Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

    Estados Unidos: 199 mortes por relâmpagos numa década não dá para brincar

    Pela segunda vez, um jogo do Benfica no Mundial de Clubes foi interrompido nos Estados Unidos devido à aproximação de uma trovoada. Depois da suspensão por cerca de duas horas ao intervalo da partida frente ao Auckland City, em Orlando, na Florida, foi agora o encontro de ontem frente ao Chelsea, disputado no Bank of America Stadium, em Charlotte, na Carolina do Norte, a ser interrompido — desta feita ao minuto 85 — e apenas retomado duas horas depois. O jogo, que acabou com a derrota do Benfica por 4-1, começou pelas 21h00 deste sábado e só acabou perto da 1h40 desta madrugada, hora de Lisboa, depois de um prolongamento..

    Tratou-se já do sétimo jogo suspenso por motivos idênticos nesta edição da competição. À primeira vista, sob uma perspectiva mediterrânica ou europeia, a ideia de interromper partidas por “relâmpagos ao longe” pode parecer um exagero ou uma excentricidade legal típica dos Estados Unidos. No entanto, este tipo de decisão – prática comum e tecnicamente obrigatória – está sustentada por dados meteorológicos e regras de segurança apertadas. O motivo é simples: nos Estados Unidos, os relâmpagos matam — e com frequência. Entre 2015 e 2024, segundo dados oficiais da NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, morreram 199 pessoas nos EUA vítimas de descargas atmosféricas, num total de incidentes que atingiram quase todos os estados.

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    A Carolina do Norte, palco da partida entre Benfica e Chelsea, surge em quarto lugar no ranking nacional, com 11 mortes por relâmpago durante esse período. Já a Florida, onde o Benfica enfrentara o Auckland dias antes, lidera de forma destacada, com 50 mortes em dez anos. Seguem-se o Texas (20 mortes) e o Alabama (15 mortes), estados do sul norte-americano com clima quente e húmido, onde o número de dias com trovoadas por ano ultrapassa largamente a média europeia. Surgem depois os estados da Carolina do Norte (11), Colorado (8), Nova Iorque (7), Pensilvânia (7) e Missouri (6). Mesmo estados considerados menos propensos, como a Louisiana, Ohio, Arizona ou Califórnia, registaram 4 a 5 mortes cada.

    Este risco não é apenas estatístico, mas também operacional. Por isso, em solo americano, qualquer sinal de trovoada nas imediações — mesmo sem chuva, vento ou relâmpagos visíveis — activa os protocolos de emergência. A chamada regra dos “30-30” estabelece que, se o tempo entre o avistamento de um relâmpago e o som do trovão for inferior a 30 segundos, todos os eventos ao ar livre devem ser imediatamente suspensos. A retoma só é autorizada 30 minutos após o último trovão audível.

    Estas regras aplicam-se de forma transversal: desde os campeonatos escolares e universitários até às grandes competições internacionais. E mais: nos estádios, a decisão não depende dos árbitros nem dos treinadores — cabe às autoridades meteorológicas locais ou aos oficiais de segurança, que dispõem de sistemas de monitorização em tempo real.

    Situação meteorológica em redor do Bank of America Stadium, em Charlotte, obrigou à suspensão do jogo entre Benfica e Chelsea deste sábado (que se prolongou por domingo).

    Em Portugal, o risco de trovoadas é muito inferior, e a cultura de prevenção quase inexistente. O número de mortes por relâmpago é muito baixo — menos de uma por ano, em média, e quase sempre em contextos agrícolas, montanhosos ou isolados. Nessa medida, não existe qualquer regulamentação específica para a suspensão de jogos devido a trovoadas, nem protocolos operacionais em eventos desportivos. Por isso, quando os adeptos portugueses vêem um jogo suspenso por “relâmpagos invisíveis”, a reacção instintiva é de espanto, quando não de troça.

    Nos Estados Unidos, a maioria das vítimas são homens, entre os 15 e os 45 anos, envolvidos em actividades ao ar livre: pesca, golfe, caminhadas, trabalhos agrícolas ou desportos. Mas também se registam mortes em eventos escolares e recreativos, incluindo treinos de futebol ou atletismo. Em muitos casos, a vítima não é atingida directamente, mas sim por correntes de solo, que podem propagar-se a dezenas de metros a partir do ponto de impacto, especialmente em terrenos húmidos ou em contacto com estruturas metálicas.

    A ideia de que a ausência de chuva torna o ambiente seguro é, de facto, um mito perigoso. A maior parte dos acidentes fatais ocorre antes da chegada da chuva, durante a chamada “fase seca” da trovoada. Os relâmpagos podem atingir o solo até 15 quilómetros de distância da ‘nuvem-mãe’, o que justifica o elevado nível de alerta meteorológico nos Estados Unidos.

    Interrupções por razões meteorológicas não depende das decisões dos árbitros.

    Por isso, aquilo que para muitos portugueses pareceu um excesso, ou um exagero americano, é, na verdade, o resultado de décadas de experiência, investigação científica e centenas de mortes que moldaram a política de prevenção. “When thunder roars, go indoors” — quando se ouve trovão, procurar abrigo — é mais do que um slogan: é uma medida que salva vidas. E, num país que regista quase 200 mortes por década, não há espaço para facilitismos.

    A suspensão dos jogos do Benfica — primeiro em Orlando, depois em Charlotte — deve, assim, ser entendida como o reflexo de um modelo de segurança pública que prefere adiar o espectáculo em vez de acelerar funerais. Um modelo que, apesar de estranho para os portugueses, tem um mérito inquestionável: reconhecer que nem sempre é o que se vê que mata — mas sim aquilo que se desvaloriza.

  • Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública

    Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública


    Desde 2022 que o PÁGINA UM trava uma batalha judicial aparentemente absurda – mas, na verdade, profundamente reveladora – contra a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Lutamos pelo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, que é gerida por essa entidade pública. E lutamos não por um capricho jornalístico ou por qualquer fetiche com estatísticas, mas porque acreditamos, com convicção inabalável, que a informação é o primeiro antídoto contra a negligência e o primeiro instrumento da responsabilidade política.

    A base de dados existe – ponto final. O Tribunal Administrativo de Lisboa reconheceu, com clareza, o nosso direito de acesso. A ACSS recorreu, e perdeu. Voltou a recorrer, e voltou a perder. O Supremo Tribunal Administrativo, no Verão de 2023, encerrou o assunto com um acórdão cristalino. Mas em vez de cumprir, a ACSS decidiu trilhar o caminho do absurdo burocrático e da resistência kafkiana. Mais um processo arrasta-se agora para forçar os seus dirigentes a libertarem a informação, numa dança cínica de poder institucional contra o interesse público.

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    E que informação é essa? Informação que poderia permitir avaliar a real incidência das doenças por região, identificar padrões de falhas no sistema hospitalar, detectar atrasos nos diagnósticos, comparar o desempenho entre hospitais, e até compreender melhor se os investimentos em saúde produzem resultados efectivos. Em suma, dados que, tratados com inteligência e independência, poderiam salvar vidas e corrigir injustiças. Mas, em vez disso, são mantidos num cofre institucional selado a sete chaves pela cultura opaca da nossa Administração Pública.

    A verdade, porém, é ainda mais perturbadora: Portugal não sofre de falta de dados. Sofre, isso sim, de falta de vontade – e de coragem – para os usar. Veja-se o exemplo do SICO – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito. Trata-se de uma ferramenta raríssima no panorama internacional: permite acompanhar, em tempo real, onde e porquê morrem os portugueses. Com esse sistema, poderíamos detectar rapidamente surtos epidémicos, falhas nos serviços de saúde, doenças com comportamentos anómalos. Poderíamos antecipar. Poderíamos agir. Mas não: usamos o SICO como se fosse apenas um notário da morte, e não como um radar da vida.

    Mais grave: quando os dados são usados, é muitas vezes para branquear políticas ou sustentar retóricas. A Escola Nacional de Saúde Pública tem-se especializado, com notável zelo, em cumprir este tipo de fretes institucionais. Em vez de ser um centro de pensamento crítico e estratégico, converteu-se numa agência de legitimação das decisões do poder. É uma traição silenciosa, mas perigosa, ao ideal de saúde pública.

