Autor: Maria Afonso Peixoto

  • O Inverno da vida sob a forma de prosa

    O Inverno da vida sob a forma de prosa

    Título

    Misericórdia

    Autora

    LÍDIA JORGE

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Misericórdia é o novo romance de Lídia Jorge, e foi escrito a pedido da sua mãe, Maria dos Remédios, que residia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime quando faleceu em abril de 2020, com 92 anos, logo no início da pandemia, vítima de covid19.

    Com uma vasta obra, Lídia Jorge é um dos nomes femininos mais consolidados da literatura portuguesa. Nascida em Boliqueime em 1946, é autora de inúmeros romances, contos, poesias, crónicas e ensaios: Entre as suas obras mais conhecidas estão Os Memoráveis (2014), Combateremos a Sombra (2007), O Dia dos Prodígios (1978) e A Costa dos Murmúrios (1988).

    Já recebeu vários prémios literários, nacionais e internacionais, entre os quais o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000); o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014) e, mais recentemente, o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas (2020).

    Inspirado na história e nos registos pessoais da mãe da autora, Misericórdia é um retrato ficcionado, contado na primeira pessoa, dos últimos meses de vida de Maria Alberta Nunes Amado – tratada por Dona Alberti – uma idosa que vive no Hotel Paraíso, um lar de terceira idade. semelhante a um diário, a narrativa inicia-se a 19 de abril de 2019 e estende-se até à véspera da morte do personagem.

    Ao contrário do que se poderá pensar, Misericórdia não é triste nem tão-pouco deprimente. Também não é sentimentalista. É belo, comovente, autêntico. Mesmo quando desvela a maldade humana, o que sobressai é a vida que ainda pulsa dentro dos residentes do Hotel Palácio.

    Alude às dificuldades inerentes a quem está no Inverno da vida: a sensação de que o corpo nos trai e não acata as nossas ordens, os pensamentos são movediços e a autonomia, que outrora se tivera, se perdeu. Fica-se à mercê dos outros, e da sua misericórdia. Não obstante, consegue mostrar a beleza da velhice, até mesmo o seu encanto, e isto apesar das agruras que ela abarca. É a derradeira experiência de viver o presente, já não existe pressa para se chegar a lado nenhum e, como evidencia o diário de Dona Alberti, o regozijo mora nos momentos mais corriqueiros: na escuta de uma leitura melódica que um estranho faz de uma história, ou na breve visita do genro.

    Misericórdia tem humor, candura, leveza, mesmo nos pontuais incidentes ominosos que descreve. Esses episódios não deixam o leitor indiferente, mas também não pesam demasiado – são contrabalançados com o humor e com o entendimento de que nenhuma contrariedade é o destino final.

    Estamos sempre dentro da cabeça desta Dona Alberti, a quem a idade não levou a personalidade, que é forte e vincada. E estamos bem; as 457 páginas do romance não são demasiadas para conhecer esta castiça senhora. Eis um excerto que relata uma das suas últimas “batalhas” com a noite, isto é, as insónias:

    “A noite esperou que eu me movesse. Como eu não lhe fazia a vontade, a ardilosa disse – «E quero ainda o teu saco de pano que usas pendurado ao pescoço, com tudo o que tens lá dentro.» Era demais. Respondi-lhe – Isso querias tu. O meu saco com tudo o que tenho lá dentro? Parece impossível. Visitas-me há anos, e não me conheces? Esse, só se mo arrancares à força. Experimenta lá. (…) Se te aproximares mais um milímetro que seja, vais ter de experimentar a resistência dos meus pulsos. Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.”

    A prosa é sublime, e Lídia Jorge faz um trabalho brilhante na criação da voz literária desta personagem, tornando o discurso e o tom sempre familiares e reminiscentes de uma qualquer avó – se não a nossa, alguma.

    A autora afirmou já que este não é um livro mórbido, mas sobre a vida. Tem razão. Não poderia ser mais verdadeiro. Misericórdia é a vida contada por quem mais a viveu, uma idosa. E isso é de valor, ainda mais quando contada com tanta vitalidade.

  • Michael Levitt avisa: “Na Ciência, a verdade prevalece sempre”

    Michael Levitt avisa: “Na Ciência, a verdade prevalece sempre”

    Prémio Nobel da Química de 2013, Michael Levitt é um dos cientistas que marcam presença no Congresso Internacional sobre a Gestão da Pandemia que decorre entre os dias 28 e 31 deste mês, em Fátima. O bioquímico britânico tem vindo a denunciar, desde 2020, as muitas tentativas para descredibilizar cientistas que apenas tentavam tirar conclusões com base em dados e evidências científicas. A criação de uma indústria de “prevenção de pandemias”, que está em marcha e que absorve já milhares de milhões de euros, foi um dos alertas deixados por outro especialista de renome presente neste evento, David Bell. Entre os participantes nacionais neste congresso, destaque para dois antigos bastonários da Ordem dos Médicos, Germano de Sousa e José Manuel Silva, a psicóloga e ex-deputada Joana Amaral Dias e o fundador da AMI, Fernando Nobre.


    “Na Ciência, a verdade prevalece sempre, mesmo que demore anos ou décadas”. Estas foram as palavras de Michael Levitt no primeiro dia do Congresso Internacional sobre a Gestão da Pandema / Saúde que decorre desde ontem em Fátima. O Prémio Nobel da Química de 2013 acusa que, durante a pandemia, houve “muita oposição à ciência aberta, muitas tentativas de descredibilizar cientistas que estão apenas a analisar os dados, tal como eu fiz”.

    Levitt foi um dos muitos cientistas conceituados a nível mundial que foi alvo de censura desde 2020, chegando a ser desconvidado da primeira Conferência Internacional de BioDesign, a qual se baseava precisamente no trabalho que o próprio cientista desenvolveu. Mas Levitt manteve sempre a sua posição, de que estava a ser exacerbado o nível de perigosidade da covid-19.

    Michael Levitt na cerimónia de entrega do Prémio Nobel, em 2013

    Hoje, sabe-se que a doença afecta sobretudo as camadas mais idosas da população e que a sua taxa de letalidade média é de 0,035% abaixo dos 60 anos, segundo um artigo científico de vários cientistas, incluindo John Ioannidis, o epidemiologista mais citado a nível mundial. Este artigo veio, aliás, revelar a baixíssima letalidade na população jovem: de 0,0003% nos menores de 19 anos, de 0,003% entre os 20 e os 29 anos, de 0,011% entre os 30 e os 39 years, de 0,035% entre os 40 e os 49 anos, e de 0,129% entre os 50 e os 60 anos.

    Note-se que até John Ioannidis, o mais citado epidemiologista mundial, com um h-index do Scopus de 176, também foi alvo de censura e perseguição quando questionou a eficácia das medidas de confinamento, que, entretanto, diversos estudos confirmaram terem causado maiores danos na população do que proveitos ao longo da pandemia.

    Na sua apresentação no congresso, feita por videoconferência, Michael Levitt destacou que, durante a pandemia, “alguns países tiveram uma mortalidade abaixo do que é habitual” – incluindo a Suécia, Dinamarca, Noruega, Islândia, Austrália, Coreia do Sul e Nova Zelândia.

    Michael Levitt numa entrevista em sua casa após o anúncio da atribuição do Prémio Nobel da Química, em 2013.
    (Foto: Linda A. Cicero/ Universidade de Stanford)

    No caso da Europa, Levitt salientou que, nos países onde se verificou um excesso de mortalidade, “foi sobretudo na faixa etária acima dos 65 anos”.

    Nos diversos gráficos que disponibilizou na sua apresentação, ficou patente que, entre 2020 e 2022, as mortes em excesso nas pessoas com idade superior a 65 anos foi de 616 mil, enquanto nos restantes rondou os 94 mil.

    Apontou que o cenário foi diferente nos Estados Unidos, onde se registou, comparativamente, uma mortalidade mais elevada entre as camadas mais jovens. Naquele país, os óbitos entre os maiores de 65 anos totalizaram as 730 mil, e entre os menores de 65 anos rondaram as 390 mil – cerca de quatro vezes mais do que no Velho Continente.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    O congresso, que decorre até este domingo, contou ainda, no primeiro dia, com a participação de David Bell, um destacado médico clínico e de saúde pública norte-americano, doutorado em saúde populacional.

    Este médico, que coordenou a estratégia de diagnóstico da malária com a Organização Mundial de Saúde (OMS), acredita estar a desenvolver-se uma “indústria de pandemias”, a qual “está a ganhar muito dinheiro com base em falácias”.

    Para Bell, estas falácias são as teorias falsas de que “as pandemias se estão a tornar cada vez mais frequentes” e que “a interação entre humanos e animais selvagens está a aumentar”.

    “Nos últimos 20 anos, houve uma grande mudança no financiamento da OMS, que passou de ser maioritariamente de países-membros para financiadores privados, que dão dinheiro para ser alocado numa determinada doença”, frisou Bell.

    “Dizem-nos que há cada vez mais ameaças à saúde pública e que precisam de mais dinheiro”, disse ainda, referindo-se ao acordo Pandemic Preparedness and Response, liderado pela OMS, cujo objectivo é, alegadamente, prevenir e combater eventuais pandemias futuras. Este acordo e outros planos de prevenção de pandemias, irão absorver milhares de milhões de euros.  

    Este congresso, que vai contar ainda com a participação de muitos outros cientistas e especialistas nacionais e internacionais, foi organizado por Marta Gameiro, médica dentista, e financiado integralmente por donativos particulares, através de uma campanha de angariação de fundos.

