O Polígrafo – o órgão de comunicação social dedicado ao fact-checking e que se arvora de “guardiã da verdade”, distribuindo selos, incluindo “pimenta na língua” – foi apanhado a martelar factos, classificando como verdadeira uma afirmação falsa de Rui Tavares, co-líder e deputado do Livre.
Numa deliberação ontem divulgada, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) reconheceu formalmente que o Polígrafo violou o dever de rigor informativo ao validar, sem a devida contextualização, uma afirmação de Rui Tavares durante o debate televisivo para as recentes eleições legislativas, no qual confrontou André Ventura, presidente do Chega.
Para apurar quem faltara mais à verdade no frente-a-frente, o Polígrafo escolheu cinco afirmações dos dois políticos, tendo “sentenciado” que Ventura mentiu em duas, enquanto Tavares teria dito cinco verdades. Só que não. Tavares afirmou no debate que, durante o mandato de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, “até roubo de jóias houve”. Ora, o Polígrafo classificou tal afirmação como “verdadeira”, justificando-se com investigações em curso no Brasil relativas a jóias recebidas por Bolsonaro durante o exercício da presidência, para além da condenação de inelegibilidade por oito anos. Contudo, como se depreende da própria ERC, quem mentiu foi o Polígrafo.
De acordo com a deliberação do regulador, é certo que “em Julho de 2024 foi tornado público e profusamente noticiado que a Polícia Federal [do Brasil] denunciara Jair Bolsonaro por apropriação indevida de jóias que recebera enquanto chefe de Estado, considerando que se trata de património público”.
Porém, “o caso levou a uma decisão do Tribunal de Contas do Brasil (TCU), de Março de 2025, que considerou que presentes de uso pessoal, recebidos por presidentes e vice-presidentes, não são património público, podendo mantê-los ao saírem do cargo”, acrescentando ainda que se “aguarda, entretanto, parecer da Procuradoria-Geral da República que pode seguir diversas vias: denúncia ao Supremo Tribunal Federal – cuja decisão não é influenciada pela posição adoptada pelo TCU –, pedido de novas diligências ou arquivamento”.
Aliás, nessa decisão de Março passado, acabou por fazer uma equivalência das ofertas recebidas por Bolsonaro ao que Lula da Silva tinha feito em 2005, quando ficou com um relógio oferecido enquanto líder do Estado brasileiro.
Nada disso é referido na análise do Polígrafo. Ao invés, para fundamentar a classificação de “Verdadeiro” à frase de Rui Tavares, o Polígrafo escreveu: “Bolsonaro deveria ter entregue [sic] essas jóias ao Estado brasileiro assim que deixou o poder, uma vez que estas foram uma oferta institucional. De acordo com as investigações, porém, Jair Bolsonaro vendeu algumas dessas jóias através de intermediários.”
Assim sendo, a ERC conclui ser “forçoso concluir que o Polígrafo incumpr[iu] o dever de rigor informativo na verificação de factos publicada”, embora destaque sobretudo a ausência de “contexto suficiente para que os leitores compreendam os contornos reais” da alegada apropriação e venda de jóias.
Polígrafo, um verificador de factos que transforma mentiras em verdades.
Em todo o caso, o regulador reforça a censura ao acto do Polígrafo tendo em conta o facto de este ser um “órgão de comunicação social reconhecido como verificador de factos certificado e assim apresentado aos olhos do público”, pelo que tem “o dever e a responsabilidade de manter os padrões que lhe são impostos, quer pela legislação e pela ética que impendem sobre o exercício da actividade jornalística, quer pelos padrões exigidos pelas organizações certificadoras de verificadores de factos IFCN – International Fact-Checking Network – e EFCSN – European Fact-Checking Standards Network”. Recorde-se que o Polígrafo tem o Facebook – que teve um papel fulcral na limitação da expressão durante a pandemia – como um dos seus principais financiadores.
Esta deliberação da ERC não impõe sanções, limitando-se a um “alerta” ao Polígrafo. Mas a marca ficou. Para os cidadãos atentos, ficou provado que os verificadores também precisam de ser verificados. E que Rui Tavares, afinal, também mente. Aliás, uma outra frase do co-líder do Livre, no calor do debate, também está longe da verdade: por mais defeito que tenha, Bolsonaro não foi condenado (ainda) por corrupção, logo não é verdade que seja “o mais corrupto da América do Sul”.
A explicação oficial do Governo para o adiamento dos “momentos festivos” das comemorações oficiais do 25 de Abril foi a morte do Papa Francisco, mas, na própria tarde desse anúncio, o gabinete de Luís Montenegro estava já a ultimar as negociações do concerto de Tony Carreira para o dia 1 de Maio, no Palácio de São Belém.
‘Negociações’ é um termo lato, porque, na verdade, o Governo de Montenegro conseguiu aquilo que um dos artistas com mais contratos públicos raramente concede: uma borla. Com efeito, segundo documentos a que o PÁGINA UM teve hoje finalmente acesso, após intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), na tarde de 23 de Abril passado — na mesma altura em que o Governo anunciava o adiamento das festas da Revolução dos Cravos —, a Regiconcerto, empresa de Tony Carreira, confirmava as condições do espectáculo previsto para o dia 1 de Maio.
Entre essas condições, “na sequência dos contactos mantidos” — conforme refere num e-mail a CEO da Regiconcerto, Filipa Ramires —, estava “a interpretação de, aproximadamente, seis temas”, sendo que “em termos de cachet artístico, e tal como falado, o Tony Carreira abdica do seu próprio cachet”. O acordo foi realizado ao mais alto nível, porque o e-mail da Regiconcerto é enviado directamente para, entre outros, Pedro Pinto, chefe de gabinete de Montenegro, para a assessora de imprensa Cátia Duarte Silva e até para um adjunto do ministro Pedro Duarte.
Apesar da ‘borla’ de Tony Carreira, no acordo é indicado que deve haver um pagamentos, no valor de 4.700 euros (mais IVA), para os quatro músicos que acompanharam o cantor, três técnicos operadores, motorista e manager. Foi também apresentado um orçamento adicional para a montagem e desmontagem do espectáculo, a cargo de cinco elementos, mas essa documentação não foi ainda remetida pela Secretaria-Geral do Governo.
Sem o adiamento das festividades do 25 de Abril, teria sido impossível a Luís Montenegro contar — e cantar o em dueto ‘Sonhos de menino’ — com Tony Carreira no Palácio de São Bento, em vésperas de eleições legislativas, criando-lhe um momento especial de visibilidade pública. No dito concerto — ou showcase —, o primeiro-ministro chegou mesmo a participar num dueto na canção “Sonho de Menino”.
Acordo para o concerto de Tony Carreira foi feito no dia do anúncio do adiamento das comemorações do 25 de Abril, alegadamente por causa da morte do Papa Francisco. Nota: O PÁGINA UM rasurou os endereços de e-mail.
Com efeito, a agenda de Tony Carreira encontrava-se já bastante preenchida há vários meses para os dias em torno das comemorações da Revolução dos Cravos. No dia 24 de Abril, o cantor actuou no Barreiro, ao abrigo de um contrato celebrado no dia 8 desse mês com a autarquia local, à qual cobrou 72.570 euros (com IVA). No dia seguinte, deu espectáculo no município norte-alentejano de Alter do Chão, que pagou 46.125 euros para cumprir um contrato assinado em 21 de Março.
Não existe ilegalidade alguma num artista actuar gratuitamente num evento para agradar ao primeiro-ministro de um Governo em funções, mesmo em contexto de pré-campanha eleitoral. Porém, do ponto de vista formal, mesmo sem cachet artístico, a empresa de Tony Carreira celebrou um contrato oneroso sujeito às regras do Código dos Contratos Públicos (CCP), uma vez que houve prestações acessórias pagas a músicos, técnicos e outros profissionais, com valores que, somados, configuram inequivocamente uma prestação de serviços financiada por dinheiros públicos.
Mais ainda, de acordo com os documentos obtidos, essa prestação foi objecto de contactos prévios e de uma confirmação formal de condições por parte da empresa Regiconcerto, em nome de Tony Carreira, na tarde de 23 de Abril. Ou seja, houve um contrato, ainda que não redigido por escrito.
Agenda de Tony Carreira estava cheia para a noite de 24 de Abril, no Barreiro, e no dia 25 de Abril (na foto), em Alter do Chão.
A consequência jurídica deste acto é evidente: tratando-se de um contrato de serviços com valor económico, impunha-se o seu registo no Portal BASE no prazo de 20 dias. Ora, tal registo ainda não foi efectuado, em clara violação do princípio da transparência.
