Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Câmara da Covilhã é uma ‘casa santa’ para o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Fundão

    Câmara da Covilhã é uma ‘casa santa’ para o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Fundão

    Amigos, amigos, negócios à parte” – assim reza o adágio. Mas há uma excepção, pelo menos na Covilhã: se quem pagar a conta for o Erário Público, então pode ser ‘amigos, amigos, negócios incluídos’, porque não será de estranhar que um presidente da autarquia contrate sucessivamente por ajuste directo um seu correligionário de longa data, por sinal provedor da Santa Casa da Misericórdia do vizinho Fundão, para serviços jurídicos. E se for necessário ‘inventar’ que não há, entre os 40.065 advogados existentes em Portugal, outro igual ao amigo, alegue-se então ser ele um ‘primus inter pares’, para se prescindir de concurso público aberto e transparente. Numa investigação do PÁGINA UM, conheça a fantástica relação comercial entre o edil Vítor Pereira, que também acumula a liderança da Federação Distrital de Castelo Branco do Partido Socialista, e o advogado Jorge Gaspar, que tem sido frutuosa para o segundo: 432 mil euros sem ‘espinhas’. O mais recente contrato de ‘mão beijada’ ocorreu há cerca de três semanas e ‘pinga’ até meio de 2027.


    No final do ano passado, estavam registados 40.065 advogados em Portugal, segundo a Ordem dos Advogados, mas o advogado e presidente da autarquia da Covilhã, o socialista Vítor Pereira, não teve dúvidas em contratar com dinheiros públicos, no início deste mês, o seu antigo colega de escritório, Jorge Gaspar, entregando-lhe uma nova avença mensal de 4.000 euros para os próximos três anos, por alegadamente não existir “concorrência por motivos técnicos”. Em todo o país, presume-se; daí não se ter a autarquia do distrito de Castelo Branco aberto um concurso público para prestar serviços jurídicos, pois seria uma inutilidade, porquanto, a atender às razões invocadas (ausência de concorrência), Jorge Gaspar nunca teria quem o igualasse, quanto mais o superasse.

    E quem é Jorge Gaspar? Considerando a existência de 40.065 advogados, será então um ‘primus inter pares’, uma ‘pérola’ mesmo se sedeado num pequeno escritório de advocacia na Covilhã, sem parceiros, mas com estatuto social suficiente para liderar também a Santa Casa da Misericórdia do Fundão, uma instituição de solidariedade social fortemente financiada pela Estado, embora com um passivo que subiu dos 6,1 milhões de euros em 2018 para 10,3 milhões no ano passado.

    Covilhã: amigos, amigos; negócios incluídos. Foto: D.R.

    A inusitada contratação do advogado Jorge Gaspar – através de uma justificação perfeitamente ridícula e falaciosa, apenas com o objectivo de contornar as limitações legais aos ajustes directos – foi concretizada no passado dia 30 de Julho, tendo sido disponibilizada três dias depois no Portal Base. Este contrato, que tem Vítor Pereira e Jorge Gaspar como signatários, não é acompanhado na plataforma da contratação pública pelo caderno de encargos, não estipula em concreto as tarefas específicas a executar, que poderiam fazer alguma luz para o facto de este causídico ser considerado único, ou seja, sem concorrência possível de se encontrar. O presidente da Câmara da Covilhã, que também é líder da Federação Distrital de Castelo Branco do Partido Socialista, não respondeu às perguntas do PÁGINA UM.

    Certo é que este é um contrato entre dois amigos de longa data da cidade da Covilhã, algo que pode ser visto como um hino à fraternidade, mas com o senão de envolver dinheiros públicos. E não é amizade recente: já ultrapassou três décadas e meia. Não tão longa é a relação de negócios entre o edil Vítor Pinheiro e o causídico Jorge Gaspar. Começou em 2014, um ano depois do ex-deputado socialista ter vencido as suas primeiras eleições autárquicas. Nesse ano, o presidente da autarquia da Covilhã mostrou-se grato ao seu antigo patrono, Antunes Ferreira, e entregou um ajuste directo de 48 mil euros à sociedade de advogados Antunes Ferreira, Jorge Gaspar & Associados, ou seja, começou a relação comercial. A norma para o ajuste directo tinha, neste caso, uma base legal, porque era então possível este procedimento para montantes inferiores a 75 mil euros.

    Este contrato terminaria em meados de 2015, mas só em 2016, mais precisamente em Julho, Vítor Pereira achou que, apesar da existência do habitual departamento jurídico camarário, precisava novamente do seu amigo Jorge Gaspar, e assim o contratou, dessa vez apenas a ele. Por um ano, em ajuste directo se ‘ajustou’ o pagamento de 48 mil euros por 365 dias de trabalho, ou seja, 4.000 euros por mês. Como o preço era inferior a 75 mil euros, o contrato mostrava-se legal por esta via.

    Vítor Pereira, advogado e presidente da autarquia socialista da Covilhã desde 2013, considera o seu amigo Jorge Gaspar como o único capaz de executar tarefas que já custaram mais de 420 mil euros ao município. Foto: CMC

    No ano seguinte, em Julho de 2017, foi repetida a ‘dose’: mais 12 meses com a avença de 4.000 euros, num total de 48 mil euros no ano. O limite legal para o ajuste directo era então de 50 mil euros, e o contrato entre os dois amigos foi concretizado pouco mais de um mês antes de uma alteração legislativa que procurava impedir a sucessão de ajustes directos por valores ‘cirurgicamente’ abaixo do limite. Ou seja, a partir desse momento, em teoria deixavam de ser possíveis ajustes directos (ou adjudicações após consulta prévia) a entidades ou pessoas que no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores tivessem sido contratados por essa via, e se fossem ultrapassados limites relativamente baixos.

    Mas onde o Código dos Contratos Públicos fecha uma porta aos abusos, a imaginação e os expedientes encontram sempre uma brecha, ou rasgam uma janela. Por esse motivo, mudou a estratégia do presidente da Câmara da Covilhã para contratar o amigo Jorge Gaspar por ajuste directo, sem os incómodos da concorrência. Assim, apesar de ter sido divulgado apenas em Novembro de 2021, o ajuste directo celebrado em 20 de Julho de 2018, no habitual valor de 48 mil euros com a duração de um ano, apresentou já como justificação um critério material, ou seja, um expediente que permite qualquer valor desde que se possa encaixar numa das excepções do Código dos Contratos Públicos. E foi aqui que se começou a ‘inventar’ que Jorge Gaspar era um advogado tão especial que, enfim, a sua contratação por ajuste directo se mostrava inevitável por “não exist[ir] concorrência por motivos técnicos”.

    O PÁGINA UM consultou diversos peritos que asseguraram que a amizade ou a confiança não podem ser invocadas como “motivo técnico” para uma contratação por ajuste directo (ou consulta prévia), ainda mais quando se está perante um mercado fortemente concorrencial como o da advocacia.

    Depois deste ajuste directo de 2018, no Portal Base apenas surge um novo contrato entre a autarquia da Covilhã e Jorge Gaspar em Julho de 2021, voltando-se a alegar novamente o critério material de inexistência de concorrência. E desta vez, para não se estar a repetir a ‘cantiga’ dos outros anos, o presidente Vítor Pereira tratou de compor um contrato com a duração de três anos pelo valor global de 144 mil euros, dando assim os habituais 4.000 euros por mês. Nessa linha, o contrato do passado mês de Julho acaba assim por ser um déjà vu: até meados de 2027, ‘imune’ à inflação, serão 4.000 euros a pingar por mês. Em suma, descontando o primeiro contrato, ainda celebrado com a sociedade de advogados, Jorge Gaspar ‘sacou’ do seu amigo Vítor Pereira 432 mil euros em dinheiros públicos, sempre através de ajustes directos, e sempre sem os incómodos da concorrência, e sem sequer se saber os processos em que terá trabalhado.

    Vítor Gaspar (ao centro), em Julho, durante uma visita de deputados do Grupo Parlamentar Socialista à Santa Casa da Misericórdia do Fundão, onde se destaca Alexandra Leitão e Ana Mendes Godinho, antiga ministra da Segurança Social. Foto: SCMF

    Apesar de a Câmara da Covilhã – a entidade pública que deve responder pela contratação – nada ter dito ao PÁGINA UM, o advogado Jorge Gaspar reagiu, questionando alegadas “encomendas” nesta investigação jornalística, que ‘nasceu’ de uma pesquisa no Portal Base. Mas o causídico covilhanense ‘sem igual’ diz presumir que na base desta investigação jornalística esteja “o mesmo covarde que, após a minha primeira contratação pelo Município da Covilhã, apresentou uma denúncia anónima na PJ [Polícia Judiciária]”, que assegura ter sido arquivada pelo Ministério Público.

    Jorge Gaspar defende, aliás, a legalidade de todos os contratos, apesar das evidências, dizendo que “a relação entre advogado e cliente tem subjacente uma relação de confiança, pessoal e profissional, pelo que as pessoas singulares e os representantes das pessoas coletivas, particulares ou públicas, procuram para os patrocinar juridicamente os advogados e/ou jurisconsultos e quem confiam, quer pelas suas qualidades pessoais, quer pelas suas qualidades e competências profissionais”. E o advogado ‘puxa dos galões’ para demonstrar que, na sua perspectiva, não existem mesmo dúvidas quanto aos facto de ser um ‘primus inter pares’: “os quase 34 anos de advocacia, os milhares de clientes, pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou particular, que já patrocinei, bem como os colegas e magistrados com quem tenho trabalhado, falam por mim”, diz. O presidente da Câmara da Covilhã, que pelo facto de ter contratado, poderia (e deveria) falar, optou por não o fazer.

    Jorge Gaspar acrescenta também, à laia de argumento de não ser o único a beneficiar de dinheiros públicos de ‘mão beijada’, achar “estranho que tendo o Município da Covilhã um outro advogado avençado, com uma avença de valor superior à que me é paga, cujo contrato existe há décadas, inicialmente com o pai, ilustre advogado, e actualmente e desde há mais de 20 anos, com o filho, igualmente ilustre advogado, só suscite estranheza e curiosidade a minha contratação, quando o meu prestígio e competência profissionais não são menores do que os daqueles ilustres profissionais”.