    A lista de especialistas portugueses com presença confirmada no evento inclui dois antigos bastonários da Ordem dos Médicos –  Germano de Sousa e José Manuel Silva -, a psicóloga e ex-deputada Joana Amaral Dias e o médico e fundador da AMI – Assistência Médica Internacional, Fernando Nobre.

    Germano de Sousa, antigo Bastonário da Ordem dos Médicos e fundador do Grupo Germano de Sousa,
    que opera uma vasta rede de laboratórios.

    O primeiro dia do congresso teve como mote Confinamentos e Medidas Draconianas de Saúde Pública: o outro lado. Em análise estiveram as restrições impostas em nome da luta contra o vírus, os seus efeitos colaterais a nível global e a conduta da OMS durante a pandemia.

    As terapêuticas potencialmente eficazes no tratamento da covid-19 e o estado actual do Serviço Nacional de Saúde foram os temas de discussão no segundo dia do congresso.

    No último dia do evento será abordado o tema da saúde mental durante a pandemia, as vacinas contra a covid-19 e a controversa tecnologia de mRNA.

    O congresso é gratuito e poderá ser acompanhado em directo através do site oficial.

    Texto editado por Elisabete Tavares

    Nota: 03/11/2022 – Germano de Sousa não esteve presente à última hora por motivos de saúde.

  • Uma orfandade emocional

    Uma orfandade emocional

    Título

    Os abismos

    Autora

    PILAR QUINTANA (tradução: Pedro Rapoula)

    Editora

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do sucesso retumbante de A Cadela, que foi finalista do National Book Award em 2020 nos Estados Unidos, chegou agora a Portugal o novo romance da escritora colombiana Pilar Quintana, Os Abismos, que venceu em 2021 o prestigiado Prémio Alfaguara em 2021 de romance. Uma vez mais, é a Dom Quixote a editar a obra daquela que é uma das romancistas com maior projecção na América Latina.

    Os Abismos retrata os dramas de uma família colombiana atormentada, nos anos 1980, e a história é-nos contada pela filha (única), Cláudia, uma menina de apenas nove anos.  A mãe, também Cláudia, não o queria ter sido, e só o foi por força das convenções sociais que não a deixaram prosseguir uma carreira nem escolher outro destino que não fosse o casamento e a maternidade. Assim, pode dizer-se que a distância emocional que define a relação entre ambas é “abismal” – sempre fria, distante, negligente –, à imagem do que tinha sido, também, entre a avó e mãe de Cláudia.

    Embora Cláudia “adulta” repita constantemente, quase a tentar convencer-se a si mesma, que não é como a sua mãe, a verdade é que não consegue deixar de reproduzir com a sua filha os mesmos padrões emocionais que herdou e assimilhou na sua infância.

    O pai, Jorge, 21 anos mais velho do que Cláudia-mãe, passa a maior parte do tempo a trabalhar no supermercado que gere com a sua irmã, Amélia. E, quando, enfim, está em casa, a sua presença é quase meramente física, já não são muitas as palavras que troca com a filha – não obstante, o pouco que diz deixa transparecer algum afecto.

    O seguinte trecho em que Cláudia descreve a celebração do seu nono aniversário é revelador do trato entre o casal e a filha:

    A minha mãe, como todos os anos, recordou a sua gravidez. A grande barriga, os pés inchados, que a cada cinco minutos tinha vontade de ir à casa de banho, que não conseguia dormir e o que lhe custava levantar-se da cama. As dores começaram ao almoço. Eram a coisa mais horrível que já tinha sentido. O meu pai levou-a para a clínica e ali sofreu toda a tarde, toda a noite, toda a manhã do dia seguinte, toda uma nova tarde, a sentir que ia morrer, e outra noite completa, até de madrugada.

    – Saiu roxa. Horrorosa. Puseram-ma ao peito e eu, a tremer e a chorar, pensei: esforcei-me tanto para isto?

    A minha mãe deu uma gargalhada tão grande que se lhe viu o céu da boca, profundo e sulcado como o tronco de uma pessoa subnutrida.

    – A bebé mais feia da clínica – disse o meu pai.

    Deste modo, Cláudia-filha cresce com os pais, mas sempre numa espécie de orfandade emocional, privada do afecto que, na idade em que está, tem necessidade de receber e que nunca se cansa de tentar obter. A situação familiar, que já é complexa e delicada, leva um novo “tombo” quando a Cláudia-mãe começa a ter um caso com o marido da cunhada.

    A traição fá-la afundar-se ainda mais e cair numa depressão que a deixa praticamente de cama, a whisky e comprimidos. A partir de aí, a sua personagem fica num limbo constante, parecendo estar sempre a um pequeno passo de “resvalar” para a autodestruição, o que confere um certo clima de mistério que se vai adensando ao longo do romance. Com Cláudia-filha, fala sobre Grace Kelly e Natalie Wood, dizendo-lhe que as trágicas mortes das actrizes só podem mesmo ter sido por suicídio.  

    Tendo a selva colombiana sempre como “pano de fundo”, o título Os Abismos remete tanto para os precipícios psicológicos em que as personagens se encontram, mergulhadas em sentimentos depressivos, como para os precipícios físicos que vão surgindo ao longo de toda a história.

    Pilar Quintana consegue conferir ao romance uma forte carga emocional, e a sua intensidade é o que nos deixa agarrados ao livro, mas é também, em contrapartida, o único motivo que torna difícil ler as 200 páginas de uma só vez.  

    De facto, a melancolia pode ser esmagadora, e é impossível ficar indiferente à infância infeliz da pequena Cláudia que, na sua inocência – sempre evidenciada na forma como descreve e interpreta os acontecimentos –, procura amor nos adultos que a rodeiam, mas raras vezes com sucesso.

    Parece ser consensual entre os críticos que Os Abismos não conseguiu chegar ao mesmo patamar literário que A Cadela. Em todo o caso, vale, e muito, a pena ler este novo romance de Pilar Quintana, não só pela qualidade da escrita, como pelo enredo dramático e inebriante, que aborda dinâmicas e mecanismos psicológicos que, mais ou menos familiares, não soarão estranhos a ninguém.

  • Uma utopia será sempre boa?

    Uma utopia será sempre boa?

    Título

    A nova ordem mundial

    Autor

    H. G. WELLS

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Conseguirá o Mundo, alguma vez, alcançar uma paz perdurável? E se sim, o que terá a Humanidade de fazer de modo a tornar essa possibilidade real? Com a eclosão da Segunda Grande Guerra, é a estas perguntas que o prolífico escritor, jornalista e romancista britânico H. G. Wells (1866-1946) tentou responder em A Nova Ordem Mundial, que teve a sua primeira edição em 1940, e foi agora republicado pela Dom Quixote.

    H. G. Wells foi um dos escritores mais notáveis do início do século XX. O Homem Invisível, A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos estão entre as suas obras mais conhecidas. Considerado um visionário e um dos principais percursores da ficção científica, vaticinou, por exemplo, o advento da rádio e da televisão, a vigilância em massa, a world wide web, e a bomba atómica.

    A expressão “Nova Ordem Mundial” tem hoje servido de material para teorias da conspiração. Curiosamente, algumas delas poderiam mesmo fundamentar-se neste livro. É que o autor apresenta a tese de um governo internacional como a solução para os conflitos que na altura assolavam o Ocidente. Um socialista confesso – foi um dos membros mais proeminentes da Sociedade Fabiana – H. G. Wells mostra-se crítico do marxismo e da revolução russa, mas defende abnegadamente a colectivização do poder e reitera que está em curso o fim de uma era e a queda de uma antiga ordem.

    Wells clarifica a sua ideia de colectivização no seguinte trecho: “[É] a gestão dos assuntos comuns da humanidade por um controlo comum responsável por toda a comunidade. Significa a abolição da discricionariedade nas questões sociais e económicas, assim como nas questões internacionais. Significa a abolição drástica da procura do lucro e de todas as artimanhas que os seres humanos engendram para parasitarem os seus congéneres. É a concretização prática da irmandade humana por intermédio de um controlo comum.”

    Segundo Wells, é imperativo que ocorra esta transformação na sociedade, sob risco de o mundo redundar em miséria e destruição.

    Wells adverte, porém, que este sistema socialista à escala global, que vê como inevitável, só poderá ser bem-sucedido se forem feitas diligências no sentido de proteger os cidadãos contra eventuais abusos de poder.

    Para esse fim, torna-se essencial a formulação de uma Declaração de Direitos Humanos, que o autor apresenta em esboço nesta obra, e que viria a desenvolver em Os Direitos do Homem, publicado no mesmo ano.

    Na verdade, o canadiano John Peter Humphrey, responsável pelo rascunho que serviu de base à Declaração Universal dos Direitos Humanos, chegou a admitir que a matéria de H. G. Wells sobre os direitos humanos influenciou a elaboração do documento adoptado pelas Nações Unidas.

    Embora conceba reflexões pertinentes, com as quais se pode até estabelecer paralelos com os tempos actuais, a realidade que H. G. Wells desenha como sendo desejável e necessária é manifestamente utópica. As últimas décadas provaram-no: o reconhecimento dos direitos humanos não tem impedido a sua violação, a paz não foi alcançada – adivinha-se, inclusivamente, novos cenários de guerra – e não parecem haver métodos infalíveis de evitar a tirania.

