Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Governo paga webinar ao Público moderado pelo próprio director

    Governo paga webinar ao Público moderado pelo próprio director

    A Secretaria-Geral da Educação e Ciência exigiu que evento online de duas horas, organizado pelo Público, tivesse moderação de um jornalista, cobertura noticiosa garantida, e convidados por si indicados. O director do jornal, Manuel Carvalho, não apenas aceitou essas condições como se prestou mesmo ao papel de moderador, ajudando à execução de um contrato comercial. Eis mais um episódio da investigação do PÁGINA UM aos (novos tipos de) financiamentos da imprensa portuguesa.


    O director do Público, Manuel Carvalho, aceitou moderar um webinar pago pelo Governo, e aceitou ainda que fossem publicados “conteúdos editoriais e de publicidade” nos canais em papel e online sobre o Programa Operacional Capital Humano (POCH), em contrapartida ao ajuste directo, no valor de 16.000 euros, feito pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência (SGEC).

    A compra factual de “conteúdos editoriais” está explicitada no contrato assinado em 15 de Outubro passado entre Purificação Cavaleiro Pais, secretária-geral adjunta da SGEC, e a administração do Público. Além do webinar de cerca de duas horas, transmitido em directo na plataforma do Público no dia 28 daquele mês – que consistiu num debate em torno dos resultados da avaliação da Estratégia de Comunicação do POCH –, o jornal fez muito mais do que promover o evento, com recurso à habitual publicidade.

    Com efeito, no contrato a que o PÁGINA UM teve acesso, o Público concordou em publicar, como contrapartida para o recebimento daquela verba proveniente do Governo, quatro artigos em formato digital e/ou impresso.

    Director do Público aceitou moderar um evento pago pelo Governo, mas promovido pelo seu jornal, e nem pôde escolher convidados.

    De acordo com o contrato a que o PÁGINA UM teve acesso, o Público viu-se obrigado a cumprir escrupulosamente “especificações/requisitos técnicos”, constantes na cláusula 15ª, entre os quais publicar um artigo pré-evento, um “artigo de antevisão (digital) + artigo de cobertura (digital + imprensa)” do webinar, e por fim um “artigo pós-Talk”. Neste último caso, estipulou-se mesmo a obrigação de o conteúdo possuir “declarações dos intervenientes” e um prazo de execução: “2 a 3 dias após”.

    Pelo menos dois dos artigos terão sido publicados como menção a serem conteúdo comercial, mas ignora-se se o artigo impresso em papel teve similar tratamento.

    Num dos textos de antecipação editado na secção estúdio P, no site do Público, o POCH era considerado “um dos mais dinâmicos programas operacionais que compõem o Portugal 2020.” Este texto, em estilo jornalístico, não foi assinado – como todos aqueles classificados como conteúdo comercial neste jornal –, mas o seu director não quis esclarecer se existe, para esta secção, uma equipa de redactores sem carteira profissional. Por lei, os jornalistas estão proibidos de escrever textos de conteúdo comercial.

    Em todo o caso, o contrato determinou algo que se reveste de especial gravidade no contexto da independência editorial, exigida por lei, e das tarefas que são incompatíveis para os jornalistas.

    Extracto do contrato que estipula os conteúdos a publicar e a obrigatoriedade de o evento ser moderado pelo Público, apesar dos convidados serem indicados pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência.

    Nas cláusulas contratuais para a execução do webinar, a moderação teria obrigatoriamente de contar com um jornalista do Público – que acabou por ser o próprio director – e os quatro participantes foram escolhidos a dedo pelo ”cliente”, a saber: Joaquim Bernardo (presidente do POCH, a entidade a ser promovida neste evento), Gustavo Cardoso (professor do ISCTE, e coordenador do MediaLab), António Figueiredo Dias (director na Quaternaire Portugal e coordenador da avaliação do POCH) e ainda Mónica Silvares (jornalista do jornal ECO). Em suma, o jornal Público – e o seu próprio director – subordinaram-se a uma entidade estatal durante este evento, a troco de 16.000 euros.

    Outro aspecto polémico do contrato encontra-se na alínea g) do número 2 da cláusula 6ª, que acabava por limitar a liberdade do jornal Público em realizar uma cobertura isenta do evento. De facto, a empresa detentora do Público comprometeu-se contratualmente a “manter o sigilo e garantir a confidencialidade, não divulgando quaisquer informações que obtenha no âmbito da formação e execução do contrato, nem utilizar as mesmas para fins alheios àquela execução, abrangendo esta obrigação todos os seus agentes, funcionários, colaboradores ou terceiros que nelas se encontrem envolvidos”. Ou seja, abrange os jornalistas do Público.

    Contactado pelo PÁGINA UM, o director do Público, Manuel Carvalho, garante que o evento por si moderado, “foi celebrado pelo departamento comercial (…), sem qualquer intervenção da Direcção Editorial na sua concepção ou organização”, acrescentando que apenas se disponibilizou “a utilização da plataforma ‘Ao Vivo’ para a transmissão em streaming do webinar e, em paralelo, a publicação de conteúdos sobre o evento no Estúdio P.”

    O director do Público defende que a publicação de conteúdos comerciais do Estúdio P adoptam a mesma linha seguida “na imprensa internacional (ver Guardian Labs ou a TBrand do NYT)”, estando dependente “do departamento comercial do Público e não tem qualquer ligação à área editorial”, apontando mesmo o grafismo diferente. Sendo isto certo, Manuel Carvalho não esclareceu, porém, o motivos de os textos do Estúdio P, em estilo jornalístico, nunca serem assinados, e não constar na ficha técnica do seu jornal qualquer menção às pessoas ou à equipa redactorial desses conteúdos comerciais.

    Manuel Carvalho, director do Público, ao lado da jornalista Mónica Silvares, diz que aceitou a moderação do evento como o fez “tantas outras vezes com eventos similares promovidos por entidades públicas ou privadas”.

    Manuel Carvalho salienta ainda que “na qualidade de director do jornal, [foi] convidado para moderar o debate” – que, repita-se, se enquadrava num contrato comercial entre uma entidade governamental e a empresa detentora do Público –, e que aceitou o convite como fez “tantas outras vezes com eventos similares promovidos por entidades públicas ou privadas”. Acrescentou ainda ao PÁGINA UM não ter obtido qualquer remuneração por essa participação.

    Recorde-se, entre os deveres dos jornalistas, previstos no seu Estatuto (Lei nº 1/99), está a recusa em exercer “funções ou tarefas susceptíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”.

    Além disto, os jornalistas estão ainda impedidos de participar em acções de marketing ou de relações públicas. A moderação num evento de divulgação (marketing) de uma entidade governamental no contexto de um contrato de prestação de serviços pode ser classificada como actividade incompatível. Até porque, no caso em apreço, o jornalista (e director) está, com a sua participação, a cumprir uma exigência contratual que beneficia financeiramente o periódico onde trabalha.

    As eventuais incompatibilidades cometidas por Manuel Carvalho neste contrato – que, aliás, não é único, tanto no Público como em outros periódicos de âmbito nacional – apenas poderão ser alvo de procedimento disciplinar por iniciativa da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Recorde-se que esta entidade é presidida por Leonete Botelho, que acumula funções de grande repórter na secção de política do próprio jornal Público.

  • Gaia paga mais de meio milhão de euros em contratos com grupos de media através de empresa com dívida astronómica

    Gaia paga mais de meio milhão de euros em contratos com grupos de media através de empresa com dívida astronómica

    Autarquias quase abandonaram a publicação de anúncios na imprensa. Optam agora por chorudos contratos de prestação de serviços para eventos e notícias pagas. Um dos casos mais flagrantes passa-se com a Gaiurb, uma endividada empresa municipal de Vila Nova de Gaia que gere os bairros sociais.


    Uma empresa municipal de Vila Nova de Gaia – que em 2020 registou um lucro de apenas 3.495 euros, mas tem um passivo de 6,1 milhões – gastou ao longo do último ano mais de 583 mil euros em contratos com empresas de comunicação social para a realização de eventos e aquisição de conteúdos noticiosos feitos por jornalistas.

    No último ano, de acordo com a investigação do PÁGINA UM, a Gaiurb – com competência na gestão urbanística e habitacional deste município nortenho presidido pelo socialista Eduardo Vítor Rodrigues – realizou três contratos com empresas da Global Media (num total de 465.000 euros), um com o Público (no valor de 65.400 euros) e outro com a Cofina (53.000 euros). Todos os contratos foram realizados por ajuste directo, sem visto prévio do Tribunal de Contas.

    Segundo o último relatório e contas, a situação financeira em 2020 da Gaiurb – que também é responsável pela gestão municipal dos bairros – não estava particularmente favorável. Com encargos de pessoal extremamente elevados – cerca de 270 empregados representaram um custo de quase 6,6 milhões de euros –, esta empresa municipal apenas não registou fortes prejuízos porque aumentou o seu endividamento de longo prazo em quase 280 mil euros. Além disso, a sua dívida de curto prazo (a exigir pagamento em menos de um ano) é astronómica: quase 3,7 milhões de euros. Apesar disso, no último ano foi usada pela autarquia de Gaia como adjudicante de chorudos contratos com grupos de media, especialmente com a Global Media, a empresa detentora do Jornal de Notícias, Diário de Notícias e TSF.

    Global Media recebeu 195.000 euros para organizar programa natalício de 2021 em Gaia. O Jornal de Notícia fez a cobertura noticiosa.

    Com efeito, no caso da Global Media, a Gaiurb estabeleceu um primeiro contrato ainda em Dezembro de 2020 para o evento “Praça de Natal Jogos Santa Casa em Gaia”, que incluía a sua divulgação “junto da imprensa e outros meios de comunicação social”. O valor do contrato foi fixado em 195.000 euros.

    No dia 3 de Dezembro deste ano, o contrato foi renovado, com o mesmo fim, e pelo mesmo valor. No ano passado ainda se apontavam os motivos para o ajusto directo: “não existe alternativa ou substituto razoável” e “inexistência de concorrência”. No segundo contrato nada se refere. Estes dois contratos comerciais foram assinados por Domingos de Andrade, simultaneamente administrador e director de conteúdos da Global Media e director da TSF (CP 1723), algo que o Estatuto do Jornalista considera incompatível.

    Um outro contrato do grupo Global Media com a Gaiurb foi concretizado em 29 de Março deste ano com a TSF – através da sua empresa Rádio Notícias – por ajuste directo para a produção de 26 episódios semanais, emitidos aos microfones entre Abril e Outubro. Apresentado como sendo uma “parceria TSF/Gaiurb”, o programa foi intitulado “Desafios do Urbanismo”, e envolveu um pagamento de 75.000 euros, tendo sido conduzido por um jornalista Miguel Midões (CP 4707), mas sem liberdade editorial.