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    De quando em vez, na solidão da investigação, detenho-me nos dados estatísticos de Saúde divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Nem sempre trazem revelações imediatas, mas às vezes surgem indícios alarmantes. Como os dados ontem divulgados, entre informação sobre operações de caixas automáticas multibanco, sobre a taxa de mortalidade por tumores malignos em 2023, com base nos registos do SICO.

    A nível nacional, a taxa é de 2,7 por mil habitantes – um valor que parece aceitável, se olharmos apenas para a média. Mas as médias escondem tragédias, sobretudo quando se diluem em regiões vastas. É nos pormenores, nos concelhos pequenos, que a realidade grita mais alto.De facto, analisando os dados com maior detalhe, constata-se que, em 45 concelhos portugueses, a taxa de mortalidade por cancro em 2023 foi mais de 50% superior à média nacional, que se situa nos 2,7 óbitos por mil habitantes.

    Casos como Mora (7,4 por mil), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2) ou Vidigueira (5,4) revelam dramas locais quase invisíveis à escala nacional. Corrijo: para não relativizar nem suavizar esta realidade, importa aqui identificar todos esses 45 concelhos, onde a taxa de mortalidade por tumores malignos ultrapassa os 4,05 por mil habitantes – valor 50% acima da média nacional.

    Dados do INE revelados ontem. Ninguém os vai analisar. Ninguém analisa os dados do SICO?

    Eis a lista integral: Mora (7,4), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2), Vidigueira (5,4), Santa Cruz das Flores (5,3), Oleiros (5,3), Pinhel (5,3), Sabugal (5,1), Fronteira (5,1), Serpa (5,0), Belmonte (5,0), Crato (4,9), Manteigas (4,8), Alijó (4,8), Góis (4,7), Boticas (4,7), Corvo (4,6), Mêda (4,6), Melgaço (4,6), Almeida (4,6), Chamusca (4,4), Portel (4,4), Valpaços (4,4), Alfândega da Fé (4,3), Vinhais (4,3), Castro Verde (4,3), Santa Marta de Penaguião (4,3), Ferreira do Zêzere (4,3), Sardoal (4,2), Vila Nova de Paiva (4,2), Aguiar da Beira (4,2), Barrancos (4,2), Mértola (4,2), Torre de Moncorvo (4,2), Mação (4,2), Pedrógão Grande (4,2), Alcanena (4,1), Mortágua (4,1), Torres Novas (4,1), Estremoz (4,1), Seia (4,1), Sousel (4,1), Proença-a-Nova (4,1), e Fornos de Algodres (4,1).

    Como explicar estes valores? É certo que o envelhecimento populacional é uma variável relevante – e, em regra, onde há mais idosos, há mais incidência de doenças oncológicas. Mas esta explicação, só por si, é insuficiente. Há concelhos igualmente envelhecidos que registam taxas de mortalidade por cancro bem abaixo da média. A diferença não se resume à idade.

    Importa, por isso, levantar outras hipóteses. Poderão estar em causa factores ambientais, como a existência de antigas explorações mineiras abandonadas e mal descontaminadas, solos ou lençóis freáticos com presença de metais pesados ou substâncias cancerígenas, ou mesmo contaminação da água potável. Também a qualidade da alimentação – fortemente dependente de padrões económicos e culturais locais – pode influenciar o risco de doença oncológica, sobretudo quando associada ao consumo excessivo de carnes processadas, deficiente ingestão de vegetais frescos, ou exposição a pesticidas.

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    Outros factores, de natureza sistémica, poderão igualmente estar a contribuir. A escassez de rastreios organizados em tempo útil, como os do cancro da mama, do colo do útero ou do cólon e recto, impede diagnósticos precoces. E quando o diagnóstico chega tarde, o prognóstico agrava-se. Acresce, em muitos destes concelhos, a distância significativa até unidades hospitalares com oncologia, radioterapia ou cirurgia especializada, criando barreiras de acesso que nem sempre se vencem com ambulâncias. O tempo e o custo das deslocações – muitas vezes em transportes públicos escassos ou inexistentes – funcionam como obstáculos reais ao tratamento.

    Mesmo os circuitos de referenciação médica podem falhar, ou ser excessivamente lentos, sobretudo quando os centros de saúde locais operam com falta de clínicos experientes, ou quando os doentes são deixados meses à espera por uma consulta hospitalar. E não é difícil imaginar que, nos meios mais isolados e envelhecidos, o desânimo ou a resignação perante a doença também contribuam para o diagnóstico tardio e para a morte precoce.

    Mas a pergunta essencial mantém-se: se os dados estão disponíveis, se os números denunciam estes focos de mortalidade excessiva, porque não se actua?

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde.

    Porque não há, no seio da Direcção-Geral da Saúde ou das administrações regionais, uma estratégia específica de vigilância e intervenção dirigida a estes territórios vulneráveis? Quantas destas mortes seriam evitáveis com uma política pública de saúde baseada em evidência, em vez de assente numa gestão inercial de silêncios e rotinas?

    A resposta é dolorosamente simples: porque ninguém quer saber. Porque a saúde pública em Portugal continua refém de um paradigma burocrático, preguiçoso e ineficaz. Porque temos dados – dados extraordinários, únicos até – e não os usamos. E porque, acima de tudo, nos habituámos à ideia de que as mortes por doença são inevitáveis e, portanto, inquestionáveis.

    A verdade, porém, é que há mortes que podiam ser evitadas. Há vidas que podiam ter sido salvas. Se houvesse uma política de rastreios adequada em zonas de risco. Se houvesse vigilância epidemiológica baseada em dados reais. Se houvesse uma rede de saúde que respondesse proporcionalmente aos riscos de cada território. Se houvesse coragem para enfrentar a evidência e para corrigir erros.

    Em Portugal, acredita-se que se ninguém ouvir uma árvore a cair, então ela nunca caiu. É uma filosofia confortável, que iliba os responsáveis e embala as consciências. Mas a árvore caiu. E com ela, muitas vidas.

    person holding amber glass bottle

    A questão que importa agora colocar é esta: quantas dessas mortes foram provocadas, não por um tumor implacável, mas por um Estado indiferente? Quantos diagnósticos falhados? Quantas oportunidades perdidas de prevenir? Quantas mortes, afinal, foram produzidas pela inacção?

    E mais: quantas mais ainda virão? Porque, enquanto se esconderem os dados, enquanto se impedirem jornalistas, investigadores e cidadãos de saber o que se passa realmente, continuaremos a viver numa república em que o sangue escorre em silêncio pelas estatísticas. E a sua morte – sim, a sua – pode ser apenas mais uma célula neste organismo doente que se convencionou chamar sistema nacional de saúde.

  • Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM

    Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM


    Hoje, o Correio da Manhã, com difusão posterior pela CMTV, dirigido pelo jornalista Carlos Rodrigues, decidiu noticiar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista passou “cartão a ex-PJ cadastrado”, fazendo referência ao facto de essa pessoa se tratar de João Pedro de Sousa, que efectivamente obteve o título de Colaborador – título distinto do de Jornalista – a pedido do PÁGINA UM, e particularmente de mim.

    O passado de João de Sousa não é segredo nem ele o esconde – e disso mesmo temos falado no podcast ‘A Corja Maldita‘, em que, com a minha moderação, ele participa com o advogado Miguel Santos Pereira. A sua experiência, como consultor forense, será de enorme utilidade para o PÁGINA UM, sobretudo em temas de Justiça, e particularmente no acompanhamento de julgamentos relevantes, como o dos Anjos vs. Joana Marques (a sua crónica inaugural teve mais de 140 mil leituras) ou o de José Sócrates. Nesta fase, João de Sousa recolherá informação e escreverá crónicas ou artigos de opinião.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, durante uma conferência em que a Medialivre prestou serviços à autarquia de Lisboa, usando jornalistas, a troco de quase 150 mi euros.