    Saliente-se, contudo, que antes mesmo desta ‘sugestão’ de Jorge Gaspar, já o PÁGINA UM detectara a outra avença para serviços jurídicos, beneficiando por ajuste directo a sociedade Fontes Neves & Associados, fundada na Covilhã por um antigo delegado do Procurador da República, António Fontes Neves, e agora liderada pelo seu filho David. No entanto, de acordo com a consulta ao Portal Base, onde devem constar todos os contratos públicos desde 2009, as relações entre a autarquia liderada desde 2013 pelo socialista Vítor Pereira são, porém, mais pontuais com a Fontes Neves & Associados. Na verdade, sob a liderança do actual presidente da edilidade covilhanense, somente foi assinado um ajuste directo, em finais de Maio de 2022, com uma duração de três anos e um valor de 252 mil euros, ou seja, uma avença mensal de 7.000 euros.

    Neste caso, porém, o argumento para a contratação não foi a ausência de concorrência, mas antes um outro ‘expediente’ cada vez mais comum para contornar o concurso público: a alegada dificuldade “na elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas”. Conhecer os motivos desta contratação também não foi possível, uma vez que também em relação a esta contratação o presidente da autarquia da Covilhã não deu resposta.

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    Para a autarquia da Covilhã, Jorge Gaspar não é um entre mais de 40 mil advogados portugueses: é o único advogado capaz de defender os interesses do município…

    Já Jorge Gaspar não esconde a longa relação que tem com o edil da Covilhã, mas considera não existirem motivos para colocar em causa a legitimidade ou a ética dos procedimentos contratuais. “Quanto ao meu relacionamento com o atual Presidente da Câmara, além de termos estagiado, em simultâneo, com o mesmo patrono [Antunes Ferreira] e de termos trabalhado durante algum tempo no escritório daquele (do qual o s[enho]r. Presidente saiu, há mais de 25 anos, para abrir escritório próprio e eu fiquei, acabando por constituir uma sociedade de advogados com o meu ex-patrono), nunca existiu qualquer outro relacionamento profissional ou negocial, seja de que natureza for”, assegura Jorge Gaspar.

    E o advogado ‘sem concorrência’ não esconde que “sempre t[e]ve uma relação de amizade com o Dr. Vitor Pereira, mesmo após a sua saída do escritório, tal como mantenho com outros autarcas, empresários, colegas de profissão, etc.”, se bem que, acrescenta, teve mesmo assim “ ocasião de litigar em processos em que o Dr. Vítor Pereira, enquanto exerceu advocacia, patrocinava a parte contrária, defendendo cada um, o melhor possível, os interesses dos seus clientes”. E conclui: “o S[enho]r. Presidente da Câmara Municipal da Covilhã, tal como os demais vereadores do executivo camarário, conhecem bem as minhas qualidades pessoais e profissionais, que me levaram a granjear o prestígio que me é reconhecido não só na cidade da Covilhã, mas em toda a Beira Interior, onde mais trabalho”.

    Portanto, concluindo, para o advogado Jorge Gaspar, tudo normal nos sucessivos contratos por ajuste directo com a câmara municipal liderada pelo amigo de longa data Vítor Pereira, usando-se dinheiros públicos… e esta notícia nem sequer tem, nessa perspectiva, uma razão para existir.


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  • Nova SBE: Miguel Pinto Luz deixou fundação em condições de perder estatuto de utilidade pública

    Nova SBE: Miguel Pinto Luz deixou fundação em condições de perder estatuto de utilidade pública

    O ministro das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz, presidiu a fundação que gere o campus da Nova SBE, em Carcavelos, e ‘esqueceu-se’ que, para manter o estatuto de utilidade pública concedido pelo Governo socialista em finais de 2020, teria de enviar os relatórios de contas e das actividades. Não o fez em 2023, em relação ao ano de 2022, e não deixou nada preparado para se enviarem a tempo os documentos respeitantes ao ano passado. Resultado: pela Lei-Quadro, a Fundação Alfredo de Sousa cometeu uma “violação reiterada” dos deveres susceptível de perder o estatuto de utilidade pública durante pelo menos cinco anos e a devolver os benefícios fiscais já obtidos. Mas para se aplicar a máxima ‘dura lex, sed lex’ será necessário que o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros se mexa. O PÁGINA UM fez a pergunta a Paulo Lopes Marcelo. Do outro lado, o silêncio num assunto sobre o qual o ministro Pinto Luz, o presidente da Nova SBE e o reitor da Universidade Nova de Lisboa também nada dizem. Talvez na esperança de saírem de um vergonhoso imbróglio sem ninguém os envergonhar. Ou responsabilizar.


    A Fundação Alfredo de Sousa, a entidade gestora do Campus de Carcavelos da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) está em risco de perder o estatuto de utilidade pública concedida em Outubro de 2020. Em causa está a violação considerada “reiterada” da respectiva Lei-Quadro por parte da instituição que até Março foi presidida por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas e Habitação. O actual governante, em representação da autarquia de Cascais, foi administrador da Fundação Alfredo de Sousa desde 2017 e a liderou a partir de Abril de 2021, até ao convite de Luís Montenegro para integrar o seu Governo.

    De acordo com a Lei-Quadro, para ser mantido o estatuto de utilidade pública – que, além de constituir um factor de marketing relevante, concede diversos benefícios fiscais e tarifários, bem como um regime especial ao abrigo do Código das Expropriações –, as entidades que o recebem têm de comunicar à Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM) o relatório e contas anual e o relatório de actividades, bem como publicitar a lista dos titulares dos órgãos sociais em funções, com indicação do início e do termo dos respectivos mandatos. O prazo para comunicação obrigatória dos relatórios é de “seis meses a contar da data do encerramento desse exercício”, devendo estes também estar disponíveis ao público em geral.

    Miguel Pinto Luz foi administrador da Fundação Alfredo de Sousa entre 2017 e início deste ano, tendo ocupado a presidência desde 2021.

    Ora, conforme o PÁGINA UM revelou no passado dia 8, a Fundação Alfredo de Sousa não aprovou sequer ainda as contas de 2021 – que era da responsabilidade máxima da administração presidida Miguel Pinto Luz –, e passados quase oito meses de 2024 também não estão aprovadas as relativas ao exercício de 2023, o que constitui, de forma clara, motivo de revogação do estatuto de utilidade pública. Com efeito, de acordo com a Lei-Quadro, constitui fundamento susceptível de determinar a revogação “o incumprimento, em dois anos seguidos ou três interpolados, dentro do período total de validade do estatuto de utilidade pública” dos deveres, entre outros, da comunicação dos relatórios com as demonstrações financeiras e de actividades. Se tal suceder, prevê a legislação, a Fundação Alfredo de Sousa apenas poderá requerer novamente a atribuição do estatuto de utilidade pública “passados cinco anos da decisão de revogação”.

    Porém, para que essa sanção seja aplicada – que pode também resultar até na restituição dos benefícios entretanto obtidos pela Fundação Alfredo de Sousa, até por estar em falta desde que obteve o estatuto em finais de 2020 –, será necessário que a SGPCM tome a iniciativa. Com efeito, na prática, cabe ao actual secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Paulo Lopes Marcelo, determinar a realização de inquéritos, sindicâncias, inspeções e auditorias às entidades beneficiárias do estatuto de utilidade pública. E como são evidentes as violações – dois anos com atraso na apresentação obrigatória de relatórios –, a Lei-Quadro não deixa grande escapatória, a não ser política, à revogação do estatuto de utilidade pública do Fundação Alfredo de Sousa, com todas as consequências que daí advêm por estar associada a uma universidade pública e sobretudo por ter tido Miguel Pinto Luz a liderá-la durante dois anos.

    Paulo Lopes Marcelo, actual secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros: terá coragem de aplicar a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública contra uma fundação presidida até este ano pelo ministro das Infraestruturas?

    O PÁGINA UM colocou questões ao secretário de Estado Paulo Lopes Marcelo sobre esta matéria, mas não obteve resposta, somando-se assim aos comprometedores silêncios de todos responsáveis directa e indirectamente envolvidos na gestão da Fundação Alfredo de Sousa. Recorde-se que, para a edição anterior do PÁGINA UM, tinham sido pedidos esclarecimentos e informações a Miguel Pinto Luz, ao actual presidente da Nova SBE, Paulo Oliveira, e ao reitor da Universidade Nova de Lisboa, João Sàágua, que se demitiu no início deste ano da presidência do Conselho de Curadores da fundação, que necessita de dar um parecer para que as contas sejam depois aprovadas.

    Aliás, na aparência, a Fundação Alfredo de Sousa, com apenas dois funcionários, está à deriva, porque Miguel Pinto Luz ainda nem sequer foi substituído e a sua renúncia nem sequer está formalmente registada, o que não surpreende porque a sua nomeação em Abril de 2021 somente surge registada em Março de 2024. Por outro lado, além da renúncia de João Sàágua ao Conselho de Curadores, o presidente da Nova SBE nunca se mostrou interessado em assumir um cargo de administrador da Fundação Alfredo de Sousa, ao contrário do seu antecessor, Daniel Traça, um dos ‘pais’ do Campus de Carcavelos.

    Mostra-se patente, aliás, que o modelo de gestão da Nova SBE, através de uma fundação – que, além da autarquia de Cascais e da Universidade Nova de Lisboa, conta com a participação do Banco Santander, da Jerónimo Martins e da Arica – está estruturalmente deficitário, o que não abona a favor de uma faculdade prestigiada internacionalmente na área da Economia e Finanças. Depois da inauguração do Campus de Carcavelos, em Setembro de 2018, as receitas da Fundação Alfredo de Sousa, provenientes da renda e aluguer dos espaços que construiu, nunca foram suficientes, até porque era ‘obrigada’ a desviar parte dos donativos para a própria Nova SBE, o que também levanta dúvidas de legalidade.