    De facto, este contrato comercial – que possui, em nome da Global Media, a assinatura do jornalista Afonso Camões (CP 308), o que constitui uma função incompatível nesta profissão – estipulava, na prática, uma subordinação editorial da TSF perante a Gaiurb. Por exemplo, o ponto 1 da cláusula 5ª determinava que “o prestador de serviços obriga-se a entregar à Gaiurb, EM [empresa municipal] os produtos, serviços e conteúdos informativos a aplicar na execução do contrato, de acordo com as características, especificações e requisitos previstos no anexo ao Caderno de Encargos, que dele fazem, parte integrante”.

    Por um montante de 65.400 euros, o Público também rubricou contrato com a Gaiurb para o desenvolvimento de algo denominado “Conversas Urbanas”. Escreve-se assim “algo”, porque o contrato constante do Portal BASE não permite aferir aquilo que foi contratualizado, porque remete para anexos que não são mostrados. Aliás, uma prática cada vez mais habitual.

    Notícia do Público, assinada por um jornalista, publicada em 15 de Dezembro, feita no âmbito do contrato com a Gaiurb.

    Este contrato concretizou-se através de 16 podcasts numa rubrica intitulada “Conversas Urbanas”, assumida pelo Público como tendo o “apoio da Gaiurb”. Saliente-se, contudo, que esse apoio, em concreto, foi exclusivamente monetário, ou seja, uma prestação de serviços de âmbito comercial. Este programa, financiado pela Gaiurb, consistiu sobretudo em entrevistas com especialistas em urbanismo, conduzidas pela jornalista Ana Isabel Pereira (CP 4720) e pelo director-adjunto David Pontes (CP 1255), que assim participaram activamente na execução de um contrato comercial.

    Já depois destes podcasts, o Público manteve a rubrica “Conversas Urbanas”, e mencionando a referência ao apoio da Gaiurb mesmo em notícias assinadas por jornalistas, como foi o caso de uma recentemente publicada pelo jornalista Mário Barros (CP 7963) sobre o “regresso das casas ilegais”.

    Por fim, o contrato da Cofina – que não consta ainda no Portal BASE – foi assinado em 10 de Novembro passado, e o único pormenor conhecido, além do valor do ajuste directo (53.000 euros), é que serviu para promover o projecto Meu Bairro, Minha Rua durante 20 dias.

    A única referência que o PÁGINA UM encontrou em órgãos de comunicação social da Cofina sobre este projecto foi um vídeo, já inactivo, no Correio da Manhã, na secção de conteúdos pagos denominada C-Studio CM. Na sua página do Facebook, a Gaiurb informa que existiriam quatro vídeos, mas apenas divulgou o primeiro, em 3 de Julho deste ano. Essa informação registou 25 reacções e duas partilhas.

    Gaiurb pagou à Cofina 53.000 euros por quatro vídeos, mas somente um (já inactivo) foi divulgado.

    A aquisição de serviços pelas autarquias para a elaboração de conteúdos editoriais ou eventos com uma componente de divulgação noticiosa, tem sido uma fórmula cada vez mais seguida pelos media nacionais, como alternativa financeira à queda do mercado publicitário e à “fuga” de leitores.

    Porém, além da forte dependência que estes contratos autárquicos já representam nas contas de alguns dos órgãos de comunicação social – e que, desse modo, podem condicionar a livre “fiscalização” dos seus periódicos –, a participação de jornalistas, mesmo se indirecta, na execução destes contratos coloca profundas dúvidas do ponto de vista ético e sobretudo legal.

    Com efeito, o Estatuto dos Jornalistas impede que estes profissionais exerçam “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”. No caso específico de Domingos de Andrade e Afonso Camões – que acumulam funções de administração na Global Media com tarefas editoriais, mantendo a carteira profissional –, as suas assinaturas em contratos comerciais constituem, sem dúvida, acções de “planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    No caso dos jornalistas que participam em conteúdos financiados directamente por entidades públicas (Estado e autarquias, por exemplo) ou empresas privadas –, pode também estar em causa incompatibilidades, sobretudo se houver subordinação contratual nos serviços prestados à entidade adjudicante ou se forem emitidas mensagens consideradas como marketing.

    Saliente-se que o Estatuto do Jornalista (Lei nº 1/99) refere que, entre outros aspectos, “constitui dever fundamental dos jornalistas (…) recusar funções ou tarefas susceptíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”.

    Por causa de situações similares às dos contratos da Gaiurb com os media, esta semana, após insistência do PÁGINA UM, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) informou estar “a analisar as situações descritas sobre o Público, a Global Media e Domingos Andrade para avaliar os pontos que são da sua competência e quais os que, não sendo, justificam a participação à ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social]”. E acrescentou ter já iniciado “também processos de questionamento aos referidos responsáveis”, embora anunciando desde já que “irá preservar o sigilo sobre as conclusões” destes inquéritos, bem como “eventuais procedimentos que se entendam por convenientes”.

    O PÁGINA UM continuará a desenvolver este dossier de investigação, que incluirá averiguar se a CCPJ sempre tomou, ou tomará, diligências formais sobre estas matérias, conforme prometido na passada quarta-feira. Até porque, sendo certo que as diligências anunciadas pela CCPJ serão documentadas – para provar a sua existência – quer sejam por escrito quer por áudio, então serão documentos administrativos, logo acessíveis ao público em geral, e em particular aos jornalistas.

  • A necessária recusa de um ilegítimo direito de resposta por uma comissão com conflitos de interesse

    A necessária recusa de um ilegítimo direito de resposta por uma comissão com conflitos de interesse


    Na sequência da notícia “Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media”, o PÁGINA UM recebeu uma (suposta) mensagem (eventualmente) da CCPJ que, a ser verídica, constitui uma torpe tentativa de descredibilização.

    Com efeito, através de um simples e-mail, a CCPJ – cuja presidente é Leonete Botelho, grande repórter do jornal Público – terá solicitado, sem qualquer assinatura a atestar, a publicação de um direito de resposta no site do PÁGINA UM, para supostamente desmentir “algumas das afirmações contidas no artigo”. Com isto, claro, pretende dar a ideia que eu cometi erros graves logo aos primeiros dias de existência deste jornal. O tal pedido invoca a Lei da Imprensa.

    Analisando o (alegado) texto da CCPJ, relembro duas questões essenciais, que nem sempre os leitores têm noção plena.

    Primeiro, de acordo com o artigo 24º da Lei da Imprensa, “tem direito de resposta nas publicações periódicas qualquer pessoa singular ou colectiva, organização, serviço ou organismo público, bem como o titular de qualquer órgão ou responsável por estabelecimento público, que tiver sido objecto de referências, ainda que indirectas, que possam afectar a sua reputação e boa fama.” Cumulativamente, esse direito de resposta só pode ser invocado se tiverem “sido feitas referências de facto inverídicas ou erróneas que lhes digam respeito.”

    Ora, o PÁGINA UM titulou que a CCPJ tinha aberto “processos a directores editoriais do Público e da Global Media”, seguindo textualmente aquilo que estava expresso na mensagem por e-mail transmitida por aquela entidade. A CCPJ vem dizer agora que um “processo de questionamento” não é um “processo”, mesmo sabendo-se que num procedimento administrativo existe uma fase inicial – instrução – que inclui, obviamente, o “questionamento” da entidade ou pessoas envolvidas.

    Aliás, o Regime de Funcionamento da CCPJ (Decreto-Lei nº 70/2008), no seu artigo 24º, é extremamente claro, estipulando que “a decisão de abertura do procedimento disciplinar é tomada oficiosamente ou na sequência de participação de pessoa que tenha sido directamente afectada pela infracção disciplinar, ou ainda do conselho de redacção do órgão de comunicação social em que esta foi cometida, quando esgotadas internamente as suas competências na matéria.”

    Aliás, vistas as suas competências legais, previstas no Decreto-Lei nº 70/2008, a CCPJ tem a incumbência de “instruir os processos de contra-ordenação por infracção aos artigos 3.º, 4.º, 5.º, 7.º-A, 7.º-B, 15.º e 17.º do Estatuto do Jornalista e aplicar as respectivas coimas e sanções acessórias”, sendo que o referido artigo 3º se refere às funções incompatíveis com o jornalismo.

    Portanto, a não ser que a CCPJ afinal nada esteja a fazer – e terá assim mentido nas suas declarações ao PÁGINA UM, ou seja, não abriu processo coisíssima nenhuma e anda a brincar com as palavras –, o simples acto de se abrir um “processo de questionamento” significa, factualmente, e ao abrigo do código de procedimento administrativo, uma fase de instrução processual. E um processo é-o desde o seu início; um “processo de questionamento” é um processo, dois pontos: queira dar-se as cambalhotas que se quiser.

    Segundo, o PÁGINA UM não vislumbra também como a notícia em causa pode afectar a reputação e a boa fama da CCPJ – um dos pressupostos do direito de resposta –, quando, na verdade, a notícia apenas refere que a referida CCPJ estará a cumprir (e bem) as competências necessárias, e justificáveis para a sua existência, perante evidentes e documentadas provas da existência de incompatibilidade. O PÁGINA UM não inventou as declarações da CCPJ.

    Por fim, o PÁGINA UM também nem poderia sequer cumprir, de imediato, o solicitado pela CCPJ, mesmo na hipótese de ter razão, porquanto o seu Secretariado – constituído por jornalistas, sendo que a sua presidente, Leonete Botelho, até é licenciada em Direito – não cumpriu o estatuído pela Lei da Imprensa quando encaminhou a sua (suposta) mensagem do (suposto) desmentido. De facto, no nº 3 do Artigo 25º deste diploma, estipula-se que, para o exercício do direito de resposta, “o texto da resposta ou da rectificação, se for caso disso, acompanhado de imagem, deve ser entregue, com assinatura e identificação do autor, e através de procedimento que comprove a sua recepção, ao director da publicação em causa, invocando expressamente o direito de resposta ou o de rectificação ou as competentes disposições legais.”

    Ora, o Secretariado da CCPJ enviou apenas um e-mail ao PÁGINA UM sem sequer identificar os seus membros pelos respectivos nomes e sem sequer apor uma assinatura ou rubrica mal-amanhada. Para uma entidade tão formal como a CCPJ, exija-se então, portanto, todos os formalismos. Nesse sentido, e nestas circunstâncias, o PÁGINA UM aguarda que a CCPJ cumpra os devidos formalismos para depois levar a competente negativa, que terá, por certo, como consequência, que o caso siga para decisão da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).