    Não obstante, e quer se concorde ou não com a sua visão, a crítica sagaz e arguta de H. G. Wells à sociedade do seu tempo fazem com que esta leitura valha a pena e atestam à sua genialidade.

  • ‘Um bom romance não é feito de heróis’

    ‘Um bom romance não é feito de heróis’

    Miqui Otero garante que é sempre “muito pessimista” e que parte do pressuposto que os seus livros “não vão valer nada”. Mas o escritor, jornalista e professor universitário viu o seu mais recente romance, “Simón”, receber, em Espanha, o prémio Ojo Critico em 2020. É também o primeiro livro do autor catalão, de 42 anos, a ser editado em português, pela Dom Quixote. O PÁGINA UM aproveitou a ocasião da vinda do escritor à Feira do Livro de Lisboa para uma descontraída conversa em que se falou de “Simón” e de todo o tipo de heróis: desde os mais clássicos e literários, aos mais reais e comuns.


    Os romances contam histórias e realidades objectivamente mas, como tudo o que é arte, também há um grau de subjectividade na sua interpretação ou na forma como cada leitor percepciona o que lê. Para si, como autor, de que é que realmente trata “Simón”?

    Creio que uma das coisas que faz um romance, pelo menos um romance desta tradição realista, é analisar um momento histórico e uma sociedade, através dos olhos e do coração de um personagem. É uma boa maneira de abordar, por exemplo, os problemas num lugar e num tempo. Combinam-se as duas coisas. É sobre como a personagem vive determinados momentos históricos. Portanto, trata de problemáticas objectivas, mas que cada pessoa vive de forma subjectiva. E é isso que combina “Simón”, tenta ser um romance que parece que arranca como sendo a história de um menino que se está a formar e atinge a idade adulta, mas o que pretendi com este romance é fazer uma análise do que se passou neste período de quase quatro décadas.

    O intervalo temporal em que se desenrola a história da personagem principal, Simón, coincide com as quatro décadas em que cresceu e viveu em Barcelona. Pode dizer-se que a vida de Simón foi buscar muito daquilo que viu e viveu?

    Sim. Eu acho que quando estamos a passar pelas coisas na nossa cidade e no nosso país, pensamos sempre que são menos importantes do que as coisas pelas quais passaram aqueles que viveram antes de nós. Os romances que se passam em Barcelona, de escritores de outras gerações, falavam da guerra civil, do pós-guerra, da transição da ditadura para a democracia… e, quando eu tinha 22 anos e morava aqui em Lisboa e já escrevia, pensava sempre: que período mais aborrecido! Não há maneira de ter material para conseguir escrever um romance aqui!

    Agora, os tempos que vivemos não são aborrecidos…

    Não, agora é menos aborrecido, podia ser um bocado mais aborrecido! Mas, o que é necessário, é o tempo. Enquanto eu vivia os Jogos Olímpicos de Verão em Barcelona, não via aquilo como algo que pudesse dar um romance. Mas quando o tempo passa e se olha para trás, percebe-se que foi um momento muito importante para a cidade e para o país. Era um país que estava a tentar não ser associado com a ditadura franquista, que queria apresentar-se como um país moderno e recebia fundos europeus, como um adolescente que queria viver as coisas pela primeira vez… e tudo isso, de repente, me pareceu interessante. Foi uma altura de mudanças muito repentinas na cidade, algumas boas e outras más, porque deixaram de fora muita gente. Muitos vizinhos foram expulsos. Então, depois comecei a pensar que aquela altura não era assim tão pouco literária, tinha interesse. E a única coisa que se tinha passado era o tempo, para que eu fosse capaz de olhar e entender aquele momento. E o romance vai desde a inauguração do Jogos Olímpicos de 1992 até aos atentados nas Ramblas, em 2017. Pareciam-me dois bons momentos para começar e terminar o romance, porque foram muito diferentes. Os Jogos Olímpicos foram uma altura de fé no progresso, no futuro, na modernidade… eu lembro-me de quando tinha 11 anos, e as pessoas estavam todas muito excitadas, como se estivessem embriagados, havia uma embriaguez colectiva [risos]. Viam tudo como se fosse bom, pensavam que iam ser enormes, o centro do mundo. Com tudo o que isso tem também obviamente de mau. E o romance termina com os atentados porque foi uma altura drasticamente diferente, Simón já tinha mais de 30 anos e já tinha passado por uma série de decepções, e o sentimento que se vivia na sociedade era exactamente o oposto daquele do vivido durante os Jogos. Era uma sociedade muito mais individualista, Barcelona estava muito dividida pelo movimento independentista e vivia episódios traumáticos, como os do atentado, e com uma crise económica global. Então, respondendo à pergunta, pode ver-se como um livro de História que fala de experiências de vida, ou como um romance que fala de um personagem que de algum modo define esse tempo e o acompanha e o segue, bem como à forma como vai vivendo e como sente as coisas ao longo dos anos.

    Simón começa por ser “o nosso herói”, e depois passa a ser “o nosso anti-herói”. Afinal, o que é que ele é?

    Não sei. Acho que há certos conceitos que se têm de redefinir de alguma maneira, creio que um bom romance não é feito de heróis. Na Antiguidade Clássica, se virmos as odisseias gregas, são pessoas que cometem erros, que estão a servir um ideal, mas que, querendo regressar a casa, vão vivendo a sua vida [risos]. Eu fartava-me de rir, porque Ulisses queria voltar a casa, mas chega a uma ilha e está com uma mulher, que não é a sua, durante oito anos… depois, vai para outra ilha e apaixona-se por outra mulher. Num capítulo, vai para uma ilha em festa e fica nessa ilha em celebração durante um ano inteiro, num castelo. Então, ele nem sequer corresponde à ideia de herói que temos hoje em dia. Não acredito numa heroicidade imaculada. Os romances mais actuais não podem jogar com esse tipo de heroísmo, porque é mentira. Seria propaganda, não seria literatura. Então, para mim, Simón é um anti-herói porque se engana constantemente, porque duvida, às vezes faz coisas boas para interesse próprio e, outras vezes, não tem intenção de fazer mal, mas faz indirectamente. E, para mim, isso é mais interessante. No livro, Simón está obcecado pelos romances dos séculos XVIII e XIX onde, aí sim, se apresentavam os heróis espadachins, ou outros que tais. Eu chamo-lhe ironicamente herói, e por isso coloco a expressão em itálico, porque ele é um rapaz que vai cometer erros ao longo da vida e vai-se enganar ainda mais porque, ao ler tanto, no mundo real irá deparar-se com uma realidade que não é como nos livros. Então, ele é um herói até ao momento em que passa a ser um anti-herói. E acho que os anti-heróis são muito mais interessantes do que os heróis, do mesmo modo que as derrotas sempre serão muito mais interessantes do que as victórias.

    Vamos poder ver Simón no grande ecrã?

    Isso nunca se sabe. Estão a trabalhar nisso, mas já com o meu romance anterior, compraram os direitos de autor para uma série e depois não se concretizou. Não sei o que vai acontecer, porque envolve várias etapas que não dependem de mim. Com Simón, está em processo, mas não sei como acabará. Se me perguntar se existe um projecto para que isso aconteça, sim, há um projecto para uma série.

    Simón conferiu-lhe uma maior projecção, tendo sido editado em várias línguas. Sente alguma pressão para que o próximo livro exceda o sucesso deste?

    Não [risos]. Eu sou sempre muito pessimista, parto sempre do pressuposto de que os meus livros não vão valer nada. Dizem que preparar-nos para o mal é a melhor maneira de enfrentar o pior. Então, não sinto nenhuma pressão, até porque não sou um atleta. Os atletas, quando saltam de uma altura, nas seguintes Olimpíadas têm que ir mais longe, mas com um escritor não é assim. Não é sobre tentar escrever mais romances de sucesso, é sobre tentar escrever o que tenho para dizer no momento. O romance que estou a escrever agora será mais breve, mais pequeno e terá outro estilo. Simón conta uma história que segue um longo período de tempo, é amplo e fala sobre muitos temas. Agora quero fazer algo diferente, um pouco o contrário. Sem a pretensão de ser mais nada, nem mais do que este foi.

    E está com menos tempo para escrever? Em Maio passado, anunciou que após seis anos como colunista para o jornal El Periodico, iria fazer uma pausa de alguns meses. Qual foi o motivo?

    Houve situações diferentes. Com os meus romances anteriores, tinha os meus leitores, mas com Simón houve uma mudança muito grande, um salto de leitores enorme. Então, isso também fez com que o trabalho de promoção em Espanha durasse vários meses e isso rouba tempo, mas também espaço mental para me concentrar no que quero escrever. Depois, tenho dois filhos, uma menina com dois anos e um menino que acaba de fazer cinco. Durante todo este último ano tive duas criaturas em casa, e uma ainda estava a aprender a andar e a ir contra as coisas, com aquela atitude de bebés de um ano que parecem os teus amigos embriagados [risos]. Levantam-se e caem de repente, tentam explicar-nos algo incompreensível, estão a chorar e depois riem-se… são como os nossos amigos embriagados, os bebés. E o de quatro, estava numa fase de perguntar-me tudo, perguntar-me metafísica. “Papá, o que é um buraco negro?“; e perguntas sobre meteoritos e dinossauros [risos]. Bom, tudo isto é exigente, e acaba por levar muito tempo também. Tenho também muitas colaborações em rádios, dava aulas, tinha muitos compromissos acumulados, e dei-me conta de que não estava a conseguir escrever. Então, de repente, numa manhã escrevi um e-mail, parei com tudo e pus-me a escrever. E agora já tenho avançado com o meu novo livro. Depois do mês de Outubro, em que estarei na Alemanha, já termino o romance.

