XVI, num pequeno ilhéu a cerca de 250 metros da margem?

    Carla Tomás, e o Expresso, além das fotos a mostrarem simples variações de marés, deveriam sim ter também apresentado mapas, pinturas ou gravuras antigas onde a Torre de Belém (ou Torre de São Vicente) se mostrava bem dentro do Tejo, tal como a chamada Torre Velha (ou Forte de São Sebastião da Caparica), portanto muito mais “afectada” por ondas e salinidade – muito menos “protegida” do que agora.

    Na verdade, foi a evolução costeira, a dinâmica estuarina, com assoreamentos progressivos, e em outras partes com desassoreamentos para tornar navegável o estuário, a par de aterros – que, por exemplo, “afastaram” o Mosteiro dos Jerónimos das águas do rio Tejo –, que “colocaram” a Torre de Belém onde está. Quer dizer, está no mesmo sítio, mas tudo mudou em seu redor. E essa mudança não foi derivada das alterações climáticas nem é absolutamente nada expectável que o aquecimento global coloque qualquer pressão relevante. Não é por aí que o gato vai às filhoses…

    Torre de Belém, em gravura do século XVII de Dirk Stoop.

    Ao longo dos séculos, e não por causa de quaisquer alterações climáticas, a Torre de Belém – que bem antes da Revolução Industrial (“berço” das emissões de dióxido de carbono) estava rodeada de águas do estuário – foi beneficiando de constantes e sucessivas remodelações e reabilitações, porque o tempo, esse “grande (mau) escultor”, desgasta sem parança. Que haja agora necessidade de uma nova intervenção, parece evidente. Basta conferir o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, onde se constata que foram executadas 27 obras de reabilitação em diversos graus na Torre de Belém ao longo do século XX, mas não havendo registos de alguma acção relevante nas últimas duas décadas. Por isso, sejamos honestos: “pedras partidas, molhes erodidos e juntas sem argamassa”, relatadas pela especialista citada pelo Expresso, não se devem às alterações climáticas. Apenas ao tempo, à lenta acção dos agentes físicos e químicos – e, vá lá, à incúria do Estado em relação a um rico património histórico. Nada mais.

    Torna-se, também, risível a referência no título do Expresso às ondas de calor ameaçarem a Torre de Belém, como se um aumento de temperatura por via de um aquecimento global – nem que fosse de 10 graus ou mais – pudesse causar qualquer dano de monta a pedras sujeitas a contínua salinidade, ondulação e variação das marés. É tão absurdo que nem merece mais comentários…

    Enfim, por tudo isto, só por incompreensível ignorância, ou por sensacionalismo bacoco ou por uma intencional manipulação da realidade – coisas que pouco incomodam os reguladores (ERC e CCPJ) e a classe jornalística (e o Conselho Deontológico do Sindicato de Jornalistas, mais afoito a fretes para difamar o jornalismo incómodo e independente) –, se faz uma notícia onde declarações de uma pouco conhecida arquitecta norte-americana que trabalhou no National Park Services – equivalente ao nosso Instituto de Conservação da Natureza e Florestas com a componente do património – se transformam em “provas irrefutáveis” das alterações climáticas sobre a Torre de Belém, que já “assistiu” a muitas façanhas e também muitos disparates em cinco séculos.

    Foto da Torre de Belém, publicada pela revista política norte-americana Harper’s Weekly, em 13 de Maio de 1865, acompanhando o relato de um incidente em Março daquele ano quando a fortificação portuguesa disparou contra o navio Niagara.

    Mas o pior é a notícia do Expresso não ser um exemplo isolado de mau jornalismo, a forçar uma “missão”; antes é um novo paradigma. Se assim não fosse, outros jornais não correriam a propalar o disparate do Expresso, como sucedeu com o Correio da Manhã e o Observador, o que mostra o nível de conhecimentos (até históricos) da malta que anda pelas redacções a copiar mutuamente disparates.

    Enfim, se isto é jornalismo de referência… vou ali e já venho. Ou melhor, sigo sozinho.

  • Segurança à ‘base da confiança’: Securitas começa a prestar serviços ao Fisco antes de se definir preços

    Segurança à ‘base da confiança’: Securitas começa a prestar serviços ao Fisco antes de se definir preços


    Já passaram quase 20 meses desde que o Ministério das Finanças publicou em Diário da República um anúncio de procedimento para aquisição de serviços de vigilância das instalações da Autoridade Tributária e Aduaneira, mas ninguém aparenta grande preocupação em concluir o concurso público, sobretudo a Securitas e Nélson Roda Inácio, subdirector-geral da máquina fiscal do Estado, que nos últimos anos tem vindo a assinar a generalidade dos chorudos ajustes directos.