    Em todo o caso, como o PÁGINA UM é defensor da transparência, e também advoga pela boa inteligência dos seus leitores, decide publicar, desde já, o texto integral recebido pelo (alegado) Secretariado da CCPJ. [E pondera também revelar publicamente a troca de mensagens que houve com a presidente da CCPJ, se a isso as circunstâncias obrigarem]. Assim, poder-se-á confrontar a veracidade e rigor da notícia original do PÁGINA UM, e reflectir sobre os motivos ou motivações desta agora postura da CCPJ. A negrito, inseriram-se as declarações (trechos e palavras) da CCPJ citadas ipsis verbis no artigo do PÁGINA UM.


    Exmo Senhor
    Pedro Almeida Vieira
    Director da publicação PÁGINA UM,

    Nos termos do disposto no art.º 25.º e nos n.os 1 e 3 do art.º 24.º da Lei de Imprensa, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista vem reclamar a publicação do texto infra, que desmente algumas das afirmações contidas no artigo publicado no Jornal online PÁGINA UM, na presente data, intitulado “Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media”, assinado pelo jornalista Pedro Almeida Vieira:

    “O Secretariado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) desmente ter aberto processos aos directores editoriais do Público e da Global Media tal como se depreende do título do artigo do PÁGINA UM – “Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media”.

    “O Secretariado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) desmente ter aberto processos aos directores editoriais do Público e da Global Media tal como se depreende do título do artigo do PÁGINA UM – “Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media”.

    Instado a pronunciar-se sobre alguns documentos enviados pelo próprio director do PÁGINA UM, o Secretariado da CCPJ, respondeu que, como era seu dever, iria analisar os casos e verificar se os assuntos eram da sua competência ou se deveriam merecer uma participação à ERC, assim como adiantou que iria solicitar esclarecimentos aos visados. Só depois destes procedimentos iria avaliar em particular cada uma das situações.

    Para o total esclarecimento da situação, foi esta a resposta do Secretariado da CCPJ ao director do PÁGINA UM [a negrito estão as palavras ou trechos citados pelo PÁGINA UM na sua notícia]:

    A CCPJ está a analisar as situações descritas sobre o Público, a Global Media e Domingos Andrade para avaliar os pontos que são da sua competência e quais os que, não sendo, justificam a participação à ERC. Iniciou também processos de questionamento aos referidos responsáveis.

    Mais informa que irá preservar o sigilo sobre as conclusões daí resultantes e eventuais procedimentos que se entendam por convenientes, nos termos do art.º 28.º do DL 70/2008 e das melhores práticas administrativas.

    Em abstrato, importa dizer que desde o início do atual mandato que a CCPJ identificou os conteúdos patrocinados, e as formas de promoção comercial disfarçadas de jornalismo, como um fenómeno preocupante, dado o risco de confusão entre conteúdos patrocinados e conteúdos jornalísticos. Tem sido crescente o número de denúncias generalizadas sobre jornalistas obrigados a elaborar conteúdos patrocinados sob anonimato ou sem sequer saberem que os conteúdos que lhes eram encomendados tinham na sua origem contratos comerciais ou de marketing do respetivo órgão de comunicação social. Tendo em conta essa preocupação, a CCPJ procedeu ao seguinte:

    1. Elaborou uma diretiva sobre conteúdos patrocinados (em anexo);
    2. Pediu à OberCom um estudo comparado sobre a forma como noutros países é tratado o tema dos conteúdos patrocinados, para divulgação nas redações e para inspirar propostas de alteração legislativa futuras (em anexo);
    3. Solicitou audiências com vários diretores e outros responsáveis editoriais de grandes órgãos de informação nacionais, com vista à sensibilização sobre o tema, numa atitude de cariz pedagógico para prevenção de eventuais processos de incompatibilidade sobre jornalistas precarizados que mais não fazem do que seguir as estratégias editoriais da empresa para a qual trabalham.”

    Com os melhores cumprimentos,

    O Secretariado da CCPJ

  • Do apelo à ressurreição da Razão

    Do apelo à ressurreição da Razão


    A incidência actual da covid-19 em Portugal está, actualmente, em nível similar ao do ano passado: cerca de 1% da população (aproximadamente 100.000 casos activos), sendo que em 2020 tínhamos 0% de vacinados, e agora temos 88% da população com dupla dose, dos quais 26% com tripla.

    Os óbitos diários (média móvel de 7 dias) estavam, no ano passado, nos 72; este ano estamos nos 15. Quase cinco vezes mais mortes no ano passado. Se se quiser ao contrário, este ano temos uma redução de quase 80% no número de mortes por esta doença.

    A melhoria é evidente. Inquestionável.

    Devíamos celebrar, mas não é isso que sucede. Somam-se as medidas restritivas e até discriminatórias.

    Criou-se um ambiente de culpabilização de todos aqueles que não queiram pertencer ao “clube dos puros”, formado por aqueles que nada contestam, que nada interrogam, que obedecem apenas, que não se importam pela criação de um mundo dual e maniqueísta.

    Num mundo racional, e onde a morte existe, se se registasse em Portugal, antes da pandemia, em pleno Inverno, 15 óbitos diários por aquela doença começada por G e causada pelo vírus I – assim se deve escrever no Facebook, para evitar censura, as palavras gripe e influenza –, diríamos que estava tudo ok em termos de impacte na Saúde Pública. A gripe ou as infecções subsequentes que causam pneumonias matam, em muitos Invernos, mais de uma centena de pessoas por dia.

    Ou seja, deveríamos controlar a situação, mas sem pânicos, sem enveredar por medidas esdrúxulas.

    Também se procuraria saber se o agora número baixo de óbitos por covid-19 em Portugal se deve à eficácia da vacina, se à mudança de critérios para atribuição de mortes por covid-19 ou se à muito menor taxa de letalidade da variante Ómicron. Ou, enfim, à conjugação de tudo isso.

    Mas não. Vivemos (ou morremos) agora, ou sobrevivemos agora, num Novo Normal, de histerismo e discriminação, num mundo de rótulos e clubes, de insanidade completa. O pânico não move as sociedades. Tolhe os movimentos. É nisto que nos transformámos.

    A Razão e a Ciência nunca foram tão maltratadas como nestes últimos dois anos. Vivemos uma Nova Idade das Trevas. Leiam os livros de História.


  • O Página Um, a Imprensa e a Ordem dos Médicos: esclarecimentos

    O Página Um, a Imprensa e a Ordem dos Médicos: esclarecimentos


    Segundo a Lusa – em notícia difundida hoje por outros órgãos de comunicação social, como o Expresso –, a Ordem dos Médicos terá enviado uma queixa à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) sobre, segundo o seu bastonário Miguel Guimarães, “uma publicação numa página do Facebook com dados de crianças internadas com covid-19”.

    Essa alegada “página”, classificada pela notícia da Lusa (que segue a linha difamatória iniciada pela CNN Portugal), como “página antivacinas no Facebook”, é, na verdade, o jornal PÁGINA UM, registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e dirigida por um jornalista acreditado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Este é o site do PÁGINA UM, e, como habitual em outros órgãos de comunicação social, possui uma página na rede social Facebook.

    O artigo em causa do PÁGINA UM – que levou à alegada queixa da Ordem dos Médicos –, intitulado “Covid-19 em crianças: zero mortes, 0,5% de hospitalizações e 0,03% de internamentos em cuidados intensivos”, encontra-se na secção ACTUAL, aqui.

    Posto isto, mostra-se conveniente mais alguns esclarecimentos:

    1 – As referências desprestigiantes e infames ao PÁGINA UM, que têm sido propaladas pela imprensa (p. ex., CNN Portugal, Público, Observador, Lusa e Expresso) são profundamente lamentáveis e terão consequências judiciais contra os seus responsáveis. O PÁGINA UM é um jornal digital dirigido por um jornalista com passagem por órgãos de comunicação social históricos e de prestígio (p. ex., Expresso, Grande Reportagem e Diário de Notícias, entre outros), que foi galardoado com diversos prémios de imprensa, que possui três licenciaturas e um mestrado, que é autor de romances e ensaios, chegou a ser membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (biénio 2007/08), e não tem cadastro.

    Notícia do Expresso, transcrita da Lusa, mantém acusações lamentáveis ao PÁGINA UM, iniciadas pela CNN Portugal

    2 – O PÁGINA UM é um jornal digital que, apesar de recente, é integralmente independente, sem publicidade nem parcerias comerciais, sendo apenas financiado por donativos directos dos leitores. Tem também um Código de Princípios e uma Declaração de Transparência do seu director, que estão publicados no site. Cumpre integralmente o Código Deontológico dos Jornalistas, em especial o seu ponto 9, que convém transcrever: “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual.” Por esse motivo, ao contrário de muitos outros órgãos de comunicação social, o PÁGINA UM jamais rotulará pessoas ou movimentos, muito menos com termos historicamente desprezíveis. Nessa linha, jamais o PÁGINA UM tolerará que lhe sejam imputados epítetos depreciativos, ainda mais sem qualquer adesão ao jornalismo que pratica.

    3 – O PÁGINA UM aguarda, com calma e interesse, a decisão da CNPD relativamente aos dados clínicos anonimizados no decurso da queixa da Ordem dos Médicos. O PÁGINA UM não consegue sequer identificar, através dos dados que divulgou, o nome das crianças nem as respectivas residências – estes, sim, dados nominativos salvaguardados por lei. Salienta-se, porém, a posição da CNPD já expressa em notícia da CNN Portugal de 23/12/2021: “A informação, embora detalhada do ponto de vista clínico, não parece de per si permitir identificar os titulares dos dados. Nesse caso, não haverá tratamento de dados pessoais”.

    4 – O PÁGINA UM reitera ser de inegável interesse público a divulgação daqueles dados clínicos – que são oficiais, e desde logo anonimizados –, por melhor enquadrarem a realidade sobre os riscos reais da covid-19 nas crianças portuguesas. O PÁGINA UM não revelará as suas fontes, nem em juízo, estando salvaguardado pela Lei da Imprensa e pelo Código Deontológico. Se Portugal deixar de ser uma democracia, então o PÁGINA UM promete repensar a sua posição, embora desde já antecipe a decisão: não divulgará as suas fontes.

    5 – O PÁGINA UM lamenta que, ainda mais num país democrático, vários órgãos de comunicação social, e mais concretamente jornalistas, mostrem atitudes censórias e persecutórias em relação à divulgação num artigo noticioso informação relevante, que, repita-se, são anonimizados, e estejam a contribuir para a estigmatização dos jornalistas que buscam e investiguem factos.

    6 – Lamenta-se profundamente a atitude do senhor bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, por contribuir, de forma extremamente activa, para a difamação do jornal PÁGINA UM. A Ordem dos Médicos sabe bem que, neste momento, existem duas queixas do PÁGINA UM na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para que o senhor Miguel Guimarães disponibilize, entre outros processos, toda a documentação relacionada com um donativo de 380.000 euros concedido este ano pela farmacêutica Merck, bem como o destino que lhe foi dado.