    Marcelo Rebelo de Sousa participou na inauguração do Campus de Carcavelos, em Setembro de 2018, na companhia do actual reitor da UNL, João Sàágua (segundo à esquerda) e do então presidente da Nova SBE, Daniel Traça (terceiro à esquerda). Foto: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República.

    O PÁGINA UM, conforme revelou na edição anterior, teve acesso às contas ainda não aprovadas de 2022 e 2023 da Fundação Alfredo de Sousa – apenas assinadas por cinco dos oito administradores, e ainda sem parecer do Conselho de Curadores –, que mostram prejuízos acumulados de quase 7,9 milhões de euros e um elevado endividamento, com o passivo total superior a 31 milhões de euros, dos quais mais de 13 milhões são empréstimos bancários ao Banco Europeu do Investimento e ao Banco Santander.

    Mais preocupante ainda, por se tratar de uma fundação com um património sobretudo assente nos edifícios do Campus de Carcavelos, é a ‘pressão’ financeira causada pelas depreciações, que no ano passado atingiram os 2,8 milhões de euros, que se aproximam dos 3,3 milhões de euros de rendas e alugueres. Para agravar o cenário futuro, as expectativas em redor de donativos não são muito risonhas. Neste ano, os doadores ainda assumem entregas próxima de 3,2 milhões de euros, mas esse valor será de metade (1,6 milhões) em 2025. Para 2030, somente há garantia, por agora, de receber 150 mil euros.

    N.D. Pode consultar aqui os relatórios e contas de 2016 a 2021. Os relatórios não aprovados de 2022 e de 2023 podem ser consultados, respectivamente, aqui e aqui.


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  • Regulador dos media dá ‘puxão de orelhas’ a José Rodrigues dos Santos por causa de Marta Temido

    Regulador dos media dá ‘puxão de orelhas’ a José Rodrigues dos Santos por causa de Marta Temido

    Foi a 5 de Junho, Dia Mundial do Ambiente, mas a entrevista na RTP conduzida por José Rodrigues dos Santos à cabeça-de lista do Partido Socialista, Marta Temido, na recente campanha para o Parlamento Europeu, aqueceu muito e o ambiente não ficou nada arejado. E não foi apenas nas redes sociais que se debateu o ‘confronto’: houve três queixas a acabar na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que achou bem criticar o estilo do jornalista da RTP na condução da entrevista. Uma ingerência “intolerável e fascistinha” do regulador, diz o especialista em media Eduardo Cintra Torres, perante a polémica deliberação que foi votada apenas por três dos cinco membros da ERC. A presidente do regulador, Helena Sousa, não participou na aprovação.


    Foi o momento mais mediático da recente campanha eleitoral para o Parlamento Europeu: a entrevista do jornalista da RTP José Rodrigues dos Santos à cabeça-de-lista do Partido Socialista, Marta Temido, na noite do dia 5 de Junho, acabou azeda, sobretudo pelo ‘confronto’ em redor da “subsidiodependência” de Portugal relativamente aos fundos europeus. No rescaldo, houve quem criticasse a postura do jornalista, outros o comportamento da ex-ministra da Saúde, agora eurodeputada, que se despediu com acrimónia, quando Rodrigues dos Santos agradeceu a sua presença.

    Nos dias seguintes, tanto nas redes sociais como até no Polígrafo, discutiu-se e dissecou-se apaixonadamente este ‘confronto’, e houve três pessoas que se dispuseram a queixar-se à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), acusando José Rodrigues dos Santos de ter feito uma entrevista que era “uma vergonha para a TV pública”, com “perguntas capciosas, baseadas em informações falsas, tom violento, contestando todas as respostas”, agindo com “uma postura agressiva” que ultrapassara “em muito a razoabilidade da educação e boas maneiras”.

    Marta Temido não apreciou entrevista e depediu-se com acrimónia.

    Apesar de não ser nada consensual que o regulador intervenha em matérias do foro editorial, e sobretudo de estilo, certo é que a ERC deu seguimento às queixas e acabou mesmo por aprovar uma deliberação que constitui um ‘puxão de orelhas’ a José Rodrigues dos Santos. Com efeito, na deliberação aprovada no passado dia 7, mas somente hoje revelada, o Conselho Regulador – sem a presença da sua presidente, Helena Sousa – critica o conhecido pivot da RTP por se ter afastado “do registo de factualidade e das regras de condução da entrevista jornalística”, e que “não foi conferido espaço à entrevistada para expor os seus pontos de vista”. E conclui ainda que “a forma como decorreu a entrevista é susceptível de prejudicar o direito dos telespectadores de serem informados”, em violação do que garante a Constituição.

    A polémica deliberação do regulador – que não detém atribuições para se imiscuir em estilos e abordagens, apesar de ser uma tentação à qual não resiste –, aprovada apenas por três dos cinco membros do Conselho Regulador, “revela uma atitude condenável de interferir na liberdade jornalística”, defende Eduardo Cintra Torres, professor universitário e especialista em media.  Destacando que a deliberação não contraria sequer a argumentação defendida no processo por José Rodrigues dos Santos, Cintra Torres diz também que não é esclarecido “se as queixas contra a entrevista tiveram origem na candidatura eleitoral da entrevistada”.

    Este aspecto não é, aliás, despiciendo, uma vez que as queixas sobre a cobertura mediática no decurso das campanhas por parte de representantes partidárias têm de seguir trâmites, passando primeiro pela Comissão Nacional de Eleições. Cintra Torres, que é também comentador no Correio da Manhã e na CMTV, lamenta ainda que “os membros da ERC que assinam a deliberação, sem experiência jornalística, tomem partido pela pessoa política entrevistada”, quando a função do entrevistador, como foi feito por José Rodrigues dos Santos, foi insistir quando Marta Temido quis fugir às perguntas. “É inacreditável que a ERC se intrometa no modo de realizar entrevistas, para mais falseando a realidade”, defende Cintra Torres, concluindo que este tipo de ingerência “é intolerável e é um toque ‘fascistinha’, contrariando até o caminho seguido, em geral, pelo anterior Conselho Regulador”, e ameaça ser “um regresso aos tempos negros da dupla socratinista Azeredo Lopes-Estrela Serrano”.

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social continua na sua senda de criticar mais do que defender jornalistas.

    Sem pretender abordar o caso em concreto, Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, diz ser “incontestavelmente a favor da total liberdade de informação” e que, sem prejuizo de se apreciar ou não estilos, “não cabe ao regulador apreciar a condução de uma entrevista”.

    O PÁGINA UM está a tentar, ainda sem sucesso, uma reacção de José Rodrigues dos Santos. Em todo o caso, no processo levantado pelo regulador dos media, o jornalista da RTP argumentou que “não houve nenhuma acção para impedir a entrevistada de prestar esclarecimentos quando ela estava a responder efetivamente às perguntas nem qualquer ‘tom violento’ e ‘agressão’, a não ser que se defina os repiques como agressões”.

    Rodrigues dos Santos sublinhou ainda que os “repiques nestas entrevistas constituíram um esforço para impedir respostas evasivas a perguntas concretas, e também um esforço para obter respostas factualmente verdadeiras ou que não induzissem em erro”, sustentando ainda que “as entrevistas com políticos tendem a ter uma natureza confrontacional porque o entrevistador procura assumir-se como “advogado do diabo“.

    Contudo, para a ERC, aparentemente, por esta deliberação, o jornalista deve pensar agora sempre duas vezes antes de perguntar ou escrever algo que possa resultar numa queixa, que em seguida culmina num ‘puxão de orelhas’ do (atento) regulador.

    N.D. Acrescentado, às 21h00 de 22/08/2024, o comentário de Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas.


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  • PÁGINA UM vs. ‘carteiristas da Artilharia Um’

    PÁGINA UM vs. ‘carteiristas da Artilharia Um’


    Hoje é uma espécie de renascimento do PÁGINA UM, não propriamente uma redenção, embora sintamos que nos apresentamos, perante os leitores, com um redobrado respeito e admiração. Mantivemos durante 30 meses, ininterruptamente, todos os dias, uma ‘renovação’ noticiosa, sempre cumprindo de forma escrupulosa os princípios iniciais: jornalismo independente, incómodo e irreverente. Porém, sentimos que esse esforço se tornava esgotante – e propusemos um novo modelo que tem os seus riscos: uma edição quinzenal, com a renovação integral das notícias, crónicas e artigos de opinião, conteúdos culturais e mesmo entrevistas (e logo quatro). Para que não sentissem em demasia a nossa falta – ou que pensassem que tínhamos desistido, prometemos no início deste mês, e cumprimos, sair com a primeira edição esta quinta-feira, dia 8. Foi um esforço suplementar. Estamos aqui para que nos avaliem, sentindo, porém, que teremos necessariamente que crescer para conseguir melhorar a frequência, nestes moldes, para semanal.

    Mas mesmo que nos mantenhamos com a periodicidade quinzenal, prometemos lutar por um jornalismo isento, mas inflexível contra os abusos. E nesses abusos estão sobretudo incluídos aqueles que surgem, travestidos de carneiro, mas mostrando-se vorazes nos actos e traiçoeiros nos gestos.

    white jellyfish in body of water

    Estou a falar, em concreto, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) que, constituída somente por jornalistas com carteira (que não merecem), sequestraram a essência e pureza do jornalismo. Como tem sido notório, esta entidade tem servido basicamente para manter tudo como está, dando uma aparência de pureza. Mas são, na verdade, um pobres déspotas, que, na sua ânsia e sofreguidão em decepar um jornal (PÁGINA Um) e um jornalista (eu), não olharam sequer a meios, e assim cegos nem sequer se aperceberam da vergonha que cometeram a instruir um processo disciplinar que me intentaram para gáudio de um putativo candidato a Presidente da República, alcandorado a herói nacional por uma imprensa acéfala durante um período de atropelos indescritíveis aos nossos direitos, liberdades e garantias.

    A leitura do parecer que amavelmente o Professor José Melo Alexandrino – um dos grandes especialistas nacionais em Direito Constitucional e Direito Comparado – se dispôs a elaborar, como análise crítica à ‘instrução’ do processo disciplinar da Secção Disciplinar da CCPJ, é de leitura obrigatória. Pelo menos para juristas e para jornalistas. Para os primeiros será útil para perceberem o que nunca se deve fazer; para os segundos será útil para, com vergonha alheia, perceberem como a canalhice e a ignorância se podem irmanar.