    Tenho perfeita noção dos bastidores da imprensa (e dos incómodos causados pelas nossas notícias nos grupos de media) e da Justiça, e por isso das intenções deste tipo de notícias. Mas não deixa de me suscitar cinco perplexidades ter a notícia sido publicada no Correio da Manhã (CM), e difundida na CMTV, órgãos de comunicação social aos quais hoje se remeteu um pedido de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa.

    Primeira perplexidade: o CM foi o primeiro órgão de comunicação social a contar com João de Sousa como colaborador – justamente bem pago – ainda enquanto cumpria pena em 2015. Presumo que lhe reconhecia valor.

    Segunda perplexidade: o título e texto assinado por Miguel Azevedo (que saberá, presume-se, a diferença entre “jornalista” e “colaborador”) denotam um tom claramente depreciativo, sugerindo indisfarçada oposição à reabilitação e reinserção social. Ao invés, até prova em contrário, não discrimino profissionalmente quem procura recomeçar com dignidade. João de Sousa foi libertado em 2018 e não teve qualquer condenação a partir dessa data, sendo reconhecido como consultor forense.

    Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Sónia Trigueirão, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso. A primeira destas jornalistas até já foi condenada ao pagamento de uma coima pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) por práticas discriminatórias. A nenhum destes jornalistas foi retirada a legitimidade de deter o título de jornalista — mesmo se o crime foi cometido como jornalista.

    Quarta perplexidade: fui eu, enquanto director do PÁGINA UM, quem decidiu solicitar à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a acreditação de João de Sousa como colaborador – e não como jornalista –, precisamente por uma questão de transparência, responsabilidade e acesso legítimo a fontes de informação. Ao contrário de outros, não temos ‘toupeiras’ nem ‘telhados de vidro’. A CCPJ limitou-se a aplicar a lei: negar-lhe a acreditação seria incorrer numa injustificada discriminação que seria legalmente inadmissível.

    Quinta perplexidade: o CM, que recorre com frequência aos seus jornalistas para executar contratos de prestação de serviços, pagos por entidades externas — situação manifestamente incompatível com o Estatuto do Jornalista —, não parece indignar-se com esse seu modus operandi. Mais surpreende, pois, que seja precisamente este jornal a criticar a emissão pela CCPJ de um simples cartão de colaborador do PÁGINA UM, usando uma página inteira.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

  • CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    A fronteira entre informação, entretenimento e publicidade continua perigosamente diluída na grelha da CMTV, canal detido pela Medialivre – grupo de comunicação social com Cristiano Ronaldo entre os seus accionistas de referência. E, desta vez, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu não ficar indiferente: após analisar uma emissão do programa Manhã CM, transmitida em directo no passado dia 3 de Março, instaurou um processo de contra-ordenação por violação grave da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido (LTSAP).

    Em causa está a promoção encapotada da inauguração de um supermercado Lidl em Odivelas, sem qualquer aviso aos telespectadores de que se tratava de conteúdo publicitário. A coima prevista poderá atingir os 150 mil euros, conforme estipulado pela legislação aplicável.

    Num estilo de reportagem jornalística, a CMTV nem avisou os telespectadores de que se tratava de publicidade. A ‘brincadeira’, se a lei se aplicar com rigor, pode custar-lhe 150 mil euros.

    A rapidez da deliberação – cerca de um mês – é invulgar e revela a gravidade atribuída pela ERC à infracção. No documento a que o PÁGINA UM teve acesso, a entidade reguladora descreve em detalhe a forma como a CMTV transformou um suposto momento de entretenimento matinal numa acção promocional descarada. Em directo do novo espaço comercial, uma apresentadora do canal, com pose de jornalista, exaltou o local como “um espaço moderno, totalmente renovado”, afirmando ainda que “esta loja conta com um investimento de nove milhões de euros (…). Já sabe que é aqui que pode encontrar a melhor qualidade ao melhor preço”.

    Durante a emissão, a apresentadora entrevistou clientes visivelmente seleccionados, cujos testemunhos reforçavam o tom publicitário: “Está muito bem, está muito grande e com muita variedade de produtos”. As imagens mostravam o interior da loja, produtos nas prateleiras e respectivos preços, acompanhadas de mensagens no ecrã como “Lidl Portugal”, “Nova loja em Odivelas”, “Frutas e legumes sempre frescos” e “Investimento de 9 milhões de euros”.

    O programa não se ficou por aí. Pouco depois, foram exibidas imagens de um aparelho de audição da marca Philips, que ocupava cerca de metade do ecrã, com a legenda: “Audição com estilo? Sim, é possível”. Em momento algum foi identificado que se tratava de publicidade, colocação de produto ou ajuda à produção – exigências legais obrigatórias.

    A inauguração do Lidl de Odivelas em Março deste ano está ainda no medialivre Boost Solution, dedicado a publicidade, mas a emissão não avisou que era publicidade e ‘deu ares’ de se tratar de uma peça jornalística.

    A análise da ERC é taxativa: as referências exibidas tinham inequívoco carácter promocional, utilizavam linguagem elogiosa e destacavam vantagens comerciais. Mais grave ainda, essas inserções ocorreram sem qualquer enquadramento legal. O regulador recorda que a publicidade televisiva deve ser “facilmente identificável como tal e claramente separada da restante programação”. E sublinha que a colocação de produto “não pode influenciar os conteúdos e a sua organização na grelha de programas (…) de modo que afecte a responsabilidade e a independência editorial do operador de televisão”.

    Apesar da possível coima, o episódio parece antes indicar uma prática reiterada da Medialivre, que, sob pretextos informativos ou lúdicos, tem acumulado casos de ilegalidade e promiscuidade. Ainda recentemente, o PÁGINA UM revelou que, sob o disfarce de um ciclo de debates intitulado “Uma Cidade para Todos”, a Câmara Municipal de Lisboa pagou 147.600 euros à Medialivre por “serviços” que incluíram a presença do próprio director editorial do grupo, Carlos Rodrigues.

    A jornalista Daniela Polónia desempenhou o papel de ‘mestre-de-cerimónias’ e o jornalista João Ferreira assumiu funções de moderador contratualizado, num evento que não contou com qualquer representante da oposição a Carlos Moedas.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, na conferência paga pela Câmara Municipal de Lisboa á sua empregadora, a Medialivre. A jornalista Daniela Polónia, ao seu lado, foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    No ano passado, a ERC instaurou igualmente um processo de contra-ordenação à Medialivre por uma campanha de autopromoção do Correio da Manhã disfarçada de reportagem jornalística. O episódio decorreu numa papelaria e foi protagonizado por uma jornalista estagiária, em violação flagrante das normas editoriais, onde se falava de cupões de desconto.

    Ainda mais grave foi, em 2023, a celebração de 11 contratos com autarquias para as comemorações dos 10 anos da CMTV. Neste caso, o canal por cabo da Medialivre recebeu mais de 200 mil euros para promover municípios em programas de entretenimento e informação. A troco de valores entre os 20 mil e os 25 mil euros, as autarquias puderam indicar locais e pessoas a entrevistar – incluindo os próprios autarcas –, e até foram definidos os horários dos blocos noticiosos, como previsto nos cadernos de encargos consultados pelo PÁGINA UM. Nessas emissões, o jornalista Francisco Penim, ex-director de programas da SIC e também da CMTV, conduziu os programas, acompanhado da jornalista Sofia Piçarra. Nenhuma sanção conhecida foi aplicada a estas promiscuidades por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ).

    Em 2023, os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias de 10 emissões pagas por autarquias, elogiando os concelhos e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos. A ERC e a CCPJ ainda não tomaram decisões definitivas sobre estas promiscuidades que descredibilizam o jornalismo.

    O exemplo mais extremo de promiscuidade registou-se no programa informativo Falar Global, onde o então jornalista Reginaldo Rodrigues de Almeida promovia entidades que, simultaneamente, contratavam os seus serviços através da empresa Kind of Magic. O conflito de interesses era total: jornalistas a fazerem contratos privados com fontes de informação para lhes dar visibilidade num espaço supostamente editorial.