    Também é professor universitário na Universidade Autónoma da Catalunha…

    Sim, isso foi outra coisa que também parei na Primavera. Por volta de Outubro ou Novembro, voltarei a dar aulas. As aulas que dou são de escrita criativa e jornalismo literário, e também faço um workshop de escrita de romances pequenos, de 60 páginas. Depois, tenho um projecto com um escritor mexicano, Juan Pablo Villalobos, em que ensino escrita criativa num bairro problemático de Barcelona que se chama El Raval e tem 70 ou 80% de imigração, do Bangladesh, Paquistão, latino-americanos também. Um dia, eu e o Juan Pablo começámos a falar de como gostaríamos que esses jovens nos explicassem como é a sua vivência na cidade e organizámos uma espécie de curso em que a cada ano é publicado um livro. Então, isso também me tem ocupado bastante tempo, porque é como ensinar a escrever a jovens de 14, 15 anos, que têm vidas difíceis em muitos casos.

    Foi o jornalismo que o levou a ser escritor ou já era escritor antes de ser jornalista? Como é que se definiria, qual é realmente a sua paixão?

    É a literatura, os romances. Estudei jornalismo porque era o que muita gente estudava, e a única coisa que eu sabia fazer na vida era escrever, então pensei: como é que posso ganhar a vida com a única coisa que sei fazer? E, por isso, tornei-me jornalista e trabalhei como jornalista durante uns anos. Assim que pude, deixei as redações, estava farto de estar sentado em redações todos os dias. Por volta dos 28 anos abandonei o jornalismo e já não voltei mais às redações. Depois, ainda continuei a fazer algumas entrevistas e reportagens, e agora já faz tempo que não exerço jornalismo. No entanto, é algo que continua a interessar-me bastante. É uma profissão excitante, necessária e útil para a sociedade, mas a minha paixão é escrever ficção. E desde que eu era criança, com seis anos, voltava da escola para casa para almoçar das 13 às 15h, e tinha uma espécie de loucura, de que a cada meio-dia tinha que escrever um conto. E quando não o terminava, ficava doido! Escrevia compulsivamente como o Stephen King, e ficava torturadíssimo quando não conseguia escrever. Escrevi inúmeros contos entre os seis e os 10 anos. Foi uma vocação desde muito cedo. Sempre gostei de escrever.

    A certa altura, no romance, chega-se ao dia do referendo sobre a independência da Catalunha e há uma passagem que refere que uma personagem via todo esse processo “como uma sã rebeldia“, e outra como um “golpe de estado“. Como catalão, qual é a sua visão sobre o movimento independentista catalão?

    Não vejo de nenhuma dessas formas. Eu digo que o pai de Simón pensava de uma maneira e o tio de outra para mostrar como os dois extremos pensavam nessa altura. Considero que foi um período de encantamento, como que um truque de magia. Nas primeiras páginas do livro, sobre a inauguração dos Jogos Olímpicos, falo de quando foi acesa a chama olímpica com uma flecha e toda a gente achava que a flecha caía no lugar onde se acendia a chama olímpica. Foi um truque. As pessoas estavam dispostas a acreditar em qualquer coisa. E, na época do processo independentista da Catalunha, havia muita gente que acreditou em qualquer coisa. Mais uma vez, havia uma fé nesse projecto, que era uma fé acrítica. As pessoas não criticavam nada, havia um nacionalismo cego. Metade da população acreditou nesse ideal, efectivamente, de uma maneira cega. Metade, porque a população estava dividida, era 50-50. Confiou-se cegamente em como uma Catalunha independente era melhor, confiou-se em políticas baseadas em promessas, mas que não estava realmente preparadas. E, quando tudo deu o berro, alguns fugiram. Portanto, há toda essa questão, por um lado. Agora, se é legítima a aspiração de uma Catalunha independente? Creio que sim. Se merece um diálogo maior por parte do estado espanhol? Claro que sim. Mas, isso faz com que eu valide tudo o que foi dito pelo partido separatista da Catalunha? E a forma como a maior parte da população interpretou? Não, e parece-me triste.

    Porquê triste?

    Parece-me triste porque depois o que fizeram foi esbarrar-se com a realidade. Uma realidade em que não tinham pensado porque foram enganados. Então, não me parece que seja uma história entre bons e maus. Parece-me, por um lado, que houve uma atitude quase infantil e irresponsável de nos levar para algo que se sabe que não vai ser bom. E por outro lado, no caso do estado espanhol, houve uma reação tardia, e em alguns momentos violenta. Foi prejudicial, porque era um tema que se podia ter dialogado. Portanto, não me sinto num lado nem noutro. E estas reflexões eram coisas em que eu pensava enquanto se passava tudo isto na Catalunha. Tornou-se numa sociedade bastante dividida. Agora, já está muito mais calmo… Mas a mim, o que me custava mais de todo aquele processo é que, naquele tempo, definiam-te unicamente em função disso. Apresentavas-te num lugar e era: és independentista ou não és? És independentista ou unionista? E isso parecia-me muito…

    Simplista?

    Simplista, sim, e triste também. No livro, até há uma frase que tem a ver com isso: não somos só uma coisa, somos aquilo que trabalhamos. Nós não somos a nossa opinião sobre um tema. Uma pessoa tem tantas faces como o fogo. E, na altura, se alguém não se alinhasse com nenhum dos lados, era mal interpretado, porque isso era visto como um sinal de cobardia, como se não se quisesse posicionar. Mas não é verdade porque, pelo contrário, estaria a posicionar-se sim, e num lugar pouco cómodo, porque estava diante do vazio.

    E acha que é assim com todos os temas, no geral? Ou é algo mais notório no caso de Espanha, com a questão da independência da Catalunha?

    Não, eu acho que acontece com muitas outras questões também. Primeiro, acho que é um sinal dos tempos, e não é apenas uma questão espanhola. Por exemplo, se pensarmos em como funcionam os algoritmos das redes sociais, que polarizam as opiniões e tentam acicatar conflitos já existentes, porque é isso que move o mundo. É esse o estado de coisas em Espanha e em todos os países. Em Espanha, é evidente que há desde sempre uma tensão entre conservadores e reformistas e, muito claramente, há desde logo duas Espanhas diferentes que nascem do conflito da guerra civil. Há progressistas e, por outro lado, pessoas que não dizem que são franquistas, mas na verdade têm padrões mentais que vêm daí. São como duas equipas.

    Que escritores tem como referências? Tendo já vivido em Portugal, algum deles é português?

    São tantos, e menciono tantos neste romance, que nem sei por onde começar. Há escritores que foram fulcrais na minha formação, que li quando era adolescente e que são importantíssimos para mim e estão todos em Simón. Alexandre Dumas, Balzac, Stendhal… Há um que é uma referência pessoal e ao qual volto muitas vezes quando quero entender algo, que é Charles Dickens. Mas, obviamente, há muitas mais, e leituras mais actuais, como romances dos últimos vinte anos, por exemplo. O meu preferido será provavelmente “A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao”, de Junot Díaz, um tipo dominicano. Ou, antes, recomendava o poeta chileno Alejandro Zambra, que escreveu muitos romances nos últimos anos. Depois, nos meus vinte e poucos fui muito influenciado por escritores americanos. Também tive uma fase de literatura latino-americana. Muitos escritores de Barcelona também me influenciaram, e com os quais hoje me comparam, o que me deixa muito feliz porque são mestres para mim. E, desses, destacaria Francisco Ledesma, Eduardo Mendoza… Por fim, quanto aos portugueses, bem, obviamente li muito Saramago. Li o “Viagem a Portugal” porque estava a viajar por Portugal, e que começa a olhar o Douro, numa aldeia perto da aldeia da família da minha mulher, que é um povoado do lado de lá da fronteira espanhola. Também já li Valter Hugo Mãe, mas faltam-me ainda ler outros autores contemporâneos. Enfim, são mesmo muitos os autores que poderia citar como referências.

  • E a grande novidade da Feira do Livro de Lisboa (ao ar livre) é… a ausência de máscaras

    E a grande novidade da Feira do Livro de Lisboa (ao ar livre) é… a ausência de máscaras

    Desde 2020, a Feira do Livro de Lisboa foi “empurrada” para Agosto. Depois de fortes restrições nas úlltimas duas edições, abriu ontem a 92ª edição. Há muitos livros, encontros com autores e muitos comes-e-bebes. Só faltam mesmo as máscaras, que não deixam saudade.


    Já foi na Primavera, com chuvadas à mistura, agora tem sido em pleno Verão, mas é uma tradição incontornável em Lisboa. A caminho do centenário, ontem, abriu a 92ª edição da Feira do Livro, em pleno Parque Eduardo VII.

    Embora o panorama sócio-económico actual seja de crise e inflação, a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) promete que esta, sim, será a maior de sempre: 340 pavilhões e 140 participantes, entre grandes grupos editoriais, pequenas editoras e mesmo alfarrabistas.

    Ontem, na inauguração, a maior diferença que saltou à vista, face aos dois anos anteriores, não foram os livros, nem as roulottes com comida, nem a presença já habitual do presidente da República. Foi sim uma ausência face às duas edições anteriores (2020 e 2021): a máscara facial. Além de todas as outras medidas como a entrada condicionada ou o álcool gel.