    Escreve o Professor José Melo Alexandrino, no final do seu parecer [negritos da minha autoria], que “são de tal modo graves, diversos, desvaliosos e incompreensíveis os erros técnico-jurídicos [da ‘instrução’ que sugere uma repreensão escrita], bem como as questões prévias analisadas que, no seu conjunto, constituem motivo mais do que bastante para a imediata declaração, por parte do órgão competente, da nulidade de todos os actos praticados no procedimento, com exclusão da participação disciplinar, além de serem, eles próprios, passíveis de gerarem responsabilidade civil, por violação grosseira da esfera jurídica do arguido, bem como responsabilização interna dos membros do Secretariado, da Secção Disciplinar e dos agentes ao serviço da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, dada a negligência grosseira patenteada“.

    Dá vergonha ler isto assim. E se lerem todo o parecer vão ficar pasmos, de tão risível se tornam os erros e ignorâncias desta comissão que tem uma suposta “jurista de mérito”…

    man in white dress shirt wearing black framed eyeglasses

    [e, aliás, nem sequer a CCPJ pode, como entidade, colocar em causa [seria redobrada vergonha] a idoneidade do Professor José Melo Alexandrino, sabendo-se que ele até já fez um parecer a pedido da CCPJ em 2021 sobre a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.]

    Por tudo isto, e pela forma enviesada e canina como a CCPJ me tem perseguido, por aquilo que representa o jornalismo do PÁGINA UM (e por causa dos podres que temos revelados; e hoje mostramos mais aqui), eu acrescento: só a demissão conjunta de Licínia Girão (CP 1327), de Jacinto Godinho (CP 772), de Anabela Natário (CP 326), de Miguel Alexandre Ganhão (CP 1552), de Isabel Magalhães (CP 102), de Cláudia Maia (CP 2578), de Paulo Ribeiro (CP 1027), de Luís Mendonça (CP 1407) e de Pedro Pinheiro  (CP1440) pode restituir alguma dignidade a um organismo que deixou de se dar ao respeito. Enquanto se mantiverem naqueles cargos, não são mais do que uns simples ‘carteiristas’ atirados para a Artilharia Um.


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  • Nova SBE: Ministro das Infraestruturas ‘abandonou’ fundação com prejuízos crónicos e sem contas aprovadas desde 2021

    Nova SBE: Ministro das Infraestruturas ‘abandonou’ fundação com prejuízos crónicos e sem contas aprovadas desde 2021

    Com o nome oficial de Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, a marca Nova SBE tem atravessado fronteiras pela excelência do ensino e investigação. Porém, nesta ‘casa de economistas’ optou-se por uma estratégia pouco ortodoxa, que espantaria um merceeiro, a partir de uma fundação mista (pública e privada) com vista à construção e gestão do campus de Carcavelos. Resultado, em menos de uma década, a Fundação Alfredo de Sousa soma prejuízos de quase 9 milhões de euros, fluxos financeiros absurdos, um vazio de liderança e os relatórios e contas de 2022 e 2023 sem estarem aprovados, quando já se está na segunda metade de 2024. Neste caso, uma ‘herança’ deixada por Miguel Pinto Luz, actual ministro das Infraestruturas, que foi presidente (CEO) da fundação entre 2021 e início deste ano, mas que ocupava já um cargo de administrador desde 2017. João Sàágua, reitor da Universidade Nova de Lisboa, também renunciou à presidência do Conselho de Curadores. Ninguém quis esclarecer ou comentar as trapalhadas detectadas pelo PÁGINA UM.


    Em casa de ferreiro, se o forjador for adepto de Frei Tomás – aquele frade que bem pregava o que fazer, mas que não fazia –, só de pau se espera um espeto. Já da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) – ou mais propriamente da fundação que gere desde 2018 o campus de Carcavelos –, uma das mais conceituadas escolas superiores públicas nacionais e internacionais de Economia e Finanças, poder-se-ia imaginar, num cenário tenebroso, que, enfim, nos fossem apresentadas ‘contas de merceeiro’. Porém, nem isso sucede, porque, em abono da verdade, e do rigor, estando o relógio universal a começar a segunda semana de Agosto de 2024, as contas dos exercícios de 2022 e 2023 ainda nem foram sequer aprovadas.

    Nesses anos, essa tal fundação – baptizada Alfredo de Sousa, em homenagem ao primeiro reitor da UNL – foi presidida por Miguel Pinto Luz, então vice-presidente da autarquia de Cascais e agora ministro das Infraestruturas e Habitação. Pinto Luz ocupou o cargo de administrador desta entidade pelo menos desde 2017, assistindo assim ao acumular de prejuízos crónicos, que, na hora da sua entrada no Governo, se aproximavam já dos 9 milhões de euros. Porém, embora este seja o ‘problema’ mais sonante, muitos mais acumula o modelo de negócio gizado há cerca de uma década para gerir as modernas instalações da Nova SBE. E surgem mesmo indicadores sobre uma ‘dissolução’ desta Fundação, que serviu sobretudo para acelerar a construção do campus sem passar pelas ‘burocracias’ do Código dos Contratos Públicos.

    Miguel Pinto Luz foi administrador da Fundação Alfredo de Sousa entre 2017 e início deste ano, tendo ocupado a presidência desde 2021.

    Criada em Dezembro de 2015, a Fundação Alfredo de Sousa teve como fundadores empresas privadas, nomeadamente o Banco Santander – que prometia entrar com donativos para o fundo patrimonial de 6,3 milhões de euros, mas que tem sobretudo ganho bom dinheiro com juros de empréstimos –, a Jerónimo Martins – que avançou com 5 milhões de euros – e a Sindcom (actual Arica, da família Soares dos Santos, que disponibilizou um milhão de euros –, bem como pequenas participações da própria Nova SBE (10 mil euros), e da autarquia de Cascais (162.400 euros). Neste último caso, a ‘comparticipação’ do município foi em espécie, sob a forma de cedência por 50 anos dos terrenos para a instalação do campus universitário defronte ao mar. Esse valor, por força de um processo judicial relacionado com o baixo valor da expropriação daqueles terrenos, acabaria por implicar um reforço da ‘participação’ da Câmara Municipal de Cascais, uma vez que se viu ‘obrigada’ a revalorizar os terrenos para cerca de 9,7 milhões de euros.

    Independentemente desta questiúncula, o projecto de construção do campus da Nova SBE em Carcavelos avançou rapidamente, até porque a Fundação Alfredo de Sousa não tinha de cumprir as normas do Código dos Contratos Públicos. As obras de maior monta foram directamente entregues às construtoras Alves Ribeiro e HCI. Inicialmente, o projecto entusiasmou muitos mecenas, que, com ou sem interesses futuros, foram sendo generosos em donativos. Só em 2016, a Fundação recebeu doações de mais de 2,5 milhões de euros para aplicar na construção do campus.

    Em Setembro do ano seguinte, o projecto, que tinha uma estimativa inicial de custos da ordem dos 50 milhões de euros, levaria mais um ‘balão de oxigénio’ com um empréstimo do Banco Europeu de Investimento (BEI) de 16 milhões de euros. A cerimónia de assinatura desse contrato contou mesmo com a presença do então comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas, e do vice-presidente do BEI, Román Escolano. A sintonia entre o director da Nova SBE, Daniel Traça, do então presidente da Fundação Alfredo de Sousa, Pedro Santa Clara, e do presidente da autarquia de Cascais, Carlos Carreiras, era evidente: todos remavam no mesmo sentido.

    Banco Europeu de Investimento e Santander foram as instituições bancárias, que a par de doadores, permitiram a construção do campus de Carcavelos em moldes poucos usuais.

    Mas nem só de empréstimos do BEI e de donativos foi vivendo a Fundação. Em 2017 teve duas importantes ‘injecções’: um financiamento de 12,5 milhões de euros do Santander – que, só por aí, pelos juros a receber, beneficiou de ser um fundador – e um adiantamento de quase 9,9 milhões de euros por parte da Nova SBE relativo a um contrato de promessa de compra e venda da fracção do campus. Nesse ano de 2017, os donativos atingiram cerca de 1,3 milhões de euros. Por via do empréstimo, o Santander ficou com a hipoteca dos direitos de cedência do terrenos camarários. Saliente-se que, neste período, o presidente (dean) da Nova SBE era Daniel Traça, que a partir de 2018 acumulou com as funções de administrador do Santander.

    Já com Miguel Pinto Luz na administração da Fundação, como vogal, o campus de Carcavelos teve inauguração com ‘festa rija’ e presença de Marcelo Rebelo de Sousa. E à boa moda portuguesa acabou por custar 63 milhões de euros, mais 13 milhões do que inicialmente previsto, entre construção (55 milhões), tecnologias de informação (5,2 milhões) e mobiliário e painéis fotovoltaicos (2,6 milhões). Mas como foi ano de inauguração, a derrapagem foi compensada com quase 18,5 milhões de euros em donativos do mundo corporativo e de antigos alunos.

    Mas depois da festa, começaram a vir as receitas. Mas poucas, ou pelo menos poucas em comparações com os custos e outros gastos. Sem meios humanos e know-how para fazer autonomamente a gestão do campus – que passaria a ser a sua única receita, porque as propinas dos alunos mantiveram-se na Nova SBE –, a Fundação Alfredo de Sousa concessionou grande parte dos espaços do ‘seu’ campus a empresas privadas, recebendo também rendas da própria Nova SBE. Nesse ano, esta instituição sem fins lucrativos – ou seja, não distribui dividendos se tiver lucros – obteve receitas da ordem dos 1,5 milhões de euros, mas isso mais do que se esfumou em fornecimentos externos e em depreciações. Resultado: no seu primeiro ano de actividade operacional, a Fundação aumentou mais 635 mil euros os prejuízos.

