Autor: Pedro Almeida Vieira

  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    São Nicolau de Myra.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    toddler in black sweater standing in front of Santa Claus

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.

    O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primeira versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.


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  • O poder da ilustração

    O poder da ilustração

    Título

    Arena

    Autor

    JOÃO FAZENDA

    Editora

    Tinta da China (Novembro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Reunindo duas décadas de cartoons publicados pelo autor, inicialmente na revista Visão e, mais recentemente, no jornal Expresso, o livro ‘Arena’, de João Fazenda é uma obra que transcende a simples compilação de ilustrações; trata-se de um testemunho visual de um período marcado por acontecimentos políticos, sociais e culturais, capturados com a perspicácia de quem observou o mundo social e políticos com olhos atentos e um traço inconfundível.

    Sabe-se que, na imprensa, o título é por excelência o primeiro convite à leitura, que se insinua ao leitor, que o desafia e despertar curiosidade para a leitura. Mas, se o título é a primeira porta, as imagens – sejam fotografias ou ilustrações – são o impacto visual que pode determinar a permanência do olhar. As fotografias têm o poder de documentar, de capturar a realidade de forma imediata e emotiva. Contudo, mesmo quando uma imagem fotográfica pode valer mais do que mil palavras, há algo que frequentemente lhe escapa: a capacidade de transcender o momento captado e de oferecer uma crítica, uma reflexão ou uma síntese daquilo que se observa.

    E é aqui que entram as ilustrações, e, em especial, o trabalho de artistas como João Fazenda. As ilustrações não apenas acompanham ou embelezam; elas dialogam, desconstroem e reconstroem a realidade, conferindo-lhe novos significados. A ilustração editorial tem o poder único de condensar, num único quadro, aquilo que milhares de palavras talvez não consigam dizer com tanta clareza: a ironia, a denúncia, o absurdo ou até a esperança de uma situação. E João Fazenda é, sem dúvida, um mestre dessa arte.

    Por isso mesmo, se o objectivo inicial da ‘contratação’ de João Fazenda terá sido sobretudo ilustrar os textos de Ricardo Araújo Pereira, o humorista em muita razão, mesmo conhecendo-se a sua providencial pseudo-humildade auto-depreciativa, quando no prefácio escreve: “Como é evidente quando se abre o jornal, não é o desenho do João Fazenda que ilustra os meus textos, é o meu texto que acompanha os desenhos do João Fazenda. A primeira coisa que os leitores veem é o desenho. A seguir, tentam descobrir (os que se dão a esse trabalho) de que modo é que o texto se relaciona com ele”.

    Esta inversão de papéis sublinha, de facto, a força do traço de Fazenda, capaz de capturar a atenção e instigar uma leitura diferente, mediada pela imagem. E isso é mesmo verdade: folheando o livro, mesmo para quem leu pouco textos de Ricardo Araújo no original, se lembra de muitas das ilustrações- Até porque o traço de João Fazenda é único e marcante, com o seu estilo minimalista, satírico e profundamente simbólico, com formas simples e cores sólidas, mostra-se capaz de comunicar mensagens que combinam reflexão e leveza, evidenciando temas sociais e políticos muito abrangentes.

    Uma única nota: do ponto de vista editorial, teria sido útil, e não demasiado dificultoso, identificar, no final do livro, as datas das ilustrações, bem como dos textos originais. Em alguns casos, ajudaria a relembrar os “acontecimentos”, para quem os viveu; e para os mais jovens, seria um auxiliar para ‘identificar’ os protagonistas que eventualmente tenham saído da ‘cena política’ (que são pouco, porque são ‘perenes’, cá no burgo).

  • Covid-19: DGS quer despachar ‘sobras’ de uma vacina sem farmacovigilância adequada nem compensações por danos

    Covid-19: DGS quer despachar ‘sobras’ de uma vacina sem farmacovigilância adequada nem compensações por danos

    Num país que viveu a pandemia da covid-19 à cata de supostos ‘negacionistas anti-vacinas’ – que incluía quem se opunha à inclusão de jovens e adultos saudáveis nos planos de vacinação, ou considerasse que a imunidade natural era suficiente –, não deixa de ser lamentavelmente irónico que, no final de 2024, Portugal seja um dos poucos da Europa Ocidental que recusa falar das reacções adversas, não tendo montado qualquer plano de compensação das vítimas. E pior: num estranho tabu, o Infarmed nem sequer acompanha a evolução dos casos notificados. A desconfiança e o desamparo têm tido consequências: mesmo na população mais vulnerável, assiste-se a uma crescente recusa da vacina contra a covid-19. Este ano, em comparação com 2023, a ‘procura’ de reforço desceu quase 14%. Foram mais 204 mil portugueses que não quiseram saber da vacina contra a covid-19. E a Direcção-Geral da Saúde, em vez de promover uma melhoria da informação e pugnar pelo apoio às pessoas afectadas, decidiu-se por uma estranha solução: as vacinas que sobraram serão agora administradas no grupo etário dos 50 aos 59 anos. A saúde das pessoas pode ser ‘lixada’; as vacinas é que não podem ir parar ao lixo…


    Não existe qualquer motivo epidemiológico ou de Saúde Pública para a decisão da Direcção-Geral da Saúde (DGS) de alargar o plano de reforço da vacinação contra a covid-19 para a faixa etária dos 50 aos 59 anos, hoje iniciado. O motivo para este alargamento é simples: estão em stock centenas de milhares de doses, que arriscam ir para o lixo, porque cada vez há menos pessoas do grupo dos maiores de 60 anos interessadas em apanhar mais uma dose desta vacina. Isto, num cenário em que são reveladas falhas gravíssimas na farmacovigilância pelo Infarmed num país que insiste em não assumir quaisquer indemnizações e apoios médicos às pessoas que foram afectadas por reacções adversas.

    Conforme o PÁGINA UM mostrou na passada semana, através de dados do Centre for Socio-Legal Studies, Portugal integra o lote de 14 países da União Europeia que optou por nunca implementar qualquer plano de indemnização às vítimas das vacinas contra a covid-19, que integra também a Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Espanha, Grécia, Hungria, Irlanda, Lituânia, Malta, Países Baixos, Roménia e Eslováquia.

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    Ao invés, países como a Áustria, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Letónia, Luxemburgo, Polónia, Eslovénia e Suécia – que integram também a União Europeia – implementaram sistemas, ou aproveitaram os modelos existentes pré-pandemia – para suportar compensações em casos de dados graves resultantes da administração das vacinas contra a covid-19. Recorde-se que a Comissão von der Leyen isentou de responsabilidades as farmacêuticas. Além dos membros da União Europeia, outros países do Velho Continente têm sistemas desta natureza, designadamente Noruega, Islândia, Noruega, Reino Unido e até Rússia.

    O desinteresse dos portugueses mais idosos pela vacina contra a covid-19 – agravada pela ausência de informação fiável sobre as suas vantagens, num cenário de endemismo do SARS-CoV-2, agora com muito menor virulência numa população com imunidade natural – fica patente não apenas na comparação entre o número de doses administradas no Outono deste ano e o de 2023, como sobretudo no número elevado de pessoas que optaram por aceitar apenas a vacina contra a gripe, cujas vantagens são inequívocas sem efeitos adversos relevantes.

    Com efeito, na época de vacinação outonal do ano passado, segundo um relatório da DGS com informação referente a 10 de Dezembro de 2023, tinham sido administradas 1.516.613 doses contra a covid-19 a maiores de 60 anos, menos 240.186 doses do que as administradas contra a gripe. Deste modo, e considerando uma população de cerca de três milhões de indivíduos nesta faixa etária, em média, por cada 100 pessoas, houve 40 que optaram por não querer nenhuma das vacinas, 50 vacinaram-se contra a gripe e a covid-19, enquanto 10 só quiseram a vacina contra a gripe.

    Comparação entre as doses administradas no Outono de 2023 (até 10 de Dezembro) e no Outono de 2024 (até 8 de Dezembro) de vacinas contra a covid-19 e contra a gripe. Fonte: DGS.

    Ora, este ano, com informação recolhida pela DGS até 8 de Dezembro, o ‘abandono’ da vacina contra a covid-19 aumentou significativamente, não ocorrendo o mesmo para a vacina contra a gripe. De facto, os dados oficiais mostram que, para uma população com idade superior a 60 anos que se manteve estável, houve 1.828.767 pessoas que se vacinaram contra a gripe (mais 26.968 do que em 2023), mas apenas 1.312.295 que quiseram tomar a vacina contra a covid-19, ou seja, foram administradas menos 204.318 doses, o que representa uma queda de quase 14% face a 2023.

    Significa assim que neste Outono, em média, por cada 100 pessoas com mais de 60 anos, houve 39 que optaram por não se vacinarem contra nenhuma daquelas duas doenças, 44 que se vacinaram contra a gripe e a covid-19, e ainda 17 que se vacinaram apenas contra a gripe.

    Assim, em termos concretos, praticamente sete pessoas em cada 100 que se vacinaram no ano passado contra a covid-19 no grupo etário dos maiores de 60 anos disseram ‘não’ este ano, razão pela qual ‘sobraram’ mais de 200 mil doses. Recorde-se que o PÁGINA UM ainda aguarda, ao fim de quase dois anos de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, uma decisão para acesso aos contratos das vacinas contra a covid-19.

    Sobre os efeitos adversos das administrações dos reforços do Outono de 2024 não existem dados públicos, mas o PÁGINA UM teve acesso à base de dados do Portal RAM, gerida pelo Infarmed, até início de Agosto deste ano. Apesar de a base de dados estar manipulada, com eliminação de variáveis, contrariando um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, um dos aspectos mais relevantes é a falta de acompanhamento das pessoas afectadas po reacções adversas. Num total de 45.337 registos individuais notificados no Portal RAM entre finais de Dezembro de 2020 e Agosto de 2024, contabilizam-se 19.224 pessoas sobre as quais o Infarmed desconhece a evolução dos sintomas ou estado de saúde. Ou seja, em mais de quatro em cada 10 registos (42,4%), o Infarmed não apurou sequer como evoluíram os sintomas e afecções detectadas.