Na verdade, não fosse a insistência do PÁGINA UM junto da CADA, jamais teriam vindo a público quaisquer detalhes sobre os contornos deste contrato, do qual Montenegro colheu claros dividendos simbólicos e mediáticos. Acresce que a gratuitidade, numa situação desta natureza envolvendo o Governo, suscita inevitavelmente dúvidas quanto a eventuais benefícios futuros — tanto mais quando se sabe que, por regra, os espectáculos musicais de Tony Carreira estão longe de ser baratos, rondando, em média, os 50 mil euros, já com logística e montagem de palco.
De acordo com o Portal BASE, desde Janeiro, Tony Carreira foi contratado por 16 autarquias, envolvendo montantes totais próximos dos 900 mil euros com IVA. Em 11 desses contratos, a entidade contratada foi a própria Regiconcerto, empresa do artista. Importa também sublinhar que, à luz desta amostra — e pelo menos por agora —, Tony Carreira revela-se um artista claramente mais requisitado por autarcas socialistas do que por sociais-democratas.
Luís Montenegro, ‘quebrando a barreira de segurança’ no dia 1 de Maio para ir cantar um dueto com Tony Carreira, que lhe deu uma ‘borla’.
Apesar de o PS liderar actualmente 48% das autarquias (149 em 308) e o PSD 37% (114), a distribuição dos contratos evidencia um claro enviesamento político: dos 16 contratos, 11 (ou seja, 69%) foram celebrados com câmaras municipais lideradas pelo PS — nomeadamente Chaves, Marco de Canaveses, Loures, Vila Velha de Ródão, Barreiro, Mértola, Estremoz, Vila Nova de Gaia, Tábua, Olhão e Vinhais —, enquanto apenas três envolveram autarquias do PSD (Ponta Delgada, Alter do Chão e Arganil) e um foi celebrado com uma autarquia independente (Oeiras).
Ou seja, a “borla” pode muito bem ter funcionado como uma operação de charme de Tony Carreira para abrir caminho também junto dos executivos sociais-democratas. Porém, aparentemente, o ‘coração’ do artista aparenta bater ainda para o lado socialista, o particularmente para o novo líder do PS. Em Dezembro de 2023, o cantor romântico, cujo nome de nascimento é António Antunes, chegou a gravar um vídeo de apoio a José Luís Carneiro — aquando da corrida à liderança contra Pedro Nuno Santos —, considerando-o “uma pessoa com princípios muito bons, com os quais me identifico”.
Hoje, a escritora e conselheira de Estado Lídia Jorge, na sua intervenção oficial do Dia de Portugal na cidade algarvia de Lagos, lançou uma reflexão que bem poderia ter sido moldada em granito: “O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas.”
A frase talvez pretendesse tocar a consciência cívica, mas involuntariamente poderia também ter sido inspirada pela realidade lacobrigense — gentílico erudito de Lagos, que remonta à antiga Lacobriga romana —, onde o cidadão paga e assiste. E onde o ídolo, invariavelmente, é de pedra, ferro ou bronze.
Hugo Pereira, presidente socialista da autarquia de Lagos: 500 mil euros em Arte de Rotunda em nove dias. Tudo por três ajustes directo, em dois casos a ‘artistas da casa’. Foto: CML.
De facto, Lagos, a cidade algarvia onde as rotundas florescem em bronze, ferro ou pedra e o orçamento municipal se curva com frequência ao apelo da (es)cultura popular, resolveu, em apenas nove dias do final de Abril passado, ‘investir’ mais meio milhão de euros em arte pública — ou, mais rigorosamente, em Arte de Rotunda.
A decisão foi tomada através de três contratos sucessivos por ajuste directo, sem consulta pública e com escassa informação disponível. Sabe-se apenas que dois dos felizes contemplados têm ligações a Lagos, ou por aí terem nascido ou por aí residirem.
A autarquia, liderada pelo socialista Hugo Pereira, ainda não prestou esclarecimentos ao PÁGINA UM sobre os critérios das encomendas nem sobre as razões das escolhas a dedo nem sobre o conteúdo das obras. Mas há criatividade garantida e também ironia — pelo menos na denominação de duas das empresas beneficiadas.
A icónica e polémica estátua de José Cutileiro em Lagos, que necessita de legenda para se saber quem evoca. Foto: DR.
Um dos contratos, no valor de 209.100 euros (IVA incluído), foi assinado com a empresa Poeiras Ajuizadas, criada apenas em Março deste ano, sendo este o seu primeiro contrato público. Logo por ajuste directo. Com um capital social de 500 euros, a sócia única desta novel empresa é Rita Mendes Pereira, aparentando que o seu melhor atributo para a escolha seja ser natural de Lagos, para além de possuir um mestrado em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. A peça será instalada na rotunda junto ao Centro de Saúde, na entrada poente da cidade.
O segundo contrato, ainda mais generoso, fixou-se nos 246.000 euros (com IVA) e foi adjudicado à empresa Palavra Mental, nascida em Agosto de 2024, em Chilreira, no concelho de Sintra, também com 500 euros de capital social. A firma pertence ao escultor Rui Matos, que conta com um extenso percurso artístico, tendo iniciado carreira nos anos 80. O seu currículo expositivo é denso e variado, com obras em ardósia, gesso, bronze, pedra e ferro.
Nas últimas semanas, o trânsito na conhecido Rotunda de São Gonçalo esteve congestionado para ser colocado o suporte para a peça escultória de Rui Matos, tendo as obras previsivelmente terminado no final da semana passada, conforme informação da autarquia, que não revelou aos munícipes o custo da obra. Não se conseguiu ainda apurar quando a escultura será colocada, mas da cabeça e mãos do dono da Palavra Mental sabe-se o que essa mente já concebeu antes.
Rotunda de São Gonçalo vai receber escultura que custou 246 mil euros.
Por exemplo, numa das suas exposições recentes, a obra de Rui Matos é descrita como a de um escultor que, “tal como um músico, gera no processo da linguagem uma estrutura compositiva aberta entre o resultado sonoro/visual e a performance compositiva. Nestas narrativas, desenvolvem-se tensões a serem resolvidas estruturalmente em torno da busca da abstracção na essência da natureza.” E mais: “Operando numa semelhante abstracção intrínseca à natureza, cuja ‘gramática’ se revela particularmente universal, o escultor interliga dois sistemas, o do geométrico-matemático com o da linguagem primordial.”
Enfim, um discurso estético de múltiplas literacias visuais — e, aparentemente, agora com uma generosa fonte de financiamento público. São raríssimas as obras de escultura acima dos 200 mil euros adjudicadas por autarquias.
O terceiro contrato, de menor valor mas não menos digno de menção, foi celebrado com António Pedro Serrano de Sousa Correia, artista plástico nascido em Angola em 1961, que usa o nome artístico A. Pedro Correia. Residente em Lagos, dedica-se à escultura, à criação de objectos tridimensionais e à instalação multidisciplinar.
O contrato, no valor de 44 mil euros — sem IVA, por ser artista em nome individual — visa a criação de uma escultura a instalar na entrada norte da cidade, no entroncamento da EN120 com a Avenida de Alcácer Quibir. Na sua página do Facebook, datada do início de Maio, já é possível ver fotografias da obra em fase avançada de execução numa zona lateral à rotunda defronte à esquadra da PSP. Um espaço onde, aliás, caberiam mais algumas esculturas — e talvez umas centenas de milhares de euros adicionais em futuros ajustes directos.
Importa lembrar que Lagos é uma cidade que, segundo o seu próprio site institucional, conta já com 27 monumentos e esculturas espalhados pelo espaço público. Incluem-se homenagens ao Infante D. Henrique, a Salgueiro Maia, a São Gonçalo, a Júlio Dantas e, naturalmente, ao rei D. Sebastião, cuja escultura emblemática de José Cutileiro, instalada nos anos 70, continua a despertar perplexidade entre os visitantes menos informados: o monarca surge com expressão adolescente e ‘capacete de motorizada’, exigindo leitura prévia para identificação.
Com este novo impulso escultórico, Lagos confirma o seu estatuto de capital nacional da estátua por rotunda, caminhando para um rácio de uma peça escultória em espaço público por cada mil habitantes. Se um dia se decidir celebrar o próprio conceito de homenagem urbana, já haverá espaço — e verba — para mais uma figura de bronze, talvez com Lídia Jorge em pedestal, e a inscrição lapidar: “os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores.”
Não há fome que não dê em fartura – e essa fartura pode vir a dar, a prazo, outros tantos problemas tão ou mais complexos do que a fome original. Depois de anos de estagnação do licenciamento de habitação – no decurso da crise do subprime em 2007 –, Portugal está agora a assistir a um súbito festim de projectos aprovados — mas, como em toda a fartura precipitada, o risco de indigestão urbanística é real e iminente.