    7 – Informa-se também que o PÁGINA UM está em processo de finalização de uma investigação relacionada com os financiamentos das sociedades médicas, cuja publicação está prevista para a próxima semana. Não surpreende, aliás, assistir a tantos médicos interessados, agora, e desde já, em colocar no lamaçal os créditos de um jornal independente e a credibilidade de um jornalista com larga experiência de investigação.

    Pedro Almeida Vieira
    Director do PÁGINA UM

  • A CNN Portugal e a deontologia pelo esgoto

    A CNN Portugal e a deontologia pelo esgoto


    Sobre as notícias publicadas hoje pela CNN PORTUGAL e PÚBLICO, respectivamente intituladas “Covid-19: dados confidenciais de crianças internadas em UCI partilhados em página negacionista” e “Dados clínicos de crianças internadas em cuidados intensivos com covid expostos nas redes sociais”, tenho a declarar o seguinte:

    1 – Apesar de em ambos os casos ostensivamente ser omitido, os artigos da CNN Portugal e do Público referem-se a um trabalho jornalístico da minha autoria – jornalista com carteira profissional (CP 1786) – publicado num órgão de comunicação social registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social sob o número 127661. A notícia do PÁGINA UM em causa encontra-se aqui. O PÁGINA UM é um jornal digital, com um site próprio e, como outros órgãos de comunicação social, possui ainda uma página específica na rede social Facebook.

    2 – Como jornalista trabalhei em órgãos de comunicação social como o semanário Expresso e Grande Reportagem, além de colaborações regulares no Diário de Notícias. Embora com um interregno de 10 anos, que agora reactivei, sempre pautei a minha actividade jornalística pelos mais elevados padrões éticos e deontológicos, e de isenção e rigor. O PÁGINA UM pauta-se por estritas regras deontológicas e de independência, tendo publicado no seu site um Código de Princípios e uma Declaração de Transparência. Possuo, além disso, e para além de formação académica diferenciada (três licenciaturas e um mestrado), formação na área em apreço, sendo até sócio aceite pela Associação Portuguesa de Epidemiologia.

    3 – Qualquer acusação, explícita ou implícita, de que eu e/ou o PÁGINA UM seguirmos movimentos ou grupos ditos de “negacionismo” em redor da pandemia é profundamente difamatório e lesivo do meu nome e do jornalismo independente.

    4 – Fui, aliás, membro eleito no Sindicato dos Jornalista para o seu Conselho Deontológico no biénio 2007-2008. Conheço, reconheço e sempre coloquei em prática, com escrúpulo, todas as regras deontológicas e éticas, seguindo o interesse público. As informações que transmiti no artigo noticioso em causa são manifestamente de interesse público numa democracia.

    5 – A CNN Portugal, através do seu jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP886), contactou-me ontem pelo meu e-mail profissional pavieira@paginaum.pt, não podendo assim ignorar que o texto em causa era de um jornalista e de um órgão de comunicação social (PÁGINA UM), e jamais poderia, de forma difamatória e ultrajante, rotulá-la de “página negacionista”.

    6 – A seu pedido, a jornalista da CNN Portugal Catarina Guerreiro teve também acesso, por um intermediário (que é jornalista), ao meu contacto telefónico, sabendo ela assim também que eu sou jornalista. Apesar disso, esta jornalista da CNN Portugal nunca me contactou.

    7 – Não há memória, na História recente da Imprensa Portuguesa, de um órgão de comunicação social claramente independente (sem publicidade e sem parcerias comerciais) ser atacado de forma tão vil, e apelidado de “página negacionista” por dois órgãos de comunicação social (CNN Portugal e Público) de importantes grupos empresariais. E ser ainda acusado de propalar alegada informação falsa, ademais omitindo, intencionalmente, elementos essenciais.

    8 – Como jornalista, a informação que revelei na notícia publicada agora no site do jornal PÁGINA UM é factual e fidedigna, anonimizada, cumprindo os preceitos de interesse público e de reserva da vida privada, cumprindo escrupulosamente o código deontológico dos jornalistas. Ademais, a própria Comissão Nacional de Protecção de Dados já admitiu, na notícia da CNN, que “a informação, embora detalhada do ponto de vista clínico, não parece de per si permitir identificar os titulares dos dados.” Aliás, os dados em causa são oficiais, e chegaram-me já anonimizados, podendo (e devendo até) ser divulgados publicamente, por constituírem uma base de dados, cujo acesso é previsto pela Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.

    9 – A notícia da CNN destaca a opinião de cinco médicos que criticam a divulgação dos dados pelo PÁGINA UM, mesmo se anonimizados, entre os quais um dirigente da Ordem dos Médicos. Saliente-se que o PÁGINA UM está, neste momento, com uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos perante a recusa da Ordem dos Médicos em ceder informação sobre um donativo da farmacêutica Merck no valor de 380.000 euros. O PÁGINA UM tem estado, também, a preparar a publicação de uma investigação sobre o financiamento de mais de seis dezenas de sociedades médicas, sendo que todas o sabem, porquanto foram atempadamente contactadas para esclarecimentos.

    10 – O PÁGINA UM considera estranho que nenhum outro órgão de comunicação social, nem a Ordem dos Médicos, tenha criticado a Direcção-Geral da Saúde por revelar, na passada semana, dados clínicos sigilosos (situação vacinal) de uma jovem de Braga, esta sim perfeitamente identificada pelo nome, que sofreria de síndrome de Dravet, e que morreu com covid-19. Isso sim foi uma revelação de dados clínicos sigilosos por uma entidade estatal. O PÁGINA UM nunca revelou qualquer nome nem local de residência de crianças internadas em cuidados intensivos.

    11 – Por outro lado, tenha-se em consideração que o PÁGINA UM revelou ontem, em notícia já publicada no seu site, que o director do Público Manuel Carvalho está a ser alvo de um processo de averiguações pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

    12 – Tendo assim tido isto em consideração, vou exigir direito de resposta tanto à CNN Portugal como ao jornal Público, no estrito respeito pela Lei da Imprensa.

    13 – Informo ainda que irei entrar com processos de difamação – crime neste caso agravado por ser cometido através da Imprensa – contra o senhor Henrique Magalhães Claudino, jornalista-estagiário da CNN Portugal, contra os directores de informação da CNN Portugal, senhores Nuno Santos, Pedro Santos Guerreiro e Frederico Roque de Pinho, e contra os directores do Público, senhores Manuel Carvalho, Amílcar Correia, David Pontes e Tiago Luz Pedro, e senhora Andreia Sanches.

    14 – Alerto ainda que qualquer órgão de comunicação social e/ou pessoa que divulgue os artigos acima referidos, ou que faça referências difamatórias contra mim e/ou contra o PÁGINA UM – numa tentativa vergonhosa de condicionar a liberdade de imprensa constitucionalmente defendida –, colocando em causa a minha honra e bom nome, poderá vir a ser alvo de similares processos judiciais.

    PEDRO ALMEIDA VIEIRA (CP 1786)

    Director do PÁGINA UM

  • Do nascimento de um jornal independente

    Do nascimento de um jornal independente


    O PÁGINA UM está a nascer. Gostava assim, ao formalizar o lançamento oficial deste novo jornal, de agradecer a cada um de vós, simples leitores ou apoiantes, a possibilidade que me deram em desenvolver um projecto jornalístico em tempos tão desafiantes.

    O PÁGINA UM tem todos os ingredientes para correr mal.

    E muitos para correr bem.

    Para correr mal, porque começa sem um forte investimento – geralmente de empresas, que garantem, por regra, um “nascimento” desafogado. E assume também o PÁGINA UM que não terá publicidade de qualquer género nem parcerias com empresas ou com entidades da Administração Pública. E ainda manifestando que os conteúdos são abertos. Tudo isto contribui para uma “morte prematura”.

    Mas tem muito também para correr bem: os leitores. E a minha independência. A independência ao serviço dos leitores. Não tenho mais a quem devo satisfazer, e a quem dar satisfações. É isso que desejo. Será o paraíso do jornalismo íntegro.

    O PÁGINA UM é e será sempre um projecto sui generis. Começa com uma equipa minúscula, e não quer crescer demasiado: na verdade, para já, apenas conta comigo, por agora, como jornalista sénior. Mais virão, prometo, se as condições, e os leitores, o permitirem. Pode parecer pouco como cartão de visita.

    Mas não será. Os leitores terão a oportunidade de assim conferirem. E de irem vendo também crescer as secções ao longo das próximas semanas: entrevistas, cultura e ambiente. Aliás, a marca FORUM AMBIENTE, antigo título de boa memória (onde, por sinal, iniciei a minha actividade jornalística em redor de 1995), foi por mim agora adquirida, e será a denominação dessa secção.

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    O desejo do PÁGINA UM é crescer, mas não dar passos em direcção ao jornalismo actual. Dará pequenos, mas seguros passos, sim, tentando reabilitar a ligação de confiança entre leitores e imprensa, e mantendo a essência da independência; demonstrando que um jornalista só, ou um só jornalista, pode fazer a diferença, pode fazer muito. Sobretudo, esse pouco deve mostrar muito daquilo que é, e deve ser, a essência do jornalismo.

    Não me sentindo o último dos moicanos – seria demasiado presunçoso –, tenho com o PÁGINA UM a oportunidade única de indagar os leitores, talvez a sociedade portuguesa, se é (ainda) possível a total independência do jornalismo. Por esse motivo, serei especialmente crítico ao modelo seguido pela imprensa generalista, e sobretudo à perda dos valores deontológicos de muitos jornalistas. Se me apresto para denunciar aquilo que está mal, como não denunciar jornalistas que não prestam? Não fazer isso seria uma atitude corporativista, a antecâmara de muitos vícios privados.

    Um jornalismo independente dependente dos leitores: este será o slogan do PÁGINA UM. A pensar nos leitores.

    A enorme vantagem da independência do PÁGINA UM é ter a capacidade de garantir, perante os leitores, uma absoluta liberdade na cobertura editorial. Limitada pela capacidade humana, mas não por interesses obscuros.

    Porém, não se seja ingénuo: sei bem que em Portugal, pelo menos, haverá pouquíssimas excepções – se é que existe alguma – de projectos jornalísticos completamente independentes e com sustentabilidade financeira.

    A sustentabilidade financeira do PÁGINA UM basear-se-á nos leitores – naqueles que já deram contributos, pontuais mas generosos, e de uma grande diversidade, desde finais de Outubro, e envolveu algumas centenas de pessoas.

    Continuará, espero, nos próximos tempos, no futuro. Até sempre. Ou até os leitores julgarem que me desviei do propósito inicial, e de me deixarem de acompanharem, de apoiarem o PÁGINA UM.