    Países (a azul) com planos de compensação para os efeitos adversos de vacinas contra a covid-19. Fonte: Centre for Socio-Legal Studies.

    Numa análise detalhada à variável da evolução das reacções adversas – um processo moroso, porque o ficheiro do Infarmed lista o conjunto de afecções e sintomas numa mesma célula com indicações de progresso por vezes distintas –, observa-se que uma grande parte se refere a problemas que, em princípio, são ligeiros e corriqueiros, como dores no local de vacinação (quase quatro mil casos), dores de cabeça, febre ou dores (centenas de casos). Mas, de entre a lista, constam afecções gravíssimas potencialmente mortais ou com causadores de sequelas profundas. E isto altera de forma radical uma avaliação correcta da segurança das vacinas e impede, desse modo, acções judiciais com pedidos de indemnização.

    Numa averiguação preliminar, o PÁGINA UM detectou, no Portal RAM, 45 casos de miocardites ou pericardites após vacinação cuja evolução permanece desconhecida pelo Infarmed. Há ainda 22 casos de choques anafiláticos, uma reação alérgica grave e potencialmente fatal que pode levar à morte sem tratamento imediato, cuja evolução também se ignora. Foram registados 40 casos de tromboembolismo pulmonar, bloqueio de uma artéria dos pulmões por um coágulo, sem acompanhamento adequado, e 13 casos de acidentes vasculares cerebrais (AVC), suspeitos de estarem fortemente associados às vacinas, cuja evolução permanece incógnita.

    Entre as reações adversas encontram-se ainda 18 casos de síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune rara que afecta os nervos periféricos e pode levar à paralisia, e 27 casos de paralisia de Bell, uma condição que afeta o nervo facial, sendo por vezes temporária, mas cuja evolução também se desconhece. Foram ainda reportados oito casos de enfarte agudo do miocárdio, 17 casos de trombose venosa profunda, 16 casos de trombocitopenia imune, cinco casos de mielite e 13 casos de vasculite, todos com desfecho desconhecido.

    Extracto da base de dados (em Excel) revelados pelo Infarmed (com mutilação de variáveis), após intervenção do Tribunal Administrativo, e analisados pelo PÁGINA UM para detectar registos com evolução desconhecida de sintomas.

    Na análise das notificações, o PÁGINA UM identificou ainda 63 casos de alterações menstruais e 22 casos de herpes zoster, decorrentes da reactivação do vírus da varicela, todos sem acompanhamento da sua evolução.

    Nenhuma destas pessoas, além das 141 mortes reportadas, beneficiaram de qualquer apoio do Estado nem tão-pouco se conhece se foi analisada, do ponto de vista clínico, a associação factual entre a administração da vacina e os efeitos adversos. E isto também por uma razão simples: o Infarmed, liderado por Rui Santos Ivo, recusa divulgar a variável da casualidade – perante a passividade do Governo e partidos da oposição.


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  • ‘Segurança Marítima na UNL’: Gouveia e Melo violou Estatuto dos Militares das Forças Armadas

    ‘Segurança Marítima na UNL’: Gouveia e Melo violou Estatuto dos Militares das Forças Armadas

    O caso começou por ser uma situação grave, revelada pelo PÁGINA UM na semana passada, em torno da duvidosa ligação do Almirante Gouveia e Melo à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Mas complicou-se e há novas informações que põem em xeque o Chefe do Estado-Maior da Armada. Para ser regente e professor convidado, Gouveia e Melo teria de requerer, ao abrigo do Estatuto Militar, uma acumulação de funções ao Chefe do Estado-Maior da Armada, ou seja, a ele próprio, um impedimento legal. A alternativa – uma autorização informal – também seria ilegal. Mas de ilegalidades está este processo cheio, porque entretanto a Faculdade de Direito da Universidade Nova admitiu que afinal não há qualquer parceria assinada, apesar da regência de Gouveia e Melo a uma cadeira, onde dá uma palestra anual, durar há mais de dois anos, a convite da ex-líder do CDS Assunção Cristas. Eis mais um episódio de um esquema de ‘melhoria artificial’ do currículo do homem que lidera as sondagens para as Presidenciais de 2026.


    O Almirante Gouveia e Melo terá violado o Estatuto dos Militares das Forças Armadas ao acumular a regência da cadeira de Segurança Marítima na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (UNL) com o seu cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada.

    O diploma de 2015 explicita que “as funções militares são, em regra, em regime de exclusividade”, embora possa haver situações excepcionais, se forem compatíveis “com o seu grau hierárquico ou o decoro militar”. Sendo certo que a regência de uma cadeira de mestrado é uma função digna, Gouveia e Melo tinha um problema legal: o desempenho de funções em regime de acumulação, independentemente de serem exercidas graciosamente – como alegou a Marinha na semana passada –, “depende da autorização prévia do Chefe do Estado-Maior respectivo”.

    Ora, para a situação específica de Gouveia e Melo existe “um impedimento legal por interesse próprio”, como confirmaram ao PÁGINA UM dois professores universitários de Direito. Conforme estipula o Código do Procedimento Administrativo – que rege também actos desta natureza das Forças Armadas –, os titulares de um órgão no exercício de poderes públicos não podem intervir em qualquer processo “quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa”. Isto aplica-se mesmo se as funções forem exercidas a título gracioso, subentendendo-se sempre que Gouveia e Melo obteria, para si, o estatuto de professor universitário, melhorando o currículo público.

    Foto: D.R.

    Pela interpretação desta obrigação, Gouveia e Melo poderia conceder autorização a militares que leccionam em acumulação de funções, mas jamais poderia ‘auto-autorizar-se’. Também jamais poderia delegar essa competência para autorizações num subordinado, uma vez que esse expediente, para contornar a norma de impedimento, violaria o princípio da imparcialidade. O impedimento visa precisamente garantir que o acto não seja praticado por quem tenha um interesse no seu resultado, directa ou indirectamente.

    E assim, não havendo qualquer autorização superior – por exemplo, de uma comissão independente ou do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armada, ou do Ministro da Defesa ou mesmo da Presidência da República –, a ilegalidade e gravidade do procedimento mantêm-se numa outra perspectiva: Gouveia e Melo fez tábua rasa do próprio Estatuto dos Militares das Forças Armadas. Até por o conhecer bem: em 2020, como adjunto do Planeamento no Estado-Maior das Forças Armadas teve delegação de competências para conceder ou não autorizações requeridas por militares ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas para acumularem funções.

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos a Gouveia e Melo sobre esta situação, e também sobre as autorizações que terá supostamente concedido a um número indeterminado de militares que leccionaram a cadeira de Segurança Marítima no mestrado da UNL, por si regida, mas não houve qualquer resposta. Por lei, mesmo que houvesse uma autorização a esses militares, seria obrigatório um requerimento formal prévio de cada um. Ora, na passada semana, a Marinha não quis indicar quais os militares que deram a cadeira regida por Gouveia e Melo, tanto mais que os seus nomes são omissos no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. O Ministério da Defesa também não respondeu sobre se houve alguma autorização governamental, que, se existisse, teria ocorrido na vigência do Governo Costa, quando a titular da pasta da Defesa era Helena Carreiras.

    Campus de Campolide, onde ainda funciona a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. / Foto: D.R.

    Certo é que, além desta nova questão, a revelação feita pelo PÁGINA UM na semana passada sobre a existência de influências políticas, da ala do CDS, na ‘contratação’ de Gouveia e Melo para reger uma cadeira de Segurança Marítima num mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa está a causar um indisfarçável incómodo, bem patente no manto de silêncio. Com efeito, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa não enviou ainda ao PÁGINA UM qualquer acta onde a admissão de Gouveia e Melo tenha sido decidida, antecedida de pareceres de dois professores. Esse acto de transparência e de rigor jurídico não é nenhuma excentricidade ou extravagância – é um acto de normal democraticidade.

    Por exemplo, na sua congénere lisboeta – ou seja, na Faculdade de Direito da Universidade (Clássica) de Lisboa -, todos as actas dos órgãos de gestão e governo, incluindo as referentes às diversas reuniões do Conselho Científico, estão minuciosamente expostas. Algumas destas actas têm mais de 170 páginas, uma vez que são ali expostas questões de relevância académica numa ‘casa’ que forma juristas há mais de um século, bem mais vetusta do que a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa apenas fundada em 1996, onde aparentemente o rigor e a transparência ainda não fizeram ‘escola’. Aqui, nada de actas nem outros documentos de gestão.

    A reitoria da Universidade Nova de Lisboa, liderada por João Sàágua, mantém-se à margem de uma situação que revela a permeabilidade desta instituição universitária às influências políticas e ao ‘tráfico de currículos’. Gouveia e Melo foi colocado na regência de uma cadeira de mestrado por empenhos de Assunção Cristas, coordenadora do mestrado em Direito e Economia do Mar, com a conivência de Mariana França Gouveia, antiga directora da Faculdade e actual presidente do seu Conselho Científico. Ambas, além das ligações ao CDS, são advogadas na sociedade Vieira de Almeida.

    Assunção Cristas (esquerda) e Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. / Foto: D.R.

    De facto, o reitor da Universidade Nova de Lisboa não respondeu a qualquer das questões formuladas pelo PÁGINA UM sobre o modus operandi da ‘contratação’ de Gouveia e Melo, designadamente ao nível do rigor administrativo e da conduta ética. Apesar desse silêncio, fica patente que o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada, para além de todos os outros problemas legais, jamais poderia assumir a regência de uma cadeira de mestrado sem sequer dar qualquer aula digna desse nome.

    Um professor com obrigações de regência não está desobrigado a dar aulas, pelo contrário. E o Código de Ética da Universidade Nova de Lisboa, publicado em Diário da República há uma década, é bastante claro sobre os deveres específicos dos docentes, incluindo o de serem “assíduos e pontuais no exercício das suas funções”. Ora, no caso de Gouveia e Melo, a questão da pontualidade nem se coloca porque é critério inaplicável face a uma assiduidade nula. A legalidade de uma regência sem dar qualquer aula é assim muito duvidosa, tanto mais que Gouveia e Melo não era um simples ‘visitante’. Além da regência ser publicitada, no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa surge com um endereço oficial da instituição universitária pública: henrique.melo@novalaw.unl.pt.