    A reincidência é, pois, notória. Mas o verdadeiro problema reside sobretudo na complacência institucional: mesmo perante actos reiterados de promiscuidade e publicidade disfarçada, as sanções concretas tardam – o que, na prática, legitima o jornalismo vendido ao melhor patrocinador. Com efeito, nenhum dos referidos processos de contra-ordenação à Medialivre, levantados ainda sob liderança de Sebastião Póvoas, foram concluídos pelo Conselho Regulador da ERC agora liderado por Helena Sousa.

  • Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Há números que desmentem de forma irrefutável o discurso político da coesão territorial. E o acesso aos serviços de urgência, através do tempo gasto entre a residência e o hospital mais próximo, é um dos mais eloquentes. Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este mês e relativos ao ano de 2022, um quarto da população portuguesa demora mais de 21,5 minutos de automóvel ligeiro a chegar ao hospital com urgência mais próximo. A mediana nacional, que representa o tempo abaixo do qual está metade da população, situa-se nos 12,7 minutos.

    Mas estes valores médios são como o caso do frango comido por uma só pessoa, enquanto outra passa fome, porque, de forma enganosa, a Estatística diz que cada uma comeu meio frango. De facto, os valores nacionais na rapidez de acesso às urgências escondem realidades profundamente assimétricas entre regiões, distritos e concelhos. Por exemplo, considerando o tempo mediano de 12,7 minutos, na verdade há 87 concelhos em que esse tempo é inferior, mas 222 municípios onde é superior; em alguns casos mais de cinco vezes superior.

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    Nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, a resposta hospitalar está à distância de um curto passeio de carro. Em Lisboa, por exemplo, a mediana é de apenas 4,3 minutos, enquanto no Porto é de 5,5 minutos. Ou seja, metade da população destes concelhos demorava, no máximo, esse tempo para chegar a uma urgência hospitalar.

    Um total de 11 municípios apresentava tempos inferiores a 5 minutos de distância para metade da população: Amadora e Barreiro (4,8 minutos), Lisboa, Elvas e Lagoa, nos Açores (4,3), Espinho (4,2), São João da Madeira (3,7), São Brás de Alportel (3,5) e Sines (2,7). Este concelho alentejano é, aliás, aquele que melhor situação apresenta a nível nacional, uma vez que somente 25% da população gasta mais de 4,2 minutos para chegar à urgência hospitalar. Esse indicador é mesmo melhor do que o de Lisboa, já que este tempo diz respeito ao terceiro quartil.

    Em contraste, em muitas regiões de concelhos mais rurais e de baixa densidade populacional, particularmente no interior Norte, Centro e Sul do país, as distâncias para as urgências hospitalares tornam-se obstáculos que podem ser fatais.

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    A região do Alentejo apresenta o quadro mais grave. A mediana de acesso é de 30,6 minutos, e 25% da população demora mais de 40,5 minutos a alcançar cuidados urgentes. Este cenário estende-se ao interior Centro — sobretudo nas Beiras e na Serra da Estrela — e a vários concelhos da região Norte oriental.

    O problema agudiza-se ao nível concelhio. Um total de 15 concelhos portugueses regista tempos medianos superiores a 45 minutos, o que significa que metade da população nesses territórios está a mais de 45 minutos de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (distrito de Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Pampilhosa da Serra (Coimbra), Odemira (Beja), Mértola (Beja), Ourique (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), São João da Pesqueira (Viseu), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    Estes territórios, localizados em regiões de fraca densidade populacional e débil investimento público, representam zonas de alto risco em termos de equidade no acesso à saúde. Mas o retrato é ainda mais inquietante quando se analisa o terceiro quartil (Q3), que indica o ponto abaixo do qual se encontra 75% da população. Em dez concelhos, pelo menos 25% da população vive a mais de uma hora de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    No caso de Barrancos, o cenário é extremo: toda a população demora cerca de 90 minutos para chegar a uma urgência. Nos concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Miranda do Douro e Melgaço, mais de 75% da população demora uma hora a chegar às urgências. Com tempos entre 45 minutos e uma hora estão ainda mais de 75% da população dos concelhos de Alcoutim (58,6 minutos), Penedono (57,8), Figueira de Castelo Rodrigo (57,2), Sernancelhe (56,3), São João da Pesqueira (52,2), Vila Nova de Foz Côa (51,7), Mogadouro (49), Odemira (44), Moura (47,5), Mora (51,1), Pampilhosa da Serra (44,7), Mourão (51,3), Mértola (45), Mêda (48,6), Montalegre (40,8), Aguiar da Beira (47,9), Ourique (46,1), Monção (45,7), Porto Moniz (41,8), Oleiros (44,7), Sousel (44,4) e Almodôvar (45,8).

    Apesar de este ser um indicador pouco relevado quando se analisam as políticas de saúde pública — e sobretudo a expectativa de vida em função da residência —, estas discrepâncias colocam em causa o princípio constitucional da igualdade de acesso à saúde.

    Quando uma pessoa que sofre um enfarte em Lisboa pode estar, em minutos, numa sala de hemodinâmica, enquanto outra em Penedono depende de um percurso de mais de uma hora por estradas sinuosas, a universalidade do Serviço Nacional de Saúde revela-se uma ficção estatística.

    A estas disparidades somam-se outros factores, como a carência de transportes públicos nas zonas mais afectadas, o encerramento progressivo de unidades hospitalares periféricas, e a centralização cada vez maior de recursos humanos e técnicos nos grandes centros urbanos.

  • Força Aérea paga 80 mil euros para uma empresa mostrar drones luminosos

    Força Aérea paga 80 mil euros para uma empresa mostrar drones luminosos

    Se hoje o primeiro-ministro Luís Montenegro prometeu aos seus parceiros da NATO, na cimeira realizada nos Países Baixos, que Portugal passaria a investir “acima de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em Defesa” já em 2025 — com a mira apontada a uns futuros 3,5% até 2035 —, a Força Aérea Portuguesa já deu mostras de estar em voo picado para esse gasto orçamental. Por isso, e para celebrar a nova rota da soberania nacional, vai dar um espectáculo de luzes no céus da Figueira da Foz. Com os drones a voar, também voará dos cofres públicos cerca de 80 mil euros, incluindo IVA.

    Com efeito, no âmbito das celebrações do Dia da Força Aérea, este ramo militar achou boa ideia mostrar o seu potencial contratando a empresa Ignitionconcept para a realização de um espectáculo artístico com drones luminosos a partir dos últimos minutos da próxima segunda-feira na praia do Forte do Cabedelinho, na Figueira da Foz. No dia anterior, também pelas 23h55, haverá um “treino” geral da exibição. E mesmo não se sabendo quantos drones participarão, nem tampouco o tipo de imagens ou efeitos visuais que serão projectados no céu atlântico, porque o contrato por ajuste directo divulgado no Portal Base não integra, como deveria, o caderno de encargos.

    Cartaxo Alves, ao centro, é o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.

    Em todo o caso, esta contratação marca um salto vertiginoso nos custos destes eventos: a mesma empresa Ignitionconcept realizou em 2024 um espectáculo similar para a Força Aérea em Portimão, mas cobrando 30 mil euros (já com IVA), o que representa, assim, um aumento de 167% no preço final. Uma subida muito acima da própria trajectória do investimento em Defesa prometido pelo Governo, que passará, em termos relativos, de 2% para 3,5% do PIB, o que significará ‘apenas’ um acréscimo de 75%. A criatividade orçamental, pelos vistos, está a ganhar asas mais rápido do que os caças F-16.

    Criada em 2019 na Charneca da Caparica, a Ignitionconcept apresenta-se como uma empresa de entretenimento e marketing, dedicada à criação de “espectáculos de drones de luz personalizados, adaptados especificamente para a ocasião”, onde se promete “transformar a sua visão em realidade”. Num dos vídeos promocionais do seu site, surge uma exibição durante o festival NOS Alive de 2024, onde dezenas de drones desenham no céu o logótipo de uma marca de cerveja. Também tem realizado espectáculos para entidades privadas, tanto em Portugal como no estrangeiro. A componente artística pode ser discutível, sendo uma nova moda alternativa à pirotecnia, mas a publicitária é inegável.