    Até lá, dêem-me oxigénio, e o PÁGINA UM continuará a respirar. A ser uma aragem, ou uma tempestade, aquilo que for necessário, para assim contribuir para uma sociedade mais decente. É essa, sempre foi essa, a função do jornalismo.


  • Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media

    Comissão da Carteira Profissional de Jornalista abre processos a directores editoriais do Público e da Global Media

    Contratos comerciais assinados por jornalistas, como Domingos de Andrade (director da TSF), e conteúdos patrocinados ou contratualizados mas executados por profissionais acreditados, levam entidade a averiguar alegadas incompatibilidades. A entidade que regula e disciplina os jornalistas manifesta-se preocupada com “as formas de promoção comercial disfarçadas de jornalismo”, mas defende sigilo das suas diligências.


    Entre outros casos, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) anunciou hoje a abertura de um processo de averiguação ao director da TSF, Domingos de Andrade, por este jornalista assinar contratos comerciais como administrador da Global Media, detentora de periódicos como o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias. Em causa estará o regime de incompatibilidade previsto pelo Estatuto do Jornalista. A sua violação poderá levar à cassação do título profissional e à aplicação de uma coima até 5.000 euros.

    Em resposta a um conjunto de situações anómalas, e documentadas, que o PÁGINA UM tem detectado, a CCPJ – o organismo independente de acreditação e de disciplina dos jornalistas – informou estar “a analisar as situações descritas sobre o Público, a Global Media e Domingos Andrade para avaliar os pontos que são da sua competência e quais os que, não sendo, justificam a participação à ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social]”. E acrescenta ter já iniciado “também processos de questionamento aos referidos responsáveis”.

    Domingos de Andrade, jornalista e director da TSF, tem assinado contratos comerciais em nome da Global Media

    De acordo com o regime de incompatibilidades, previsto em lei desde 1999, os jornalistas – como Domingos de Andrade, detentor da carteira profissional número 1723, e que também acumula o cargo de diretor-geral editorial da Global Media – estão impedidos de exercer “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”. A preparação, assinatura e execução de contratos comerciais constitui, sem margem para dúvidas, funções de “planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.

    O PÁGINA UM detectou já, pelo menos, dois contratos comerciais assinados este ano por Domingos de Andrade como administrador da Global Media, designadamente com a Câmara Municipal de Valongo (para a produção de reportagens, no valor de 74.000 euros) e com a Comunidade Intermunicipal da Beira Alta (para aquisição de serviços de publicidade e divulgação turística para o período do Verão de 2021, no valor de 25.000 euros).

    Domingos de Andrade não está, obviamente, impedido de assinar contratos, mas deveria ter suspendido a sua carteira profissional, além de as suas funções de direcção editorial ficarem assim feridas do ponto de vista deontológico.

    Extracto do contrato comercial entre a DGS e a Global Media, para publicidade institucional relacionada com a pandemia, assinado por Afonso Camões, que mantém carteira profissional de jornalista.

    Domingos de Andrade não será o único jornalista a ser agora escrutinado pela CCPJ – o organismo com tutela disciplinar desta profissão especialmente regulada.

    Também o director do Público, Manuel Carvalho, e os directores das diversas publicações da Global Media, nomeadamente Rosália Amorim (Diário de Notícias) e Inês Cardoso (Jornal de Notícias), serão investigados por suspeita da existência de contratos comerciais, sobretudo com autarquias, para a encomenda de conteúdos patrocinados, mas que são escritos por jornalistas – algo estritamente proibido pelo estatuto e pelo código deontológico.

    Além disto, poderão ainda ser escrutinadas as suas participações activas, como jornalistas e directoras de órgãos de comunicação social, em eventos comerciais contratualizados entre autarquias e a Global Media.

    Na esmagadora maioria dos casos da escrita de conteúdos patrocinados, o PÁGINA UM sabe que os jornalistas chegam a ser forçados a escrever sob anonimato pelas chefias ou administração. O PÁGINA UM já detectou diversos “conteúdos patrocinados” não assinados, e que surgem, depois, republicados integralmente nas secções editoriais já assinados por jornalistas com carteira profissional. Ou seja, os textos originalmente patrocinados foram escritos por jornalistas, constituindo uma violação legal.

    A própria CCPJ afirmou ao PÁGINA UM que “tem sido crescente o número de denúncias generalizadas sobre jornalistas obrigados a elaborar conteúdos patrocinados sob anonimato ou sem sequer saberem que os conteúdos que lhes eram encomendados tinham na sua origem contratos comerciais ou de marketing do respetivo órgão de comunicação social.”

    Presidente da CCDR-N escreveu artigo em revista que pagou, por contrato, mas Público considerada não ser conteúdo comercial, e sim apenas apoiado.

    E acrescentou ainda que tem tomado diligências nos últimos anos, nomeadamente a elaboração de uma directiva sobre conteúdos patrocinados, a solicitação de um estudo à OberCom – Observatório da Comunicação, e a realização de reuniões de sensibilização junto dos directores dos principais órgãos de comunicação social.

    Também Afonso Camões – antigo director do Jornal de Notícias e actual director-geral de conteúdos da Global Media – estará eventualmente sob a alçada disciplinar da CCPJ. Apesar de sempre ter mantido a carteira profissional de jornalista (CP 308), Camões também assinou contratos comerciais.

    Por exemplo, em Agosto do ano passado, Afonso Camões apôs a sua assinatura no contrato de aquisição de publicidade institucional no âmbito da pandemia entre a Global Media e a Direcção-Geral da Saúde, no valor de 401.485 euros.

    Este jornalista, que tem actualmente colunas de opinião regulares no Jornal de Notícias e no Diário de Notícias, escreve com frequência sobre questões relacionadas com a gestão política da actual crise sanitária.

    No caso do Público, a situação em concreto, agora em averiguação pela CCPJ, refere-se sobretudo à assinatura de um contrato com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), no valor de 44.135 euros.

    Assinado em Outubro passado, esse contrato tinha por objecto a prestação de serviços de “criatividade e marketing no âmbito das Comemorações dos 20 anos da classificação do Douro Património”, de publicidade e de “Parceria Editorial com o Jornal Público”. Na semana passada, como desfecho deste contrato comercial sob a forma de alegada “parceria editorial”, o Público editou uma revista contendo artigos assinados por jornalistas e um editorial do director Manuel Carvalho, fazendo alusão a ser um conteúdo apoiado.

    Leonete Botelho, presidente da CCPJ, promete investigar jornalistas por incompatibilidades, incluindo o seu director no Público, mas defende sigilo sobre as conclusões.

    Saliente-se que em aditamento ao seu Livro de Estilo – feito em 2017 pelo então director David Dinis –, o Público considera que os conteúdos apoiados não são comerciais, porque são “editorialmente independentes e produzidos de forma autónoma pela redacção”.

    Porém, neste caso estamos perante não um conteúdo apoiado por publicidade, como habitualmente, mas sim pago por contrato comercial de prestação de serviços.

    Ademais, a revista contém, logo na página 5, um texto do presidente da entidade adjudicante (CCDR-N), António Cunha.

    Apesar das anunciadas promessas de fazer diligências para questionar os jornalistas do Público e das publicações da Global Media, o Secretariado da CCPJ promete já que “irá preservar o sigilo sobre as conclusões” destes inquéritos, bem como “eventuais procedimentos que se entendam por convenientes”.

    A CCPJ alega o sigilo a que os seus membros estão abrangidos por um decreto-lei de 2008. Contudo, sobreposta a esse diploma (decreto-lei) está juridicamente a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, a qual abrange os documentos também emanados pela CCPJ.

    Deste modo, o PÁGINA UM irá solicitar, a seu tempo, o acesso às eventuais diligências prometidas pela CCPJ aos jornalistas visados.


  • Pandemia e ajustes directos trazem ‘euromilhões’ e sonho do Dakar a empresário de brindes

    Pandemia e ajustes directos trazem ‘euromilhões’ e sonho do Dakar a empresário de brindes

    O empresário Lourenço Rosa transformou uma empresa de brindes e estampagem de t-shirts numa máquina de facturação de milhões que começou em contratos por ajuste directo com a autarquia de Cascais para aquisição de material de protecção contra a covid-19. Viralizou a sua actividade para o sector público, sempre sem visto do Tribunal de Contas e sem pormenores no portal BASE. Estendeu o negócio para o privado. Acabou o ano passado com um lucro de 18 milhões de euros, quase 60 vezes o valor registado em 2019. Quer que a pandemia acabe, para bem dos seus filhos, mas, enquanto tal não sucede, participa no próximo mês, pela segunda vez, no Rally Dakar. Tem um bom patrocinador: a ENERRE Pharma, a sua empresa.


    Três dias antes do anúncio da primeira morte oficial por covid-19, em 16 de Março do ano passado, Lourenço Rosa usava a sua página pessoal do Facebook para vender álcool gel estilizado em garrafinhas e canetas gravadas com marca da sua empresa. Prometia entregar qualquer encomenda, mesmo a particulares, no prazo de uma semana, e até respondia pessoalmente às (poucas) solicitações sobre entregas ao domicílio. Fornecia até o seu e-mail profissional da empresa – lourenco.rosa@enerre.com – a quem desejasse mais informações sobre onde e como comprar.

    A empresa em causa – a ENERRE criada em 1976 pelos pais de Lourenço Rosa, actual administrador único – sempre laborara em torno da produção e comercialização de brindes, têxteis e estampagem de t-shirts e outros artefactos de merchandising. Com armazém, loja e escritório na Matinha, em Lisboa, a ENERRE fazia pela vida. Em 2019, imediatamente antes da pandemia, registou um volume de negócios de cinco milhões de euros, e um lucro de 310 mil euros – ou seja, um pouco mais de 25 mil euros por mês. Não era mau, mas, em termos fiscais, estava classificada como “pequena entidade”.

    Lourenço Rosa, administrador único da ENERRE

    Pequena também, aparentemente, seria a qualidade apercebida de alguns dos seus serviços. Pelo menos a atender ao nível de satisfação dos clientes. Embora na página do Google sobre a ENERRE já constem agora algumas boas classificações (sem comentários), as “análises” anteriores à pandemia eram arrepiantes. Um dos clientes afiançava que «a qualidade dos produtos é baixa, [e] os atrasos são constantes”, acrescentando: “o atendimento ao cliente é péssimo”. Outro, assegurava que na ENERRE, “pensam em tudo, menos no cliente», dando uma dica: “se quiserem estampados em preto, peçam em branco”.

    As queixas não eram apenas de índole cromática. Um outro cliente lamentava que «sempre que a roupa é lavada, a roupa encolhe cada vez mais”, aditando que “só com 5 ou 6 lavagens, uma sweat tamanho L já está mais pequena do que roupa de 14 anos”. E, para terminar, mais um decepcionado cliente acusava a ENERRE de vender gato por lebre: “Tshirts? Parecem tops…”.