Os dados dos licenciamentos urbanísticos de Abril de 2025, hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), revelam que o sector do licenciamento de novos fogos entrou numa fase de completa euforia, mas olhando para o detalhe identificam-se excessos passados e velhos erros.
Com efeito, entre Janeiro e Abril do presente ano foram licenciados 13.467 novos fogos, o que, considerando os ritmos de licenciamento ao longo dos meses, permite estimar que 2025 chegará a um total próximo dos 46 mil fogos. Tem de se recuar a 2008 para encontrar valor similar.
O crescimento relativo dos primeiros quatro meses de 2025 face ao quinquénio anterior (2020-2024), que registou uma média anual de 10.217 fogos, é extraordinariamente elevado: 31,8%, o que representa uma mudança brusca no comportamento do mercado e, acima de tudo, das entidades licenciadoras. Contudo, esta dinâmica, à primeira vista positiva numa conjuntura de crise habitacional, esconde desequilíbrios preocupantes: tanto na distribuição regional dos licenciamentos como na própria morfologia dos fogos projectados.
Evolução dos licenciamentos de fogos novos em cada ano desde 2007. O ano de 2025 é uma estimativa em função dos números reais até Abril e considerando o ritmo de licenciamento mensal ocorrido em 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
A análise regional dos dados expõe uma realidade bastante dual. Regiões como as de Coimbra, Lezíria do Tejo, Grande Lisboa, Alto Minho e Tâmega e Sousa apresentam crescimentos superiores a 60% face à média do quinquénio anterior — sendo que Coimbra, com 643 fogos licenciados, mais do que duplicou o valor médio dos cinco anos anteriores.
A região da Grande Lisboa, com 2.534 novos fogos, regista um aumento de 81,6%, mostrando ser agora o principal motor da retoma na habitação urbana, ultrapassando mesmo a Área Metropolitana do Porto, que mostra estagnação (apenas +20,5%, com 2.813 fogos este ano).
A euforia é, porém, desigual. Quatro em cada 10 novos fogos licenciados este ano estarão localizados apenas em duas regiões (Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto), ou seja, 39,7% dos novos fogos serão construídos em menos de 6% do território nacional, sendo que estas são já as mais saturadas do ponto de vista urbanístico.
Evolução dos licenciamentos de fogos novos nos primeiros quatro meses (Janeiro a Abril) de cada ano desde 2007. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Por outro lado, territórios como o Baixo Alentejo (-33,6%), Terras de Trás-os-Montes (-30,8%), Alentejo Central (-28,5%), a Península de Setúbal (-25,1%) e até mesmo o Algarve (-21,8%) e Ave (-5%) apresentam quedas acentuadas. Ou seja, algumas zonas suburbanas, turísticas e do interior, com fraca atractividade económica, continuam a afastar o investimento em habitação, mesmo num contexto de incentivo à construção. Este crescimento reproduz a ‘velha geografia’ da litoralização e da urbanização concentrada, sem qualquer correcção política ou de planeamento estratégico.
Mas, para além do número bruto de fogos licenciados, a análise do PÁGINA UM aos dados por tipologia revela uma mutação ainda mais significativa e estrutural: a redução progressiva das habitações de maior dimensão e o crescimento acentuado de fogos pequenos, em particular os T0 e T1.
Nos quatro primeiros meses de 2025, as tipologias T0 e T1 (agregadas nos dados do INE) representam 18,2% do total de fogos licenciados, com 2.448 unidades — uma subida clara face à média de 1.301 unidades por ano no quinquénio anterior. Antes de 2017, raramente esta tipologia ultrapassava os 10% do total. Em termos relativos, trata-se de um aumento de 88,1%, mais do dobro do crescimento geral dos licenciamentos. Este indicador reflecte uma mudança na estratégia dos promotores imobiliários, que apostam agora num mercado da habitação mais compacta — dirigida sobretudo a arrendamento urbano, a residências para estudantes e, em alguns casos, à hotelaria encapotada.
Licenciamento de fogos novos nos primeiros quatro meses em 2025 e na média do quinquénio 2020-2024, e variação percentual. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
A opção por fogos de pequena dimensão responde, parcialmente, às exigências económicas de um mercado onde o preço por metro quadrado atingiu níveis proibitivos. No entanto, esta tendência pode vir a gerar problemas de saturação urbana, congestionamento de serviços públicos e pressão sobre infra-estruturas já deficitárias. Por outro lado, constitui um reflexo da precarização dos modelos de vida — cada vez mais orientados para a mobilidade, o individualismo e a instabilidade. Ou seja, a construção de casas familiares está em forte queda.
Com efeito, a tipologia T4 ou superior — ou seja, de habitação familiar com espaço e estabilidade — recuou significativamente. Nos primeiros quatro meses deste ano, apenas 1.716 fogos desta categoria foram licenciados em todo o país, o que representa apenas 12,7% do total, quando em 2007 representavam 16,7% (com 3.723 unidades). Em todo o caso, em termos absolutos, o número de fogos com tipologia T4 ou superior é o maior desde 2010.
Numa perspectiva urbanística global, este boom de licenciamento exige leitura crítica. Não basta celebrar o número: é preciso questionar onde se constrói, o que se constrói e para quem se constrói — algo que os números do INE não mostram, mas que indiciam. A predominância de tipologias mínimas em zonas mais valorizadas, conjugada com a queda de licenciamentos nas regiões menos atractivas, poderá vir a reforçar assimetrias e criar bolhas de sub-habitação urbana — apartamentos demasiado pequenos para necessidades familiares, com preços desajustados face ao rendimento médio, servidos por infra-estruturas que não acompanham o ritmo de expansão.
Evolução do licenciamento de fogos novos nos primeiros quatro meses do ano (Janeiro a Abril desde 2007) por tipologia. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM,
Não menos importante é o impacto deste crescimento sobre os equipamentos urbanos. A construção intensiva, sobretudo nos centros urbanos já saturados, pode comprometer o acesso a transportes, escolas, unidades de saúde, zonas verdes e abastecimento energético — áreas frequentemente ignoradas no frenesim licenciatório. E existe, assim, com esta vontade de licenciar para resolver a ‘crise da habitação’ apenas com mais construção, o risco de se repetir o erro clássico do urbanismo português: permitir que a pressão imobiliária dite a forma da cidade, em vez de se planear a cidade para responder à sua função social.
Certo é que este processo de nova bolha imobiliária sucede sem que o Estado, central ou local, assuma um papel de verdadeiro regulador estratégico. As autarquias, muitas vezes dependentes de receitas do licenciamento e pressionadas pelos interesses de promotores, não têm dado provas de capacidade para travar ou orientar os surtos construtivos.
Em muitos casos, a aprovação de projectos acontece sem qualquer avaliação prévia de impacto sobre os equipamentos públicos, licenciando-se porque surgem investidores, porque há pressa — e há pressa porque há investimento, e o investimento, como se sabe, não gosta de esperar nem de ser contrariado.
Em suma, se o crescimento de 31,8% no licenciamento de fogos em 2025 é também um sinal de recuperação económica, também revela miopia estrutural. O país que passou anos a lamentar a crise da habitação parece agora enredado numa resposta quantitativa, quando os problemas são sobretudo de qualidade — do território, da oferta, do acesso e do planeamento.
Assim, se a ‘fome’ de habitação é real, a fartura súbita poderá ser indigesta. A história urbanística portuguesa ensina que os excessos se pagam — não com juros financeiros, mas com décadas de má qualidade de vida, desorganização do espaço e oportunidades perdidas.
Vem nos manuais, como ensinamento quase sagrado: a agenda setting — esse processo pelo qual determinados temas ganham centralidade no debate público — não é neutra. Depende, antes de mais, de quem fala, de como fala, e sobretudo de quem tem acesso privilegiado aos meios de comunicação.
Num cenário ideal, a imprensa funciona como guardiã da relevância: um watchdog vigilante que impede que o ruído da propaganda se sobreponha às necessidades reais dos cidadãos. A imprensa, nesse modelo, não apenas filtra os temas da agenda política, mas molda-os segundo critérios de interesse público — e não segundo interesses comerciais ou corporativos.
Hoje o ‘cão de guarda’ dorme ao colo de quem deveria vigiar, ronrona quando lhe estendem uma ração publicitária e ladra apenas quando a farmacêutica estala os dedos. E sobretudo no sector da Saúde, onde as emoções são tão inflamáveis quanto os milhões em jogo. Nos últimos anos — e muito em especial durante a pandemia da covid-19 — assistimos a uma inversão perversa do papel da comunicação social. Longe de agir como mediadora independente, a imprensa tornou-se co-agente de um conluio entre interesses privados (sobretudo da indústria farmacêutica), entidades reguladoras capturadas e ministérios complacentes. Ao invés de fiscalizar, participou. Ao invés de questionar, amplificou. Ao invés de desconfiar, vendeu.