    Marcelo Rebelo de Sousa participou na inauguração do Campus de Carcavelos, em Setembro de 2018, na companhia do actual reitor da UNL, João Sàágua (segundo à esquerda) e do então presidente da Nova SBE, Daniel Traça (terceiro à esquerda). Foto: Miguel Figueiredo Lopes / Presidência da República.

    Apesar de ter ficado estabelecido a reformulação do modelo de governo do campus de Carcavelos, aparentemente tudo ficou na mesma, o que significa que 2019, o primeiro ano completo de gestão por parte da Fundação, acabou no vermelho: prejuízo de quase 1,8 milhões de receitas, porque os rendimentos não chegaram aos 3,6 milhões de euros, sobretudo por via de rendas, mas com os fornecimentos e serviços externos (2,7 milhões de euros), as depreciações (1,9 milhões de euros) e os juros (mais de 950 mil euros) a pesarem muito negativamente nas contas.

    Um ‘merceeiro’ diria logo que isto se mostrava insustentável, mas pouco ou nada se mudou no ano seguinte. Na verdade, só piorou, por causa da pandemia, embora o então presidente do Conselho de Curadores da Fundação Alfredo de Sousa, João Sàágua, reitor da Universidade Nova de Lisboa, se mostrasse optimista e orgulhoso dos resultados da Nova SBE nos rankings da especialidade. E também do reconhecimento do estatuto de utilidade pública pelo Governo, o que implicava, a partir daí, vantagens fiscais, mas também obrigações de transparência, a começar com a divulgação pública das contas.

    E as contas de 2020 ainda foram divulgadas. Então com Nuno Fernandes Thomaz a presidir – que viria a falecer no ano seguinte – e ainda com Miguel Pinto Luz como vogal, a Fundação, que já não andava com contas saudáveis, acabou por ter a ‘obrigação’ de conceder donativos à própria Nova SBE. Nesse ano atingiram cerca de 1,65 milhões de euros. Mesmo com os custos dos serviços externos a diminuírem significativamente por força dos lockdowns e demais restrições da pandemia, as contas da Fundação em 2020 derraparam mais uma vez: prejuízo de cerca de 1,95 milhões de euros.

    Espaço exterior do campus de Carcavelos. (Foto: D.R.)

    Em Maio de 2021, Miguel Pinto Luz assumiria a presidência (CEO) da Fundação, e foi mais do mesmo. Ou seja, mais prejuízos: cerca de 1,3 milhões de euros, mantendo-se o passivo em nível bastante elevado (quase 39 milhões de euros). Nesse ano, a Fundação doou cerca de um milhão de euros à Nova SBE, o que se mostra absurdo numa instituição sem fins lucrativos, que nem sequer podem distribuir ‘dividendos’ quando der lucro, mas que, neste estranho modelo, pode doar dinheiro a um fundador minoritário quando tem prejuízos acumulados. Aliás, o absurdo é ainda mais sabendo-se que a Nova SBE é, na verdade, formalmente a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, que é fundação pública
    com regime de direito privado.

    Depois de 2021, deixou então de haver relatórios e contas, contrariando a lei das entidades de utilidade pública. O PÁGINA UM solicitou na segunda-feira passada o acesso às contas de 2022 e 2023 da instituição – que, formalmente, tem apenas dois empregados, mas conta nove administradores, sem remuneração fixa –, quer à própria Fundação Alfredo de Sousa quer à Nova SBE. Na terça-feira à tarde, fonte oficial da Nova SBE remeteu os dois relatórios de 2022 e 2023, ambos datados de Abril deste ano, mas ainda sem todas as assinaturas de todos os administradores, o que constitui condição para aprovação. E, aparentemente, sem o necessário parecer prévio do Conselho de Curadores, que foi presidido pelo reitor da UNL, João Sàágua, mas que se demitiu desse cargo em Fevereiro deste ano, sem se conhecer a causa. E sem haver substituto conhecido.

    De igual modo, actualmente existe um vazio na própria liderança da Fundação Alfredo de Sousa, após a entrada de Miguel Pinto Luz no Governo Montenegro em Abril passado. Os relatórios não formalmente aprovados de 2022 e 2023 já não têm sequer o nome do actual ministro das Infraestruturas. Contudo, pelo menos, o primeiro destes relatórios, referente a 2022, deveria ser por si assumido, bem como a falha pela sua não-aprovação em devido tempo, ou seja, na primeira metade de 2023.

    Daniel Traça, antigo presidente da Nova SBE, foi o grande impulsionador do modelo de gestão assumido pela Fundação Alfredo de Sousa para o campus de Carcavelos, que acabou por ser um bom negócio para o Santander, instituição bancária onde exerce as funções de administrador . (Foto: D.R.)

    Na análise desses relatórios (não aprovados), mostra-se que os prejuízos continuaram, embora tenham passado de 867 mil euros em 2022 para apenas 8.587 euros no ano passado, muito por via da revogação de despesas anteriormente assumidas pela Fundação na realização de mestrados, que transitaram para a Nova SBE, sem se saber se foi ‘decisão’ pacífica. No relatório não aprovado de 2023 faz-se referência a um “novo modelo de governo entre a Nova SBE e a Fundação Alfredo de Sousa, tendo sido constituído ao abrigo do mesmo um Conselho Consultivo entre as duas instituições”.

    De qualquer modo, além da actual situação financeira da Fundação Alfredo de Sousa ser pouco saudável, com prejuízos acumulados de 8,7 milhões de euros e um passivo de 31 milhões de euros – nada elogiosa para uma universidade que se coloca na elite das escolas das ciências económicas a nível mundial –, acresce o vazio da sua liderança, sem presidente (CEO) do Conselho de Administração desde Abril, e o aparente desinteresse tanto da Nova SBE como da ‘casa-mãe’, a UNL.

    Com efeito, além da renúncia de João Sàágua do Conselho de Curadores – que tem um papel de orientação relevante na estratégia da instituição –, o actual presidente da Nova SBE, Pedro Oliveira, nunca quis, ao contrário do seu antecessor (Daniel Traça), assumir qualquer lugar na administração da Fundação Alfredo de Sousa.

    Desinteresse evidente, e aí generalizado, abrangeu todos os responsáveis associados às matérias aqui expostas pelo PÁGINA UM. Apesar de ter, mesmo sem presidente, oito membros do Conselho de Administração em funções, ninguém da Fundação Alfredo de Sousa quis prestar esclarecimentos. De igual modo, alegando fonte oficial o decurso do período de férias, ninguém da Nova SBE se mostrou disponível. Em todo o caso, o actual dean desta instituição universitária, Pedro Oliveira, esteve esta segunda-feira na rádio Observador numa longa entrevista sobre inteligência artificial,

    Pedro Oliveira, actual presidente da Nova SBE, nem sequer ocupa, por opção, o cargo de administrador da Fundação Alfredo de Sousa.

    Por sua vez, não houve também resposta do gabinete do reitor da UNL aos pedidos de comentário do PÁGINA UM, ficando-se assim sem saber os motivos para João Sàágua nem sequer mostrar curiosidade em saber qual a estratégia futura da fundação gestora do campus de Carcavelos, uma vez que saiu do Conselho de Curadores. Da parte de Miguel Pinto Luz, que foi sempre o ‘operacional’ da autarquia de Cascais na Fundação Alfredo de Sousa – e é o responsável máximo pelos atrasos da aprovação das contas de 2022 e 2023 –, veio o silêncio.

    Saliente-se que, apesar de existir a referência à renúncia deste governante nos relatórios ainda não aprovados, o nome do actual ministro das Infraestruturas ainda consta na lista dos beneficiários efectivos da Fundação Alfredo de Sousa, não havendo também qualquer informação da sua renúncia ao cargo nos registos dos actos societários e de outras entidades, consultados pelo PÁGINA UM.

    N.D. Pode consultar aqui os relatórios e contas de 2016 a 2021. Os relatórios não aprovados de 2022 e de 2023 podem ser consultados, respectivamente, aqui e aqui.


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  • Coimbra é a ‘cidade dos doutores’, enquanto há vastas regiões do país onde os médicos não querem viver

    Coimbra é a ‘cidade dos doutores’, enquanto há vastas regiões do país onde os médicos não querem viver

    Se é expectável que seja nos concelhos com hospitais de maior dimensão que vivam mais médicos, uma análise do PÁGINA UM aos dados de 2023 disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística mostra que há vastas regiões do país onde, mesmo com programas de incentivo, os médicos não se querem fixar, acarretando efeitos catastróficos na assistência das populações, sobretudo dos mais idosos. Na verdade, o rácio médio de médicos (5.8 por mil habitantes) em Portugal não tem qualquer significado: por exemplo, se o concelho de Coimbra, onde quase 4% da população é licenciada em Medicina, apresenta um valor que está seis vezes acima da média nacional, há nove em cada 10 municípios que não superam o valor médio. Destes, 109 têm menos de dois médicos por cada mil habitantes. A pior situação é na Pampilhosa da Serra, ironicamente no mesmo distrito de Coimbra.


    Em Junho passado, a Câmara de Montalegre anunciou um incentivo para a fixação de médicos naquele concelho transmontano que inclui habitação, pagamento de despesas como energia, água e Internet e entrada gratuita em serviços e equipamentos municipais. Compreende-se: o rácio de médicos residente, segundo os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística, é de apenas 2 por mil habitantes – menos de metade da média nacional (5,8 por mil habitantes), o que significa, atendendo à sua população total que ali vivem apenas 18. Na verdade, até se pode dizer que, além de clínicos gerais, haverá em Montalegre um cirurgião, três médicos de Medicina Geral e Familiar, um de Medicina Interna, um ortopedista e um de Medicina Intensiva. Contas feitas, de entre as 96 especialidades registadas pelo INE, de entre os médicos que ali  vivem só há cinco especialidades.