    A Câmara Municipal de Cascais – que apenas tivera um contacto em 2019 com a ENERRE para a produção de brindes – terá pensado de forma diferente. Na segunda quinzena de Março do ano passado – poucos dias, portanto, após o post de marketing de Lourenço Rosa –, a autarquia liderada pelo social-democrata Carlos Carreiras nem tempo quase teve de pestanejar entre contratos com a ENERRE para aquisição de material de protecção, máscaras e termómetros no valor total de 2.200.400 euros.

    Em menos de uma semana daquele mês foram três, todos por ajuste directo: o primeiro em 17 de Março por uma verba de 361.500 euros; o segundo três dias depois pelo montante de 1.178.900 euros; e o terceiro no dia 23 por um montante de 600.000 euros. Apesar dos contratos constarem no portal BASE, não estão incluídos os anexos que os integram, que listam a quantidade e preços unitários dos materiais comprados. Aliás, a exclusão de elementos essenciais sobre prestações de serviços ou aquisição de bens nesta base de dados começa a ser uma prática cada vez mais frequente – e aceite pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, que gere o portal BASE –, o que facilita a manutenção de negócios obscuros.

    Primeira página do contrato assinado entre a ENERRE e a Câmara Municipal de Cascais publicado no portal BASE

    Durante Abril do ano passado, ao segundo mês da pandemia, a autarquia de Cascais continuou a comprar materiais à ENERRE como se não houvesse amanhã. E com ajustes directos cada vez mais chorudos. Nesse breve período foram mais oito contratos relacionados com o combate à pandemia. Factura total: 6.474.900 euros. Também nestes casos se ignora detalhes das compras, por não constarem no portal BASE. Ou seja, em menos de 50 dias, o município de Carlos Carreiras – que tem uma população de 214 mil habitantes – despachou para a ENERRE cerca de 8,7 milhões de euros, portanto 40 euros por munícipe.

    No entanto, embora a Câmara Municipal de Cascais continue a ser um cliente privilegiado da ENERRE – até hoje foram assinados 24 contratos por ajuste directo relacionados com a pandemia no valor de 13.639.935 euros –, Lourenço Rosa já deixou há muito de ter necessidade (e interesse) em fazer marketing no seu mural da rede social de Zuckerberg. Nem tempo.

    Na verdade, nos primeiros meses da pandemia, a ENERRE não teve mãos a medir. Lourenço Rosa começou a despachar contratos num ritmo que se assemelhou ao da chegada de encomendas com máscaras e outros materiais da China, por avião ao aeródromo militar de Figo Maduro. Talvez não por acaso – porque, no mundo dos negócios, raramente há acasos –, o Estado-Maior-General das Forças Armadas também contratou, logo em Março, por ajuste directo, “equipamento de protecção individual (COVID)” no valor de 1.065.850 euros. No portal BASE, esta instituição tutelada pelo Ministério da Defesa “descartou-se” de elencar aquilo que se comprou, e meteu mesmo uma cláusula de sigilo com duração de cinco anos.

    Com o prolongamento da pandemia, o EMGFA ainda faria mais compras à ENERRE (já gastou, até agora, em mais de 2,2 milhões de euros), e a apetência pelos materiais contra a covid-19 pela empresa de Lourenço Rosa alastrou aos outros ramos: o Estado Maior da Força Aérea já lhe fez compras de 433.761 euros. A Marinha foi mais modesta: “apenas” 92.750 euros.

    Porém, ao nível da contratação pública, as autarquias e os hospitais são os principais clientes da ENERRE. Digamos que os contratos viralizaram a partir de Cascais. Desde Março de 2020, até ontem, a ENERRE assinou 217 contratos públicos com 66 entidades distintas num total de 31.645.963 euros – uma média mensal de 1,4 milhões de euros.

    No caso de hospitais e outras entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde, a ENERRE engordou a sua carteira de clientes em 24, e os seus cofres com 9.912.807 euros em contratos por ajuste directo. O Hospital Amadora-Sintra (2,1 milhões de euros), a empresa pública Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (1,7 milhões de euros) e o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (1,6 milhões de euros) foram os mais generosos para a saúde da empresa de Lourenço Rosa. Registam-se ainda mais cinco hospitais ou centros hospitalares com contratos entre 500 mil e um milhão de euros: Espírito Santo (Évora), Barreiro-Montijo, Garcia de Orta (Almada), Coimbra e Divino Espírito Santo (Ponta Delgada).

    Lucro de um ano vale 60

    Se a ENERRE já chegou a ser acusada por um cliente insatisfeito de vender t-shirts que se transformavam em tops, a sua influência comercial no apetecível mundo autárquico esbijou muito nos últimos dois anos. Depois de Cascais, Lourenço Rosa alargou o seu portefólio de máscaras e outros apetrechos a mais 17 concelhos, através de 37 contratos no valor total de quase 3,3 milhões de euros. Atrás da autarquia de Carlos Carreiras, surgem agora os municípios de Lisboa (cerca de 1,6 milhões de euros) e de Albufeira (quase 500 mil euros). Aveiro, Sintra e Porto contabilizam contratos entre 100 mil e 400 mil euros. Tudo por ajuste directo e contornando o visto do Tribunal de Contas. O regime de excepção por causa da pandemia tudo permitiu.

    Antes deste período, a ENERRE não era assim tão afortunada no universo público: entre 2010 e 2019 apenas conseguiu contratos públicos, grande parte dos quais por concurso, num total de 3.069.168 euros – portanto, em 10 anos, uma média mensal de pouco mais de 25 mil euros. De entre estes, destacam-se dois contratos com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de compra de brindes de promoção dos jogos no valor de cerca de 2,3 milhões de euros, contratualizado em 2015. Outros tempos, antes de uma pandemia “conceder” uma espécie de “euromilhões” a Lourenço Rosa.

    Não se pode dizer, em abono da verdade, que a ENERRE andou a viver exclusivamente à custa do Estado. Embora Lourenço Rosa não tenha reagido sequer às questões colocadas pelo PÁGINA UM, as demonstrações financeiras da empresa no ano passado mostram que a janela aberta pelos contratos públicos abriu portas no sector privado. Em 2020, segundo a contabilidade da empresa, as receitas e prestação de serviços atingiram os 68,8 milhões de euros.

    Tendo em conta os ajustes directos com entidades públicas atingiram, no primeiro ano da pandemia, cerca de 24 milhões de euros, significa então que dois em cada três milhões facturados vierem do sector privado. Recentemente, a CNN Portugal revelou que a ENERRE é o fornecedor principal de material médico relacionado com a covid-19 dos principais hipermercados do país.

    Em todo o caso, tenha o dinheiro vindo de onde se quiser, o contabilista da ENERRE já não trabalha em euros como unidade; já digita milhões. O volume de negócios da empresa da Matinha – que continuou, estranhamente, a reger-se pela norma contabilística e de relato financeiro para pequenas entidades – aumentou 14 vezes entre os anos de 2019 e 2020. E a margem de lucro subiu estrondosamente, porque a ENERRE serviu sobretudo como mero importador de produtos fabricados na China – o que deveria levar a uma reflexão sobre as razões do Estado português nunca ter accionado uma central de compras públicas durante a pandemia.

    Com efeito, a ENERRE conseguiu um “milagre de produtividade” com a graça da pandemia. Mantendo quase os mesmos custos com pessoal (subiram de 916 mil euros em 2019 para 1,17 milhões euros em 2020), Lourenço Rosa logrou transformar aquilo que comprou por um pouco menos de 44 milhões de euros em vendas de quase 69 milhões. Uma deliciosa receita que, deduzidos outros gastos e despesas, bem como impostos, lhe deu um lucro líquido no ano passado de 18.198.324 euros. E mais 28 cêntimos.

    Se Lourenço Rosa mantivesse a ENERRE com um desempenho ao ritmo de 2019 (lucro anual de cerca de 300 mil euros), teria de trabalhar quase 59 anos seguidos para alcançar o que na realidade obteve no primeiro ano da pandemia. Como tem 44 anos, teria de passar esse objectivo aos filhos.

    De Reguengos até ao Dakar

    Os negócios da ENERRE estão agora, mais do que nunca, de vento em popa, e Lourenço Rosa não tem parado de expandir a sua actividade. Em Fevereiro passado anunciou a construção de um edifício de raiz para a sua nova sede, no Prior Velho. Montou também uma unidade de produção de máscaras com capacidade de 40 mil por dia. E tem também projectada uma fábrica de luvas biodegradáveis em Grândola. Já recebeu entretanto subsídios estatais de 1,44 milhões de euros. Os resultados de 2021 não são ainda conhecidos, obviamente, embora seja de esperar que tenham superado largamente os já extraordinários registados no primeiro ano de pandemia.

    Apesar disso, em declarações recentes à CNN Portugal, Lourenço Rosa diz ansiar pelo fim da pandemia. “Sinceramente, queria que isto acabasse já. Não é vida para ninguém. Tenho filhos e não quero que eles vivam com este horror”, garantiu então o empresário.

    Porém, quem o vir em muitos vídeos pelo Youtube e posts da sua página do Facebook Lourenço Rosa – Adventure, com cerca de dois mil seguidores, não terá essa percepção.

    O sucesso empresarial em redor da pandemia empurrou, por exemplo, o seu hobby de piloto amador para planos estratosféricos. Em Maio de 2019 entretinha-se ele pela Baja TT Reguengos de Monsaraz, por pachorrentas terras alentejanas, mas agora apresta-se para o seu segundo Rally Dakar pelas areias da Arábia Saudita. Na primeira aventura, tripulando um veículo SSV (side-by-side) classificou-se em 15º lugar na categoria. Irradiava de felicidade quando saiu de Portugal no dia a seguir ao Natal do ano passado em direcção à mítica prova, enquanto, ao lado do seu navegador, gravava uma live no interior do aeroporto de Lisboa… sem máscara.

    Há dois meses, esteve também no Rally de Marrocos, e já passou pela Baja Hail, nos desertos árabes. Em todas as suas imensas lives e fotos, vestido à piloto profissional, nada nele transparece o “horror” destes tempos em que vivem os seus filhos. Talvez, porque as suas aventuras automobilísticas, aos comandos de um vistoso Can-Am Maverick XRS, estejam a ser suportado pelo patrocinador, ostensivamente mostrado no seu veículo: a ENERRE Pharma.

    Lourenço Rosa, com o seu navegador Joaquim, ambos sem máscara, no aeroporto de Lisboa, de partida para o Rally Dakar de 2021

    Esta empresa, como o nome indicia, pertence também a Lourenço Rosa. Tem sido, aliás, a ENERRE Pharma que tem ele usado na maioria dos contratos públicos desde Setembro último. Funcionando assim como uma espécie de “subsidiária” de produtos médicos da empresa-mãe, a ENERRE Pharma, deu pelo nome de Brindextil Print Solutions Lda. até 2019, tendo então atingido vendas de 79 mil euros e um lucro de 10 mil.