Os media têm vindo a abdicar, cada vez mais, do seu papel fiscalizador para assumirem o de arautos e correias de transmissão de campanhas comerciais. Durante a pandemia, esse fenómeno atingiu o paroxismo: testes vendidos como salvação, vacinas endeusadas como tótem da civilização, fármacos experimentais glorificados antes mesmo de qualquer avaliação crítica.
O Ministério da Saúde, os reguladores e uma parte significativa da comunidade médica — transformada em figurino de publicidade institucional — pactuaram, em aliança obscena, com este novo regime sanitário-mediático. Aquilo que se seguiu foi previsível: venderam-se vacinas e testes como quem vende electrodomésticos num canal de telecompra, com médicos mercenários a apresentarem o produto e jornalistas a assegurarem que não haveria espaço para dúvidas nem para alternativas.
Alternativas essas que, ironicamente, foram diabolizadas não por falta de provas científicas, mas por excesso de interesses. Veja-se a ivermectina, cujo debate foi abafado com histeria moralista, enquanto se publicavam estudos que, mesmo sem conclusões definitivas, mereciam consideração científica, como se pode observar nesta meta-análise publicada já este ano no Annals of Medicine and Surgery.
Em 2020, a jornalista Filipa Traqueia, actualmente no jornal Expresso, achou por bem dissertar no Polígrafo sobre a (in)utilidade da vitamina D, usando como fonte de informação o pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações mercantilistas à indústria farmacêutica, conselheiro da DGS e da Ordem dos Médicos e ‘guru’ para a comunicação social durante a pandemia.
E sobretudo veja-se o caso da vitamina D, com provas acumuladas sobre o seu papel imunológico, transformada em suplemento menor por não trazer dividendos a multinacionais. Afinal, há mais lucro em administrar fármacos novos a milhões do que em distribuir sol e bom senso. Logo no início da pandemia, esse arauto do Jornalismo e da Ciência — estou a ironizar — chamado Polígrafo (e seguido por outros) tratou logo de menorizar a utilidade da vitamina D na prevenção e tratamento da covid-19. Isto, claro, com a imprescindível ajuda de um dos maiores mercenários da indústria farmacêutica, Filipe Froes.
Hoje, sobre a covid-19, sabe-se que “níveis baixos de vitamina D aumentaram o risco de infecção entre 1,26 e 2,18 vezes, o risco de doença grave entre 1,50 e 5,57 vezes, o risco de admissão em unidades de cuidados intensivos (UCI) em mais do dobro, e o risco de morte entre 1,22 e 4,15 vezes”, citando ipsis verbis as conclusões de uma meta-análise publicada este ano na Nutrition Reviews, da prestigiada Oxford Academic.
Mas se a pandemia foi um campo fértil para este jornalismo de parceria — entre aspas e sem ironia possível —, os anos que se seguiram não mostraram arrependimento. Pelo contrário, refinaram-se os métodos, disfarçaram-se melhor os conluios, construíram-se narrativas com roupagens de ciência e compaixão.
A nova fronteira de conquista são as doenças raras, sobretudo em idade pediátrica: um terreno fértil para comover corações, amolecer decisões orçamentais e justificar tratamentos a preços pornográficos. O objectivo é simples: quanto mais rara for a doença e mais jovem o doente, mais fácil será colocar o fármaco na agenda pública. Basta um caso mediático, uma associação de pais com boas relações, uma imprensa dócil e, claro, um ex-director de farmacêutica agora estrategicamente colocado numa comissão do Infarmed ou em cargo político com acesso ao Orçamento.
O caso ontem revelado pelo PÁGINA UM, sobre a entrada na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde de um quadro da farmacêutica Sanofi, que negociou a compra de anticorpos monoclonais contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), é paradigmático. A doença, cuja mortalidade é inexistente em Portugal, foi promovida à categoria de emergência sanitária. Resultado? Vinte milhões de euros em compras públicas para imunizar todos os recém-nascidos, incluindo os que nunca estariam em risco. O produto é caro, a doença tornou-se mediaticamente “fofa” — por força das conferências e notícias sobre o tema, mercadejadas pela imprensa — e o argumento parece inatacável: salvar alguns bebés do sofrimento e trauma de um eventual internamento. O agenda setting resulta nisto.
Quem ousará pôr travão, redefinindo prioridades? A imprensa — cúmplice, dependente e indiferente — não. As sociedades médicas, muitas delas sustentadas por apoios da indústria, também não. E os decisores políticos, alimentados pelo vaivém das portas giratórias entre Estado e farmacêuticas, muito menos.
Francisco Gonçalves, ex-Sanofi, e Ana Paula Martins, ex-Gilead: as ‘portas giratórias’ entre as farmacêuticas e o Ministério da Saúde.
Enquanto isso, o que sobra da saúde pública degrada-se em silêncio. Urgências encerradas. Hospitais saturados e mal equipados. Jovens médicos desmotivados e explorados, ao passo que as elites clínicas fazem fortuna acumulando salários públicos e avenças privadas. Listas de espera que se arrastam até ao absurdo. E, cereja pútrida no cimo do bolo, até mesmo doenças associadas à água potável e ao saneamento — ou à falta deles — a matarem 525 pessoas no ano de 2023 em Portugal.
Este número degradante foi publicado ontem discretamente pelo INE, sob a forma de “taxa de mortalidade devida a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes por 100.000 habitantes” (vd.aqui). Destas 525 mortes em 2023, três terão sido crianças com menos de 5 anos — portanto, mais do que mata o VSR. Em 2010, estes problemas sanitários tinham sido a causa de 116 óbitos, nenhum dos quais de crianças. Ninguém, na imprensa mainstream, que tem dezenas e dezenas de jornalistas, pegou no assunto. Tal como ninguém fez eco da notícia do PÁGINA UM em Setembro do ano passado onde já se revelava essa vergonhosa tendência de crescimento.
Sobre isto não há reportagens de abertura de telejornal? Onde está a indignação? Onde estão os editoriais de fundo?
Evolução da mortalidade por grupos etários entre 2010 e 2023 para doenças associadas a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes. Fonte: INE. Cálculos: PÁGINA UM com base na taxa de mortalidade e estimativas anuais da população por grupos etários.
Não estão. Porque essas mortes, por insalubridade e desleixo, não geram publicidade, nem contratos de venda de fármacos, nem parcerias. São mortes pobres de interesse, sujas de realidade. E dessas, a Senhora Ministra da Saúde, ex-Gilead, e o Senhor Secretário de Estado da Gestão da Saúde, ex-Sanofi, não estão para aí virados, porque a imprensa também não os faz virar para aí. Aquilo que interessa mesmo é vender fármacos, porque basta um contrato, enviar um camião com os medicamentos salvíficos (ou não tanto) e fazer a transferência bancária com o dinheiro dos contribuintes para os cofres dos accionistas das farmacêuticas.
Sem os chatos dos jornalistas watchdogs, agora amestrados em petdogs, o mundo tornou-se distópico: sobrevivemos sem noção de que a Saúde Pública serve quase só para, com contínuos negócios, alimentar uma contínua dependência dos fármacos do sector farmacêutico, que nos salvarão sempre, excepto prova em contrário, que nunca se procurará.
A indústria farmacêutica reforçou a sua presença no Ministério da Saúde com a nomeação de Francisco Gonçalves para a Secretaria de Estado da Gestão da Saúde. O novo governante salta directamente da Sanofi, onde ocupava desde 2021 o cargo pomposamente denominado Head of Market Access & Public Affairs. Nessas funções, Francisco Gonçalves foi responsável pela definição de estratégias para a obtenção de preços e reembolsos junto das autoridades de saúde, bem como pela articulação com decisores políticos e instituições públicas, assegurando o enquadramento regulatório e institucional favorável à empresa.
Foi ele que, por exemplo, negociou com o Ministério da Saúde, então liderado por Ana Paula Martins, a introdução do fármaco Beyfortus – marca comercial do nirsevimab, um anticorpo monoclonal para a prevenção do vírus sincicial respiratório –, que é hoje uma das coqueluches da farmacêutica francesa (confirma). Nas contas de 2024, a Sanofi reportou receitas com este fármaco de quase 1,7 mil milhões de dólares, com um crescimento de 208% face ao ano anterior, ocupando já a segunda posição entre as suas marcas, apenas atrás do Dupixent, também um anticorpo monoclonal destinado ao tratamento da asma e da dermatite atópica, e que é um autêntico campeão de vendas devido ao seu elevado preço.