    Entretanto, esta tarde, a RTP revelou que a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa assumiu que, afinal, ainda nem sequer existe qualquer parceria, sendo que, nesse aspecto, toda a legalidade está em causa, por não existir aplicação retroactiva. Em nota enviada à televisão pública – depois de recusar responder a perguntas do PÁGINA UM –, a instituição universitária diz que “o documento [parceria] está ainda em processo de formalização [ou seja, não existe], pois o acordo entre as duas instituições é mais amplo, abrangendo outras situações além da regência desta disciplina [Segurança Marítima]”, tendo acrescentado que “a assinatura terá lugar muito em breve”.

    Gouveia e Melo. Foto: EMA.

    Na mesma nota, a Faculdade argumenta que o convite a Gouveia e Melo se fundamentou num relatório subscrito por Assunção Cristas e por Vera Eiró para os anos lectivos de 2022/2023 e 2023/2024. Nenhum desses relatórios terá sido apresentado em Conselho Científico nem sequer foram enviados quando solicitados pelo PÁGINA UM. Existe, obviamente, a possibilidade de serem agora forjados, tanto mais que o convite só pode ser formalizado após aprovação pela “maioria absoluta dos membros do Conselho Científico em exercício de funções, aos quais é previamente facultado o currículo da individualidade a contratar”, algo que nunca sucedeu. E aí já será mais complicado forjar uma acta de uma antiga reunião. Na nota à RTP, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa acaba também por assumir que Gouveia e Melo concede apenas uma palestra anual, o que lhe ‘pareceu’ ser bastante para ser considerado professor convidado com direito a e-mail institucional.

    O PÁGINA UM também colocou questões à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que ‘supervisiona’ o mestrado onde Gouveia e Melo é regente, questionando se no processo de acreditação, concluído em 2022, ficou prevista a possibilidade de uma parceria com a Marinha e a docência por militares. Não houve ainda resposta.

    Na verdade, a única pessoa que, nesta semana, respondeu às questões do PÁGINA UM foi o eminente cardiologista e professor jubilado José Fragata, que surge ainda no site da Universidade Nova de Lisboa como presidente da Comissão de Ética, um órgão consultivo da reitoria. José Fragata diz que deixou o cargo em 2022, desconhecendo se a comissão ainda existe “e naturalmente quem a preside”, sugerindo que contactasse a Reitoria. E o PÁGINA UM contactou, mas João Sàágua deverá ter tido mais que fazer para dar uma resposta.


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  • AD contra AD: Governo Montenegro quer destruir regime de protecção de solos do Governo Balsemão

    AD contra AD: Governo Montenegro quer destruir regime de protecção de solos do Governo Balsemão

    De boas intenções, está o inferno cheio. Mas há medidas que nem sequer se mostram boas na intenção, até porque os resultados serão previsivelmente catastróficos. Para aumentar os terrenos urbanizáveis, alegando ser necessário para fazer face à crise de habitação, o Governo Montenegro prepara-se para dar uma ‘machadada’ ao mais importante legado da política de ordenamento e planeamento do território do século XX, flexibilizando administrativamente, através das autarquias, a passagem de terrenos da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional para fins urbanísticos. Além de ser uma medida com efeitos indesejáveis e promotor esquemas de corrupção – por exemplo, facilitará a passagem de terrenos rurais não edificáveis para áreas urbanas em redor do futuro aeroporto de Lisboa -, há uma ironia política:o Governo Montenegro, eleito sob a sigla de Aliança Democrática, ‘assassina’ assim dois instrumentos de planeamento (leis da Reservas Agrícola e Ecológica Nacional (RAN e REN) aprovados em 1982 e 1983 pelo Governo da Aliança Democrática original, então liderado por Pinto Balsemão, tendo como principal dinamizador dos diplomas o arquitecto Ribeiro Telles. O actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa integrou também esse Governo, podendo suscitar a legalidade de uma alteração do regime da REN e da RAN por simples decreto-lei, porque estão em causa áreas da competência da Assembleia da República.


    À boleia de uma alegada crise da habitação e de suposta escassez de terrenos para construção, o Governo Montenegro quer destruir todos os alicerces da política de ordenamento e planeamento urbanístico, através de uma alteração da Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, mas a iniciativa pode esbarrar na Assembleia da República por estarem em causa modificações profundas na Lei dos Solos, uma vez que esta é uma matéria da estrita competência dos deputados.  

    Na semana passada, o Governo anunciou que o Conselho de Ministro aprovou um decreto-lei para “permitir às autarquias disponibilizar mais terrenos para a construção de habitação destinada à classe média em todo país”, com a condição de que“pelo menos 70% das casas construídas deverão ser vendidas a preços moderados, um novo conceito criado para abranger o acesso pela classe média, ponderando valores medianos dos mercados local e nacional, e definindo valores máximos para assegurar justiça social”. De acordo com as indicações transmitidas publicamente, a ideia será conceder às autarquias o poder, de forma arbitrária, para alterar usos de solo, passando-o de rústico para urbano.

    people working on building during daytime

    Mas para isso, o Governo Montenegro precisa de flexibilizar os regimes de protecção e condicionamento das áreas de Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica Nacional que, como são terrenos rústicos – e actualmente sem capacidade construtiva –, acabam por apresentar um custo mais barato e apetecível para a especulação imobiliária.

    Não deixa de ser irónico que esta tentativa de dar uma ‘machadada’ na política de urbanismo seja uma iniciativa de um Governo que se anunciou sob a sigla AD – Aliança Democrática, ressuscitando a versão de finais dos anos 70 e início dos anos 80, dinamizada inicialmente por Sá Carneiro (PSD), Freitas do Amaral (CDS) e Ribeiro Telles (PPM), e que depois da morte do primeiro continuou com Francisco Pinto Balsemão até 1983.

    Com efeito, foi já no fim desse mandato que o Governo de Pinto Balsemão, que tinha uma forte ‘costela ambientalista’ (Ribeiro Telles, então ministro da Qualidade de Vida), que foram aprovados dois mais importantes instrumentos de protecção ambiental e de urbanismo – a lei da RAN, em Setembro de 1982, e a lei da REN, em Junho de 1983 – sobre as quais se erigiram os planos directores municipais e outros planos de ordenamento. Curiosamente, o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, integrava este Governo da AD como ministro dos Assuntos Parlamentares.

    Pinto Balsemão, Ribeiro Telles e Marcelo Rebelo de Sousa integraram o Governo AD que aprovou a lei da RAN e da REN, que protegeu solos da construção. O novo Governo AD, de Luís Montenegro, quer transformar em ‘três tempos’ solos rústicos em áreas para o imobiliário. Foto: Museu da Presidência.

    As restrições impostas para os solos da RAN e da REN nunca radicaram em qualquer extremismo ambientalista, sustentando-se numa visão estratégia inter-geracional e mesmo de protecção contra catástrofes naturais. Além de protecção de solos agrícolas, a delimitação de áreas sensíveis no âmbito serve sobretudo para preservar linhas de água e leitos de cheia – para evitar desastres humanos como se observou recentemente na região de Valência –, aquíferos de águas subterrâneos, proteger zonas declivosas e sobretudo evitar um crescimento desenfreado e caótico das zonas urbanas.

    “Esta medida do Governo é inaceitável do ponto de vista da sustentabilidade económica e ambiental, porque, em vez de promover uma aposta na consolidação e reabilitação dos centros urbanos, vai disponibilizar mais terrenos, promovendo o crescimento em ‘mancha de óleo’ para zonas sensíveis com a necessidade de novos e maiores investimentos de infraestruturação”, salienta Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.

    Aliás, ao invés de promover mais uma maior quantidade de terrenos disponíveis, o efeito expectável será contrário. As construtoras terão tendência a abandonar projectos imobiliárias em zonas consolidadas, preferindo adquirir terrenos rústicos muito mais baratos para depois conseguirem uma viabilização junto das autarquias. Este expediente escancara, além disso, as portas para a especulação e mesmo para a corrupção e outros esquemas ínvios, recordando procedimentos dos anos 90 do século passado, quando se desenvolveu a primeira geração de planos directores municipais. Nessa altura, muitos empresários, em conluio com autarcas, compravam terrenos rústicos, vendo depois essas zonas serem integradas em áreas edificáveis, multiplicando assim o seu valor. Aliás, este tipo de esquemas pode já ocorrido antes deste anúncio do Governo, mas tornar-se-à corriqueiro a nível local, concedendo poderes arbitrários aos políticos.

    Governo prepara-se para destruir um dos maiores legados de político de ordenamento e de urbanismo do século XX, abrindo as portas a esquemas de tráfico de influências e de corrupção no imobiliário.

    Esta alteração no regime dos terrenos rústicos aparenta, aliás, encaixar-se na perfeição para a existêncoa de transações especulativas em torno do futuro aeroporto de Lisboa. A esmagadora maioria dos terrenos envolventes à zona do Campo de Tiro de Alcochete integram a RAN e a REN. Com esta medida do Governo Montenegro, esses terrenos multiplicam de valor ‘da noite para o dia’.

    A ideia de ser a falta de terrenos – e os seus custos elevados – uma das principais causas da crise da habitação em Portugal tem sido uma ideia estafada que não encontra reflexo na realidade dos números, porque o ritmo de construção depende sobretudo das condições económicas e dos ciclos financeiros, bem como da oferta e da procura. Embora se observe agora um recente crescimento populacional nos anos recentes, a uma taxa de 1%, não existe propriamente uma escassez de casas, mas sim uma dificuldade de adaptação dos rendimentos dos portugueses a um mercado que se globalizou, tanto nas zonas urbanas como rurais, neste caso pela procura de segundas residências.

    Por esse motivo, observando a evolução dos licenciamentos de fogos (casas) pelas autarquias desde 2007, com base nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), conclui-se que o mercado imobiliário está já bastante dinâmico, tendo mesmo registado este ano o valor mais elevado desde 2009, se considerarmos os primeiros 10 meses (Janeiro a Outubro). A nível nacional, os 28.004 fogos licenciados este ano são praticamente cinco vezes mais do que os licenciados em 2014, em plena crise financeira.