    No ano passado, apresentando as contas já como ENERRE Pharma, os resultados ainda foram mais modestos: 9.200 euros de receitas e um prejuízo de 483 euros. Apesar disso, teve “capacidade” para patrocinar as aventuras do seu proprietário Lourenço Rosa. Não em um Dakar, mas dois Dakar.

    E mais haverá, por certo, mais ainda, sobretudo se houver mais pandemia. Mesmo se o horror para os seus filhos se mantiver. E, claro, se se mantiverem os habituais contratos por ajuste directo, sem qualquer visto nem controlo com o Estado e as autarquias portuguesas.

  • Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Como se perde cedo demais (mas cada vez menos) o “milagre da vida” em Portugal

    Nunca é tema fácil, mas acaba por ser reconfortante saber que a perda prematura de bebés, crianças e adolescentes é cada vez mais rara. A evolução médica e das condições de vida transformaram um triste “hábito” ancestral – pais a assistirem à morte de filhos – numa raridade. No momento em que, muito por pânico, dezenas milhares de pais anseiam por vacinar as suas crianças contra a covid-19 – que ainda não matou nenhuma em Portugal –, o PÁGINA UM analisa um tema pouco apetecível mas necessário para um debate sobre Saúde Pública, e onde se revela que a gripe e as pneumonias, apesar de muito pouco frequentes, já causaram mais “baixas” nos mais jovens do que o SARS-CoV-2.


    Neste fim-de-semana, os pais de cerca de 77 mil crianças portuguesas correram a vacinar os seus filhos contra a covid-19. Correram, em sentido literal, porque a esmagadora maioria acha que estão em perigo de vida.

    Uma questão inquietante, no meio deste movimento social de forte pendor psicológico, e que levou muitos progenitores à beira de um ataque de pânicos, ou de nervos, deve ser colocada: esse perigo, decorrente de um risco, é real?

    A resposta é fácil: não.

    Neste momento, o risco de uma criança dos 5 aos 11 anos de morrer por covid-19 é zero, porque o risco é uma probabilidade. Até agora, desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território nacional em Março de 2020, a pandemia não matou qualquer criança (entre os 5 e os 11 anos), o grupo agora prioritário no programa vacinal. As taxas de internamento situam-se em números baixíssimos: 0,2% dos casos positivos, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde.

    Não há, porém, risco zero absoluto. Donde existe uma incerteza quanto ao futuro. E pode sempre dizer-se que pode (ou não) ocorrer mortes de crianças dos 5 aos 11 anos, se até já se registaram três mortes de menores de idade: dois recém-nascidos e um bebé de quatro anos. Mas todos com gravíssimas comorbilidades.

    Poder, pode sempre. Ou não. Na verdade, pode sempre especular-se, mas até aí deve fazer-se com algum critério científico. Uma doença não deve ser olhada apenas em si mesma, mas também na pessoa que “ataca”, sobretudo porque a incidência e a letalidade variam. Por exemplo, no caso da covid-19 não é a mesma coisa estar a investir para se evitar uma infecção em crianças ou em idosos. Mil infectados com mais de 85 anos não-vacinados resulta, segundo dados oficiais, em 15% de mortes; no caso de menores de idade é necessário usar três casas decimais para evitar o 0%.

    Sendo certo que uma vida é uma vida, outra questão mais perturbadora tem, em todo o caso, e obrigatoriamente, que se colocar: deve lutar-se com todas as “armas”, a todo e qualquer custo, para salvar mais de 600 mil crianças de um desfecho fatal que é um pouco mais do que hipotético?

    A resposta é também deveria ser simples, mas foi complexificada com a covid-19. Uns defendem que sim; outros que não. Qualquer que seja, tem que haver sempre um “mas”.

    Com efeito, qualquer decisão para um programa vacinal deveria ter em consideração não apenas o risco absoluto de uma doença, mas também o seu risco comparativo em relação a outras doenças. Ora, a covid-19 até pode hipoteticamente matar, mas será a única com “capacidade” de tirar uma vida a quem agora começou essa “viagem”? Ou seja, será que, tendo em consideração as limitações da vacina contra a covid-19, se justifica priorizar a vacinação quando existem outras doenças que até matam, e onde haveria melhor retorno (em vidas) com maior investimento?

    Para haver esse debate teria de se conhecer melhor um tema tabu: as mortes dos recém-nascidos, bebés, crianças e jovens adolescentes, para em seguida saber qual a margem de melhoria que se tem. E o que é necessário fazer, se for possível.

    Uma evolução espectacular

    Não é um tema particularmente delicioso e atraente, confessa-se. Mas é necessário conhecer-se, saber-se. Até para enquadrar a covid-19 na sua verdadeira dimensão em relação aos mais jovens. E para saber se se justifica todo o pânico criado nos últimos meses junto dos pais e da sociedade em geral.

    Mas o PÁGINA UM meteu mãos à obra neste pouco apetecível tema, e foi desvendar como tragicamente podem morrer as crianças em Portugal, e também como tem sido a evolução nas últimas décadas e nos anos mais recentes.

    Comece-se então por uma boa notícia: nunca como nos últimos anos – e anos desta pandemia incluídos – se perderam tão poucas vidas de bebés, crianças e adolescentes jovens.

    Na verdade, seguindo a feliz tendência de decréscimo da mortalidade nestas faixas etárias, fruto da melhoria dos diagnósticos de detecção de malformações, da evolução da medicina – incluindo a proliferação de programas vacinais eficazes e comprovadamente seguros – e da melhoria das condições de vida, Portugal apresenta invejáveis indicadores de saúde. Encontra-se no clube dos países, quase todos europeus, com melhores indicadores de saúde, medidos por taxas de mortalidade. Neste aspecto, Portugal consegue estar muito melhor do que países mais ricos, como os Estados Unidos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 nascimentos) neonatal e infantil em Portugal entre 1970 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Por exemplo, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o nosso país apresentou em 2019 uma taxa de mortalidade neonatal de dois óbitos por 1.000 nascimentos. Os Estados Unidos tinham praticamente o dobro (3,7) e o Brasil quatro vezes mais (7,87). Países como a Índia e Angola estavam noutro “desgraçado campeonato”: no país asiático morreram quase 22 em cada 1.000 bebés, enquanto no país africano 28.

    Nas idades subsequentes, esta relação mantém-se similar. Os últimos dados da UNICEF colocam Portugal também no “primeiro mundo”, com taxas muito baixas de mortalidade infantil (3,05 óbitos até aos 5 anos por 1.000 nascimentos) e de crianças e jovens adolescentes (0,78 óbitos entre os 5 e os 14 anos por 1.000 crianças com 5 anos). Neste último indicador, os Estados Unidos apresentam quase o dobro desta taxa (1,37) e o Brasil três vezes mais.

    Se os pais portugueses com crianças e adolescentes podem dormir mais descansados do que os norte-americanos, e ainda mais em comparação com os dos países menos desenvolvidos, então nem vale a pena recuar para o tempo dos respectivos pais e avós. E muito menos olhar para passados longínquos. Em finais do século XIX, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil chegava a ultrapassar os 30% – ou seja, havia 300 mortes em cada 1.000 nascimentos. O risco de um bebé morrer naquela altura era pelo menos 100 vezes superior ao dos nossos dias. Eram outros tempos.

    Porém, mesmo nos tempos modernos, chamemos assim, a morte esteve bem mais presente sobre os berços e pequenas camas do que hoje. Em Portugal, a taxa de mortalidade neonatal era em 1970 de 23,7 em 1.000 nascimentos, ou seja, 12 vezes superior à de 2019. No caso da taxa de mortalidade infantil, a descida foi ainda mais acentuada: em 1970 situava-se nos 55,7 óbitos por 1.000 nascimentos – significando que quase 6 em cada 100 crianças sucumbiam antes de perfazerem 5 anos –, enquanto agora está em aproximadamente três óbitos em 1.000 nascimentos.

    Evolução da taxa de mortalidade (óbitos por 1.000 crianças com 5 anos) no grupo etário 5-14 anos em Portugal entre 1900 e 2019 (Fonte: UNICEF)

    Embora a UNICEF não apresente dados anteriores a 1990 para a taxa de mortalidade no grupo etário dos 5 aos 14 anos, a evolução nas últimas três décadas impressiona: passou de 3,9 óbitos em 1.000 crianças (com 5 anos) para apenas 0,8. Estamos a falar de uma descida de 80% numa taxa de mortalidade já então bastante baixa em 1990.

    Em Portugal, a pandemia da covid-19 trouxe, quer directa quer indirectamente, praticamente zero impacte na sobrevivência de bebés, crianças e jovens adolescentes. Ou mesmo talvez tenha trazido um paradoxal benefício. Com efeito, em 2019 morreram 265 bebés com menos de um ano, e no ano passado apenas 214. Este ano, até 17 de Dezembro, foram registados 183 óbitos, devendo assim ser o ano menos mortífero em termos absolutos desde que há registos estatísticos.

    O número de óbitos na faixa etária seguinte – entre 1 e 4 anos – deverá em 2021 ser ligeiramente superior ao ano passado (53 mortes), mas ainda inferior a 2019. Nesse ano registaram-se 87 mortes neste grupo, enquanto este ano, até 17 de Dezembro, já se registaram 53.

    Apenas no caso do grupo etário das crianças entre os 5 e os 14 anos se verificará previsivelmente um ligeiro agravamento em relação ao período de 2019. Neste momento, os anos de 2021 e 2019 contabilizam o mesmo número de desfechos fatais em crianças, o que significa que, pelas lamentáveis leis na probabilidade, o presente ano terminará com um pouco mais de 90 óbitos neste grupo etário. Em todo o caso, no primeiro ano da pandemia, em 2020, tinha-se registado um número bastante baixo de óbitos (apenas 75).

    Enfim, mesmo num período distópico em que nunca se falou tanto em morte, “que se tenha noção” – como diria, embora noutra circunstância, o jornalista da SIC Rodrigo Guedes de Carvalho – de que se antes era frequente os pais verem filhos morrer, agora esses pais, como avós, raramente assistem a um desfecho fatal dos seus netos.

    Sempre más, mas raras

    Sigamos para a parte mais lamentável deste longo artigo: as causas das sempre e mais compreensivelmente tristes mortes de bebés, crianças e jovens adolescentes. Defenda-se, contudo, desde já que sendo certo serem todas as horas de vida importantes para todas as pessoas de todas das idades – como defendeu o vice-almirante Gouveia e Melo –, a razão dirá, se não se quiser ser populista ou demagógico, que as muitas e muitas horas já vividas por um idoso a morte não as tirará. Porém, ceifando a morte uma criança, muitas e muitas horas de vida, e de esperança, serão perdidas por aqueles que mereciam chegar a velho, tendo uma vida plena. Triste não é ser velho: triste é não chegar a velho.