    Nos últimos dois anos, esta empresa garantiu, entretanto, uma dezena de contratos públicos, todos por ajuste directo, a maioria deles com municípios, totalizando quase 378 mil euros com IVA. O primeiro foi com a autarquia de Óbidos, em Maio de 2023, para um espectáculo de dois dias, no valor de 19.900 euros (acrescidos de IVA à taxa de 23%), o que totaliza cerca de 24.477 euros. No mesmo ano, o município da Lagoa contratou a Ignitionconcept por 32.546 euros (IVA incluído).

    No ano passado, a empresa reforçou a sua presença no sector público com sete contratos — e destaque para Lisboa, onde conseguiu dois ajustes directos com a Câmara Municipal e com a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), por um valor total de cerca de 82 mil euros, que envolveu quatro eventos. O maior desses contratos, segundo os registos públicos, inclui espectáculos no 25 de Abril, nas Festas de Lisboa e no Natal. O outro, realizado directamente com a autarquia lisboeta, serviu para anunciar os finalistas dos prémios “Lisboa Innovation for All” — uma iniciativa no âmbito da Capital Europeia da Inovação.

    Além disso, a Câmara Municipal do Porto também recorreu aos serviços desta empresa para celebrar os 10 anos da marca “Porto”, pagando um pouco mais de 58 mil euros. Já Vila do Conde fechou o ano com um espectáculo natalício aéreo da Ignitionconcept, por 18.450 euros.

    Imagem do espectáculo dos drones luminosos no ano passado no Dia da Força Aérea na Praia da Rocha, em Portimão. Foto: EMFA.

    Ainda assim, nenhum dos contratos celebrados até hoje se aproxima do valor de 80 mil euros (IVA incluído) agora adjudicado pela Força Aérea Portuguesa. Uma verba que, em si mesma, daria para repetir duas vezes o espectáculo de 2024 e ainda sobraria para uma largada de pombos ou para um evento de porco de espeto muito superior ao que Gouveia e Melo levou para comemorar o Dia da Marinha quando se tornou líder do Estado-Maior da Armada.

    Destaque-se que o contrato da Força Aérea carece também de transparência ao nível do nome do oficial que assinou o contrato, pois este surge ocultado no Portal Base, surgindo apenas a indicação genérica “COR/ADMAER”, com a justificação de estar a actuar “no exercício das competências subdelegadas pelo Vice-Chefe do Estado-Maior da Força Aérea”. Esta ocultação de assinaturas tem sido sistematicamente permitida pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), a entidade pública que gere o Portal Base. De facto, não existe qualquer fundamento legal para rasurar a identidade dos outorgantes, uma vez que se está perante actos administrativos no exercício de funções públicas.

    Seja como for, e embora a Defesa Nacional não tenha (ainda) comprado drones armados ou de reconhecimento militar, parece estar bastante empenhada no ramo do entretenimento aéreo nocturno. O espectáculo de dia 30 de Junho, às 23h55, será assim um prenúncio luminoso das novas prioridades estratégicas de Portugal no seio da NATO: mais investimento, mais voos — e mais luzes.

    Apesar de possuir ‘equipamentos’ que enchem o olho, a Força Aérea achou que pode fazer voar 80 mil euros do erário público para mostrar drones que nem são seus. Foto: EMFA.

    De acordo com uma consulta do PÁGINA UM, o preço de um drone profissional para espectáculos desta natureza está compreendido entre 2.000 e 5.000 euros, dependendo do modelo, sistema de iluminação e autonomia de voo. Um espectáculo médio pode envolver entre 50 a 200 drones, o que significa que o custo de aquisição dos equipamento pode variar entre 100 mil e 1 milhão de euros, embora as empresas prestadoras usualmente operem em regime de aluguer ou leasing, diluindo os custos por evento.

    Assim, um espectáculo com 150 drones pode custar, em média, 30 a 50 mil euros, o que coloca o valor pago pela Força Aérea no patamar superior do mercado. Mas a questão que se coloca será mais esta: será que a Força Aérea já tem tão pouca coisa para mostrar que necessita de um empresa para fazer um ‘foguetório’ efémero?

  • ‘Taxa de promiscuidade’: coima por publicidade escondida em 16 artigos jornalísticos custa apenas 0,8% do valor dos contratos

    ‘Taxa de promiscuidade’: coima por publicidade escondida em 16 artigos jornalísticos custa apenas 0,8% do valor dos contratos

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acaba de confirmar, com mais de três anos de atraso, aquilo que o PÁGINA UM denunciou desde Maio de 2022: o grupo Trust in News (TIN), detentor da Visão, Visão Júnior e Jornal de Letras, veiculou pelo menos 16 conteúdos publicitários sob a aparência de jornalismo, sem qualquer identificação como tal, violando a Lei de Imprensa.

    Mas a ‘condenação’ hoje revelada através de deliberação não só surge tarde como peca por manifesta brandura — e consagra, na prática, a instituição de uma espécie de “taxa de promiscuidade jornalística” de valor simbólico. Com efeito, cada infracção — isto é, cada acto publicitário disfarçado de notícia jornalística — foi sancionada com a módica coima de mil euros. No total, seriam 16 mil euros. Mas mesmo assim a Trust in News ainda beneficiou de um ‘desconto de grupo‘ por parte da ERC, ficando a coima final em apenas 2.000 euros.

    A gravidade do caso não se resume à tímida reacção do regulador. Segundo os dados então recolhidos pelo PÁGINA UM e agora confirmados pela própria ERC, só os contratos celebrados entre a TIN Publicidade (empresa do grupo) e o grupo Águas de Portugal — no âmbito dos chamados Prémios Verdes VISÃO + AdPascenderam a 120 mil euros, pagos para assegurar conteúdos promocionais com roupagem jornalística. Mais escandaloso ainda é o caso do Instituto Camões, que assinou contratos de publicidade no valor de 124 mil euros com o grupo de media entre 2020 e 2022, garantindo páginas inteiras de propaganda institucional na revista JL – Jornal de Letras, mascaradas de suplemento editorial. Numa das edições inclui-se mesmo a ‘notícia’ da tomada de posse em 2020 como presidente do Instituto Camões de João Ribeiro Cardoso, que actualmente é o embaixador português na Índia.

    Por regra, e supostamente para dar credibilidade aos conteúdos, levando a crer tratarem-se de artigos idóneos e independentes, os textos eram redigidos por jornalistas com carteira profissional activa, entre os quais se destaca Luís Ribeiro. Este jornalista da Visão desde 1999, que coordena a secção de Ambiente da revista detida por Luís Delgado, e que exerce funções como comentador de assuntos internacionais da SIC, é um dos nome recorrentes na deliberação da ERC.

    A sua assinatura consta como autor de cinco artigos pagos no âmbito de um contrato celebrado com a Águas de Portugal, com “alto patrocínio” do Presidente da República. Os artigos exaltavam intervenções de ministros, do presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e de académicos seleccionados como premiados. E ainda um artigo sobre alterações climáticas. Tudo apresentado sob um formato de notícia normal, sem qualquer indicação visível de que se tratava de publicidade paga.

    A própria ERC reconhece, com linguagem jurídica contida mas inequívoca, que estes textos “consubstanciam publicidade”, tendo sido publicados sem serem identificados como tal, podendo assim “ser facilmente confundidos com um texto de cariz jornalístico, pelo seu estilo de mensagem, organização e tratamento gráfico”. Mais: a deliberação destaca que a Trust in News actuou de “forma livre e consciente”, tendo obtido “benefício económico” directo com a prática ilícita — e que, apesar de alertada e notificada, “não revelou arrependimento”.

    Luís Ribeiro, coordenador da secção de Ambiente da Visão e comentador da SIC fez conteúdos publicitários para execução de um contrato de prestação de serviços da empresa pública Águas de Portugal.