    A “normalidade” tem-se vindo a recuperar aos poucos e os corredores da Feira comprovaram-no. Poucas foram as máscaras, muitos os livros.

    Longe de estarmos perante uma canícula, pela tarde de ontem o fluxo de visitantes ainda era moderado, e concentrava-se não tanto nos pavilhões, mas nas sombras das árvores. E também, sem surpresa, nas zonas dos “comes e bebes”, incluindo bancas de gelados, mais apetecíveis que um Prémio Nobel.

    Mas não apenas de livros viverá esta feira. Estamos perante um evento cultural em que haverá workshops, debates, showcookings – que foram interrompidos durante a pandemia – e as costumeiras sessões de autógrafos para todos os gostos e feitios. Os fins-de-semana são garantidamente os dias com maior concentração de autores para dois dedos de conversa – às vezes nem isso, se a fila for grande para os mais populares – e uns autógrafos da praxe.

    Um colaborador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que já representa a marca na Feira do Livro de Lisboa há seis anos, disse ao PÁGINA UM que a afluência de visitantes estará agora próxima da realidade pré-pandemia. “Nota-se uma clara diferença em relação aos últimos anos, as pessoas estão mais descontraídas e não têm tanto medo de mexer nos livros”, reconheceu Gonçalo Silva.

    Junto aos stands do grupo editorial Penguin Random House, o testemunho de outro vendedor também foi positivo. João Alves, um estreante a trabalhar nesta edição, assegurou que, apesar de ser esperada uma maior afluência ao final da tarde, logo nas primeiras horas da manhã “as vendas correram muito bem”.

    Este será o terceiro e último ano em que a Feira do Livro decorre na recta final do Verão (em Agosto e Setembro), ainda no decurso das medidas impostas no âmbito da pandemia. Em 2023, o evento voltará a realizar-se de acordo com o calendário habitual – entre Maio e Junho. Na cidade do Porto, por sua vez, a sua Feira inicia-se hoje.

  • Um buffet de dicas saudáveis

    Um buffet de dicas saudáveis

    Título

    Seja um super-humano

    Autor

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Maio de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Para a maioria dos portugueses, Manuel Pinto Coelho dispensa apresentações. Muitos, pelo menos, terão já ouvido o seu nome, ou visto o seu rosto, na televisão, na estante de uma livraria, ao folhear uma revista ou um jornal, ou até em podcasts no Youtube.

    Nos últimos anos, este clínico com uma experiência de meio século de prática tornou-se numa cara conhecida da praça pública, amiúde associado a declarações controversas no seio da comunidade médica. Sorridente e bem-disposto, causou burburinho as suas posições sobre, por exemplo, a exposição solar desprotegida e a utilização de estatinas.  

    Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 1972, Pinto Coelho teve uma formação académica convencional, mas a doença neurodegenerativa (esclerose lateral amiotrófica) que, no final do ano passado, vitimou o seu filho Bernardo, levou-o a procurar novas formas de potencializar a saúde humana. Desde então, publicou diversos livros – alguns tornando-se best-sellers, como Chegar Novo a Velho, em 2015 – e fundou ainda a sua própria clínica.

    Seja um super-humano – 50 hábitos que vão mudar a sua vida para sempre é, como o título sugere, uma compilação de várias recomendações com vista à melhoria da saúde. É uma espécie de manual que aborda um pouco de tudo. Por se tratar de uma lista bastante extensa de sugestões, nenhuma é desenvolvida com profundidade. No entanto, o autor resume essas sugestões com argumentos médicos.

    Com 50 propostas ao longo de 367 páginas, e destinadas a uma grande diversidade de leitores, mesmo daqueles não familiarizados com temáticas médicas, o livro acaba, naturalmente, por ser de carácter bastante geral e abrangente. Não se trata, pois, de aconselhamento médico personalizado, nem esse é o propósito. O objectivo é ser um ponto de partida que proporcione ao leitor um aporte de informação que lhe permita, depois, explorar e ir implementando cada hábito conforme as suas próprias particularidades. É como um mapa para a saúde.

    Seja um super-humano – 50 hábitos que vão mudar a sua vida para sempre fala assim de uma “prosperidade física”, algo que, para se alcançar, requer mais do que apenas uma alimentação equilibrada. É necessária, também, uma atenção ao ar que se respira, aos pensamentos que se entretém, às emoções com que nos ocupamos. E é por isso que este livro parece querer ser um guia completo para um estilo de vida, que abarca as várias dimensões do ser-humano: a física, mental e emocional.

    Encontramos todo o tipo de conselhos, tão variados em tema como no grau de especificidade. Desde os que aludem ao que comemos ao exercício físico. Uns na linha de uma sabedoria ancestral, alguns de senso comum ou bom senso, como “Faça exames às principais patologias”, e outros mais irreverentes, como “Beba água do mar”.  

    Em suma, este é um interessante “manual” para quem queira aprender a cuidar melhor do seu corpo (físico) ou manter-se em homeostase. Independentemente do nível de conhecimento, o leitor poderá aqui, de decerto, encontrar, ou recordar, algo de útil para a sua vida. 

  • TVI sai-se mais uma vez “mal”, e agora foi condenada a pagar indemnização à IURD de quase 70 mil euros

    TVI sai-se mais uma vez “mal”, e agora foi condenada a pagar indemnização à IURD de quase 70 mil euros

    Por recusar publicar um direito de resposta da Igreja Universal do Reino de Deus em 2017, por um conjunto de investigações jornalísticas de rigor questionável, a TVI vai ter de abrir os cordões à bolsa. É a primeira vez que um tribunal judicial aplica este tipo de sanção a um órgão de comunicação social de âmbito nacional..


    A TVI e o seu antigo director de informação, Sérgio Figueiredo, foram condenados a indemnizar a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em quase 70 mil euros, numa decisão inédita nos tribunais portugueses. O desfecho resulta de um longo processo que teve início há mais de quatro anos, após a estação televisiva do Grupo Media Capital – também detentora da CNN Portugal – ter recusado transmitir o direito de resposta da IURD sobre uma série de 17 reportagens intitulada O segredo dos deuses, transmitida entre Dezembro de 2017 e Junho de 2018.

    A investigação jornalística de Alexandra Borges e Judite França, denunciava uma suposta rede internacional de adopções ilegais e rapto de crianças alegadamente montada por aquela instituição religiosa. Num dos referidos episódios, o então director Sérgio Figueiredo chegou mesmo a apelidar a IURD como uma “associação de malfeitores e criminosos”.

    Reportagem da TVI acusava o fundador da IURD no Brasil de estar envolvido em esquemas de adopção ilegal, algo que acabou por não ficar provado.

    Por danos não patrimoniais, os réus foram condenados pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste ao pagamento de 50 mil euros, satisfazendo o pedido da IURD, tendo o juiz Miguel Raposo determinado ainda uma indemnização de 18.500 euros a título de danos patrimoniais. Inicialmente, a lesada requerera um total de 99.105 euros, tendo esse valor sido depois ampliado para 125.673. Respeitante a danos patrimoniais, foram alegadas despesas com assessoria jurídica e também os custos do texto de resposta (pagando) em outros meios de informação.

    Recorde-se que o impacte da transmissão destas reportagens foi então muito significativo, tendo mesmo suscitado intervenções do Ministério Público e até petições para o encerramento das actividade da IURD em Portugal. Fundada em 1977 no Brasil, a IURD chegou a Portugal em 1989.

    A sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, datada de 12 de Julho passada, destaca que a TVI nunca quis reconhecer o direito de resposta, argumentando “falta de legitimidade para o exercício do direito, intempestividade e ausência de relação directa e útil entre as referências feitas nas reportagens e grande parte do afirmado nos textos de resposta”.

    Sérgio Figueiredo tem “saltitado” entre o mundo empresarial e a liderança de redacções de jornalistas. Depois de ser director do Diário Económico, no início do século, passou a seguir pela administração de empresas do Grupo EDP, tendo depois seguido para a direcção da TVI entre 2015 e 2021. Apresenta-se agora como consultor de sustentabilidade freelance.

    Curiosamente, apesar de ter sempre refutado as acusações e caracterizado a reportagem como “manifestamente falsa”, à IURD foi inicialmente negado o direito de resposta pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) em 2018. Mas, em Fevereiro de 2020, após uma intimação favorável à queixosa, o regulador foi obrigado a alterar a sua deliberação inicial. Porém, a estação televisiva só acatou a decisão em Julho daquele ano, um “capricho” que lhe custou uma sanção pecuniária no valor de 500 euros por cada dia de atraso, conforme o previsto nos Estatutos da ERC para crimes de desobediência.

    Embora a TVI e Sérgio Figueiredo possam ainda recorrer da sentença, esta terá sido a primeira vez que um Tribunal condena um órgão de comunicação social a pagar uma indemnização no seguimento da recusa da emissão do direito de resposta.

  • ‘Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses.’

    ‘Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses.’

    Esteve para ser somente uma entrevista sobre a presença árabe em Lisboa, a pretexto do seu novo livro, mas rapidamente a conversa com o escritor e historiador Sérgio Luís de Carvalho descarrilou, e ainda bem, para outras visões da História, para a Idade Média, o legado português, o racismo, os “pecados” da Humanidade, acabando nos nossos dias com os males do politicamente correcto e a “cultura do cancelamento”.