    As ofertas municipais de fixação de médicos passaram a ser quase generalizadas ao país, esquecendo as autarquias que se se puxa o cobertor para um lado se destapa outro. Numa pesquisa rápida acumulam-se tanto os incentivos das autarquias para atrair médicos como queixas pela sua falta. Em Abril, Figueiró dos Vinhos também divulgou condições especiais aos médicos que ali fixassem residência. Tem um rácio de 2,7 médicos por mil habitantes Ourém conseguiu recentemente atrair nove médicos para o concelho através de incentivos remuneratórios. Mesmo assim continua muito abaixo do rácio médio, apenas com 1,5 por mil habitantes.

    doctor holding red stethoscope

    Castanheira de Pêra procurou, igualmente, cativar médicos, no final do ano passado, acenando com um incentivo mensal de 2.200 euros para quem optasse por viver no concelho. Não se sabe se resultará, mas bem precisado se encontra este pequeno concelho do distrito de Leira, localizado a pouco mais de 40 quilómetros de Coimbra. Acabou o ano de 2023, segundo os dados do INE, com um miserável rácio de 0,7 médicos por mil habitantes, o terceiro pior do país (a par de Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo e Lajes das Flores), apenas atrás dos concelhos de Pampilhosa da Serra (0,5 médicos por mil habitantes) e Pedrógão Grande (0,6).

    Podem existir outros bons indicadores para avaliar o quão enviesado se encontra o desenvolvimento de Portugal e também que mostre como tão desequilibrado se encontra o país em termos de atractividade, mas pouco ‘batem’ o rácio dos médicos por habitante. Sendo certo que, obviamente, será expectável, aceitável e mesmo normal que este rácio seja bastante mais elevado em grandes cidades, sobretudo com centros hospitalares de referência, quando se observam os valores em concretos fica-se de imediato com a percepção e noção, em simultâneo, que Portugal tem um problema de Saúde Pública.

    Na verdade, o rácio médio neste caso significa pouco ou nada – ou melhor, talvez até muito porque mostra como os médicos não se sentem muito atraídos por grande parte do país. Saber se o problema é das condições de grande parte do país ou de se de grande parte dos médicos, fica para outras análises. Certo é que somente há 30 municípios, de um universo de 308, que estão acima da média dos 5,8 médicos por mil habitantes, o que significa que há, assim, 278 abaixo da média. E muitos estão mesmo muito abaixo da média.

    Com efeito, para além dos já mencionados municípios com baixa concentração de médicos residentes (Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra, Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo e Lajes das Flores), há mais 18 municípios que não ultrapassam o rácio de um médico por mil habitantes. Destes os municípios de Barrancos, Lajes das Flores, Góis e Freixo de Espada-à-Cinta não têm sequer médicos de uma qualquer especialidade. Essa ‘característica’ é extensível a mais dois concelhos: Monchique e Oleiros.

    brown brick house on green grass field under blue sky during daytime
    Concelhos rurais e envelhecidos não atraem médicos, mesmo quando as autarquias concedem subsídios.

    Contratando (ou confirmando) este cenário terceiro-mundista, os únicos municípios acima da média nacional em termos de rácio de médicos são, geralmente, aqueles onde se localizam unidades de saúde, mostrando que em Portugal a Saúde Pública ainda está ainda muito associada à assistência hospitalar e à concentração de consultas e tratamentos ambulatórios em cidades. Neste pequeno grupo destacam-se, com mais de 10 médicos por mil habitantes, Matosinhos, Faro, Oeiras – onde, de forma absurda, a autarquia concede também incentivos para fixação de residência a estes profissionais – e sobretudo Lisboa, Porto e Coimbra.

    A cidade do Mondego é, aliás, a terra dos doutores portugueses com um rácio de 34,7 médicos por mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. Significa que em 100 conimbricenses se encontram mais de três médicos, e de quase todas as especialidades: 92 em 96 ‘vivem’ (e exercem) por lá. Mais afastado está a cidade do Porto onde se encontra um rácio de 22 médicos por mil habitantes, cerca de quatro vezes a média nacional, mas até tem mais especialidades (94) do que as contabilizadas em Coimbra. No terceiro lugar do pódio surge então a cidade de Lisboa com um rácio de 17,6 médicos por mil habitantes, abrangendo 94 especialidades.

    Saliente-se também que estes são os únicos municípios onde vivem médicos de mais de 90 especialidades, sendo que somente Vila Nova de Gaia (88), Oeiras (87) e Cascais (83) têm mais de 80 médicos especialistas a viverem nos respectivos concelhos.

    Em termos regionais, a Região de Coimbra é aquela que apresenta um melhor rácio (13,8 médicos por mil habitantes), mas também maiores desigualdades. De entre os 19 municípios que constituem esta região, além do município de Coimbra, apenas Figueira da Foz (7,1) e Condeixa-a-Nova (6,2) apresentam um rácio superior à média nacional. E há 10 municípios desta região com rácios inferiores a 3 médicos por mil habitantes:  Montemor-o-Velho (2,9), Soure (2,7), Lousã (2,6), Oliveira do Hospital (2,1), Tábua (2,0), Penacova (1,5), Arganil (1,1), Vila Nova de Poiares (1,1), Góis (0,8) e Pampilhosa da Serra (0,5).

    city with high rise buildings under white clouds during daytime
    Coimbra é literalmente a ‘cidade dos doutores’, com um rácio de 34,7 médicos por mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. No município de Pampilhosa da Serra, que integra o seu distrito, este rácio é de 0,5.

    Mas mesmo na Região de Lisboa essas disparidades ficam patentes, que mais do que efeitos negativos em termos de assistência médica, mostra que há concelhos pouco atractivos para os médicos viverem. De facto, apesar de possuir no seu concelho um grande hospital (Dr. Fernando Fonseca), o rácio de médicos da Amadora é inferior à média nacional (3,7), e pior ainda está Sintra (2,7).

    Mas muito pior ainda, em termos regionais, está o Alentejo Litoral, que tem apenas um rácio de 2,2 por mil habitantes. O ‘melhor’ dos cinco concelhos desta região é Santiago do Cacém com 3,8, bastante abaixo da média nacional. Não está esta região sozinha em escassez de médicos. De acordo com os dados do INE, também nas regiões do Ave, do Tâmega e Vale do Sousa, de Leiria, da Beira Baixa, do Oeste, do Médio Tejo e mesmo de Setúbal não há um único município com rácio de médicos acima da média nacional. E nos Açores e na Madeira apenas Ponte Delgada (7,1) e Funchal (9,0) estão acima da média.


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  • Valor recorde este ano: discriminação salarial entre homens e mulheres agrava-se nos serviços

    Valor recorde este ano: discriminação salarial entre homens e mulheres agrava-se nos serviços

    Uma coisa são as intenções, outra a realidade. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados esta quarta-feira, trazem aparentes boas notícias: no segundo trimestre deste ano atingiu-se o mais elevado rendimento médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem, embora uma parte tenha sido ‘comido’ pela inflação dos últimos anos. Mas nem tudo são rosas, longe disso. Apesar de todos os sectores estarem em crescimento, no caso dos serviços a diferença de rendimentos entre homens e mulheres atingiu, no segundo trimestre deste ano, o valor mais elevado desde que o INE iniciou os registos em 2011. Aliás, nos serviços, comparando a evolução no último quinquénio, o aumento absoluto no rendimento dos homens foi de 240 euros contra apenas 213 euros das mulheres.


    O rendimento médio mensal líquido dos empregados por conta de outrem atingiu o valor mais elevado de sempre, mas a inflação tem vindo a ‘comer’ parte deste acréscimo dos últimos anos, enquanto as disparidades salariais entre homens e mulheres no sector dos serviços alcançou mesmo um máximo no segundo trimestre deste ano, de acordo com dados divulgados ontem pelo Instituto Nacional de Estatística.

    Analisando a série de dados desde 2011 sobre o rendimento dos trabalhadores depois da dedução do imposto sobre o rendimento (IRS), das contribuições obrigatórias dos empregados para regimes de Segurança Social e das contribuições dos empregadores para a Segurança Social, o PÁGINA UM conclui que existem mais motivos de preocupação do que de satisfação.

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    No ‘mundo’ dos serviços, a discriminação salarial continua e até aumentou para valores record em Portugal no segundo trimestre deste ano.

    Não contabilizando a inflação, cada trabalhador por conta de outrem ‘levou para casa’, em média, no segundo trimestre deste ano mais 321 euros do que no início de 2011, tendo amealhado agora 1.137 euros. É a primeira vez que este rendimento médio ultrapassou a fasquia dos 1.100 euros. Em comparação com o trimestre anterior, registou-se um aumento de 3,8%, sendo de 8,9% face ao período homólogo do ano passado. E se se recuar cinco anos, para o segundo trimestre de 2019, o aumento é de 24,5%.

    Porém, a inflação terá anulado parte significativa deste incremento nos rendimentos, considerando que o índice de preços no consumidor (IPC) subiu 13,9% entre 2019 e 2023, alcançando mesmo os 28,5% no caso dos produtos alimentares não transformados. Ou seja, para a compra de muitos alimentos, a inflação ‘comeu’ essa aparente melhoria.   

    O sector agrícola e afins tem registado, mesmo assim, uma melhor evolução em termos relativos nos últimos cinco anos, tendo os trabalhadores passado de um rendimento médio mensal líquido de 692 euros no segundo trimestre de 2019 para os 933 euros no segundo trimestre deste ano. Em todo o caso, continua este a ser o sector com menores rendimentos face ao sector industrial, de construção, energia e águas (o tradicional sector secundário) e ao sector dos serviços (vulgarmente conhecido por sector terciário).

    Com efeito, no sector secundário, o último trimestre de 2023, conforme revelam os dados do INE, marcou a ultrapassagem simbólica dos 1.000 euros, que se consolidou agora. O segundo trimestre deste ano apresenta um rendimento médio líquido de 1.080 euros, mais 98 euros do que o período homólogo, e mais 230 euros do que há cinco ano, o que significa um aumento relativo de 27,1%.

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    Trabalhadores do sector primário têm os menores rendimentos, mas também a menor disparidade salarial entre homens e mulheres.