    Mas apesar deste reconhecimento, os efeitos práticos são próximos de nulos. A coima aplicada, de dois mil euros no total, equivale a 0,8% do valor obtido nos contratos acima referidos. A mensagem que resulta é clara: o ‘crime’ compensa, como já começou a ser evidente em situações similares com a Impresa e o Público. Pagar alguns milhares de euros ao regulador sai assim mais barato do que fazer campanhas publicitárias declaradas com custos transparentes — e permite alcançar os leitores com muito maior impacto, explorando a suposta credibilidade do jornalismo.

    Mais grave, ainda, é o facto de esta condenação nada alterar para os jornalistas implicados. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), já contactada pelo PÁGINA UM para situações similares, assume que não pode aplicar sanções de natureza deontológica ou disciplinar passados mais de 12 meses sobre a data dos factos. Ou seja, nenhum dos jornalistas que assinou conteúdos publicitários sem identificação — incluindo Luís Ribeiro, a quem o PÁGINA UM solicitou entretanto um comentário — poderá ser responsabilizado, podendo continuar a exercer funções sem qualquer impedimento, como se nada tivesse acontecido. A profissão de jornalista, nestes casos, tornou-se mercadoria com prazo de validade ético limitado a um ano.

    Este episódio põe em causa a própria integridade do sistema de regulação dos media. A ERC, ao aplicar uma multa simbólica, reconhece a violação da lei, mas não propõe qualquer mecanismo de prevenção, nem exige medidas correctivas às publicações envolvidas. Os conteúdos não foram retratados, os leitores não foram informados de que leram publicidade disfarçada, e os jornalistas implicados não foram suspensos ou admoestados. O sistema tolera, normaliza e, no limite, recompensa a promiscuidade.

    Deliberação da ERC identifica os artigos publicitários, cinco dos quais da autoria do jornalista Luís Ribeiro, cuja acção, apesar de ilegal, ficará impune porque já presceveu,

    É por isso legítimo afirmar que se consolidou, em Portugal, uma prática de jornalismo a recibo verde institucional, em que reportagens são vendidas por contrato e redigidas por profissionais credenciados, com a conivência tácita das entidades públicas financiadoras, dos grupos de media e do próprio regulador. A chamada “taxa de promiscuidade” — agora quantificada em mil euros por notícia disfarçada — aparenta ser agora o preço a pagar para transformar a imprensa em boletim oficial ao serviço de quem paga melhor. E com desconto.

    No fim, resta apenas uma conclusão: enquanto os jornalistas continuam a mercadejar a profissão, e os reguladores a fingir que punem, a confiança do público na imprensa esvai-se sem remédio. E talvez seja esse o preço mais alto de todos — embora, esse sim, ninguém o queira pagar.

  • Portugal terminou o ano passado com 3.282 centenários

    Portugal terminou o ano passado com 3.282 centenários

    Nascer em Portugal em 1924 era, à luz dos padrões actuais, quase um acto de heroísmo biológico. Ou, no mínimo, um compromisso com a precariedade. Nesse ano, há precisamente um século, vieram ao mundo 207.440 crianças em território nacional. Mas o berro inaugural de cada uma delas não significava uma entrada garantida no mundo dos vivos. A taxa de mortalidade infantil era então um verdadeiro flagelo: mais de 15% dos nascidos morriam antes de completar um ano. Para se ter uma ideia da brutalidade, essa percentagem é quase 50 vezes superior à actual — e não, não é erro de impressão: a taxa de mortalidade infantil ronda agora os 3 por mil nascimentos, ou seja, 0,3%.

    A vida há um século era breve, rústica, sem antibióticos nem ecografias, com mais rezas do que diagnósticos. Morria-se de qualquer maleita, e as doenças infecciosas grassavam entre camadas sociais e faixas etárias com uma imparcialidade assassina. Chegar à velhice era excepção e não destino: a esperança média de vida rondava então os 40 anos. Alguns contrariavam esse destino, mas eram poucos. No início da década de 20 do século passado, a população portuguesa com mais de 75 anos era residual, inferior a 2%. O envelhecimento demográfico era uma impossibilidade estatística.

    Mas houvesse que conseguisse contrariar esse destino, mesmo que poucos. Entre os mais de duzentos mil nascidos em 1924, houve quem tenha resistido à tuberculose, às disenterias, à guerra, à fome, à ditadura, às gripes, aos internamentos, às quedas no quintal e, seguramente, à pandemia da covid-19, que deixou idosos sem consultas e diagnósticos durante dois anos. E houve quem tenha apagado — nem que fosse com sopro simbólico — as cem velas em 2024.

    Segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o número de centenários em Portugal aumentou, entre 2023 e 2024, de 3.149 para 3.282, ou seja, mais 133 resistentes. Mas esse é o número líquidos, considerando o balanço entre quem chegou aos 100 anos e aqueles que se finaram com mais do que essa idade, porque a partir daí a taxa de mortalidade é extremante elevada. Ora, considerando as denominadas tábuas de mortalidade, como a taxa de sobrevivência de uma mulher com 99 anos chegar aos 100 anos é de apenas 57% e a de um homem nas mesmas condições é de 52%, significa que quase 1.200 pessoas em 2024 conseguiram alcançar as 100 ‘primaveras’.

    Certo é que, segundo os dados do INE, de entre 3.282 centenários que chegaram ao final do ano de 2024, cerca de 80% são mulheres: 2.686, para sermos precisos. Os homens — apenas 596 — continuam a confirmar que a masculinidade é biologicamente menos duradoura, e que a questão do ‘sexo forte’ não encontra solidez na longevidade.

    Não se conhece, por razões de sigilo estatístico, o concelho exacto onde residem as criaturas de espantosa longevidade. Mas sabe-se onde se concentram proporcionalmente: o Alentejo e o Centro lideram, com 5,0 e 4,5 centenários por cada 10 mil habitantes, respectivamente. O rácio médio nacional é de 3,1. No outro extremo, temos os Açores, com 1,9, e a Grande Lisboa, com 2,3, cujos residentes, talvez demasiado ocupada com trânsito e stress, não têm grandes chances de longos e tranquilos envelhecimentos.

    Número de residentes em Portugal com 90 e m ais anos no final de 2024. Fonte: INE.

    Se os centenários são as estrelas da longevidade, os seus irmãos mais “novos” formam um exército ainda mais crescente: os superidosos, aqueles que navegam entre os 90 e os 99 anos, e que, salvo desastre, alimentam estatisticamente o clube dos centenários do futuro. Em 2024, o INE identificava 26.612 pessoas entre os 95 e os 99 anos, e mais 108.239 entre os 90 e os 94. Ou seja, 137.733 portugueses tinham mais de 90 anos, correspondendo a 1,3% da população total. Aqui, também, as mulheres são dominantes: sete em cada dez nonagenários e centenários são do sexo feminino.

    Este grupo etário tem crescido de forma notável: mais 11 mil pessoas em relação a 2021, que confirma que a longevidade, que durante séculos foi um acaso, é hoje uma probabilidade crescente. E, para confirmar essa tendência, basta recuar algumas décadas. Em 1970, Portugal tinha menos de 8,7 milhões de habitantes e apenas 43.981 pessoas com mais de 85 anos — isto é, menos de 0,6% da população. Foram precisos 23 anos para que esse grupo passasse a representar mais de 1% do total populacional, em 1993, quando se ultrapassaram os 100 mil indivíduos com mais de 85 anos.

    A barreira dos 200 mil foi vencida em 2009, e os números continuaram a subir com determinação. Em 2023, o INE contabilizava 379.366 pessoas com mais de 85 anos, e em 2024 esse número subiu para 388.556, representando 3,6% da população portuguesa. Ou seja, em pouco mais de meio século, o número de pessoas com mais de 85 anos multiplicou-se por nove em termos absolutos, e por sete em termos relativos.

    Evolução da população em Portugal com mais de 85 anos desde 1970 até 2024. Fonte: INE.