Apesar de se tratar de uma doença genericamente benigna e de não haver registo em Portugal de mortes em bebés, a Sanofi – apoiada numa intensiva campanha mediática que incluiu parcerias promíscuas com a imprensa mainstream – conseguiu que, em 2024, o Ministério da Saúde adquirisse doses suficientes para inocular cerca de 62 mil bebés nascidos entre 1 de Agosto do ano passado e 31 de Março de 2025.
De acordo com o Portal Base, a Sanofi conseguiu vender até hoje cerca de 14,6 milhões de euros (IVA incluído) de Beyfortus, mas a factura deverá ainda aumentar substancialmente. Grande parte deste valor deveu-se á administração de doses em cerca de 62 mil crianças”, justificada por um alegado estudo do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), com base em dados de 2023, que apontavam para o internamento hospitalar de 145 crianças até aos dois anos de idade, entre 2 de Outubro e 10 de Dezembro.
No passado mês de Abril, o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde (DGS), decidiu expandir a estratégia de imunização na próxima campanha de vacinação, alargando a sua abrangência a todos os bebés nascidos entre 1 de Junho de 2025 e 31 de Março de 2026. A data ainda não está definida, mas a campanha de administração do anticorpo monoclonal – que não é tecnicamente uma vacina – deverá arrancar a 1 de Outubro e prolongar-se até 31 de Março de 2026.
O marketing para promover mediaticamente o tema do vírus sincicial respiratório começou no final de 2021 com um evento pago pela AstraZeneca ao Público. A partir do ano passado, os eventos, também em outros media (como o Expresso) começaram a ser promovidos pela Sanofi, que tem a área comercial de um novo fármaco (com a AstraZeneca e a Sobi) aprovado na Europa. As notícias sobre o VSR e o novo fármaco aumentaram substancialmente a partir do ano passado na generalidade da imprensa.
Apesar de diversos estudos indicarem que o Beyfortus reduz significativamente a hospitalização de bebés com infecções respiratórias por VSR, não são conhecidos estudos públicos sobre o verdadeiro impacto nos hospitais portugueses, sendo certo que, em termos de óbitos, não havia nada a melhorar, por não haver registos de desfechos fatais. Até porque, antes do Beyfortus, já existia um outro anticorpo monoclonal administrado apenas a prematuros e recém-nascidos com comorbilidades graves.
Apesar disso, os dados da Agência Europeia do Medicamento – actualmente presidida por Rui Santos Ivo, presidente do INFARMED, e que ficará agora sob tutela do ex-Sanofi Francisco Gonçalves – começam a indicar suspeitas de efeitos adversos graves associados à toma de nirsevimab. Ainda que estes dados careçam de confirmação, a sua inclusão no sistema EudraVigilance constitui já um alerta regulatório.
Desde 2023 até à data, foram reportadas 628 reacções adversas graves, incluindo 21 mortes. Destas, 13 foram reportadas em 2024 e sete já este ano. O mais recente registo de morte associada à nirsevimab é de 29 de Março e ocorreu por morte súbita de um recém-nascido com menos de um mês no próprio dia da toma, de acordo com o registo da EudraVigilance.
Os efeitos adversos do Beyfortus têm sido detectados sobretudo em França, onde a administração do fármaco é mais intensiva. Actualmente, para além de Portugal e França, o Beyfortus tem sido administrado em Espanha, Alemanha, Itália, Finlândia e Bélgica – embora nem todos os países tenham optado por abranger todas as crianças. O custo por dose ascende a mais de 200 euros, valor considerado exorbitante, o que tem contribuído para o expressivo crescimento das receitas da Sanofi.
Com a nomeação de Francisco Gonçalves, são agora dois os governantes do Ministério da Saúde com fortes ligações à indústria farmacêutica. Ana Paula Martins esteve durante vários anos ligada à Gilead, uma das farmacêuticas que conseguiu importantes negócios durante a pandemia, sobretudo com o remdesivir, um fármaco que fora um investimento ruinoso contra o vírus do Ébola, mas que miraculosamente foi considerado eficaz contra o SARS-CoV-2.
Apesar de a covid-19 ser actualmente uma doença praticamente inofensiva, a Gilead conseguiu já vender este ano em Portugal mais 744 mil euros de remdesivir a diversos hospitais, tendo no ano anterior obtido ainda 3,7 milhões de euros. Desde finais de 2020, cerca de 40 milhões de euros deste antiviral foram adquiridos pelo Estado português à antiga empregadora da actual ministra da Saúde.
A indústria farmacêutica vive, na Europa, um período de expansão acentuada dos seus negócios, com cada vez menor vigilância regulatória, fruto das chamadas “portas giratórias” entre o sector e a política. Além disso, ao nível dos media, tem-se vindo a registar aquilo que se poderá denominar – com rigor a definir – “abraços de urso” publicitários, em que parcerias comerciais envolvendo jornalistas alimentam uma cobertura enviesada: os órgãos de comunicação social funcionam agora como novos delegados de propaganda médica.
Em Portugal, por exemplo, o Expresso, o Público, a CNN, o Observador, o Diário de Notícias, entre outros, têm mantido generosas parcerias com farmacêuticas, o que se traduz numa visível redução de notícias desfavoráveis e num aumento de conteúdos entusiásticos, mesmo relativamente a medicamentos ainda sem provas consolidadas de eficácia ou de segurança.
Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.
A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.
Léo Lins
O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.
Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.
Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.
Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?
O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.
Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.
Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.
É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.
Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.
Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.
Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.
Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.
O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.
Vira o disco e toca o mesmo. Para cumprir a segunda parte de um contrato de prestação de serviços de 147 mil euros pagos pela Câmara Municipal de Lisboa à Medialivre — a empresa de media detentora do Correio da Manhã e da CMTV, e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista individual —, mais uma vez Carlos Moedas, o edil social-democrata que se recandidatará a novo mandato, foi o cabeça-de-cartaz. Mas com uma ‘nuance’: ao contrário da primeira sessão, em que o presidente da autarquia discursou longos 25 minutos no início, desta vez foram 15 minutos na sessão de encerramento. Para aparecer a discursar nos canais em directo da Medialivre, sem sequer dar assento à oposição, Carlos Moedas ‘passou um cheque’ de quase 75 mil euros por sessão.
O tema da conferência desta terça-feira foi a imigração. Sob o título “De todos os lugares, uma só cidade”, o evento decorreu no Centro de Informação Urbana de Lisboa (CIUL) e inseriu-se no ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV, em parceria e com o apoio da Câmara de Lisboa. No entanto, como o PÁGINA UM revelou na semana passada, essa “parceria” foi, na verdade, um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, celebrado com a Medialivre para dois eventos — o de hoje e o anterior, realizado a 27 de Maio, sobre segurança.
Daniela Polónia, jornalista da CMTV (à esquerda), chamando ao palco esta manhã o ministro da Presidência, Leitão Amaro, para discursar: eis um nova ‘atribuição’ dos jornalistas em contratos de prestação de serviços para autarquias.
Com o espaço e a logística assegurados também pela própria Câmara Municipal, o evento foi assim uma mera prestação de serviços que envolveu três jornalistas da Medialivre: Carlos Rodrigues (CP 1575), director-geral editorial, que deu as boas-vindas; Daniela Polónia (CP 6296), pivot da CMTV, que actuou como mestre-de-cerimónias; e João Ferreira (CP 802), jornalista sénior, que moderou, mais uma vez, os dois painéis da conferência.
O contrato assinado pelo vereador Filipe Anacoreta Correia estipula que a Medialivre se obrigava a realizar os eventos, fornecendo meios técnicos e humanos, incluindo jornalistas, a troco de 73.800 euros por sessão. Não houve qualquer referência explícita, durante a conferência, à existência de contrato ou ao pagamento envolvido.
Aliás, ainda no mês passado, a ERC considerou numa deliberação que se estava perante publicidade a realização de dois eventos do género pagos ao Público pela autarquia de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas, que tinham sido moderados pelo actual director do Público, David Pontes.
Para discursar em dois eventos, sobre segurança e imigração, em instalações da própria Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas pagou, com dinheiros públicos e em vésperas de eleições autárquicas, quase 150 mil euros à Medialivre.