    Evolução do número de fogos licenciados em Portugal e nas diversas regiões (NUT II) entre 2007 e 2024 para os primeiros 10 meses de cada ano. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Comparando as licenças de construção concedidas nos últimos 24 meses (Novembro de 2022 a Outubro de 2024) com as do período homólogo anterior (Novembro de 2020 a Outubro de 2022), confirma-se esse dinamismo: um crescimento de 9,3%, passando de 59.558 para 65.092 fogos licenciados. Esse crescimento está sobretudo concentrado na região Norte, que impulsionou nesse período em 12,8%, e particularmente no Grande Porto.

    Nessa sub-região, o crescimento foi de 21%, passando de pouco mais de 14 mil fogos licenciados para mais de 11.700. Na região de Lisboa – que engloba os municípios da Grande Lisbia e da Península de Setúbal –, apesar de se registar um crescimento (3,7%), está a níveis mais modestos. Enquanto nos últimos dois anos se licenciaram 13.033 fogos, no período de Novembro de 2020 a Outubro de 2022 as autarquias tinham concedido licenças para a construção de 12.567 fogos.

    Em todo o caso, existe uma tendência de mudança na tipologia dos fogos licenciados. De acordo com os dados do INE, nos últimos dois anos, as licenças destinam-se para uma tipologia mais pequenas, indo ao encontro da prevalência de uma procura num mercado imobiliário destinado a pessoas sozinhas, casais ou famílias de poucos filhos.

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    O regime da REN serviu sobretudo para suster a construção desenfreada em zonas sensíveis, entre as quais áreas em leitos de cheia.

    Nos últimos dois anos, 44,4% dos fogos licenciados serão T2 ou menores. Os T0 e T1 são representam 17,2%. No período homólogo anterior as tipologias T2 ou menores atingiam os 36,9% e no período entre Novembro de 2018 e Outubro de 2020 foi de 36,5%. Já as tipologias de maiores dimensões (T4 e mais) estão a descer em peso. Nos últimos dois anos são 12,7% do total, quando nos dois períodos homólogos anteriores foram de 15% e 14,9%, respectivamente.

    Se recuarmos aos últimos dois anos do boom imobiliário do início do século – em 2007 e 2008 licenciaram-se mais de 111 mil fogos –, as casas de grandes dimensões (T4 ou mais) representaram 17,8% do total, enquanto T0 e T1 tiveram um peso de apenas 10%. Se juntarmos os T2, a percentagem sobe para os 36,6%, confirmando-se assim que se está a construir mais apartamentos de menores dimensões.


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  • Falência iminente: Música no Coração nem dinheiro tem para mandar tocar um requiem

    Falência iminente: Música no Coração nem dinheiro tem para mandar tocar um requiem

    Sem contas anuais conhecidas de 2022 e de 2023, com a Super Bock a não querer renovar a organização do festival na Praia do Meco, com a falta de patrocínios para o festival da Zambujeira do Mar e com o Fisco à perna, a outrora pujante empresa de espectáculos de Luís Montez está à beira do precipício. O ‘pequeno toque’ para a queda da Música no Coração é já um passo inevitável. Aquilo que mais surpreende é, na verdade, o facto de ainda estar em funcionamento, pois em finais de 2021 encontrava-se em falência técnica, com capitais próprios negativos de mais de 6,2 milhões de euros, e um passivo colossal de 26 milhões, impossível de pagar, sobretudo agora com o impacte da perda dos festivais Super Bock Super Rock e Sudoeste.


    A caminho do fim. Será apenas uma questão de dias, de semanas ou de meses, mas o fim é irreversível: a Música no Coração, a outrora pujante empresa de espectáculos e de festivas, detentora de uma rede de rádios, está em colapso financeiro, e já nem sequer entregou, como era obrigatório, a Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa aos anos de 2022 e 2023.

    A situação agravou-se no último mês com a decisão da  cervejeira Super Bock de não renovar o contrato com a empresa de Luís Montez, conhecido também por ser genro de Cavaco Silva, para a organização do festival Super Bock Super Rock, que se realiza anualmente na Praia do Meco, como noticiou o Observador no passado dia 21 de Novembro.

    Luís Montez

    Este desfecho era esperado, não apenas pela já débil situação financeira da Música do Coração, mas porque esta até já tinha vendido a rádio associada ao evento à Medialivre – que pretendia comprar frequência para preparar uma rede de rádio própria –, deixando mesmo de emitir em finais do passado mês de Setembro.

    Na mesma linha, o Festival do Sudoeste tem também os dias acabados. Luís Montez anunciou à SIC, há duas semanas, que este festival na Zambujeira do Mar, não tem capacidade de realizar no próximo ano por falta de patrocinadores. Porém, esse é apenas um dos problemas. O PÁGINA UM apurou que, devido a dívidas fiscais, o uso da denominação do Festival Sudoeste foi penhorado pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 16 de Janeiro deste ano, aguardando-se ainda uma decisão do tribunal. Apesar disso, a empresa de Luís Montez mantém-se livre de constar na lista de devedores ao Fisco e à Segurança Social, embora esteja sujeito a diversos processos de execução intentados por credores.

    Mesmo sem se conhecer as contas de 2022 e de 2023, o PÁGINA UM sabe que a Música do Coração encontra-se ainda em pior situação face às demonstrações financeiras de 2021, reveladas pelo PÁGINA UM em Abril passado. A ‘holding’ de Luís Montez – que é ainda proprietária de algumas rádios com actividade residual – estava já com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros no final daquele ano, registando um pouco mais de um milhão de euros de prejuízos. O passivo, incluindo empréstimos bancários. aproximava-se dos 26 milhões de euros. Saliente-se que as contas da Música no Coração não estavam consolidadas.

    stage light front of audience

    Na verdade, somente por via de alguma engenharia financeira, o colapso da Música no Coração não se mostrava já mais patente de 2021, pois detectavam-se evidentes sinais de exagero na avaliação dos activos financeiros e excedentes de revalorização. Além disso, nesse ano, a ‘holding’ de Luís Montez tinha uma liquidez praticamente nula, inconcebível numa empresa promotora de espectáculos: em caixa apenas se contavam 3.099 euros.

    Grande parte dos activos (cerca de 11,2 milhões de euros) estavam então contabilizados em participações financeiras através do método da equivalência patrimonial, mas, na verdade, esse montante estaria fortemente inflacionado face à actual situação financeiras das subsidiárias, isto é, das rádios.

    Além disso, o endividamento da Música no Coração era, já em 2021, asfixiante, com empréstimos bancários de longa duração de 14,6 milhões de euros, mais quase 2,8 milhões de euros de contas a pagar a fornecedores, mais 1,4 milhões de euros de dívidas ao Estado e mais cerca de 6,3 milhões de euros em outros compromissos.

    Neste caso, não deixa de ser curioso que, apesar de ter uma empresa em falência técnica, com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, Luís Montez ainda tinha 786 mil euros emprestados a juros. Ou seja, cometia uma ‘sangria’ à sua própria empresa ‘moribunda’.

    O PÁGINA UM tentou contactar Luís Montez para solicitar comentários e saber se havia demonstrações financeiras de 2022 e 2023, mas não obteve resposta.


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  • Vacinas contra a covid-19: vigilância farmacológica desprezou 19.224 portugueses com reacções adversas

    Vacinas contra a covid-19: vigilância farmacológica desprezou 19.224 portugueses com reacções adversas

    Portugal é um dos poucos países europeus sem qualquer esquema expedito de compensação de lesados pelas vacinas contra a covid-19. Na verdade, Portugal está agora na minoria dos países mundiais sem qualquer plano desta natureza, porque desde 2021 houve uma proliferação de decisões governamentais e de outras instituições para, de uma forma solidária, apoiar quem sofreu efeitos adversos das vacinas. Mas em países como o Reino Unido, esses apoios estão a ser contestados por as indemnizações serem pequenas e pouco adequadas. Pior está Portugal, porque nem tem plano de indemnização nem uma farmacovigilância decentes. Os dados do Portal RAM obtidos pelo PÁGINA UM por via de uma intimação no Tribunal Administrativo – mas muitilados pelo Infarmed – revelam uma absurda falta de acompanhamento da evolução dos casos de reacções adversas. Em mais de quatro em cada 10 registos de reacções adversas, o Infarmed não sabe como evoluíram. A esmagadora maioria são sintomas leves, mas há centenas de afecções gravíssimas, entre as quais choques anafiláticos, miocardites, enfartes do miocárdio, AVC e tromboses diversas. A culpa, em Portugal, e com a postura do Infarmed, morre mesmo solteira, mas na companhia de muitas infelizes vítimas.


    Em Outubro passado, o editor da área da saúde da BBC, Fergus Walsh, fazia um balanço da administração das vacinas contra a covid-19. Apesar de defende que o programa de vacinação evitara “mais de um quarto de milhão de internações hospitalares e mais de 120.000 mortes no Reino Unido até Setembro de 2021” dava um enfoque específico sobre os efeitos colaterais, ou seja, sobre as vítimas das reacções adversas, raras em termos relativas, mas já bastante numerosas em termos absolutos pela elevada quantidade de doses administradas.

    E o jornalista destacava os impressionantes números de processos de pedidos de indemnização entrados no âmbito do Plano de Pagamento por Danos Causados por Vacinas (VDPS), criado em 1979, como uma espécie de contrato social entre os indivíduos e o Estado, após um problema de segurança da vacina contra a tosse convulsa em uso na época. A imposição desse plano governamental surgiu depois de uma crescente hesitação vacinal ao longo da década de 70, passando depois a vigorar em relação às demais vacinas, designadamente contra a varíola, difteria, tétano, poliomielite, sarampo, rubéola, tuberculose, meningites, infecção pneumocócica, vírus do papiloma humano (HPV), gripe e, finalmente, covid-19.

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    Em termos gerais, com recurso a relatórios médicos e de farmacovigilância, provando-se uma associação directa e ocorrendo pelo menos uma incapacidade de 60%, este plano de apoio do Reino Unido é automaticamente accionada e concedida uma compensação de 120 mil libras (cerca de 145 mil euros). Neste país, entre o final da década de 1970 e 2020, houve para todas as vacinas pouco menos de 6.500 pedidos entrados por danos causados por reacções adversas, e concedidas 944 indemnizações.