    Em Lisboa, tem-se a noção muito enraizada de que foi a presença romana que deu o nome à capital portuguesa, mas, na verdade, o seu nome deriva mais do árabe. Estou a ser correcta?

    Na verdade, as mais antigas referências a Lisboa são pré-romanas. Tão antigas como a origem de Lisboa, que teria sido um castro celta, mas não vamos por aí. Provavelmente, a origem da cidade remonta aos fenícios, que foram um povo que corresponde mais ou menos ao que hoje é o Líbano, e que terão aqui fundado um pequeno porto. Pensa-se que em fenício, a designação de Lisboa significaria qualquer coisa como Porto Seguro, ou Enseada Feliz, e depois mais tarde isso foi de corruptela em corruptela, com os romanos, passou a Olissipo… depois, com os árabes, Luxbuna, e é por isso que a abreviatura de Lisboa é “LX”, embora Lisboa não tenha nenhum X. Mas antigamente tinha. Há uma lenda que diz que Lisboa foi fundada por Ulisses, e de que o nome veio de Ulisses. Ulisseia, Lisboa. Mas é isso, é apenas uma lenda.

    Sérgio Luís de Carvalho, na sua casa, em companhia de Duna.

    Uma lenda será também a história de como os árabes entraram na Península Ibérica? Diz-se ter sido por “convite” do governador de Ceuta que, por causa da sua filha, se terá zangado com um rei visigótico…

    Sim, está a falar concretamente da “invasão” de 711. Bom, no início do século VIII, enquanto o Islão era uma religião relativamente recente, e estava em grande expansão, a Oeste para todo o Norte de África, e a Leste, para a Índia; a monarquia visigótica que dominava a Península Ibérica estava em desagregação. Recorde-se que a monarquia visigótica era electiva, e não hereditária. Quando o rei morria, os nobres juntavam-se para escolher o futuro rei, o que dava origem a problemas porque muitas vezes os resultados eram renhidos, ou na base do suborno. E, o que é facto é que em 711, o reino visigótico enfrentava conflitos internos e o rei eleito, Rodrigo, era contestado por outras fações. Segundo o que se conta, um governador do sul da Hispânia, supostamente descontente com o resultado, terá feito um apelo aos muçulmanos do Norte de África para entrarem no território peninsular, para derrotarem a monarquia visigótica e elegerem-no a ele ou a alguém da sua fação. O que se sabe é que os árabes – nós dizemos árabes, mas na verdade grande parte do exército era composto por berberes, o que rigorosamente não é a mesma coisa – invadiram a Península Ibérica, derrotaram os visigodos e ficaram. Ocuparam toda a Península, excepto uma pequena parte no extremo norte da Ibéria, que corresponde, mais ou menos, às Astúrias.

    Foi, então, um processo mais pacífico do que se pensa?

     Sim, actualmente, alguns historiadores defendem que não se pode chamar bem uma “invasão”, e que houve a continuidade de um relacionamento estreito que haveria entre as elites peninsulares e as árabes, tudo integrado no sistema comercial do golfo luso-hispano-marroquino. Mas são interpretações. Efectivamente, em 711, dá-se a ocupação muçulmana da Península Ibérica, que foi relativamente rápida. Uma conquista rápida, de dois ou três anos, o que para a época, e para um território tão extenso, é muito rápido.

    E como herança, deixaram mais do que apenas as palavras começadas por “AL”, que se sabe que derivam do árabe. Mas não parece saber-se, de modo geral, muito mais do que isso. Acha que o conhecimento dos portugueses sobre o que herdámos dessa ocupação é substancial?

    Não se sabe muito, porque entre nós, como acontece com todos os povos, de facto o conhecimento da História não é muito pormenorizado, é superficial. Esquecemos aquilo que aprendemos na escola. Repare: a ocupação muçulmana da Península Ibérica dá-se, em termos práticos, no 7º ano de escolaridade. Há quanto tempo é que fizemos o 7º ano, não é? Na verdade, os muçulmanos deixaram-nos bastante. A começar, como disse, pela toponímia, por muitas vilas, aldeias e cidades começadas por AL, mas não só. Faro, é outro exemplo. Arroz, azeite, taracena, armazém… são tudo palavras de origem árabe.

    E em tecnologia…

    Sim. Deixaram-nos, também, importantes conhecimentos materiais ao nível das ciências e das técnicas, como a nora e o açude, ou de irrigação. Em termos científicos, os muçulmanos estavam muito à frente dos cristãos do seu tempo. Na Medicina, na Geografia, na Cartografia. Conhecimentos que, mais tarde, nos foram tão importantes nos Descobrimentos. Claro que as técnicas vão evoluindo, e as que temos hoje apenas remotamente se filiam nessas tecnologias que, para a altura, eram avançadas. Hoje, temos a computação, as tecnologias da informação e a robótica, mas não pensamos que, na base disto tudo, está a numeração árabe, que os árabes trouxeram e adaptaram da Índia, e à qual acrescentaram coisas tão revolucionárias como, por exemplo, o zero. Eu não sou da área, mas pergunte a um informático, se o zero não tivesse sido inventado, o que era feito dos computadores? Portanto, esse conhecimento árabe medieval está na origem de muito do que nós hoje temos.

    Se a herança árabe é tão significativa, deverá haver mais motivos para que não seja tão reconhecida.

    Sim, outra coisa que também contribuiu para o olvido, para esse esquecimento, é o facto de que, durante algum tempo, se considerou, numa certa historiografia nacionalista, imperial e colonial, ligada ao Estado Novo, que Portugal tinha sido construído por santos e heróis, de espada numa mão e de cruz na outra. E não foi assim. Isto tem imensas nuances, como todos sabemos. E na Reconquista também houve muitas nuances, muitas alianças entre cristãos e muçulmanos contra outros cristãos e muçulmanos. Mas quis dar-se um pouco a ideia de que, na sua génese, Portugal era uma nação de nós contra os outros. Ou seja, nós, os cristãos, e os outros, os infiéis.

    Ser infiel depende da perspectiva, certo?

    Sim, é sempre caso para perguntar, infiéis a quem? Aliás, curiosamente, no auge da Reconquista, alguns textos árabes também falam nos cristãos como os infiéis. Isso foi criando o mito de que Portugal se fez contra os mouros, quando a realidade é muito mais complexa. Outra coisa que não ajuda, é haver hoje tantas notícias ligadas ao fundamentalismo islâmico que, sendo muito minoritário, dá imensamente nas vistas. Essas imagens fixam-nos e criam de algum modo, talvez subconscientemente, um afastamento, entre nós e aquela versão muito radical do Islão. Todo este caldinho faz com que haja a ideia de que a herança muçulmana é uma coisa muito distante. Cronologicamente, é. Não será, contudo, uma coisa muito difusa e vaga, porque vem até aos nossos dias. Quando nós estamos, por exemplo, a comer alguns pitéus, sobretudo no Sul, mas não só, há que pensar no contributo que os muçulmanos deram para aquilo que nós estamos a saborear.

    Já abordou, noutras entrevistas, alguns mitos difundidos sobre a Idade Média e que se mantêm até hoje. Pode dar-nos alguns exemplos?

    Deixe-me começar a resposta com uma provocação. Já pensou no termo “Idade Média”? “Médio” refere-se ao que está no meio. Logo aqui, há, à partida, um preconceito. Está no meio de quê? Está entre a Antiguidade Clássica, Grécia e Roma, e o Renascimento. O termo é cunhado muito tempo depois da Idade Média ter acabado. Quando os renascentistas começam, já no século XV e XVI, a criar a dinâmica do Renascimento, e fazem uma coisa que é muito comum: para se afirmarem, disseram mal dos que vieram antes. É um bocadinho como os adolescentes que começam a depreciar os pais, porque o pai é velho, tem a mania que sabe e passa a vida a dar conselhos, e a mãe é uma chata porque quer que o miúdo ande com casacos à noite. Então, começa a ser criado o termo Idade Média, que é uma época associada a barbárie, obscurantismo, repressão inquisitorial e dos direitos das mulheres, queima das bruxas, tudo isso.

    Sérgio Luís de Carvalho é autor de 13 romances e de 21 outros livros, sobretudo de História e divulgação histórica.

    Não foi bem assim?

    Não. Por acaso, os renascentistas até omitem que só tiveram conhecimento daquilo que os clássicos gregos e romanos escreveram, fizeram e pensaram, através dos textos que, durante a Idade Média, milhares e milhares de monges copiaram à mão. Porque se não tivesse sido assim, como é que os livros de Platão, de Aristóteles, de Ovídio, de Horácio e de Heródoto, chegariam aos renascentistas? Eles não os foram buscar ao Google. Todos esses livros foram copiados à mão por monges nos seus mosteiros, como se vê em o Nome da Rosa [romance de Umberto Eco], por exemplo. Depois, para se afirmarem, tiveram necessidade de representar aqueles que antes deles viveram como uma cambada de burros, ignorantes e selvagens. Esta imagem, obviamente, é muito exagerada. É verdade que a Idade Média é uma época materialmente dura, sobretudo na primeira metade. Depois, a coisa muda. O crescimento das cidades faz-se, bem como do comércio, surge a burguesia e a cultura cortesã, a cultura de cavalaria… Mas associamos sempre à Inquisição e à queima das bruxas. Aquilo que é curioso, porque tanto em Portugal como em Espanha, a Inquisição só aparece após a Idade Média. Os grandes autos-de-fé que associamos à queima dos hereges também vieram depois. E, imagine-se, em Portugal nunca se queimou nenhuma bruxa.