    Não por acaso, aliás, os estatísticos – sempre classificados de insensíveis – usam um indicador aparentemente frio, mas que mostra bem o estado das políticas de saúde de um país: a taxa de anos perdidos por 100.000 habitantes. Quem deixa morrer as suas crianças, por um lado tem menos gente a chegar a velha, e a que chega maltratada será até à morte.

    Enfim, mas afinal, vejamos, em concreto, quais são as malfadadas doenças e enfermidades que ainda matam, por ano, algumas centenas de bebés e várias dezenas de crianças e jovens adolescentes – ao contrário da covid-19, que, em abono da verdade, e apesar do alarme social ceifou três vidas de menores de idade em quase dois anos.

    De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos últimos cinco anos com registos (2015-2019) faleceram 1.314 bebés com menos de um ano. A parte substancial destas mortes são derivadas de afecções originadas no período perinatal (775) – que corresponde ao período entre as 22 semanas de gestação e a primeira semana após o nascimento – ou de malformações congénitas de anomalias cromossómicas (313). Por causas mal definidas foram reportados 41 óbitos.

    Em todo o caso, estas mortes – que se diriam quase inevitáveis – têm registado um decréscimo acentuado, em parte como reflexo da melhoria na detecção de malformações em ecografias e outros diagnósticos complementares durante as gravidezes, mas também pela evolução da medicina.

    girl and boy playing on bed

    Com efeito, os óbitos perinatais eram ainda bastante elevados há algumas décadas. Por exemplo, em 1989 contaram-se 1.919 óbitos perinatais, segundo dados do INE, mas desde 1997 baixaram a fasquia dos mil. Em 2019 já foram apenas 104, o que representa uma evolução positiva espantosa.

    Por outro lado, torna-se notório que algumas afecções graves já não matam agora tantos bebés como no início do século XXI, mesmo se os primeiros 12 meses de vida continuam a ser “delicados”. Na verdade, a taxa de mortalidade nestes “primeiros passos” é similar à das pessoas com 51 anos.

    Se se comparar as causas dos óbitos infantis em 2002 com os registados em 2019 constata-se uma redução muito significativa naqueles associados à duração da gravidez e ao crescimento fetal (passaram de 83 para apenas oito), à hipoxia intra-uterina e asfixia ao nascer (passaram de 49 para 3) e a uma infinidade de outras enfermidades ou malformações congénitas. Segundo os dados do INE, os óbitos infantis entre aqueles dois anos reduziram-se de 580 para 255. Convém referir, no entanto, que no início do presente século nasciam ainda mais de 110 mil crianças por ano, cerca de 40% superior ao número que se registará este ano. De facto, tendo em conta os nascimentos até Outubro, nascerão este ano menos de 80 mil bebés, o valor mais baixo desde que meados do século XIX.

    Se excluirmos as causas decorrentes de malformações e doenças congénitas fatais nos primeiros meses, os óbitos de bebés com menos de um ano são cada vez mais uma raridade. No quinquénio 2015-2019, as doenças do sistema nervoso e dos órgãos encabeçam o grupo de enfermidades mais fatais, embora com um número muito baixo: 36 óbitos, o que representa cerca de sete por ano. Seguem-se as doenças do aparelho respiratório (29, no quinquénio), das quais 16 por pneumonia. Isto é, a pneumonia causou, em média anual, a morte de três menores de um ano – um valor muito baixo, mas superior ao registado para a covid-19 na mesma faixa etária.

    As causas externas – grosso modo, ferimentos de origem diversa – são outra relevante causa de morte, no período analisado, com 41 óbitos. Destes, 23 deveram-se a acidentes (ou suas sequelas), dos quais quatro foram acidentes de transporte. Houve também três mortes por agressão.

    Ultrapassado o primeiro ano de vida – em que as malformações mais graves acabam lamentavelmente por levar os mais infelizes na “sorte da vida” –, os óbitos decaem bastante na faixa etária até aos quatro anos: apenas 300 registos no quinquénio 2015-2019. E começam então a ganhar preponderância relativa outras causas, embora seja importante não esquecer que este grupo etário não pode ser comparado directamente com os bebés menores de um ano, uma vez que agregando crianças de 1, 2, e 4 anos – ou seja, é um grupo etário de quatro vezes superior. E há outro factor: os menores de um ano são muitíssimo mais frágeis. Mas mesmo muito mais.

    2 girls sitting on floor

    Se seguirmos as tábuas completas de mortalidade do INE, em cada 100.000 crianças nascidas nos anos mais recentes, 99.703 ultrapassaram o primeiro ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade é de 0,30%. Já entre o primeiro e o segundo ano de vida, essa taxa desce muito: em 100.000 bebés com 1 ano, 99.968 completam o segundo ano de vida – ou seja, a taxa de mortalidade já só é de 0,032%. E continua a descer até estabilizar em redor dos cinco anos, aumentando a partir daí, mas até à próximo da idade da reforma com grande suavidade.

    Por exemplo, aos 20 anos, a probabilidade de se chegar aos 21 anos continua a ser quase total: 99,98% alcançam essa meta, o que significa uma taxa de mortalidade de 0,02%. Aos 30 anos essa taxa continua quase inalterada, situando-se em 99,96%. E aos 40 anos é de 99,91%. Somente a partir dos 67 anos, a taxa de sobrevivência ao fim de um ano fica abaixo dos 99%, embora no caso das mulheres essa fasquia ocorra em idade mais avançada. Os homens, apesar dos músculos, são na verdade o sexo fraco em termos de sobrevivência.

    Depois dos 70 e sobretudo dos 80 anos, convenhamos que a vida começa então a andar para trás. Por cada 1.000 idosos com 80 anos haverá cerca de 38 que não chegam aos 81. E por aí fora, crescendo abruptamente à medida que se ultrapassa a esperança média de vida. Dos felizardos que chegam aos 100 anos – na verdade, apenas 0,62% das pessoas que nasceram há 100 anos –, as probabilidades já são muito tramadas: um pouco mais de metade (52%) não vai festejar o próximo aniversário.

    Mas voltemos à infância. E às malfadadas mortes dos mais pequeninos, até aos quatro anos. Embora praticamente já todos sobrevivam, o INE ainda contabilizou 300 mortes ao longo de todo o quinquénio 2015-2019. Todas contam, apesar de, em abono da verdade, constituírem eventos trágicos muito raros face ao período (cinco anos) e à população abrangida (cerca de 425 mil pessoas).

    Sendo certo que nesta faixa etária (1-4 anos) as malformações e outras causas congénitas ou mal definidas continuam, em conjunto, a ser o principal risco de morte – embora com apenas por 70 óbitos no quinquénio em análise –, os tumores infantis sobressaem. Entre 2015 e 2019 sucumbiram 57 neste grupo etário. No caso de leucemias – sempre uma temida e mediática doença nestas idades, mas muitíssimo rara – registaram-se 21 mortes neste período.

    Os acidentes e suas sequelas seguem atrás: 55 óbitos no quinquénio – ou cerca de 10 por ano. De entre estas, o INE reporta 17 mortes por acidentes de transporte e cinco por agressões. As doenças do sistema nervoso e afins causaram, neste grupo, 32 mortes, enquanto as doenças do aparelho respiratório provocaram 20 óbitos.

    Curiosamente, três dessas mortes no quinquénio foram directamente por gripe (influenza) e 10 por pneumonias. Mesmo considerando-se que estamos perante um período de cinco anos – e os “danos” destas doenças respiratórias são baixíssimos em termos relativos –, estramos perante números superiores aos da covid-19. Recorde-se que nunca houve qualquer programa intensivo de vacinação contra a gripe em crianças, sendo que apenas em casos especiais (comorbilidades graves se recomenda, sem alarido, a toma de vacina). E relembre-se ainda que em quase dois anos, a infecção causada pelo SARS-CoV-2 foi considerada como responsável pela morte de uma única criança de quatro anos.

    silhouette of man carrying child

    Os desfechos demasiado precoces da vida de crianças e jovens adolescentes (grupo etário dos 5 aos 14 anos) são também, felizmente, muito escassos. O INE aponta 452 óbitos entre 2015 e 2019, ou seja, menos de uma centena por ano. Os tumores representaram 30% do total. As leucemias causaram 42 mortes nestes cinco anos, embora este grupo etário ronda as 850 mil pessoas.

    Os acidentes, embora também muito raros, constituem um risco relevante nestas idades. No período em análise, faleceram 99 crianças e adolescentes deste grupo etário, dos quais 38 de acidentes de transporte e sete de agressões. Embora com um valor estatisticamente residual, impressiona saber-se que entre 2015 e 2019 houve seis crianças e/ou adolescentes desta faixa etária que morreram por “lesões autoprovocadas intencionalmente”.

    Por outro lado, as malformações congénitas como causa de morte perdem peso neste grupo, o que se mostra compreensível, uma vez que os casos mais graves têm desfechos fatais em idades mais jovens. Em todo o caso, os dados do INE revelam a ocorrência de 45 óbitos resultantes deste tipo de afecções naquele quinquénio.

    Menos letais neste grupo etário são as doenças do aparelho respiratório. Em cinco anos, e para uma faixa etária de 10 anos, apenas originaram 16 mortes, sendo cinco por gripe (influenza) e oito por pneumonias. Embora trágicos para as vítimas, familiares e comunidade próxima, estes valores são bastante baixos do ponto de vista de Saúde Pública, e sobretudo reflectem uma excelente evolução da medicina e da Ciência.

    Poderiam ser mais baixos? Claro que sim. É para isso que as políticas públicas servem. Aliás, a evolução das últimas décadas, que aqui se retratou, demonstram que pode sempre melhorar-se quando o risco, mesmo que baixo, se pode reduzir ainda mais. Com investimento e estratégias adequadas.

    Porém, no caso da covid-19, pouco ou nada se pode baixar, em parte devido a uma relativa benignidade do SARS-CoV-2 nas idades mais jovens. Porém, mesmo assim, o Governo preferiu investir um programa de vacinação de muitos milhões de euros – talvez mais de 10 milhões (não foram ainda tornados públicos os contratos com a Pfizer) – para afinal combater uma doença que não matou qualquer pessoa no grupo etário jovem que neste fim-de-semana começou a ser vacinado.

    Será que não haveria outras prioridades em sectores onde se pudesse obter melhores desempenho do ponto de vista do investimento por redução potencial de mortes? A resposta parece, mais uma vez óbvia: sim, havia. Como parece lógica.

    Mas a pandemia causada pelo SARS-CoV-2 já nos mostrou à saciedade que a lógica é já uma batata. Podre.