    Mas estes valores subiram vertiginosamente no Reino Unidos com as vacinas da covid-19, sobretudo pelo elevado número de doses administradas da AstraZeneca. Em Outubro passado, no âmbito de um sistema de acesso obrigatório à informação – lamentavelmente inexistente em Portugal –, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) revelou que já tinha sido recebidas pelo VPDS um total de 15.805 reivindicações sobre reacções adversas graves da vacina contra a covid-19, ou seja, mais do dobro de todas as solicitações de quatro décadas envolvendo outras vacinas. Mas, até agora, somente 181 reivindicações foram consideradas passíveis de recebimento de indemnizações, tendo sido rejeitadas 7.357 solicitações porque o avaliador médico independente considerou não existir causalidade, havendo ainda mais 391 reivindicações que não tiveram sucesso por a vacina, embora causando dano, não provocou incapacidade grave. Isto pode incluir, por exemplo, a cegueira de olho, porque não se atinge os 60% de incapacidade.

    De acordo com a NHS, as reacções adversas agudas mais graves detectadas após as vacinas contra covid-19 incluem anafilaxia, pneumonia bacteriana, paralisia de Bell, neuropatia óptica sequencial bilateral, síndrome de vazamento capilar, síndrome de Guillain-Barré, trombocitopenia imune, resposta imune à vacina, inflamação dos pulmões, enfarte do miocárdio, miocardite/pericardite, embolia pulmonar, acidente vascular cerebral (AVC), mielite transversa, trombose do seio venoso cerebral e vasculite induzida por vacina.

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    Mas as críticas ao sistema do Reino Unido, pelo seu carácter desactualizado e meramente burocrático, tem aumentado, como salienta Fergus Walsh, citando uma advogada de vítimas que critica o VDPS por “oferecer muito pouco, muito tarde e para muito poucas pessoas”, além de que a análise dos casos é feita apenas com base em documentos clínicos, de forma burocrática, sem qualquer exame físico. As críticas têm sido tão grandes que o Governo do Reino Unido aumentou os funcionários que tratam dos processos no VDPS para 80. Antes do programa de vacinação contra a covid-19 eram quatro.

    Este esquema de compensações apoiada pelos Estados, de forma extra-judicial (sem assumpção de culpa pelas farmacêuticas), para apoiar vítimas de reacções adversas causadas pelas vacinas existia em 29 países antes da pandemia, sobretudo na Europa, mas que incluía também os Estados Unidos, a China, a África do Sul e a Nova Zelândia. Portugal não possuía qualquer sistema.

    E os portugueses continuaram assim completamente desprevenidos com o surgimento das campanhas maciças de vacinação, nunca sendo assumido pelo Estado e pelas diversas autoridades de saúde a existência de efeitos adversos relevantes, independentemente da sua prevalência. Assim, de acordo com uma compilação do Centre for Socio-Legal Studies, desde 2021 proliferaram os planos de compensação especificamente para as vacinas contra a covid-19, quer por iniciativa dos próprios Estados, nos países mais ricos, quer por iniciativas de entidades ou corporações, como a African Vaccine Acquisition Trust (AVAT), da União Africana, a COVAX – uma parceria da Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), a Gavi – The Vaccine Alliance e a Organização Mundial da Saúde (OMS) – e a UNICEF. São 98 o número de países abrangidos, sendo 21 europeus. Portugal não está nem nunca manifestou interesse em estar. Na verdade, Portugal encontra-se no lote muito restrito que aparentemente nega que as vacinas contra a covid-19 possam causar danos colaterais. Ou que despreza ou abandona quem respondeu afirmativamente aos apelos, e pressões, para se vacinar, mesmo quando não se encontrava em grupos de risco.

    Países (a vermelho) com planos de compensação para os efeitos adversos de vacinas antes da pandemia da covid-19. Fonte: Centre for Socio-Legal Studies.

    E uma das causas tem sido a postura do Infarmed, o regulador do medicamento em Portugal, que ostensivamente menoriza, manipula e oculta os efeitos adversos das vacinas em território nacional, sempre com o mesmo protagonista: Rui Santos Ivo.

    Único dirigente da Administração Pública no sector da Saúde que se mantém em funções desde o início da pandemia, este farmacêutico com passagens entre cargos públicos e ligações à indústria farmacêutica –, Rui Santos Ivo foi director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) entre 2008 e 2011 –, tendo sido recentemente ‘promovido’ à vice-presidência da Agência Europeia do Medicamento (EMA), cada vez mais uma instituição comunitária que visa defender mais os interesses da indústria do que proteger os cidadãos. Discreto e completamente avesso à transparência, Rui Santos Ivo acabou por fazer aquilo que eram as instruções políticas e as linhas orientadoras da Comissão Europeia. Não levantar ondas, em suma.

    Durante os primeiros dois anos do programa vacinal contra covid-19, o Infarmed ficou conhecido por revelar relatórios de farmacovigilância onde, logo nas primeiras frases, garantia que “a vacinação contra a COVID-19 é a intervenção de saúde pública mais efetiva para reduzir o número de casos de doença grave e morte originados pela infeção pelo SARS-CoV-2”, acrescentando que “diversos estudos comprovam que as vacinas contra a COVID-19 são seguras e efetivas.” Enquanto isso, o presidente do Infarmed obstaculizada, como podia, recorrendo por vezes à mentira, o acesso do PÁGINA UM aos dados brutos das notificações registadas no Portal RAM, ou seja, as reacções adversas identificadas como suspeitas de associação às vacinas.

    Países (a azul) com planos de compensação para os efeitos adversos de vacinas contra a covid-19. Fonte: Centre for Socio-Legal Studies.

    Em Julho passado, através de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul – que reverteu uma absurda sentença de primeira instância, com a juíza a considerar que descarregar ficheiros de uma base de dados era criar um documento novo –, a presidência do Infarmed viu-se na obrigação de revelar os dados em bruto. Porém, mais uma vez, Rui Santos Ivo quis manipular a informação, ‘mutilando’ a base de dados, retirando variáveis relevantes como as idades das vítimas e sobretudo o grau de casualidade apurada, ou seja, a conclusão clínica sobre se associação da reacções adversa à vacina era definitiva, provável, possível ou improvável. Essa é, aliás, a função primordial da farmacovigilância: uma vigilância activa e dinâmica, que acompanha os casos desde o início dos sintomas até ao desfecho, que pode ser uma (infeliz) morte, uma recuperação completa (cura) ou uma recuperação com sequelas, sendo que existirá uma situação intermédia (‘em recuperação’).

    Extracto da base de dados (em Excel) revelados pelo Infarmed (com mutilação de variáveis), após intervenção do Tribunal Administrativo, e analisados pelo PÁGINA UM para detectar registos com evolução desconhecida de sintomas.

    Porém, apesar de Rui Santos Ivo nunca ter manifestado qualquer interesse em disponibilizar os dados completos – e nem sequer ter reagido ao PÁGINA UM sobre uma eventual prevaricação por si cometida por estar a proteger ilegitimamente interesses das farmacêuticas e do Governo –, um dos aspectos mais salientes nos dados em brutos disponibilizados era a quantidade avassaladora à referência “Desconhecido” sobre a evolução de sintomas ou afecções inicialmente detectados. Ou seja, ao fim de meses, e até anos, da primeira detecção das suspeitas de reacções adversas às vacinas, o Infarmed não sabia como evoluíra o estado de saúde dos pacientes. E não estamos a falar de meia dúzia de casos, nem de umas centenas, mas sim de 19.224 pessoas de um total de 45.337 registos individuais introduzidos no Portal RAM entre 27 de Dezembro de 2020 e 28 de Agosto de 2024. Ou seja, em mais de quatro em cada 10 registos (42,4%), o Infarmed não apurou sequer como evoluíram os sintomas e afecções detectadas.

    Numa análise detalhada à variável da evolução das reacções adversas – um processo moroso, porque o ficheiro do Infarmed lista o conjunto de afecções e sintomas numa mesma célula com indicações de progresso por vezes distintas –, observa-se que uma grande parte se refere a problemas que, em princípio, são ligeiros e corriqueiros, como dores no local de vacinação (quase quatro mil casos), dores de cabeça, febre ou dores (centenas de casos). Mas, de entre a lista, constam afecções gravíssimas potencialmente mortais ou com causadores de sequelas profundas. E isto altera de forma radical uma avaliação correcta da segurança das vacinas e impede, desse modo, acções judiciais com pedidos de indemnização.

    Por exemplo, numa averiguação preliminar, o PÁGINA UM detectou 45 registos de pessoas com miocardites ou pericardites após vacinação cuja evolução se mantém irresponsavelmente desconhecida pelo Infarmed. Mas isso é apenas a ponta do icebergue. A evolução de 22 casos de choques anafiláticos – uma reação alérgica grave e potencialmente fatal, que causa dificuldade em respirar e que, sem tratamento imediato (com adrenalina), pode levar à morte – é desconhecida pelo Infarmed. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, foi agora promovido a vice-presidente da Agência Europeia do Medicamento.

    Há também 40 casos de tromboembolismo pulmonar – o bloqueio de uma artéria dos pulmões por um coágulo – para os quais é uma incógnita a sua evolução. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Houve ainda 13 acidentes vasculares cerebrais suspeitos de estarem fortemente associados às vacinas, mas cuja evolução também se desconhece. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Casos de síndrome de Guillain-Barré – uma doença autoimune rara que afeta os nervos periféricos, causando fraqueza muscular progressiva, podendo levar à paralisia – surgem ainda 18 casos no Portal RAM com um desfecho incógnito. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Situações de paralisia de Bell – uma paralisia por vezes apenas temporária devido á inflamação ou compressão do nervo facial – contabilizam-se 27 sem se conhecer a evolução. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Até enfartes agudos do miocárdio se contam com evolução desconhecida. São oito, a que se juntam 13 casos de acidentes vasculares cerebrais (AVC) de evolução desconhecida, mais 17 casos de trombose venosa profunda de evolução desconhecida, mais 16 casos de trombocitopenia imune de evolução desconhecida, mais cinco casos de mielite e 13 de vasculite de evolução desconhecida. Porquê? Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber.