    A queima das bruxas é, de facto, uma das concepções mais comuns que se tem da Idade Média…

    E há mais. A mulher tinha, na Idade Média, mais direitos do que posteriormente. Por exemplo, na Época Medieval, quando casava, a mulher conservava os seus bens de família, não se misturavam com os do marido. Em casos de violação, desde que fosse uma mulher considerada honrada e de pública boa-fama, e se fizesse a queixa logo a seguir ao acto da violação, a palavra dela era considerada como suficiente para acusar o seu violador. Entre outras coisas. É certo que a Idade Média foi uma altura complicada, mas todas foram. Até vou dizer uma coisa que é uma provocação. Quando havia as fomes cíclicas, isso acontecia porque eles não tinham meios materiais para alimentarem toda a população. E, hoje em dia, ainda há fome no mundo, e temos meios para lhe pôr fim. Então porque é que não pomos? Porque se calhar, por exemplo, muitas vezes, alguns países queimam produtos alimentares para lhes manter o preço. Portanto, qual é a superioridade moral que nós temos para acusar pessoas que tinham de facto problemas, numa época dura?

    Há alguma ideia, de todas as que “desconstrói” sobre a Época Medieval, que costume causar uma maior perplexidade nas pessoas?

    Posso-lhe dar o famoso exemplo do direito de pernada, que é uma das coisas mais míticas de que a Idade Média é acusada. Era um alegado direito que os senhores feudais tinham que consistia em poderem dormir com as noivas dos seus vassalos antes do casamento. É algo que, a todos os títulos, nos parece horrível, e é. Deu origem ao filme Braveheart, e não só. Mas aquilo que é engraçado é que o direito de pernada, criado também em latim como jus primae noctis, nunca existiu. Existia, sim, um acto simbólico em que o senhor feudal, na véspera do casamento do seu vassalo com a respectiva noiva, colocava a sua mão na perna do leito nupcial. Com esse gesto, queria dizer que estendia à noiva, e à sua descendência, o dever de protecção. Os senhores feudais eram obrigados a proteger os seus vassalos. Protegê-los militarmente, quase como uma polícia. Mas, como é que isso passou a ser interpretado? “Ah, o homem queria era dormir com a noiva!”. Portanto, é assim que aparecem estes mitos e se criam estas ideias. Na História, é muito fácil isto acontecer.

    Os romances de Sérgio Luís de Carvalho perpassam a História desde a Idade Média até ao século XX.

    E como é que um historiador “destrinça” a informação para que se chegue à verdade, no meio de tanta subjectividade, mitos e lendas?

    A única forma de um historiador combater preconceitos é através da publicação dos seus artigos, dos seus estudos, e pô-los à venda. Não querendo fazer publicidade dos meus livros, há dois anos publiquei um livro chamado Portugal na Idade Média onde saliento que esta época não foi um paraíso, como alguns românticos do século XIX pensaram, nem foi o inferno que alguns filósofos do século XVIII imaginaram. É algures uma coisa no meio. Não há épocas paradisíacas nem infernais. Entre o preto e o branco, há muitas cores. Portanto, os historiadores podem publicar as suas conclusões. Mas se um filme como o Braveheart, em que esses mitos são reproduzidos, é visto por milhões de pessoas, e os livros dos historiadores sobre a Idade Média são apenas lidos por centenas, as armas são um pouco desiguais.

    Pode dizer-se que vivemos numa época crítica, tivemos a crise sanitária, agora a guerra na Ucrânia, a inflação… Como historiador, como vê o momento presente?

    Aquilo que estamos a viver não é nada de novo, é a continuidade do que já vivíamos antes. Sem querer transmitir uma ideia de determinismo, acho que o que está a acontecer já vem de algumas décadas atrás. Mais especificamente, do pós-Segunda Guerra Mundial, que por sua vez já viera do pós-Primeira Guerra. Há historiadores que dizem, e na minha opinião com razão, que há três guerras que estão interligadas: a Guerra Franco-Prussiana da segunda metade do século XIX, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria veio no seguimento da segunda Grande Guerra.

    Há um contínuo…

    Vem tudo dessa continuidade, das lutas entre potências, entre superpotências que não querem deixar de ter hegemonia, e que estão a opôr-se a outras que podem estar a crescer. É tão simples como isto. Há um filme chamado Reds, muito curioso, com o Warren Beatty e com a Diane Keaton, da década de 70. Conta a história de um grande jornalista americano chamado John Reed, que viveu a revolução russa de 1917 e escreveu uma das obras mais importantes de jornalismo, 10 dias que mudaram o mundo. Reed era marxista e em 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e entraram na Segunda Guerra Mundial, dá uma conferência em que lhe fazem a seguinte pergunta: “caro John Reed, porque é que os Estados Unidos vão entrar na guerra?”. Esperava a pessoa que o questionou que ele desse os motivos “oficiais”, como a luta pela liberdade, pela libertação da Europa, o ataque ao despotismo e à ditadura, enfim, o que se diz. Ele levanta-se e responde “lucros”. Na altura, achou-se que ele estava a ser pouco patriota.

    O patriotismo é sempre apresentado como argumento, e não o dinheiro…

    Curiosamente, depois da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos foram de facto quem mais lucrou com o conflito, tornando-se na maior potência mundial e substituindo, por exemplo, a Inglaterra. E no fundo, não é isso que sucede? Os governos estão sempre a falar em princípios, em ideias e actos éticos e morais, mas aquilo em que estão a pensar é em interesses. E se nós temos toda a razão para desconfiar um bocadinho das pessoas, porque é que não havemos de desconfiar dos governos e dos estados? John le Carré, que foi agente dos serviços de espionagem ingleses, e no final da Guerra Fria viu um clima de euforia, de que tudo ia correr bem e que a democracia liberal ia triunfar, escreveu um artigo muito pessimista, que conclui com esta frase: “é inútil, todos os governos mentem e os jornalistas dizem sempre mal os nossos nomes”.

    Mesmo assim, ainda há muitas pessoas que vêm os governos como confiáveis?

    Há, há de tudo. Eu suponho que tem tudo a ver com a atitude que temos perante as coisas. Entre acreditarmos em tudo aquilo que nos dizem e não acreditarmos em nada, não sei qual das atitudes é a mais insensata. Se acreditamos em tudo o que nos dizem, acho que vamos ter imensos problemas em escolher um shampoo, por exemplo, porque na televisão todos são excelentes. Se não acreditamos em nada, também teremos muitas dificuldades em comprar um shampoo, porque partimos do princípio de que todos são maus.

    Tem de se encontrar um equilíbrio?

    Sim, e acho que temos de ser críticos. Mesmo que as nossas opiniões possam ir, muitas vezes, contra o pensamento dominante, como acontece hoje. Actualmente, temos pensamento dominante em relação a tanta coisa… como em relação à Guerra da Ucrânia, por exemplo. E, portanto, temos, com a informação disponível, que é muitas vezes incompleta ou adulterada, de ter cautela e avaliar por nós mesmos. E deve ser assim com tudo. Não me parece que o Mundo vá melhorar. Até porque, hoje em dia, o ser humano tem meios para tornar as coisas muito piores. A Inquisição matava judeus, mas havia duas coisas: primeiro, se o judeu se convertesse, não o matava, e eu sei que isto é cínico e cruel. Mas, em todo o caso, havia uma escapatória, que era o próprio judeu ser também cínico. Segundo, a Inquisição não tinha meios de os matar a todos. Passaram-se os anos e vieram os nazis, que já tinham meios técnicos para os matar a todos. E os judeus, aí, não tinham escapatória. Não valia a pena um judeu mudar de religião, continuaria a ser judeu. Nós hoje temos tecnologia para destruir a Terra várias vezes. Coisa que há duzentos ou há trezentos anos, com a mesma maldade humana e com a mesma ganância, não se tinha. Por isso, é difícil ser optimista e esperar que o futuro venha a melhorar. Mas temos, e devemos ter sempre, a necessidade de acreditar em alguma coisa. Infelizmente, acho que a ignorância e a ganância cada vez têm mais meios para crescer, mas temos de continuar a fazer a nossa parte.

    Em nome da luta contra o racismo, algumas pessoas têm defendido, por exemplo, que se deitem abaixo certos monumentos. Como é que vê a “cultura de cancelamento” na História, que alguns movimentos têm defendido, e que parece estar a ganhar terreno?

    Vejo a cultura de cancelamento e o politicamente correcto com sincera preocupação. Primeiro, pelos efeitos que isso traz. Não tenho palavras para essa história do “cancelamento”, quer dizer, “cancelar-se” a J.K. Rowling por ter dito o que disse… mesmo que fosse um absurdo ou um disparate total, que para mim não foi, não vejo qualquer motivo para um acto de censura. Porque é censura. Um grande escritor alemão disse, no século XIX, que quando se começa a queimar livros, acabamos a queimar pessoas. Veja-se o que fizeram depois os nazis. E fico sempre muito preocupado quando vejo esta gente do politicamente correcto a “cancelar”, proibir, censurar, deitar abaixo estátuas… esquecendo-se que aquilo que as pessoas, noutras épocas, pensavam, era diferente daquilo que eles hoje pensam. Esquecendo-se que daqui a uns anos, umas décadas, outras pessoas irão, também, olhar para trás, para achar que o que eles estão a fazer agora também está ultrapassado, e que deverá ser “cancelado”.

    Há paradoxos no politicamente correcto, não é?