No caso dos eventos pagos pela autarquia de Lisboa à Medialivre, as declarações das duas partes envolvidas são sempre no sentido de se ter tratado de uma parceria, dando a entender que houve distribuição de custos. Ora, não houve: os custos do evento foram da Câmara, que forneceu mesmo o local, e ainda pagou à Medialivre. Em rigor jurídico e técnico, não se deve falar de “parceria” quando há uma relação contratual em que uma das entidades paga à outra uma contraprestação em dinheiro por um serviço prestado. Nesses casos, trata-se de uma relação comercial ou contratual de prestação de serviços, e não de uma parceria no sentido próprio.
Esta omissão, recorrente nos media, esbate a fronteira entre jornalismo e promoção institucional, colocando em causa o Estatuto do Jornalista, que proíbe actos publicitários ou de natureza comercial por parte de profissionais com carteira. A instrumentalização de jornalistas da Medialivre nestes eventos representa, além de uma violação legal, um caso flagrante de promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.
Destaque-se que o Estatuto do Jornalista considera mesmo “actividade publicitária incompatível com o exercício do jornalismo a participação em iniciativas que visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade pessoal ou institucional do jornalista, quando aquelas não sejam determinadas por critérios exclusivamente editoriais”. Ou seja, havendo uma obrigação contratual – em que a troco de dinheiro tem de haver presença de jornalistas –, deixam de existir critérios exclusivamente editoriais, caindo-se na publicidade.
João Ferreira, pela segunda vez no espaço de sete dias, o jornalista fez o papel de moderação em debates. O problema não é a moderação, que é permitida por lei, mas sim a moderação para efeitos de cumprimento de cláusulas comerciais pela sua entidade empregadora (Medialivre).
O convidado principal da sessão desta terça-feira foi, desta vez, António Leitão Amaro, ministro da Presidência, que aproveitou o palco para fazer o balanço do primeiro ano de governação na área das migrações. “A capacidade de liderança é ser capaz de ver à frente e agir”, afirmou, destacando o Plano Nacional de Acção para as Migrações apresentado há precisamente um ano. Na sua intervenção, afirmou que o Governo anterior “não compreendeu nem respondeu” à nova realidade demográfica, criando espaço para respostas radicais e desumanizantes. Em contraste, assegurou que a actual governação combina “mudança firme” com “humanismo moderado”.
Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que abriu a sessão desta terça-feira com uma breve intervenção, enviou esta tarde ao PÁGINA UM um pedido de direito de resposta relativo à notícia publicada na semana passada. O texto será publicado na íntegra amanhã, em cumprimento dos prazos da Lei de Imprensa, que determina que, se a publicação for diária, terá de o divulgar “dentro de dois dias a contar da recepção”.
Ontem, na entrevista à TVI e CNN Portugal, Gouveia e Melo garantiu ser “muito imune” a cunhas, quando questionado pela jornalista Sandra Felgueiras sobre a eventualidade de se repetir um ‘caso das gémeas’ durante uma sua Presidência da República. “O que eu fiz na pandemia, quando tomei conta da pandemia, dos casos e casinhos, responde por mim” — disse o ex-coordenador da task force da vacinação contra a covid-19 entre Fevereiro e Novembro de 2021. E acrescentou: “Eu sou o que sempre fui. E podem contar comigo com essa segurança. […] Eu sou muito imune. As pessoas que me conhecem e que andam comigo há muito tempo sabem disso” — concluindo que “[n]a minha forma de agir e de estar, eu não dou abrigo a esse tipo de procedimento; procedimentos de excepção e de favoritismo. Algum procedimento de excepção é por motivos humanitários ou outro qualquer; agora, não porque conheço o A ou conheço o B, ou porque [sou] amigo do A ou amigo do B, ou porque alguém se cruzou comigo no passado — isso nunca acontecerá.”
Essa postura de Gouveia e Melo entra em contradição com factos já revelados pelo PÁGINA UM, e que constam mesmo de documentação de um procedimento da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) que, apesar da gravidade da situação, menorizou os procedimentos do então coordenador da task force e também do então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, actual deputado do PSD.
Com efeito, durante o processo de vacinação de médicos não-prioritários — cerca de quatro mil que não estavam em funções operacionais, não cumprindo assim os critérios de prioridade da DGS, numa altura ainda de escassez de doses — Miguel Guimarães escreveu um e-mail, a 17 de Março de 2021, para o endereço electrónico de Gouveia e Melo, reiterando aquilo que lhe transmitira “telefonicamente”.
O bastonário salientava o processo da primeira fase de vacinação, em que se tinham administrado as doses de desperdício, mas que uma dose tinha sido “administrada em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.
A missiva com esta confissão consta na página 19 destes documentos que se encontram no processo aberto pela IGAS. Miguel Guimarães nunca quis esclarecer o PÁGINA UM sobre quem foi o político beneficiado, nem a IGAS atendeu a esta confissão, que é de enorme gravidade, porque se tratou de uma ‘cunha’, além de infracções éticas, legais e até penais.
Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”.
De acordo com o Código Penal, quem, no exercício de funções públicas — neste caso, Gouveia e Melo enquanto coordenador da task force de vacinação — teve conhecimento de uma infracção penal (como, por exemplo, o abuso de poder ou prevaricação de titular de cargo político por parte de um político que recebeu indevidamente a vacina, em desrespeito às normas definidas para a campanha de vacinação) e não comunicou tal facto ao Ministério Público ou a uma autoridade competente, poderá estar abrangido pelo crime de prevaricação ou abuso de poder.
Mas o próprio processo de vacinação destes médicos esteve, logo na génese, ferido de irregularidades e de favorecimentos, com Gouveia e Melo a sair beneficiado por ter feito um favor a Miguel Guimarães na sua ascensão política.
No início de 2021, com a insatisfação da Ordem dos Médicos por não estarem incluídos na totalidade os clínicos na Fase 1 da vacinação, Miguel Guimarães negociou directamente com Gouveia e Melo uma alternativa, que passaria por desviar doses do sistema normal para serem administradas aos cerca de quatro mil médicos não-prioritários nas instalações do Hospital das Forças Armadas, a troco de uma contrapartida de 27 mil euros. Gouveia e Melo acumulava, na altura, funções de adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas.
No processo instaurado pela IGAS, e concluído em Maio do ano passado, Miguel Guimarães referiu que, desde Janeiro de 2021, remetera à então ministra da Saúde, Marta Temido, uma reclamação por causa da existência de médicos não integrados no grupo prioritário, que, na verdade, seria um parecer do Conselho Nacional da Política do Medicamento da Ordem dos Médicos. O conteúdo deste parecer não foi sequer enviado à IGAS, nem a IGAS o solicitou posteriormente, pelo que a sua existência é duvidosa.
Nos documentos enviados por Miguel Guimarães à IGAS constam ainda missivas do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, em papel timbrado da Secretaria de Estado da Saúde, onde informa que, na “sequência de reuniões realizadas”, solicitava à Ordem dos Médicos uma lista de médicos que “exerçam a sua actividade de prestação directa de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de saúde já mobilizadas para a execução do plano de vacinação”. Mas essa lista nunca se viu, nem Miguel Guimarães a enviou à IGAS; e nem a IGAS a quis ver.
Com a chegada de Gouveia e Melo à task force em Fevereiro de 2021, de acordo com a documentação a que o PÁGINA UM teve acesso, a informalidade espraiou-se. Já não há papel timbrado nem ofícios. Fez-se tudo por correio electrónico, embora com uma inusitada reverência. Miguel Guimarães tratava Gouveia e Melo por “Distinto Senhor Coordenador da Task-Force Mui Ilustre Vice-Almirante”.
Gouveia e Melo foi coordenador da task force.
Em 19 de Fevereiro de 2021, poucas semanas depois de Gouveia e Melo ter tomado posse como coordenador da task force, Miguel Guimarães envia-lhe por e-mail “uma base de dados com médicos que querem ser vacinados, e cumprem os critérios definidos pela DGS”. Essa lista não é conhecida, não foi fornecida pela task force nem pela Ordem dos Médicos à IGAS. E a IGAS não a quis sequer ver, sendo que essa era a questão óbvia num decente e idóneo processo de esclarecimento.
Mas, de acordo com esse e-mail de Miguel Guimarães, nessa altura a lista nem estava ainda concluída, dizendo ele que “continuamos a receber mais inscrições de médicos que ainda não foram vacinados e continuam no activo”, prometendo enviar mais tarde “uma nova base de dados de forma a evitar sobreposições”. Embora estranhamente não haja qualquer resposta de Gouveia e Melo às missivas de Miguel Guimarães, tudo evoluiu rapidamente para a vacinação de cerca de quatro mil alegados médicos — e reitera-se “alegados médicos” porque nunca se conheceu a lista final de nomes, nem a IGAS a quis conhecer —, cujas vacinas foram administradas em unidades militares. Pelos e-mails de Miguel Guimarães sabe-se o número daqueles que tinham menos de 65 anos, porque receberam a vacina da AstraZeneca, e daqueles que tinham mais de 65 anos, pois receberam a da Pfizer.