    Considerando a gravidade de muitos destes casos, e também a subnotificação e falta de acompanhamento, é pura especulação o Infarmed apontar ‘apenas’ a ocorrência de 141 mortes em Portugal suspeitas de estarem associadas às vacinas. Tanto mais que se desconhece o grau de causalidade apurada.

    Sede do Infarmed, onde (não) se faz farmacovigilância dos medicamentos.

    Na quantidade absurda de casos sem vigilância digna – e ignora-se a realização de estudos sérios para acompanhar inicialmente menos sérios –, o PÁGINA UM encontrou ainda 63 alterações menstruais sem conhecimento da evolução e mais 22 casos de herpes zoster – ou seja, por reactivação do vírus da varicela – também sem conhecimento da evolução. E muitos mais há nas 19.224 registos analisados. E qual a razão? – pergunta-se de novo. Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, não responde ou não quer saber. Agora está este responsável acumulando a liderança de um regulador que esconde informação pública relevante – porque o poder político lhe permite – com a cadeira da vice-presidência da Agência Europeia do Medicamento. Terá, por certo, mais do que fazer agora do que preocupar-se com uns milhares de portugueses que foram vítimas indirectas de um programa vacinal onde seria suposto, à moda lusitana, que tudo ficar bem, porque o que corresse mal se esconderia.

    Assim, sem qualquer plano de indemnizações, com falhas escandalosas de vigilância farmacológica e escondendo-se até a casualidade eventualmente apurada, Portugal apresta-se para enterrar a culpa solteira. Salvar-se-á a honra de política e do realpolitik – continuando a vender a ideia de um sucesso de vidas salvas –, mas, metendo a cabeça na areia, não se dignofica, por certo, nem a democracia nem a solidariedade de uma sociedade que se esperaria civilizada e responsável.


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  • Nova School of Law: ala do CDS ‘entrega’ regência e categoria universitária ilegal a Gouveia e Melo

    Nova School of Law: ala do CDS ‘entrega’ regência e categoria universitária ilegal a Gouveia e Melo

    ‘Dura lex, sed lex’ é uma das máximas jurídicas mais relevantes. Mas a lei pode ser, na verdade, amaciada para os amigos. No início de 2023, a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – ou pomposamente rebaptizada com o anglicismo Nova School of Law – anunciou a contratação de Gouveia e Melo para a regência de uma cadeira do mestrado em Direito e Economia do Mar, colocando-o com o estatuto de Professor Convidado. Mas, apesar de se estar numa escola de ilustres juristas, fez-se tábua rasa das normas do Estatuto da Carreia Docente Universitária, e nunca houve pareceres para essa nomeação, que terá sido iniciada em 2022 e surge sob a égide de uma parceria não revelada. Além disso, o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada nunca pôs os pés numa sala de aula, mandando subordinados leccionar a cadeira. O incómodo interno fez com que, entretanto, Gouveia e Melo passasse a constar, na lista do corpo docente, na secção das parcerias. Todo este processo foi conduzido por Assunção Cristas, antiga ministra do Ambiente, que é coordenadora do mestrado, e por Mariana França Gouveia, actual presidente do Conselho Científico da faculdade. Nenhum dos intervenientes quis prestar esclarecimentos, remetendo para gabinetes de comunicação breves depoimentos sem focar aspectos fulcrais.


    A Universidade Nova de Lisboa dispõe-se a construir ilegalmente um currículo académico ao Almirante Gouveia e Melo conferindo-lhe a regência de uma cadeira de mestrado e titulando-o de Professor Convidado. O putativo candidato à Presidência da República nem sequer precisou no ano lectivo passado de meter literalmente os pés nas instalações da Faculdade de Direito desta universidade pública – agora denominada, para efeitos de mero marketing institucional, de Nova School of Law –, porque todas as aulas foram ministradas por oficiais não identificados da Marinha.

    Neste processo, o Estatuto da Carreira Docente Universitária foi sistematicamente violado e a validade da acreditação do próprio mestrado em Direito e Economia do Mar, coordenado pela antiga ministra do Ambiente do CDS, Assunção Cristas, arrisca a ser colocada em causa pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) por incumprimento das normas legais.

    Gouveia e Melo ostenta a regência de uma cadeira de mestrado sem nunca ter posto os pés numa aula.

    No auge da sua popularidade na liderança do Estado-Maior da Armada, a Faculdade de Direito da UNL divulgou em Fevereiro do ano passado que “uma das novidades deste ano [lectivo, de 2023/2024]” seria “a lecionação da cadeira Maritime Security a cargo da Marinha Portuguesa, sob a regência do Almirante Gouveia e Melo. E acrescentava ser “com enorme satisfação que recebemos o ex-coordenador da Task Force do Plano de Vacinação contra a covid-19 em Portugal, que se juntou à NOVA School of Law no seguimento do nosso empenho em robustecer o nosso corpo docente com os/as melhores e mais talentosos/as profissionais, contribuindo para a excelência deste Mestrado”.

    O “nosso empenho”, o da Faculdade de Direito da UNL, deve ler-se como empenho da ala do CDS nesta instituição universitária pública, que desde há muito ‘namora’ com o Almirante Gouveia e Melo, como ficou patente no descontraído encontro nocturno no bar Cockpit há duas semanas, revelado pelo PÁGINA UM, com o líder centrista e ministro da Defesa, Nuno Melo. Com efeito, todo o processo de convite foi conduzido pela então directora da Faculdade, Mariana França Gouveia – que actualmente preside ao Conselho Científico – e pela coordenadora do mestrado, Assunção Cristas, que também lidera a Comissão Científica do mestrado. Além das suas ligações umbilicais ao CDS, estas duas advogadas, amigas de longa data, gravitam numa das mais importantes sociedades de advogados com milionários contratos públicos: a Vieira de Almeida.

    Apesar do mais recente processo de acreditação pela A3ES ser completamente omisso sobre a entrada de militares de carreira sem currículo académico na regência de uma cadeira e a prestar aulas, não foi cumprida qualquer das regras previstas no rigoroso Estatuto da Carreira Docente Universitária, que não permite, por razões óbvias, a contratação de qualquer pessoa mesmo sob convite e mesmo se tivesse um currículo académico invejável, o que não é o caso de Gouveia e Melo.

    Assunção Cristas, antiga líder do CDS e ministra do Ambiente, é coordenadora do mestrado. Com a sua amiga de longa data e ligada também aos centristas, Mariana França Gouveia, antiga directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e actual presidente do Conselho Científico, tratou de contratar Gouveia e Melo, concedendo-lhe um título ilegal à luz do Estatuto da Carreira Docente Universitária.

    A colaboração de Gouveia e Melo no mestrado coordenado por Assunção Cristas até terá começado antes de ser formalmente apresentado, como se uma graduação universitária fosse algo caseira. Com efeito, em 19 de Novembro de 2022, Assunção Cristas colocou na sua página do Facebook uma fotografia com uma das filhas ao lado de Gouveia e Melo com a seguinte mensagem: “Foi um gosto começar o dia na Base Naval do Alfeite com os alunos do Mestrado em Direito e Economia do Mar da NOVA School of Law. Fomos extraordinariamente bem recebidos pelo Almirante Gouveia e Melo e pela sua equipa, responsáveis pela cadeira de Maritime Security”. Ora, nessa altura, nem sequer havia qualquer anúncio de formalização da ligação entre a Marinha e a Faculdade de Direito da UNL.

    Saliente-se que para o recrutamento de professores, ainda mais para exercerem regência, a lei determina que os convites somente podem ser endereçados a “individualidades, nacionais ou estrangeiras, cuja reconhecida competência científica, pedagógica e ou profissional na área ou áreas disciplinares em causa esteja comprovada curricularmente”, sendo necessário que esse convite se fundamente “em relatório subscrito por, pelo menos, dois professores da especialidade, que tem de ser aprovado pela maioria absoluta dos membros do Conselho Científico em exercício efectivo de funções, aos quais é previamente facultado o currículo da individualidade a contratar”. Ora, nada disso foi cumprido pela Faculdade de Direito da UNL, como confirmou o PÁGINA UM junto de professores catedráticos desta instituição. Como um regente de uma cadeira de mestrado tem de ser obrigatoriamente, independentemente de estar no quadro ou ser convidado, um professor catedrático, associado ou auxiliar – até por praticar actos administrativos –, a irregularidade da nomeação de Gouveia e Melo reveste-se de grande gravidade. No limite, as notas atribuídas podem ficar sem efeito por terem sido concedidas por alguém sem competências legais.

    A regência da cadeira de Segurança Marítima atribuída a Gouveia e Melo está ainda patente no próprio site da instituição universitária para o próximo semestre, que começa em Fevereiro, o que indicia que continuará nestas funções, mesmo em situação ilegal, quando sair da chefia do Estado-Maior da Armada no final do presente mês. Porém, estranhamente, o seu nome foi ‘desviado’ nos últimos dias da lista de “Professores/as Convidados/as” para a ambígua lista de parcerias sem contrato directo com a Faculdade de Direito da UNL. Uma alteração no corpo docente terá sido uma tentativa de ‘apagar’ o rastro de ilegalidades, mas os registos históricos da Internet não deixam margem para dúvidas de que a universidade pública concedeu a Gouveia e Melo um estatuto que nunca poderia ostentar.

    Ligação à Marinha estabelecida de forma informal por Assunção Cristas começou ainda antes do anúncio em Fevereiro de 2023.

    De facto, em registos consultados pelo PÁGINA UM, a primeira vez que Gouveia e Melo surge como Professor Convidado na lista do corpo docente da Faculdade de Direito da UNL é de 28 de Fevereiro de 2023, imediatamente a seguir ao anúncio da sua ‘contratação’. Ao longo de 2023, o mesmo registo encontrou-se em 29 de Março, em 5 de Abril e em 30 de Setembro. E continuou este ano, já com a segunda regência de Gouveia e Melo à cadeira de Segurança Marítima (ano lectivo de 2023/2024), encontrando-se registos em 24 de Fevereiro, em 13 de Abril e em 20 de Julho, último registo que consta no Archive.org.