    Apesar do sector dos serviços ter contabilizado um incremento relativo menor no último quinquénio (23,5%), na verdade o aumento absoluto do rendimento líquido médio foi superior aos dos outros dois sectores. Tendo sido superada a fasquia dos 1.000 euros no primeiro trimestre de 2021, os trabalhadores do sector terciário tem registado um aumento consistente, exceptuando o período da pandemia em que se registou uma certa estagnação, com um aumento de apenas 71 euros em três anos (entre o segundo trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2023). Mas desde este último período, ou seja, em cinco trimestres, o rendimento médio já subiu 115 euros, situando-se agora nos 1.162 euros, mais 221 euros do que há cinco anos.

    Contudo, as disparidades de rendimento entre homens e mulheres estão bastante longe de se dissipar, pelo contrário. No sector dos serviços, o último trimestre apresenta mesmo a maior diferença desde os registos do INE, cuja série começou em 2011 e que foram alvo de ‘reconciliação’ para permitir comparações. No segundo trimestre deste ano, a diferença entre o rendimento médio líquido dos homens e das mulheres no sector terciário nunca foi tão elevada, subindo para 244 euros, o que contrasta com os 166 euros do primeiro trimestre de 2014, a menor disparidade contabilizada desde 2011.

    Em todo o caso, o sector dos serviços é o único em que o rendimento líquido médio das mulheres ultrapassa os 1.000 euros, embora tal tenha acontecido apenas este ano, no primeiro trimestre. Nos outros dois sectores, as mulheres ainda estão bastante aquém dessa fasquia simbólica, embora a distância face aos homens seja menor. Para o segundo trimestre deste ano, no caso do sector industrial e afim, as mulheres ficaram, em média, com um rendimento de 984 euros, enquanto os homens arrecadaram 1.129 euros (diferença de 145 euros).

    Já no sector agrícola e afim, a diferença no segundo trimestre deste ano cifrou-se nos 103 euros, com os homens a registarem um rendimento líquido médio de 973 euros, que contrasta com os 870 euros das mulheres. Curiosamente, o sector primário é aquele onde a disparidade está menos acentuada, havendo trimestres onde se observa rendimentos quase similares, como sucedeu no terceiro trimestre de 2021, quando a diferença foi apenas de um euro.

    Evolução do rendimento médio mensal líquido entre homens e mulheres desde 2011 até ao segundo trimestre de 2024. Fonte: INE.

    Considerando apenas os valores absolutos, o aumento do rendimento médio mensal líquido foi mais favorável no último quinquénio para as mulheres nos sectores primário (277 vs. 203) e secundário (229 vs. 222), mas não no sector terciário, onde o aumento se quedou em 210 euros, que contrastou com uma subida de 247 euros para os homens.

    Por fim, um aspecto relevante que se destaca na evolução dos rendimentos é a redução das disparidades em cada sector de actividade, embora haja ainda diferenças significativas. Por exemplo, em 2011, o rendimento médio líquido de um trabalhador do sexo masculino no sector dos serviços era 58% superior ao de um homem a trabalhar no sector primário. Essa diferença agora é de 34%. No caso das mulheres que trabalhavam no sector dos serviços em 2011, apresentavam um rendimento de quase 64% superior ao de uma trabalhadora do sector primário. Essa diferença é agora de 22%.


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  • Mais de 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos para evento com ‘naming’ do Continente

    Mais de 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos para evento com ‘naming’ do Continente

    A Volta a Portugal em bicicleta foi perdendo élan nas últimas décadas, mas mantém-se no imaginário de autarcas, que abrem os cordões à bolsa com dinheiros públicos, para os seus municípios serem escolhidos pela organização como locais de chegada, de partida e até de metas volantes. Como o negócio fala mais alto, o resultado é uma Volta que parece uma manta de retalhos, onde os ciclistas quase andam tanto de autocarro como de bicicleta. A edição deste ano, de acordo com as contas do PÁGINA UM, já ultrapassam os 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos, mas o ‘naming’ foi sacado pelo Continente por um valor não divulgado pela empresa organizadora, a Podium Events.


    A empresa organizadora da Volta a Portugal em bicicleta – que terminou no passado domingo com a vitória do russo Artem Nych –, que conta com quatro empregados, já garantiu na edição deste ano mais de 1,1 milhões de euros de dinheiros públicos. Apesar do ‘naming’ deste evento desportivo estar associado aos supermercados Continente, do Grupo Sonae, e existirem dezenas de patrocinadores e fornecedores oficiais, uma parte substancial das receitas da Podium Events surge de ‘patrocínios’ de autarquias e outras entidades públicas, em grande parte dos casos como contrapartida de os municípios respectivos serem escolhidos para início ou fim das etapas.  

    No passado dia 24 de Julho, quando se iniciou a principal prova portuguesa que integra o calendário da Union Cycliste Internationale (UCI) Europe Tour, o PÁGINA UM já tinha relatado que, contabilizando também um patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de 310 mil euros, constavam no Portal Base contratos envolvendo entidades públicas e a Podium Events no valor de quase 815 mil euros. Mas este valor foi aumentando à medida que se foi desenrolando o evento. Entre o dia do prólogo até sexta-feira passada foram adicionados mais sete contratos com autarquias (Felgueiras, Bragança, Fafe, Boticas, Paredes e Santarém) e mais um com a Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal. No caso do ajuste directo com a Câmara Municipal de Bragança – a única localidade com ‘direito’ a ser sítio de chegada e partida durante a edição deste ano da Volta a Portugal –, o montante em causa (210 mil euros) garante, desde já, uma nova passagem em 2025.

    Autarquias a pagar para ver chegar e partir os ciclistas aparentam ser o factor mais determinante para que a Podium Events – que, também com outra denominação, tem organizado ou co-organizado esta prova, desde o início do século –, o que ‘obriga’ a uma complexa ginástica que tornou a Volta a Portugal num quase exercício de ‘pogo stick’.

    Com efeito, nos últimos anos, o pelotão não descansa logo que acaba uma etapa, porque na esmagadora maioria das etapas tem de saltar de bicicletas e bagagens para outra localidade, para daí partir na manhã seguinte. Em alguns casos, a caravana vai literalmente em mais do que duas rodas durante largos quilómetros.

    Por exemplo, na edição 85 que terminou domingo, depois do prólogo em Águeda, a primeira etapa saiu, no dia seguinte, em terras do vizinho concelho da Anadia, uma vila de Sangalhos. Neste caso foram 12 quilómetros, mas a primeira etapa terminou em Miranda do Corvo, mas a caravana viu-se obrigada a percorrer em veículos 111 quilómetros, porque a segunda etapa saiu de Santarém. Essa etapa terminou em Lisboa, e nova ‘peregrinação’ houve: 180 quilómetros até ao Crato, no norte do Alentejo, onde se iniciou a terceira etapa.  

    Não considerando o prólogo (Águeda) e o contra-relógio da última etapa (Viseu) – que, pela curta distância, podem ser considerados ‘circuitos’ –, apenas houve uma etapa que se iniciou na mesma localidade onde terminou a anterior: Bragança.

    De resto, a caravana automóvel, com os ciclistas à boleia, andou de norte ao centro do país para levar tudo do sítio onde se terminou para o outro onde se continuaria, a saber: Covilhã-Sabugal (42 km), Guarda-Penedono (63 km), Boticas-Felgueiras (79 km), Paredes-Viana do Castelo (83 km), Fafe-Maia (55 km) e Mondim de Basto-Viseu (123 km). Contas feitas, os ciclistas que terminaram a Volta pedalaram cerca de 1.540 quilómetros, mas entre etapas, de carro, andaram mais 748 quilómetros.

    Na análise do PÁGINA UM, apesar da Volta a Portugal deste ano ter tido somente um prólogo e 10 etapas, houve 18 concelhos onde a caravana parou para chegar ou partir. Até agora, não surgem ainda no Portal Base respeitantes à passagem da prova ciclista nos municípios do Crato, Sabugal, Penedono, Viana do Castelo, Maia, Mondim de Basto e Viseu. Também ainda não aparece qualquer contrato com a autarquia de Miranda do Corvo, chegada da primeira etapa, embora haja um apoio de 19.990 euros da Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal.

    De resto, todas as outras 11 autarquias por onde ‘estancou’ a caravana já abriram os cordões da ‘bolsa pública’ em direcção à Podium Events, sem sequer ser claro os critérios para definir o montante que cada uma pagou. O município de Águeda para ter o prólogo, mas sem direito a partida da primeira etapa, gastou 110 mi euros. Por sua vez, a autarquia de Anadia somente despendeu 24.390,24 euros – sem se perceber o motivo de, contrariamente aos outros, não haver um número redondo – para ficar com a saída da primeira etapa. Na segunda etapa, que ligou Santarém a Lisboa, a autarquia escalabitana desembolsou 20 mil embora, mas na capital foi a Junta de Freguesia de Marvila – onde se localizam alguns dos bairros mais maiores carências – que pagou à Podium Events, e não foi pouco: 90 mil euros para ficar no ‘mapa da Volta’ por uma simples tarde, até porque a caravana seguiu logo para o Crato.

    Como já referido, não existe ainda informação sobre verbas pagas pelos municípios da saída da terceira (Crato), quarta (Sabugal) e quinta (Penedono), mas há para as metas: a autarquia da Covilhã pagou 60 mil euros, a da Guarda 140 mil (integrado num contrato de quatro anos assinado em 2022 no valor total de 400 mil euros) e a de Bragança desembolsou 105 mil euros, que incluiu a partida da sexta etapa.

    Por sua vez, Boticas pagou 80 mil euros para ser meta da sexta etapa, enquanto Felgueiras e Paredes, que se ligaram na sétima etapa, deram à Podium Events 35 mil e 80 mil euros, respectivamente. Relativamente às etapas oitava a décima, somente se conhece ainda os 80 mil euros pagos pelo município de Fafe e os 79.950 euros pagos pela autarquia de Mondim de Basto por ter a etapa final na Senhora da Graça. E há ainda uma autarquia, a de Penamacor, que decidiu pagar 10 mil euros, em ajuste directo, apenas para que houvesse uma simples passagem por esta vila do distrito de Castelo Branco com direito a ‘meta volante’.