    A “cultura do cancelamento” é um acto censório e repressivo em si. E repare na contradição. Pessoas que dizem querer combater o preconceito, a repressão e o obscurantismo, como é que agem? Com repressão, com cancelamento e com censura. Depois, preocupa-me que isto se volte contra as causas que essas pessoas dizem defender. Por exemplo, dizem que são a favor da igualdade de género, muito bem, eu também sou. Dizem que são contra qualquer manifestação xenófoba ou racista, excelente. Mas ao fazerem isto com este exagero, leva a que as pessoas se afastem das ideias que eles defendem. E mais, estão a dar munições àqueles “reacionários” para quem a igualdade de género ou o antiracismo é algo a combater. Essa gente está a ser “municiada” com este extremismo do politicamente correcto. O que significa que esses movimentos da “cultura do cancelamento”, sempre que são levados ao extremo, são contraproducentes. Então, por um lado, são movimentos repressivos, o que é condenável. E, depois, põem certas pessoas mal-intencionadas “municiadas” contra eles. No fundo, dão mau nome a causas meritórias, fazendo com que as pessoas os considerem extremistas e não se queiram juntar a eles.

    Lisboa Árabe integra uma (por agora) trílogia constituído também por Lisboa Judaica e Lisboa Nazi.

    É correcta a dicotomia de que o povo europeu foi, historicamente, o “vilão” e o carrasco, e que os outros povos foram apenas “vítimas”?

    Se nós observarmos a História e virmos aquilo que foram os muitos crimes perpetrados pelo homem branco, podemos dizer que houve actos de vilania, como a escravatura e a exploração de muitos recursos naturais em vários continentes. Mas eu aqui ponho duas questões: primeiro, os povos não-brancos eram santos e anjos? Não sei se podemos ver a coisa assim. Os astecas não eram seguramente, também praticavam a escravatura e o homicídio como ritual. Os escravos que os brancos foram buscar a África eram, normalmente, fornecidos por tribos africanas que caçavam congéneres seus pelo lucro. Então, o que é que homem branco tinha, que os outros não tinham? Meios. Eu não faço História alternativa, mas vamos pôr a coisa assim: imaginemos que outros povos, que não o europeu, tinham os mesmos meios que os europeus para colonizar os outros continentes. Será que teriam agido melhor? Já havia escravatura em África, e nas civilizações pré-colombianas na América Latina. E na Ásia, não havia escravatura antes da chegada dos europeus? Não havia já uma cultura de ocupação de territórios e guerras, na América do Sul, em África, ou na Ásia, antes dos europeus chegarem? Claro que havia! Claro que havia escravatura, agressão, e até fenómenos entretanto desaparecidos no Ocidente, como a antropofagia. Portanto, mais uma vez, digo, entre o preto e o branco há muitas cores. Entre o ónus da culpa de uns e da inocência de outros, não vou por aí. Temos é de assumir aquilo que foi feito de bom, e aquilo que foi feito de mau. Todas as culturas, civilizações e povos tiveram grandes momentos de brilho e grandes momentos de trevas.

    Hoje ainda existe escravatura em vários países… a China, por exemplo, tem campos de concentração para muçulmanos.

    Sim, a escravatura ainda existe, e a China tem campos de concentração. A Espanha teve campos de concentração até à década de 60, durante a ditadura franquista, e foi o país europeu que os teve durante mais tempo. E existem muitos campos de detenção ilegais por esse mundo fora. Estou-me a lembrar, por exemplo, de Guantánamo, onde há indivíduos que são detidos durante várias décadas sem culpa formada. Há campos de detenção onde pessoas foram e são torturadas ainda hoje, por países que se arrogam da prática dos direitos humanos, e que permitem que aliados seus pratiquem aquilo. Isto, para além de muitos estados totalitários e ditatoriais que também hoje continuam a maltratar e a torturar prisioneiros seus.

    E, para terminar numa nota mais positiva, o que é que acha que Portugal fez de melhor? O que é que destacaria do legado português?

    Vai-me perdoar, mas vou começar de uma forma um bocadinho pícara e não quero de todo ser mal interpretado. Há uma frase muito engraçada, que já ouvi no Brasil várias vezes, que é: “a melhor coisa que o português deixou no Brasil foi a mulata”. Esta frase tem uma ideia curiosa por trás, que é a ideia de mistura. Os colonizadores do Norte da Europa não se misturavam com os nativos, não havia essa cultura. Um inglês reproduzia, nas suas colónias, desde a Índia à África do Sul, os seus padrões culturais. Como vestir um smoking para jantar. Eu acho que, com muitas coisas boas e más que os portugueses fizeram, há uma cultura, uma língua e um património que foram deixados. Eu gosto particularmente disto, da capacidade dos portugueses de se juntarem a várias culturas, esse melting pot, em que misturamos a cultura nativa com a cultura europeia. A “mulata” é essa alegoria. Os portugueses, de facto, misturavam-se fisicamente com os nativos. Coisa que os outros povos não faziam tanto. Contudo, o mito de que a colonização portuguesa foi melhor do que as outras, não é bem assim. Mas eu acho que essa noção de mistura e de troca parece-me ser particularmente interessante no caso português, é algo que me agrada, essa capacidade de adaptação. E nós vemos isso. Um português é timorense em Timor, é ugandês no Uganda, é marroquino em Marrocos, é alfacinha em Lisboa e tripeiro no Porto. É uma coisa incrível!

  • Entidade Reguladora para a Comunicação Social demora dois anos para advertir SIC sobre falta de rigor informativo

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social demora dois anos para advertir SIC sobre falta de rigor informativo

    No Verão de 2020, quando as mortes por covid-19 rondavam as três por dia, as televisões mantinham notícias em tom alarmista. A SIC chegou a manipular um gráfico sobre a causa das mortes e nem referiu a fonte de informação. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social demorou dois anos a deliberar sobre o assunto.


    Para advertir a SIC “para a necessidade de cumprir escrupulosamente com os deveres de rigor informativo”, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) demorou quase dois anos.

    A deliberação, hoje divulgada no site do regulador, mas aprovada em 15 de Junho passado, deu resposta à queixa de um telespectador sobre uma peça transmitida no Jornal da Noite de 26 de Junho de 2020 em que foi apresentado um gráfico com várias causas de morte a nível mundial. A notícia alegava que a covid-19 teria ultrapassado a malária no número de vítimas mortais, mas mostrou um gráfico ao qual tinham sido retiradas causas de morte mais relevantes para sobrevalorização relativa da covid-19.

    SIC, que tem um programa em parceria com o Polígrafo, admitiu que manipulou um gráfico e não apresentou a fonte de informação.

    A SIC sustentou que a sua opção editorial teve em conta “os alertas constantes de várias organizações mundiais para a necessidade de não se abandonar a luta contra” a covid-19, mostrando-se assim “essencial uma prestação gráfica de informação que representasse tal realidade de forma clara e sucinta, uma vez que o abandono de comportamentos preventivos poderia significar um aumento superior a 50% na média anual de mortes provocadas pela malária.” (sic)

    Embora a notícia em causa se referisse apenas ao período entre 1 de Janeiro e 20 de Junho do primeiro ano da pandemia, o denunciante argumentou que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), nem a malária, nem a covid-19 constavam ainda das 10 doenças com maior taxa de mortalidade a nível global. Em sua defesa, a SIC alegou que a peça em questão “nunca teve como principal escopo uma representação exaustiva e abrangente das causas de morte em todo o mundo”.

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    Saliente-se, contudo, que o canal televisivo assumiu ter ocultado da sua análise algumas causas de morte relevantes, como “envenenamentos, suicídios, tuberculose, doenças cardiovasculares […], acidentes rodoviários ou doenças gastrointestinais”, de modo a “evitar constrangimentos gráficos e de leitura de informação”.

    Apesar de terem sido necessários dois anos para que a ERC emitisse uma deliberação, o regulador considera que a SIC cometeu apenas uma falha: não ter identificado “qualquer fonte de informação para os dados que apresent[ou]”. Com efeito, somente a 15 de Junho passado, quando a generalidade dos países tinha já abandonado a maior parte das restrições sanitárias e o SARS-CoV-2 já era tido como uma ameaça menor, veio aquela entidade advertir o canal denunciado para a “necessidade de cumprir escrupulosamente com os deveres de rigor informativo”.

    Destaque-se que, em 2020, a covid-19 foi a causa atribuída a quase cerca de 1,9 milhões de mortes, ou seja, um pouco mais de 3% do total a nível mundial. Antes da pandemia, as doenças cardíacas representavam a principal causa de morte a nível mundial (8,8%) à frente dos acidentes vasculares cerebrais (6,2%) e das doenças respiratórias das vias inferiores (3,2%) da doença pulmonar obstructiva crónica (também 3,2%).

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    A covid-19 aumentou, entretanto, o número de vítimas sobretudo nos primeiros meses de 2021. Segundo os registos oficiais, em cerca de dois anos e meio morreram por causa atribuída ao SARS-COV-2 cerca de 6,4 milhões de pessoas a nível mundial, ou seja, aproximadamente 4% de todas as mortes durante este período.

    Em Portugal, o impacte foi mais elevado (8,3%), resultante de 24.346 óbitos por covid-19 num total de quase 295 mil mortes por todas as causas desde o início da pandemia. No entanto, continuam sem ser revelados os dados em bruto do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) que podem ou não confirmar estes valores.

    Texto editado por Pedro Almeida Vieira