    Em consulta do PÁGINA UM, não gravada, no início do passado mês de Novembro, Gouveia e Melo mantinha-se ainda na lista de “Professores Convidados”, o que indicia que a sua inclusão não foi um mero lapso administrativo, mas sim que a sua ‘transferência’ terá sido fruto de diligências superiores de ocultar a situação ilegal. Mantém-se, porém, para Gouveia e Melo uma particularidade: tem uma página própria com um endereço de correio electrónico da Faculdade de Direito da UNL, mas omitindo as suas funções de regência da cadeira de Segurança Marítima.

    O PÁGINA UM colocou perguntas concretas a Gouveia e Melo sobre esta sua ‘contratação’ por uma universidade pública à margem da lei. Procurou saber-se se a regência da cadeira de Segurança Marítima foi feita ao abrigo de alguma parceria com a Marinha ou ele fora contratado exclusivamente para a regência e docência, sendo que, no caso de uma parceria (por duas entidades públicas), se solicitou o documento. Pediu-se também a confirmação, no sentido de aferir informações recolhidas junto de antigos alunos do mestrado, se Gouveia e Melo nunca deu qualquer aula, mandando oficiais da Marinha prestar indevidamente funções de docência. Também se procurou averiguar se o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada recebera algum título académico e se continuará a regência depois de abandonar o cargo.  

    Campus de Campolide, onde ainda funciona a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Em resposta, transmitida pelo gabinete de relações públicas do Estado-Maior da Armada, e não assinada nem assumida por Gouveia e Melo, apenas se refere, sem enviar qualquer comprovativo, que a “lecionação da cadeira de Segurança Marítima insere-se numa parceria entre a Marinha Portuguesa e a Nova School of Law”, acrescentando somente que ”as aulas são ministradas por oficiais da Marinha, tendo o Almirante Gouveia e Melo contribuído, como regente dessa cadeira, de forma gratuita e no quadro da [ignota] parceria”.

    O PÁGINA UM também colocou diversas questões, em concreto, tanto à actual directora da Faculdade de Direito da UNL, Margarida Lima Rego – que tomou posse em Outubro de 2022 – como a Assunção Cristas e a Mariana França Gouveia. Apesar de todas terem recebido a mensagem do PÁGINA UM, todas optaram por não responder, remetendo para a LPM – uma agência de comunicação, actualmente sem qualquer contrato válido com a instituição universitária, segundo registos do Portal Base –, que emitiu uma breve declaração: “A Nova School of Law conta com a colaboração da Marinha Portuguesa no Mestrado em Direito e Economia do Mar. No âmbito dessa colaboração, o Almirante Gouveia e Melo, na sua qualidade de Chefe de Estado Maior da Armada, e a sua equipa são responsáveis por leccionar a unidade curricular de Segurança Marítima”. Nada é dito sobre os procedimentos de atribuição do cargo de Professor Convidado a Gouveia e Melo, nem sobre a ausência de deliberação do conselho científico, nem sobre como a regência e a lecionação de uma cadeira de um mestrado ser feita por pessoas não qualificadas nem sobre se o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada vai continuar em funções universitárias em situação ilegal.

    O fundador e antigo coordenador do mestrado em Direito e Economia do Mar, o catedrático Jorge Bacelar Gouveia mostra-se atónito com esta situação. “A contratação de docentes convidados é excepcional e deve basear-se num currículo adequado e com bibliografia na área, o que não acontece” no caso de Gouveia e Melo, diz. E acrescenta ser “até caricato que, no programa apresentado, estejam elementos bibliográficos do regente anterior [Armando Marques Guedes], que podia ter continuado a lecionar, mas que foi afastado”.

    Assunção Cristas (esquerda) e Margarida Lima Rego, actual directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

    Catedrático decano da Faculdade de Direito da UNL, Bacelar Gouveia diz não ser do seu conhecimento nem consta que “o Conselho Científico alguma vez tenha aprovado um relatório assinado por dois docentes a propor a contratação de Gouveia e Melo como docente convidado, como manda a lei”, reforçando que, “pelo menos, esses relatórios nunca constaram da ordem de trabalhos nem a questão foi discutida em Conselho Científico, como estabelece o Estatuto da Carreira Docente Universitária”.

    O PÁGINA UM vai requerer formalmente tanto à Marinha como à Faculdade de Direito da UNL diversos documentos, incluindo a alegada parceria e actos da regência de Gouveia e Melo, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, seguindo uma intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa caso um dos ‘bastiões’ do ensino público universitário da área jurídica se mantenha irresoluto em esclarecer este caso.


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  • Governo Montenegro: o carrasco do planeamento, o vendilhão da especulação

    Governo Montenegro: o carrasco do planeamento, o vendilhão da especulação


    Como se pode constar numa das notícias da edição desta semana do PÁGINA UM, portugal parece viver, com trágica naturalidade, imbuído num estranho torpor, uma espiral de decisões políticas que corroem décadas de princípios de ordenamento do território, num processo que não só despreza os fundamentos ambientais como abre portas a um verdadeiro carnaval de especulação e corrupção. A recente flexibilização da lei dos solos, que permite urbanizar terrenos rústicos para habitação “acessível”, é um dos mais perigosos capítulos desta história. Onde está a esquerda que apregoa a sustentabilidade? E onde está a imprensa para denunciar este atentado ao planeamento?

    A medida, apresentada como resposta à crise habitacional, é na verdade uma machadada sem precedentes na coerência do ordenamento do território. Em vez de resolver problemas estruturais de habitação, lança uma rede de oportunidades para negociatas municipais, especulação de terrenos e cedências à ganância imobiliária. Quem quiser agora urbanizar, não vai aceder sequer a terrenos urbanizáveis; procura comprar terrenos rústicos, mais baratos, e depois tentará obter autorizações camarárias. Aquilo que antes eram negociatas criminosas antes das aprovações dos planos directores municipais (PDM) será agora ‘legalizado’ em três tempos.

    Mais grave, tudo isto sob o beneplácito de partidos políticos que, com a mão no ‘coração ambiental’, têm apregoado uma fé tardia sobre os perigos das alterações climáticas, mas calam perante questões essenciais, passivamente assistindo à destruição dos pilares do planeamento sustentável.

    A urbanização de terrenos rústicos não é apenas uma ameaça à biodiversidade ou à proteção de solos agrícolas e florestais – que já são recursos escassos e essenciais num país vulnerável à desertificação. É um ataque frontal à lógica do planeamento urbano. Sem critérios claros, esta medida abre espaço para uma expansão urbana descontrolada, criando periferias desordenadas, dependentes de transporte automóvel, com infraestruturas precárias e uma qualidade de vida degradada.

    Além disso, como serão definidos os terrenos rústicos a urbanizar? Que garantias existem de que as áreas críticas para agricultura ou ecossistemas valiosos serão preservados? A resposta parece óbvia: nenhuma. Este diploma cria uma abertura tão ampla que entrega aos autarcas – frequentemente permeáveis à pressão económica e política – o poder de decidir o destino de terrenos cujo valor pode disparar com uma simples canetada.

    Os partidos que se dizem preocupados com o ambiente – especialmente os da dita esquerda – deveriam estar na linha da frente a criticar esta medida. Mas não. Permanecem num silêncio cúmplice, reféns de narrativas fáceis que confundem flexibilização com progresso. Mostra-se mais conveniente alinhar com soluções populistas que prometem resolver a crise habitacional do que enfrentar a complexidade do problema e sugerir alternativas sustentáveis.

    A imprensa mainstream, por sua vez, mostra uma passividade desoladora. Aliás, onde estão as notícias ou opiniões sobre os riscos de corrupção e especulação associados a esta medida? Onde estão os alertas para os impactes ambientais e sociais de urbanizar à pressa zonas não infra-estruturadas e protegidas da ânsia do betão fácil? A narrativa dominante centra-se na “necessidade de habitação”, sem escrutinar os efeitos desastrosos que esta decisão pode ter no longo prazo.

    Há formas eficazes e sustentáveis de responder à crise habitacional sem abrir mão de terrenos rústicos e sem comprometer décadas de planeamento. Algumas das alternativas são óbvias, mas ignoradas em nome de soluções fáceis. Vejamos, rapidamente, algumas, que estão nos compêndios:

        1.    Requalificação urbana: Portugal está repleto de edifícios abandonados ou subaproveitados em áreas urbanas. Por que não canalizar esforços para a sua recuperação e adaptação para habitação acessível?

        2.    Revitalização de zonas urbanas degradadas: Melhorar a qualidade de vida em áreas urbanas subaproveitadas poderia evitar a pressão para expandir para terrenos rurais.

      3.    Densificação inteligente: Embora esta solução tenha de avançar com uma política de mobilidade forte e coerente em zonas urbanas, a construção em altura pode ser uma solução interessante em zonas de urbanização mais recentes. Cidades como Amsterdão ou Copenhaga são exemplos de como a densificação, acompanhada de espaços verdes e uma boa e funcional rede de transportes públicos, pode oferecer soluções habitacionais sem sacrificar terrenos agrícolas ou florestais.

        4.    Mapas de aptidão do solo: É urgente identificar e proteger áreas críticas para conservação, agricultura e biodiversidade, evitando que a “flexibilização” se transforme numa licença para destruir. A Reserva Ecológica Nacional e a Reserva Agrícola Nacional (que está anacrónica por se basear sobretudo na aptidão para cereais) são instrumentos jurídicos que não podem estar sempre a ser sacrificados por simples despacho ministerial ao sabor das conveniências.

    Por tudo isto, a flexibilização da Lei dos Solos é, na verdade, um presente envenenado de efeitos futuris inqualificáveis, que somente poderia sair da cabeça de um primeiro-ministro que também ‘flexibilizou’ em seu benefício uma construção nova ‘travestida’ de reabilitação para poupar 100 mil euros. Em vez de resolver a crise habitacional, esta medida do Governo Montenegro, a avançar, exacerba a especulação imobiliária, aumenta a corrupção e compromete recursos fundamentais para as gerações futuras. O silêncio da esquerda ambientalista e a passividade da imprensa, a mante-se, serão cúmplices neste desastre anunciado.