    Tanto assim que, paulatinamente, desde 2021 já foram celebrados 12 ajustes directos entre a ATA e a Securitas, com periodicidades distintas, mas os últimos dois, ambos deste ano, com montantes apreciáveis. Mas se recuarmos mais, desde finais de 2016 a Securitas arrecadou 17 contratos de vigilância com um montante próximo dos 12,5 milhões de euros, sendo que apenas numa situação, há dois anos, teve concorrência. Foi uma excepção na regra.

    O mais recente contrato, assinado anteontem, e publicado ontem no Portal Base, tem o valor de 992.591 euros – que ultrapassa os 1,2 milhões de euros incluindo IVA –, tendo a particularidade de ter sido assinado com efeitos retroactivos. Ou seja, de uma forma irregular, mesmo se invocando uma norma do Código dos Contratos Públicos, a ATA assumiu que o contrato com a Securitas, actualmente em curso – mesmo se apenas assinado no dia 18 de Outubro deste ano, e estando em vigor até finais de Dezembro –, “produz[iu] efeitos a partir de 1 de Julho de 2023”.

    O mais curioso é a ATA assumir no próprio contrato que a “condição de eficácia” é a “sua publicitação prévia” no Portal Base, para efeitos de quaisquer pagamentos. Significa assim que a ATA – que se mostra inflexível em matérias fiscais – vai pagar serviços à Securitas, que também implicam pagamentos de IVA, nos meses de Julho, Agosto, Setembro e em 17 dias de Outubro, quando ainda nem sequer havia suporte contratual. E a Securitas devolverá o IVA em Novembro por serviços que, na realidade, prestou em Julho, Agosto e Setembro.

    Mas este procedimento é, na verdade, já corriqueiro na ATA, pelo menos desde que Nélson Roda Inácio tem poderes delegados para este tipo de contratações, mesmo em serviços envolvendo o pagamento de mais de meio milhão de euros.

    Assim, por exemplo, no ajuste directo anterior com a Securitas, que abrangeu o primeiro semestre deste ano, e por um valor de 990 mil euros (sem IVA), o subdirector-geral também só assinou o contrato em Fevereiro, 52 dias depois do início dos serviços de segurança.

    Mas recuando para os anos anteriores, observa-se similar procedimento que evidencia um impune à-vontade por parte da entidade que zela pelo cumprimento escrupuloso dos deveres fiscais dos contribuintes.

    Assim, no contrato para os dois últimos meses de 2022, no valor de mais de 302 mil euros, a ATA celebrou o ajuste directo no dia 15 de Dezembro. O contrato mensal de Outubro, com duração de 31 dias, foi apenas assinado no dia 28, ou seja, a três dias de expirar. Dizia respeito a um serviço de 151 mil euros, o que para a máquina fiscal são peanuts. Já o contrato anterior a este, que por cerca de 453 mil euros serviu para pagar à Securitas a vigilância do terceiro trimestre de 2022 (Julho a Setembro), a data da assinatura é de seis de Agosto.  

    Para não se ser fastidioso, acrescente-se que os três contratos de vigilância com a Securitas que cobriram o primeiro semestre de 2022, envolvendo verbas da ordem dos 906 mil euros (sem IVA), foram sempre celebrados já com o período de vigência em curso.

    Embora estes contratos não identifiquem os locais a vigiar – remetem para cadernos de encargos que não foram colocados no Portal Base –, na lista de 2021 surge um bastante sui generis. Com um valor de cerca de 208 mil euros (IVA incluído), este contrato é algo diferente dos outros, porque explicita que se refere à “aquisição de serviços de locação operacional, assistência técnica, manutenção programada, reparação ou substituição de equipamentos de sistemas instalados de circuito fechado de televisão (CCTV), sistemas de deteção de intrusão (SDI), sistemas automáticos de deteção de incêndios (SADI), controle de acessos (CA) e cancelas”, identificando os locais: ATA do Parque das Nações, da Guarda, a Direcção de Finanças de Santa Catarina, no Porto, e ainda os Serviços Centrais.

    No Portal Base surge a referência de o prazo de execução ser de 365 dias, mas formalmente o contrato explicita que o prazo de execução decorre “até 31 de Dezembro de 2021”, sendo que foi celebrado no dia 28 de Dezembro. Portanto, ou o contrato de 208 mil euros teve uma duração de apenas quatro dias (bastante bem pago) ou então foi assinado 362 dias depois do efectivo início da prestação de serviços, ou por outras palavras, a quatro dias de terminar..

    Helena Borges, directora-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, e Nuno Santos Félix, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

    Nem sempre a Securitas, mesmo em contratos por ajuste directo, beneficiou destes facilitismos, como o de começar a prestar serviços enquanto negociava preços com o adjudicante, o que significa que se foi estabelecendo relações ‘à base da confiança’, algo que, com dinheiros públicos, é de ética questionável e de legalidade muito duvidosa. Por exemplo, um contrato de 300 dias celebrado para serviços de vigilância nos primeiros 10 meses de 2017 só entrou em vigor depois da sua assinatura e podia ser denunciado a cada quatro meses.