Em finais de Fevereiro de 2021, além das pessoas indicadas pela Ordem dos Médicos a viverem no Continente, Miguel Guimarães ainda indicaria 27 médicos da Madeira e 42 dos Açores para serem vacinados, mas no processo fica-se sem saber também quem eram e se houve mesmo inoculação das doses. A IGAS não teve curiosidade em saber.
Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, ao lado de Miguel Guimarães. Geriram em conjunto uma conta solidária, titulada por eles juntamente com Eurico Castro Alves, de onde saiu o dinheiro para pagar cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida da vacinação de médicos não-prioritários.
Mas essa informação até existirá, eventualmente, num “relatório final da primeira fase” desta operação de vacinação que Miguel Guimarães prometeu, em mensagem de correio electrónico de 17 de Março de 2021, enviar “brevemente” a Gouveia e Melo. Também a IGAS não quis saber deste relatório nem quis saber se houve outros relatórios.
A forma como o procedimento da IGAS foi conduzido mostra ou negligência ou intencionalidade em isentar de culpas Gouveia e Melo e Miguel Guimarães. O relatório final do processo de esclarecimento, da autoria da inspectora Aida Sequeira, retira conclusões que nem sequer se encontram plasmadas em qualquer documento.
Por exemplo, o relatório destaca que “a ponderação e preparação do processo de vacinação foi do conhecimento da DGS e do responsável máximo pela tutela da saúde, a então Ministra da Saúde”, mas, na verdade, não existe no processo consultado pelo PÁGINA UM qualquer documento que comprove esse conhecimento por parte da DGS, que é a Autoridade de Saúde Nacional e a única entidade responsável pela norma eventualmente violada.
Acresce também que a IGAS omite na sua análise a impossibilidade legal da então task force dirigida por Gouveia e Melo negociar procedimentos com a Ordem dos Médicos ou outra qualquer entidade. Somente em Abril de 2021, Gouveia e Melo obteve poderes reforçados através de um despacho governamental.
Mas o relatório final da IGAS fez ainda pior, numa tentativa de ‘legalizar’ os médicos não-prioritários. Com efeito, a inspectora Aida Sequeira diz que a norma 002/2021 tinha tido uma “actualização a 17 de Fevereiro de 2021”, que passava a incluir na Fase 1 os “profissionais envolvidos na resiliência do sistema de saúde e de resposta à pandemia e do Estado”, bem como “outros profissionais e cidadãos, definidos pelo órgão do governo, sobre [sic] proposta da Task-Force”.
Porém, isso é completamente falso.
Na verdade, houve uma actualização da norma em 17 de Fevereiro, mas não em 2021 (ano dos factos), mas sim em 2022, no ano seguinte, conforme se pode constatar no texto. E, de facto, esse alargamento até se verificou inicialmente em 31 de Agosto de 2021, numa fase de maior oferta de vacinas pelas farmacêuticas. Ou seja, a introdução de uma referência completamente falsa por parte da inspectora da IGAS sobre uma alteração da norma da DGS no dia 17 de Fevereiro de 2021 não aparenta nada ser um mero lapso.
Não existe também no processo qualquer documento que comprove a afirmação da inspectora Aida Sequeira de que “em Janeiro de 2021, o Secretário de Estado da Saúde, com conhecimento da DGS, oficiou a Ordem dos Médicos no sentido de que fosse disponibilizada ‘(…) uma base de dados de contactos de médicos com actividade de prestação de cuidados, de forma não integrada em hospitais públicos, privados ou sociais ou em outras entidades prestadoras de cuidados de saúde já mobilizadas”. A inspectora da IGAS diz que essa informação proveio de “diligências adicionais promovidas por esta Inspecção-Geral”, embora não haja qualquer nota sobre a fonte nem sequer o documento que confirme o necessário conhecimento, verificação e aprovação da lista enviada pela Ordem dos Médicos.
Carlos Carapeto: A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde também viu a ‘cunha’, mas preferiu fechar os olhos. A alteração da data de uma norma, introduzida pela inspectora responsável pelo processo, permitiu ilibar Gouveia e Melo e Miguel Guimarães de procedimentos irregulares na vacinação dos médicos não-prioritários.
Assim, e apesar de se ficar sem saber quem, afinal, eram as cerca de quatro milhares de pessoas vacinadas sob a batuta de Miguel Guimarães — e se eram todos médicos, e se todos cumpriam os critérios da norma da DGS, porque a IGAS nada pediu —, a inspectora concluiu “pela conformidade legal da inoculação da vacina contra a covid-19 aos profissionais de saúde, circunscrita a Fevereiro de 2021”, determinando o arquivamento. Ficou assim também ‘apagado’ o pecadilho da “personalidade política” vacinada à margem da lei por uma “questão de necessidade e oportunidade”, bem como o exorbitamento de funções por parte de Gouveia e Melo.
Em todo o caso, sobre as suspeitas de irregularidades na contabilidade financeira da Ordem dos Médicos no processo de ‘contratação’ do Hospital das Forças Armadas, a IGAS decidiu enviar o processo para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa, mas até à data não existem quaisquer informações sobre o avanço deste processo.
Os resultados do primeiro trimestre deste ano, divulgados na semana passada pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT), voltam a comprovar aquilo que os ‘barões da imprensa’ persistem em negar com a habitual táctica da avestruz: escondem a cabeça nos slogans sobre “transformações digitais”, “modelos sustentáveis” e “novas formas de chegar ao leitor”, enquanto o corpo editorial se afunda no pântano da irrelevância.
A verdade, nua e crua, é esta – e é tão clara quanto dramática: a imprensa escrita generalista portuguesa colapsou. Os números não mentem. São mais de duas décadas de declínio contínuo, mascarado por anúncios piedosos e relatórios internos que já ninguém leva a sério.
Foto: PÁGINA UM
Em 2025, nem os comunicados eufemísticos do trust da comunicação social, nem os generosos orçamentos de publicidade institucional, nem sequer o ‘balão de oxigénio’ do Governo – travestido de distribuição gratuita de assinaturas digitais para os jovens – conseguem disfarçar o desastre. A erosão é estrutural e terminal.
A evolução das vendas em banca – com quebras brutais em todos os títulos – e das assinaturas digitais – com valores unitários largamente inferiores aos do papel e sem escala de massa crítica – espelham o fim de um modelo baseado na fuga para a frente: redacções inexperientes, pouco cultas, reféns de agendas e compromissos, divorciadas dos leitores e cada vez mais promíscuas nas relações com o poder político e económico.
Mais do que um fim de ciclo, talvez este seja mesmo o fim de linha para alguns dos títulos – o que, convenhamos, não seria necessariamente mau. A extinção natural poderá limpar o terreno dos vícios acumulados, permitir um reequilíbrio do ecossistema mediático e abrir espaço a novas formas de jornalismo, menos dependentes da subsidiação crónica e da formatação ideológica. A imprensa escrita colapsou, mas o jornalismo ainda pode sobreviver – desde que se liberte das amarras que o arrastaram até aqui.
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O PÁGINA UM analisou a evolução das vendas dos últimos 30 anos de cinco jornais generalistas portugueses: quatro nascidos como diários – Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público – e um de origem semanal – o Expresso. A linha temporal inicia-se em 1996, quando ainda não existia o conceito de assinaturas digitais e os portugueses, então leitores assíduos, consumiam jornais em papel como parte integrante do café da manhã.
Foi apenas em 2009 que esse “novo e maravilhoso mundo” digital começou a dar os primeiros sinais de vida, ainda timidamente. Ao longo da década seguinte, foi ganhando terreno, até se tornar, nos últimos anos, o eixo dominante das estratégias editoriais. Hoje, as edições impressas são cada vez mais residuais, enquanto a produção de conteúdos se rege pela lógica do imediato – e pelos inúmeros erros que daí decorrem.
A própria natureza do jornalismo transformou-se: os diários deixaram de ser apenas diários para se tornarem plataformas de informação em torrente contínua, ao passo que o Expresso, tradicionalmente semanal, passou a comportar-se como um diário digital, pressionado pelo mesmo ritmo.
Mais ainda: a transição é já estrutural em dois casos. O Público e o Expresso são, desde 2020 e 2023 respectivamente, jornais maioritariamente digitais, com as assinaturas electrónicas a superarem as vendas em banca. Esta inversão de paradigma, longe de ser sinónimo de sustentabilidade, levanta sérias questões sobre a viabilidade económica, a qualidade editorial e o impacto social do jornalismo tal como está a ser praticado.