    Um dado curioso: nem a pandemia da covid-19, que teve impacto significativo nas faixas etárias mais avançadas, travou este crescimento. Entre 2019 e 2023, os números subiram todos os anos: de 343.512 em 2019, para 352.726 em 2020, depois para 362.327 em 2021, 368.507 em 2022, e 379.366 em 2023. Se a tendência se mantiver, é altamente provável que em 2025 o número de pessoas com mais de 85 anos ultrapasse os 400 mil.

    Estes dados não são apenas matéria para estatísticos e demógrafos. Representam um desafio político, económico e cultural de primeira ordem. Um país com quase 400 mil pessoas com mais de 85 anos — e com mais de 130 mil acima dos 90 — não pode continuar a tratar a velhice como uma nota de rodapé nos orçamentos de Estado. A longevidade deixou de ser excepção: tornou-se estrutura demográfica.

    E essa estrutura exige respostas. A começar pela redefinição das políticas de saúde, de habitação, de mobilidade e de apoio social, considerando que a população com maiores necessidades (acima dos 65 anos) já representa mais de 25% da população portuguesa. Neste momento, essa faixa ultrapassa já os 2,7 milhões de habitantes. As instituições, os hospitais, os transportes públicos, os serviços de proximidade não estão ainda preparados para um país que está a envelhecer não apenas em média, mas nos seus extremos. Porque envelhecer não é só viver mais anos — é também poder vivê-los com dignidade, autonomia e significado.

    Evolução da representatividade dos maiores de 85 anos na população portuguesa (número por 10.000 habitantes) desde 1970 até 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Há quem continue a ver os velhos como um problema, uma despesa, um fardo. Mas talvez seja tempo de rever essa ideia. Os centenários não são peso — são testemunho. Cada um deles carrega um século inteiro de história vivida, de resistência biológica e social. Representam o triunfo da vida sobre a precariedade, da ciência sobre a mortalidade, da persistência sobre o acaso.

    E se houve quem, nascido em 1924, tenha conseguido alcançar 2024 com lucidez, apetite e alguma ironia, talvez mereça mais do que uma estatística do INE. Talvez mereça que o país — este mesmo que insiste em falar de futuro com os olhos postos no presente — aprenda finalmente a honrar quem já viu tudo, sobreviveu a quase tudo, e ainda cá está para contar. Até porque, quem nascer hoje, terá ainda mais chances do que os seus pais de ser bisavó ou bisavô, e de ser até trisavó ou trisavô quando fizer 100 anos em 2125.

  • Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta

    Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta


    Há reguladores que regulam mal. Outros que não regulam. E depois há a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) — que se especializou numa nova modalidade institucional: regular às escondidas, pela calada, escamoteando deliberações, omitindo documentos, arquivando processos que nunca chegam a sê-lo formalmente.

    A recente revelação — forçada pelas perguntas do PÁGINA UM — de que o processo de contra-ordenação ao jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, foi discretamente arquivado em Agosto passado sem qualquer deliberação pública, ilustra à saciedade o que se tornou prática no actual mandato de Helena Sousa: uma cultura de opacidade e conivência institucional com os grandes grupos de comunicação social.

    Importa recordar que este processo nascera de uma deliberação formal da própria ERC, em Novembro de 2022, que considerava inequívoca a infracção cometida pelo Público, classificando-a como “muito grave”. O conteúdo em causa era um artigo promocional pago pela Tabaqueira, coincidente com o lançamento do produto de tabaco aquecido IQOS Iluma, e acompanhado de imagens típicas de publicidade camuflada, com a presença destacada do director-geral da empresa. Em termos legais, não havia dúvida para o anterior Conselho Regulador: tratava-se de publicidade ilícita, vedada expressamente pela Lei do Tabaco.

    No entanto, com a mudança de presidência — e a ascensão de Helena Sousa, académica sem experiência jurídica ou percurso em órgãos de regulação —, o que era certo passou a nebuloso. Um processo formal, com deliberação prévia unânime e indícios de contra-ordenação foi eliminado por uma suposta “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação. E pior: sem qualquer explicação voluntária por parte da entidade que, por dever constitucional, deve garantir a liberdade de imprensa e o acesso dos jornalistas à informação.

    Não é caso único. O PÁGINA UM tem sido forçado a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e aos tribunais para obter documentos que a ERC insiste em esconder. Mesmo após pareceres desfavoráveis, o regulador interpõe recursos, como se fosse parte interessada em proteger segredos que deveriam estar ao serviço da cidadania e da fiscalização democrática. Veja-se um caso recente em que, entre outros assuntos, o Tribunal Administrativo de Lisboa intimou a ERC a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos associados com a negócio a venda do JN e TSF (entre outras publicações), cuja deliberação teve 78 rasuras inexplicáveis, apagando como confidencial questões relevantes.

    Exemplo flagrante da falta de transparência da ERC: na autorização do estranho negócio da transmissão / venda de títulos da Global Media à Notícias Ilimitadas aspectos essenciais são escondidos com a palavra CONFIDENCIAL. O Tribunal Administrativo de Lisboa determinou que todos esses elementos deveriam ser acedidos pelo PÁGINA UM, mas a ERC recorreu para a instância superior, mostrando ser adepta do obscurantismo em negócios de media pouco claros.

    Tenho já alguns anos disto para entender que se está perante uma estratégia deliberada da ERC de bloqueio informativo, dirigida especialmente contra jornalistas incómodos e meios não alinhados com os grandes grupos económicos que controlam a imprensa dita de referência.

    A atitude da ERC no processo do Público mostra que a indústria do tabaco, cada vez mais refinada nas suas estratégias de marketing, usa agora os jornais como veículos de promoção “sustentável”, investindo em conteúdos patrocinados, participando em podcasts, colando-se à imagem de inovação tecnológica e responsabilidade social. Com a bênção da ERC, que em vez de sancionar práticas ilegais, arquiva processos às escondidas, transforma “contra-ordenações muito graves” em nada, e cala-se perante perguntas legítimas de jornalistas que fazem o seu trabalho.

    A decisão de não penalizar práticas de publicidade sub-reptícia proibidas por lei junta-se à forma como a ERC tem vindo a aceitar, com passividade cúmplice, contratos de parcerias promíscuas entre grupos de media, empresas privadas e até entidades públicas. As coimas, quando existem, são simbólicas — um teatro jurídico que apenas confirma que, em Portugal, o crime compensa. E é por isso que temos grupos de comunicação social em crise financeira crónica, como a Trust in News, a Global Media ou mesmo a Imprensa, que sobrevivem à custa de publicidade institucional, parcerias obscuras e compadrios com o poder político e económico.

    Se a credibilidade da imprensa anda pelas ruas da amargura, a culpa primordial está precisamente na ERC e no seu Conselho Regulador. Um regulador que se mostra constituído por gente sem qualidade, sem coragem e sem noção da sua função constitucional.

    Helena Sousa, presidente da ERC está ao serviço da liberdade da imprensa ou de interesses pouco claros?

    Ontem, a demissão da presidente Helena Sousa e dos seus comparsas talvez fosse suficiente. Hoje, perante o que se sabe — arquivamentos secretos de processos de contra-ordenação e recusa deliberada de prestar contas —, já nem a demissão basta. Impõe-se, no mínimo, uma auditoria externa e independente ao funcionamento da ERC. E, quiçá, uma responsabilização jurídica dos seus membros, caso se confirme que violaram normas legais e administrativas essenciais.

    A ERC é hoje um caso paradigmático de decadência institucional. Quando o regulador adopta os tiques de prepotência, quando abdica do seu dever de fiscalização, quando protege os fortes e tenta até silenciar os que investigam, vemos que está em curso não uma regulação, mas uma rendição. E é a democracia que fica mais pobre. Porque uma imprensa livre só existe quando há reguladores livres — e não cúmplices — dos poderes que deveriam escrutinar.

  • Entidade Reguladora para a Comunicação Social perdoa em segredo multa por publicidade à Tabaqueira

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social perdoa em segredo multa por publicidade à Tabaqueira

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), actualmente liderado por Helena Sousa, recusa prestar esclarecimentos sobre os motivos que levaram ao arquivamento de forma secreta de um processo de contra-ordenação instaurado contra o jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, resultante da publicação de conteúdos promocionais pagos pela Tabaqueira. A multa poderia atingir um máximo de 250 mil euros.