    Além destas verbas, este ano a Santa Casa da Misericórdia achou por bem ‘despachar’ 620 mil euros para a Podium Events para ser patrocinador, durante duas edições, da camisola branca (para o melhor jovem ciclista na classificação geral)) e do Prémio Melhor Português. Ou seja, 310 mil euros em cada ano. Este contrato tem, além de tudo, partes expurgadas: cerca de seis páginas do texto inserido no Portal Base, respeitantes à cláusula segunda, estão irregularmente em branco, uma vez que o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) permite estes abusos.

    Contas feitas, e contabilizando o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia, a facturação com dinheiros públicos da Podium Events já ultrapassa os 1,23 milhões de euros, podendo ainda subir. Este montante representa cerca de um terço da facturação em todas as actividades desta empresa – que não se cinge á Volta a Portugal – ao longo do ano de 2022. A empresa, que apresentou nesse ano, um lucro de 1.263 euros, ainda não apresentou as contas do exercício do ano passado, mas mostra-se evidente ser apenas um intermediário, dado que conta quatro empregados e praticamente todas as verbas arrecadadas servem para contratar serviços externos.

    Saliente-se que, para contornar o impedimento de patrocínios directos a empresas privadas, a generalidade dos contratos celebrados pelas autarquias, sob a forma de ajuste directo, indicam estar-se perante uma aquisição de serviços – como se fossem os municípios os organizadores do evento –, o que constitui uma forma pouco ortodoxa de cumprir o Códigos dos Contratos Públicos. Até agora, o Tribunal de Contas tem ‘fechado os olhos’, mesmo sendo evidente que se está perante patrocínios, tanto assim que a lista das autarquias surge na página dedicada aos patrocinadores.

    Embora a Podium Events realize outros eventos, sobretudo de ciclismo, as entidades públicas, sobretudo autarquias, são relevantes clientes. Desde 2009 contabilizam-se quase 190 contratos, envolvendo quase 13 milhões de euros, ultrapassando assim os 15 milhões, caso se inclua IVA. Mais de 3,6 milhões de euros apenas desde 2022.

    Grande parte destes contratos envolvem autarquias e comunidades intermunicipais, destacando-se como melhores clientes da Podium Events, para além da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (620 mil euros), os municípios de Lisboa (1,8 milhões de euros), de Castelo Branco (1,04 milhões de euros), de Viana do Castelo (895 mil euros), da Guarda (790 mil euros), Mondim de Basto (533 mil euros), Montalegre (430 mil euros), Covilhã (375 mil euros) e Braga (355 mil euros).

    O PÁGINA UM contactou a Podium Events para obter esclarecimentos e outras informações, mas não obteve resposta. Não foi assim esclarecido quanto pagou a Sonae pelo ‘naming’ da Volta a Portugal, que, para se realizar este ano, implicou mais de 1,2 milhões de euros em apoios públicos.


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  • Evidências e enigmas do Dilúvio

    Evidências e enigmas do Dilúvio

    No ano mil seiscentos e cinquenta e seis do Anno Mundi 1656, ao décimo sétimo dia do Marcheshvan, rompendo todas as fontes do grande abismo e abrindo-se as cataratas do céu durante quarenta dias e quarenta noites, Deus salvou Noé pela segunda vez. A primeira foi quando Deus incumpriu a sua sentença, decretada ainda antes do cataclismo, em encurtar os dias dos homens para centos e vinte anos. É que Noé já contava seiscentos anos quando entrou na arca.

    *

    Noé, sua mulher, seus três filhos e noras não eram uma família justa ou perfeita; na verdade, eram uma família misantrópica. Só assim se compreende que Deus os tenha escolhido; só assim se compreende que Noé, avisado por Deus do extermínio sobre a Terra – uma violência divina contra a violência humana –, não tenha tentado auxiliar os seus patrícios mais próximos. Nem sequer os compadres.

    closeup photography of water drops on body of water

    *

    Enquanto serrava as madeiras resinosas e comprava betume, enquanto construía a arca de trezentos côvados de comprimento, cinquenta côvados de largura e trinta côvados de altura distribuídos por três pisos, enquanto carpintejava tudo isto e calafetava tudo aquilo, enquanto reunia os animais para o acompanharem, que desculpas ou justificações deu Noé a quem lhe perguntava o que estava fazendo?

    *

    Se de antemão Noé sabia que apenas ele e a sua família mais próxima entrariam na arca, que apenas ele e a sua família mais próxima se salvariam do dilúvio, terá comprado a madeira e o betume a pronto ou a crédito?   

    *

    Os oceanos, mares e baías possuem 1,386 mil milhões de quilómetros cúbicos de água, os lagos salgados e doces cerca de 176.400 quilómetros cúbicos, os rios somente 2.120 quilómetros cúbicos e os pântanos 11.470 quilómetros cúbicos. Deus tinha assim disponível para inundar a Terra apenas cerca de 47,8 milhões de quilómetros cúbicos, contabilizando as águas das calotes polares, dos glaciares, das neves permanentes, do pergelissolo, do gelo subterrâneo e dos aquíferos doces e salgados, bem como o vapor de água e a água existente no solo e nos seres vivos animais e vegetais, embora neste último os matasse logo a todos se a utilizasse.

    Ora, sabendo-se que a superfície terrestre total é de 509,6 milhões de quilómetros quadrados; sabendo-se ainda que, para uma inundação uniforme, teria de se fazer chover nos oceanos, nos mares, nas baías, nos rios, nos lagos, e nos pântanos similar volume ao que se precipitasse em terra; então concluiu-se que um dilúvio global apenas atingiria 93,79 metros acima do actual nível médio das águas do mar. Como se diz ter Deus coberto os altos montes existentes debaixo do céu, ultrapassando em quinze côvados (cerca de 9,9 metros) o cimo de todas as montanhas, incluindo portanto os montes de Ararat, onde haveria de pousar a arca, que se situa a 5.137 metros acima do nível do mar, e sobretudo o monte Evereste, na cordilheira dos Himalaias, que se encontra 8.848,43 metros, uma questão se coloca: onde foi Deus desencantar tanta água? E para onde foi depois do Dilúvio?

    body of water surrounded by fog

    *

    Antes de aplacar o Dilúvio, solicitou Deus a Noé que recolhesse tudo quanto houvesse de comestíveis e os armazenasse na arca, a fim de servirem de alimento à sua família e aos animais. Ora, se muitos desses animais eram carnívoros, quantas espécies se terão extinguido em plena arca durante os cinto e cinquenta dias que durou a inundação, sem contabilizar também os animais que padeceram de doenças, de má nutrição ou de desadequadas condições higieno-sanitárias?

    *

    Deus decretou que Noé recolhesse sete pares de cada espécie de animais puros e apenas um par de cada espécie de animais impuros, porque o primeiro grupo podia ser comido e servia também para sacrifícios em holocausto durante o período de inundação. Quantas espécies se extinguiram às mãos de Noé enquanto todos estavam na arca?  

    *

    Se na Criação fez Deus todos os seres vivos – aves, monstros marinhos, peixes, animais domésticos, répteis e animais ferozes – em apenas um dia e meio, qual a razão para depois, aquando do Dilúvio, ter sobrelotado a arca com sete pares de todos os animais puros, mais um par de todos os animais impuros, e sete pares de todas as aves? Não terá sido mais fácil recriar todos os animais de novo, tornando assim mais cómoda, para Noé e sua família, a estadia na barcaça?

    a book open with a drawing on it

    *

    No decurso do Dilúvio, as chuvas caíram durante quarenta dias e quarenta noites. Por mais cento e cinquenta dias esteve o mundo coberto pelas águas. Depois, «Deus recordou-se de Noé e de todos os animais, tanto domésticos como selvagens, que estavam com ele na arca», mandando «encerrar as fontes do abismo e as cataratas dos céus», ao mesmo tempo que «mandou um vento sobre a terra e as águas começaram a descer». No dia dezassete do sétimo mês do ano de mil seiscentos e cinquenta e seis após a Criação, «a arca poisou sobre os montes de Ararat. As águas foram diminuindo até ao décimo mês. No primeiro dia do décimo mês, emergiram os cumes das montanhas». Somente ao fim de quarenta dias Noé abriu a janela da arca e soltou um corvo, que «saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra». Mais tarde, largou uma pomba que, «não tendo encontrado sítio para poisar», regressou à arca. Somente sete dias depois foi feita nova largada da pomba que, desta vez, regressou com uma folha verde de oliveira no bico. Noé aguardou mais sete dias e tornou a soltar a pomba «mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele». Desconhece-se as razões, mas a hipótese de esta pomba ter morrido está fora de hipótese, pois o seu par, o pombo, tê-la-á encontrado mais tarde, de contrário a espécie extinguia-se. Porém, subsiste um enigma: como sobreviveu a viçosa e verdejante oliveira durante todo o tempo do Dilúvio?


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  • Rui Cardoso Martins

    Rui Cardoso Martins

    Na quinta sessão de BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com o escritor Rui Cardoso Martins.



    Cronista de excelência, ainda hoje (re)conhecido pela ‘saga’ de ‘Levante-se o réu’, com que retratava as misérias da condição humana perante um juiz, Rui Cardoso Martins mantém-se como jornalista, tendo sido um dos ‘pioneiros’ do Público, onde arrecadou dois prémios Gazeta de Imprensa.

    Mas tem sido na escrita literária que mais se tem firmado, depois da sua estreia em 2006, com o romance ‘E se eu gostasse muito de morrer’. Tem repartido a ficção (sendo ‘As melhoras da morte’ a sua mais recente obra) com a escrita de argumentos de cinema e também de humor.

    Rui Cardoso Martins fotografado na Biblioteca do PÁGINA UM.

    Uma conversa descontraída (mas séria) em redor dos processos de escrita, sobre literatura, sobre o jornalismo, sobre a liberdade, sobre a religião e, enfim, sobre a vida.

    De entre as obras patentes na BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Rui Cardoso Martins escolheu, para sugerir a leitura, “O Judeu’, de Camilo Castelo Branco, publicado em 1866, e ainda o livro de contos ‘A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho’, de Mário de Carvalho, um original de 1983.

    Pormenor da livros da biblioteca ‘caseira’ de Rui Cardoso Martins.

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