    Se queremos verdadeiramente um país sustentável e justo, não podemos permitir que decisões tão graves passem sem escrutínio. Este diploma não é progresso. É um convite à destruição.


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  • Guimarães 1.0 (seguido de Bolonha 0.0)

    Guimarães 1.0 (seguido de Bolonha 0.0)


    A delícia do futebol é, na verdade, ser um reflexo da vida, e esta constatação vai muito além do cliché que se repete nas bancadas ou em mesas de café. É o teatro do improvável, a vida ou o futebol, uma peça onde o destino brinca com o esperado para introduzir o inesperado, transformando as certezas irrefutáveis em poeira no primeiro sopro de surpresa.

    Se a vida é uma luta constante entre a ordem e o caos em cima de uma bola chamada Terra, o futebol é a sua recriação mais fiel mas curta, em 90 minutos, de drama humano condensado em passes, golos, falhanços e, claro, nesta imprevisibilidade esperada que nos faz voltar, semana após semana, para ver como o capítulo seguinte será escrito.

    (e cheguei atrasado ao estádio, o que não é, certamente inesperado; salva-se que, no meio disto, esgotaram-se as doses de farnel, donde resultou que me desenrascaram apenas um pacotinho de batatas fritas, uma água e, vá lá, uma bifana verdadeira)

    Continuemos. Vejamos o exemplo do Glorioso e do seu arqui-adversário da Segunda Circular. Ainda há pouco mais de um mês, a Liga portuguesa arriscava ser um imerso marasmo. O Sporting de Amorim limpava tudo com uma surpreendente facilidade, cabazadas a eito, e o Benfica em estado de letargia tão desinspirada que já nem a mais fervorosa das águias acreditava numa reviravolta.

    Sob a direção de Roger Schmidt, nem um pingo de pressão, muito menos de criatividade, parecia ter perdido o fôlego, arrastando-se por uma sequência de exibições que fazia os adeptos suspirarem pela próxima época como a única salvação possível. Mas, como no futebol e na vida, as coisas nunca são tão simples nem tão lineares. E eis que assim se Schmidt, e o Sporting viu o seu treinador de sucesso rumar ao Manchester United – e num picar de olhos, a realidade altera-se. O Benfica feito carta fora do baralho, já está em posição de líder virtual, ‘bastando-lhe’ sair vitorioso deste Vitória e do jogo em atraso contra o Nacional, se os nevoeiros se escafederem em nova visita, que o ex-benfiquista João Pereira tratou de escavacar os lagartos depois da debandada de Ruben Amorim para a Velha Albion.

    (e gooooooooooloooooooooooo!!! Benfica… Aktürkoğlu, ao minuto 29, a desbloquear o nulo; isto estav a difícil, com as ofensivas muito afuniladas; venham mais agora, que já temos luz verde para a vitória)

    De facto, há algo profundamente filosófico neste jogo de incertezas. Heraclito dizia que “tudo flui”, que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. No futebol, é certo que nunca se joga duas vezes o mesmo jogo, mesmo quando o adversário é o mesmo e as equipas tenham as mesmas caras. O golo inesperado, o erro do árbitro (ou do VAR), o ressalto fortuito – tudo contribui para esta dança do imprevisível que transmuta o futebol num espelho tão claro da existência humana. E é nesse fluxo constante, nessa impossibilidade de prever o que vem a seguir, que encontramos o fascínio deste desporto.

    Mas não é só a filosofia que encontra eco no futebol. Também a História, com as suas vitórias e derrotas inesperadas, parece partilhar da mesma lógica. O futebol, nesta imprevisibilidade que tanto o define, reflecte o melhor e o pior da vida. A narrativa do Benfica encontra – exagero, claro! – paralelos históricos que mostram como os momentos de maior adversidade podem ser os precursores de vitórias inesperadas.

    (intervalo, e espero que o descanso dê mais alento ao Benfica, que me parece ago inquieto com este atrevido Guimarães)

    Enquanto o descanso dos guerreiros decorre, um pouco de História: lembremo-nos do desembarque de Dunquerque, durante a Segunda Guerra Mundial. Em Maio de 1940, as tropas britânicas e aliadas estavam cercadas pelas forças alemãs na costa francesa, e a situação era desesperante, e a derrota inevitável na apoarência. Mas, num acto de coragem e engenho, a Operação Dínamo mobilizou civis e militares para uma das mais extraordinárias evacuações da História. Mais de 300 mil soldados foram salvos, um feito que, embora não fosse uma vitória no sentido convencional, representou uma viragem moral e estratégica que mudou o curso da guerra. Foi um exemplo claro de como a resiliência, a esperança e a acção coletiva preparam aquilo que seria uma derrota iminente num triunfo inesperado.

    (e começa a segunda parte)

    Continuemos… e isto para, evitando mais exemplos bélicos, não introduzir aqui em detalhe a Batalha de Inglaterra, que se seguiu a Dunquerque. A Royal Air Force, em inferioridade numérica face à Luftwaffe, conseguiu defender os céus britânicos dos contra-ataques devastadores, demonstrando que a determinação e a coragem podem superar probabilidades aparentemente intransponíveis. O futebol, tal como a História, está, pois, repleto destes momentos em que o improvável se torna possível, em que as narrativas são subitamente invertidas, mudando o desespero em esperança e a fraqueza em força.

    Por isso, quando o Sporting decidiu apostar num treinador novato como João Pereira, muitos riram-se da ousadia ou da ingenuidade. E, no entanto, essa decisão, aparentemente inocente, foi o catalisador para que o Benfica encontrasse espaço para se reerguer. O futebol, como a vida, tem destas ironias deliciosas. Pequenos gestos, pequenos desvios, podem gerar mudanças monumentais. É a teoria do caos em acção: o bater de asas de uma borboleta em Manchester pode mesmo gerar um cataclismo em Lisboa.

    (ui… o Florentino a inventar, bola a ressaltar para o Guimarães, e nem sei como não foi golo nem sei, mesmo com repetição na televisão, se o corte do Otamendi, in extremis, pode ter sido feita sem as mãos; o VAR é soberano!)

    Mas o futebol nem é só isto que eu estava aqui a dizer. É também uma celebração do presente, uma pausa na lógica e na racionalidade do dia-a-dia para vivermos o agora em toda a sua intensidade. Quando estou no estádio, entre cânticos e gritos, embora eu seja bastante comedido na Varanda da Luz, ou os leitores e leitoras em frente à televisão a sofrer pelo golo que tarda em chegar, não há ontem nem amanhã. Há apenas aquele instante, aquele momento de esperança, de angústia ou de êxtase puro. É por isso que o futebol, mais do que um desporto, é uma experiência existencial. É, como diria Camus – não sei bem se disse, ouvi dizer –, o lugar onde “aprendemos que uma bola nunca vem para nós como esperamos”.

    E o Benfica, nesta temporada, mostra-nos como o futebol e a vida se entrelaçam. Não há finais garantidos, não há glória sem risco, não há narrativa que não possa ser reescrita. É a incerteza que dá sabor às vitórias e torna as derrotas suportáveis. Ser líder virtual não é ser campeão, e os próximos meses serão uma montanha-russa emocional onde tudo pode acontecer. Mas, para já, o Benfica é a prova viva de que, no futebol como na vida, nunca se deve subestimar o poder do improvável.

    E é isso que faz do futebol uma delícia. Porque, no final, o que nos prende ao jogo não é a previsibilidade, mas a promessa do inesperado. O golo que surge contra todas as probabilidades, o passe mágico que desarma a defesa, o falhanço que nos faz rir e chorar ao mesmo tempo. É no futebol que encontramos a essência da vida – essa mistura de caos e beleza, onde cada segundo é uma oportunidade de redenção. E, no fundo, é isso que nos mantém vivos. E a sonhar.

    (lá em baixo, o jogo anda vivo, mas eu gostava que estivesse morno, porque o Guimarães me parece mais próximo do empate do que o Benfica de marcar mais um)

    Não desejo cantar já vitória, mas a trajetória do Benfica nesta temporada ganhará, se vencermos, uma dimensão quase épica. Há poucos meses, os adeptos pareciam estar num estado de luto antecipado. Num piscar de olhos, a lógica foi subvertida, e o caos organizou-se em algo que parece agora uma caminhada rumo à glória. A liderança virtual não é ainda o título, mas é uma lembrança poderosa de que no futebol, tal como na vida, a única constante é a mudança.

    Mas continuemos a filosofar, enquanto ali o jogo caminha para o final, com alguns estrebuches do Vitória que me estão a pôr nervoso. O futebol é, por outro lado, também uma celebração do presente, algo que o distingue de quase todas as outras áreas da vida. Quando um golo é marcado no último minuto, nada mais importa. Não há passado nem futuro, apenas aquele momento puro de emoção. É por isso que este desporto, além de ser um reflexo da vida, é também uma lição sobre como viver. Na Varanda da Luz, ou em frente à televisão, os adeptos não pensam no amanhã; vivem o agora com uma intensidade que transcende o racional.

    (eu já só quero que isto acabe, porque não há crónica do que aquela que nasce com o rei na barriga, ou seja, com a vitória antecipada e, depois, redunda num desastre, e eu quero mesmo ir a Alvalade, com o Carlos, no dia 29, com o Benfica à frente do campeonato)

    Esta será a maior delícia do futebol: a sua capacidade de nos lembrar que a vida é feita de momentos. Momentos que, como o desembarque de Dunquerque ou a Batalha de Inglaterra, nos mostram que nem tudo está perdido, mesmo quando tudo parece estar contra nós. O Benfica, nesta temporada, é mais do que uma equipa de futebol; é um símbolo da resiliência e da força do improvável. Porque, no fundo, no futebol como na vida, nunca se deve subestimar o poder da surpresa – é nela que reside a verdadeira magia.

    E o jogo acabou e eu estou aliviado… Acho que quarta-feira só aqui venho, para assistir ao jogo contra o Bolonha, apenas para descontrair. Até porque ainda estou a lembrar-me daquela desgraça que foi contra o Feyenoord.


    E sobre o jogo contra o Bolonha, não há muito a dizer. Foi uma nulidade. Um nulo, de que pouco ou nada se deve dizer.


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