    A decisão do Conselho Regulador foi tomada em Agosto do ano passado, mas só agora a ERC revelou este facto depois de ter sido questionada pelo PÁGINA UM. Ao contrário do que é exigido por lei, mesmo nos casos de arquivamento, a ERC não tomou a decisão por deliberação, que é obrigatoriamente pública, e os motivos desta decisão permanece envolta em segredo.

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    Porém, indícios de infracção grave tenham sido anteriormente reconhecidos pelo próprio regulador numa prévia deliberação por unanimidade em Novembro de 2022, num mandato anterior à de Helena Sousa, uma professora de Ciências de Comunicação sem qualquer experiência jurídica nem particular sensibilidade sobre as obrigações legais em matéria de regulação administrativa e contra-ordenacional.

    Quando questionada pelo PÁGINA UM sobre a base legal e factual para o arquivamento, a ERC remeteu apenas para uma “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação, recusando, no entanto, enviar o documento. Em alternativa, a entidade sugeriu que fosse apresentado um requerimento ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).

    No entanto, sabe-se que a própria ERC tem, em múltiplas ocasiões, recusado fornecer documentos mesmo após requerimentos formais, o que tem obrigado o PÁGINA UM a apresentar queixas sucessivas à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou a recorrer aos tribunais administrativos — onde, mesmo após decisões desfavoráveis, o regulador insiste em apresentar recursos. Além disso, sendo a ERC a entidade que constitucionalmente tem a função de promover o acesso facilitado dos jornalistas às fontes de informação, não faz sentido que se recuse reiteradamente a satisfazer um pedido concreto e simples sob um acto administrativo.

    No conteúdo comercial, o Público apresentava mesma a fotografia de Marcelo Nico, director-geral da Tabaqueira, com a referência de que fora tirada “durante a apresentação do novo IQOS Iluma“.

    Convém referir, contudo, que a alegada “análise preliminar” da Unidade de Contra-Ordenação não faz qualquer sentido na fase em que se encontrava o processo de contra-ordenação – que fora aberto por uma deliberação e que teria de ser concluído com outra deliberação –, uma vez que existem normas legais a seguir. Nessa deliberação de Novembro de 2022, a ERC tinha sido taxativa ao concluir que o texto promocional do Público, ademais paga pela Tabaqueira, constituía “uma contra-ordenação económica muito grave”.

    Com efeito, ao arquivar agora um processo (que abrira) sem qualquer deliberação formal — como seria obrigatório —, o Conselho Regulador da ERC arrisca estar a contornar normas essenciais, o que fragiliza juridicamente a decisão tomada. Mais grave ainda: ao evitar uma decisão formal e pública, impede-se o escrutínio dos cidadãos e inviabiliza-se uma eventual contestação judicial, deixando no ar suspeitas de favorecimento ou, no mínimo, de falta de rigor institucional.

    Saliente-se que este caso remonta ao início de Outubro de 2022, quando o jornal Público publicou um conteúdo comercial da Tabaqueira, coincidente com o lançamento do sistema de tabaco aquecido por indução IQOS Iluma. O artigo, publicitado como “conteúdo comercial”, elogiava a tecnologia da nova geração da Philip Morris, empresa-mãe da Tabaqueira, e era acompanhado de uma imagens de carácter claramente publicitário, incluindo fotografia do director da Tabaqueira com um novo produto de tabaco lançado poucos dias antes.

    Helena Sousa, presidente da ERC introduziu a ‘modalidade’ de arquivar contra-ordenações pela ‘calada’ e , apesar de liderar a instituição constitucionalmente para promover o acesso dos jornalista à informação, recusa esclarecer os actos administrativos que toma.

    Como o PÁGINA UM noticiou a 14 de Outubro de 2022, o regulador confirmara ter aberto um procedimento contra o jornal do Grupo Sonae por possível infracção da Lei n.º 37/2007, nomeadamente do artigo 14.º-E — que proíbe publicidade e patrocínio a cigarros electrónicos e recargas — e do artigo 18.º, relativo ao patrocínio, considerando tratar-se de “uma contra-ordenação económica muito grave”.

    Um mês mais tarde, a própria ERC, ainda sob o mandato do anterior presidente, Sebastião Póvoas, sustentou, através de deliberação formal, que o conteúdo em causa era inequivocamente promocional, salientando que “estes conteúdos visam um posicionamento das marcas e dos produtos, através de uma prática social encapotada, que não revela os malefícios dos produtos”, ao mesmo tempo que reforçava “a imagem de uma empresa socialmente consciente e atenta aos potenciais consumidores”. O regulador reiterava que, mesmo não se tratando de publicidade tradicional, o artigo promovia “o engagement do leitor com a marca”, o que se enquadraria numa violação clara da lei.

    Na resposta enviada ao regulador, o Público alegava então que os conteúdos patrocinados “não traduzem qualquer incentivo, publicidade ou mesmo promoção aos produtos de tabaco”, sublinhando que o objectivo seria “potenciar a notoriedade e posicionamento da marca ‘Tabaqueira’ enquanto entidade promotora de inovação tecnológica e do desenvolvimento sustentável”. A ERC, porém, descartou em 2022 esta linha de argumentação, recordando que não é admissível dissociar o conteúdo promocional do patrocínio por uma empresa cuja actividade é precisamente a venda de produtos de tabaco — sendo esse tipo de associação expressamente proibido pela legislação desde 2005 para a imprensa escrita.

    Mesmo de forma subliminar, as empresas de tabaco estão legalmente proibidas de fazer publicidade em órgãos de comunicação social, mas agora há sempre a possibilidade do Conselho Regulador da ERC ‘fechar’ os olhos e mandar arquivar em segredo os processos de contra-ordenação… ou, no futuro, nem sequer os abrir.

    Apesar de todos estes elementos, e das anteriores considerações desfavoráveis ao Público constantes no procedimento, a ERC optou deixou o processo de contra-ordenação em ‘banho-maria’ durante mais de 20 meses e em Agosto do ano passado tomou a decisão de arquivar o processo mas sem qualquer deliberação e sem disponibilizar o parecer técnico que suportaria tal decisão.

    Recorde-se que, na mesma semana em que o processo contra o Público foi anunciado, o regulador abriu igualmente processos de contra-ordenação ao grupo Global Media, por quatro inserções patrocinadas pela Tabaqueira: duas no Jornal de Notícias, uma no Diário de Notícias e outra no Dinheiro Vivo. Segundo a ERC, esse processo está na “fase final de tramitação”. Um outro porcesso similart, também de 2022, instaurado contra a Trust in News – que detém, entre outras publicações, a revista Visão – estará ainda a decorrer a fase “para apresentação da defesa escrita”.

    A atitude da ERC em esquecer — e praticamente apagar — um caso flagrante de violação da Lei do Tabaco surge num momento em que a indústria tabaqueira, com a Philip Morris (dona da Tabaqueira) como caso paradigmático, adopta uma estratégia mais subtil e insidiosa: pagar conteúdos comerciais em órgãos de comunicação social — e até participar em podcasts, como sucedeu na semana passada no jornal Sol — para se apresentar como promotora de sustentabilidade e inovação tecnológica.

    Com a ajuda da depauperada comunicação social, a Tabaqueira ‘vende’ hoje a sua imagem como empresa tecnológica, de inovação e até de promoção da saúde. A ERC ‘fecha os olhos’.

    Tudo isto enquanto, sub-repticiamente, promove produtos de tabaco sem combustão, numa tentativa clara de contornar o espírito e a letra da Lei do Tabaco de 2005.

    Neste contexto, o apagamento intencional de um processo de contra-ordenação e a recusa em divulgar de forma voluntária os seus fundamentos à imprensa revelam sinais preocupantes de opacidade por parte do actual Conselho Regulador da ERC — um caso lamentável de sinuosidade institucional, que mina a confiança pública e compromete o papel do regulador como garante da legalidade e da transparência no sector da comunicação social.