    No meio destas relações de evidente privilégio, a ATA apenas teve de considerar propostas de concorrentes à Securitas por uma vez, em 2019, através de um concurso ao abrigo de um acordo-quadro. Esse contrato – que vigorou entre 1 de Maio de 2019 e 31 de Dezembro do ano seguinte – acabou por ser ganho pela Securitas, que derrotou as propostas de outras sete empresas. Desde essa data, tudo na ‘paz do Senhor’: a Securitas assegura sempre a manutenção dos serviços de vigilância.

    Porquê e até quando? Não se sabe, porque o Ministério das Finanças, contactado pelo PÁGINA UM, não deu quaisquer esclarecimentos. Repetindo, aliás, a mesma (não) reacção face aos estranhos contratos de limpeza com a empresa francesa Samsic, também por ajuste directo e também assinados pelo subdirector-geral Nélson Roda Inácio.

    Nélson Roda Inácio, à esquerda (cumprimentando em 2016 o então presidente da autarquia de Pombal) foi nomeado subdirector-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira em 2015, tendo assinado todos os polémicos ajustes directos com a Securitas e também com a Samsic.

    O mais recente contrato por ajuste directo entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e a Securitas é um dos destaques do Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados ontem. Desde Setembro, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

    PAV


    Ontem, dia 19 de Outubro, no Portal Base foram divulgados 778 contratos públicos, com preços entre os 1,02 euros – para aquisição de caixa de plástico, pelo The Cricket Farming Co, através de ajuste directo simplificado – e os 4.719.874,65 euros – para requalificação e ampliação de complexo escolar, pelo Município de Alcobaça, através de concurso público. 

    Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 10 contratos, dos quais nove por concurso público, um ao abrigo de acordo-quadro e um por ajuste directo. Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados nove contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: Autoridade Tributária e Aduaneira (com a Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança, no valor de 992.591,04 euros); Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (com a Gilead Sciences, no valor de 327.000,00 euros); dois da Escola Básica e Secundária Padre Manuel Álvares (um com a Porto Editora, no valor de 305.724,72 euros, e outro com a RODOESTE – Transportadora Rodoviária da Madeira, no valor de 104.761,90 euros); Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (com a CZ Veterinária, no valor de 303.480,00 euros); Centro Hospitalar Universitário do Porto (com a Profarin, no valor de 258.461,28 euros); Hospital Garcia de Orta (com a Efago – Manutenção Hospitalar, no valor de 232.436,46 euros); Escola Secundária da Lagoa (com a Porto Editora, no valor de 171.681,45 euros); e a Escola Básica e Secundária da Madalena (com a Porto Editora, no valor de 124.061,67 euros).


    TOP 5 dos contratos públicos divulgados no dia 19 de Outubro

    (todos os procedimentos)

    1 Requalificação e ampliação de complexo escolar

    Adjudicante: Município de Alcobaça

    Adjudicatário: Nova Gente – Empreitadas

    Preço contratual: 4.719.874,65 euros          

    Tipo de procedimento: Concurso público


    2Construção de Estrutura Residencial de Pessoas Idosas       

    Adjudicante: Casa do Povo de Alcofra        

    Adjudicatário: António Lopes Pina, Unipessoal, Lda.          

    Preço contratual: 2.572.652,99 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    3Empreitada de reabilitação de edifício de novo Comando Sub-regional de Emergência e Proteção Civil

    Adjudicante: Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil           

    Adjudicatário: Isidovias – Investimentos

    Preço contratual: 1.362.927,06 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    4Aquisição de vacinas e tuberculinas      

    Adjudicante: Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo

    Adjudicatário: GlaxoSmithKline

    Preço contratual: 1.296.720,00 euros

    Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


    5Empreitada de plano de intervenção em edificado disperso

    Adjudicante: Município de Lisboa    

    Adjudicatário: Tosvec – Sociedade de Empreitadas e Construções          

    Preço contratual: 1.182.572,39 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no dia 19 de Outubro

    1 Aquisição de serviços de vigilância e segurança

    Adjudicante: Autoridade Tributária e Aduaneira      

    Adjudicatário: Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança

    Preço contratual: 992.591,04 euros


    2Aquisição de medicamentos      

    Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte

    Adjudicatário: Gilead Sciences

    Preço contratual: 327.000,00 euros


    3Aquisição de manuais escolares digitais, bens e serviços conexos

    Adjudicante: Escola Básica e Secundária Padre Manuel Álvares 

    Adjudicatário: Porto Editora

    Preço contratual: 305.724,72 euros


    4Aquisição de doses de tuberculina bovina e tuberculina aviária          

    Adjudicante: Direção-Geral de Alimentação e Veterinária  

    Adjudicatário: Veterinária, S.A.

    Preço contratual: 303.480,00 euros


    5Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário do Porto

    Adjudicatário: Profarin

    Preço contratual: 258.461,28 euros

    MAP