Mas vejamos, com rigor e em detalhe, os números de cada jornal, tomando como referência os dados relativos ao primeiro trimestre de cada ano, de forma a permitir comparações homogéneas ao longo do tempo.
Comece-se pelo Público, o diário fundado pelo Grupo Sonae. No primeiro trimestre de 1996, vendia diariamente, em banca, cerca de 58 mil exemplares. Este ano, pela primeira vez, caiu abaixo dos 10 mil. Uma queda de mais de 84%, que nem o empolamento das assinaturas digitais – muitas de acesso gratuito ou incluídas em pacotes promocionais – consegue mascarar. A versão digital, é certo, regista agora cerca de 54 mil assinaturas pagas, quintuplicando os valores registados há uma década, mas à custa de uma política de produção intensiva de conteúdos e de receitas unitárias substancialmente mais baixas que o papel. E a matemática é simples: mais trabalho, menos rendimento. E menos impacto.
O simbolismo do papel, mesmo no efémero diário, é superior – nesse aspecto, o diário da Sonae é hoje um fantasma: o ano de 2005 foi o último acima dos 50 mil exemplares vendidos por dia; 2015 foi o último com vendas diárias em banca acima dos 20 mil, e agora já está abaixo de 10 mil. Sinal de que o digital não é sustentável mostra-se nas contas. O Público, que sempre foi um jornal deficitário, apresentou em 2023 – os resultados de 2024 ainda não são conhecidos – um prejuízo recorde de quase 4,5 milhões de euros.
Passemos ao Diário de Notícias, ou àquilo que resta do diário nascido no século XIX e que só existe por um ‘milagre’ não explicado pelas ciências económicas. No primeiro semestre do ano 2000 vendia mais de 70 mil exemplares diários, mesmo mais do que em 1996. Mas várias promiscuidades entre o jornalismo e o mundo político e empresarial foram aniquilando o jornal depois da saída de Mário Bettencourt Resendes em 2004, e da passagem de nove directores (sem contar com os interinos).
Entre 2003 e 2013, as vendas no primeiro trimestre passaram de cerca de 52 mil exemplares por dia para menos de 24 mil. Mas isso foi apenas o princípio do descalabro.
Em 2018, as vendas já estavam abaixo dos 10 mil, e dois anos depois mal ultrapassavam os quatro mil. No primeiro trimestre deste ano, o DN nem chega a mil exemplares por dia. Não, não leu mal: são 966 exemplares em banca, em média, no primeiro trimestre de 2025. Trata-se de um nível de circulação impraticável para qualquer modelo de imprensa de massas – e apenas sustentável graças a expedientes editoriais de sobrevivência. A edição digital, por sua vez, ronda os 700 acessos pagos, uma ninharia irrelevante do ponto de vista económico e social.
Já o Jornal de Notícias, outrora o orgulho da imprensa nortenha. E chegou a ser um jornal centenário por duas razões: por ter mais de cem anos (foi fundado em 1888) e por ter ultrapassado os 100 mil exemplares por dia no final dos anos 90.
No período em análise, o pico surgiu em 2004 com cerca de 127 mil exemplares diários. Embora até 2009 se tenha mantido em redor dos 100 mil exemplares, a partir desse ano iniciou uma rota descendente. Em 2014 já estava abaixo dos 60 mil exemplares, ou seja, uma queda de 40% em apenas cinco anos. Mas ainda se afundou mais.
No primeiro trimestre de 2020 já surge abaixo dos 40 mil, e os últimos anos têm sido penosos, mesmo com a sua suposta saída do universo da Global Media. O primeiro trimestre deste ano mostra vendas de 16.613 exemplares, que representam apenas 13% das vendas do pico de 2004.
Ainda por cima, a digitalização, longe de salvar o navio, apenas está a apressar o naufrágio: 3.300 assinaturas digitais pagas em 2025. Com uma assinatura anual a custar 24,95 euros, não é por aqui que o JN se salvará.
O Correio da Manhã, tradicionalmente o mais resiliente entre os generalistas, e que se anuncia como o jornal diário mais lido em papel, está agora reduzido a um rei de um só olho em terra de cegos. Há dias, o jornal da Medialivre regozijava-se por vender “mais de 1 milhão de exemplares por mês” em banca, o que corresponde a “um número superior a 34 mil exemplares por dia”. No actual contexto, em que entra em competição o Diário de Notícias com menos de mil, parecem valores extraordinários – mas não.
Desde 2011 não há ano em que o Correio da Manhã tenha conseguido inverter a tendência de queda. No auge de 2011, vendeu 125.354 exemplares diários – ou seja, mais de 3,75 milhões por mês; cinco anos depois já estava abaixo da fasquia dos 100 mil por dia, mesmo assim cerca de três vezes mais do que os valores do primeiro trimestre de 2025. Ou seja, em 14 anos, entre 2011 e 2025, o Correio da Manhã teve uma quebra de vendas de 73%, que nem sequer é mitigada pelas assinaturas digitais, que começaram em 2012 e apenas rondam agora os 2.700.
Mesmo sem o descalabro dos outros diários, a imprensa popular também sofre, tanto mais que a transição digital não casa com o público tradicional do Correio da Manhã.
Finalmente, o caso do Expresso, sendo diferente por ter nascido como semanário, também merece destaque pelo contraste entre o passado de prestígio e o presente de perda. Jornal que, nos anos 90, começou paulatinamente a vender em redor dos 130 mil a 140 mil exemplares por edição – também fruto do célebre saco de plástico que garantia o seu fácil manuseamento –, o Expresso deu-se mal com os ares fora de Lisboa, depois de ter saído da sua célebre redacção na Rua Duque de Palmela. Em 2002, atingiu o seu máximo de vendas por edição no primeiro trimestre, com mais de 143 mil exemplares, mas foi depois paulatinamente decaindo. Em 2012 contabilizou pela primeira vez valores de vendas abaixo de 100 mil exemplares, numa altura em que o digital ainda dava os primeiros passos.
Nos anos seguintes, o Expresso deixou de ser um semanário com uma edição online para se tornar num diário digital com uma edição semanal em papel. Esta nova versão teve duas consequências: quebras brutais em banca, sobretudo a partir de 2021, que fazem com que por edição se tenham vendido apenas 33.603 exemplares durante o mais recente trimestre; e um aumento nas assinaturas pagas, rondando agora as 50 mil. Dir-se-ia que, somando ambas as categorias, se teria mais de 80 mil leitores, mas esse número fica aquém dos valores da edição semanal da primeira década do presente século.
Além disso, mesmo considerando que os lucros são teoricamente maiores nas assinaturas digitais – por não implicarem os custos de produção e distribuição da edição em papel –, os custos redaccionais aumentam (porque há mais conteúdos), e o impacto real diminui. O Expresso de hoje, com 33.603 exemplares vendidos em banca, mesmo com 49.987 assinaturas digitais, não tem o mesmo estatuto do Expresso de 2002, com 143.222 exemplares vendidos em banca.
E se isto se passa com os cinco maiores e mais relevantes jornais generalistas de Portugal, estamos perante um cenário de terra queimada. Nenhum jornal conseguiu fazer a transição para o digital com equilíbrio económico. As receitas digitais, em média, representam uma fracção das impressas – mesmo com maior volume. Os custos redaccionais mantêm-se elevados, pela sofreguidão noticiosa de repetir primeiro tudo aquilo que os outros dão, mas com salários baixos e uma enxurrada de comentadores a opinar, de sorte que há jornais que mais parecem opinativos.
Em suma, o papel está em agonia, o digital não sustenta. A imprensa escrita generalista portuguesa está, literalmente, em coma induzido por financiamento público e contratos opacos. Mais grave ainda: esta agonia arrasta consigo a função essencial de contrapoder e de vigilância do jornalismo. Num país onde os jornais vivem de publicidade institucional e do favor dos grandes grupos económicos, a queda das vendas significa também a queda da publicidade sem compromisso, da independência. A maioria dos jornais já não vive dos leitores, mas do poder político, da publicidade camuflada e das agendas de grupo. O resultado é uma imprensa cada vez mais alienada do interesse público, cada vez mais dependente da narrativa oficial.
Os números do primeiro trimestre de 2025 não deixam margem para dúvidas. A crise deixou de ser conjuntural e tornou-se estrutural e terminal. Nenhuma newsletter ou podcast salvará o que já está morto. Nenhuma “estratégia digital” ressuscitará o que foi enterrado há uma década. A imprensa escrita portuguesa, tal como a conhecemos, está nos últimos estertores – até porque quem vende menos, cada vez mais recorre a esquemas que matam o jornalismo.