O inédito Memória de Simeão Boa Morte e Outros Contos Poéticos, do escritor brasileiro Lourenço Cazarré, é o grande vencedor da 5ª edição do Prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro, foi ontem anunciado. O galardão, atribuído em parceria com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, pretende distinguir portugueses e lusodescendentes a residir no estrangeiro. Além de um valor pecuniário (5.000 euros), Cazarré terá esta obra premiada publicada pela chancela da Imprensa Nacional.
Nascido em 1953 na cidade brasileira de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Lourenço Cazarré descende de portugueses de Cinfães, uma vila do distrito de Viseu. Os seus avôs emigraram para o outro lado do Atlântico na transição para o século XX. É pai do actor Juliano Cazarré.
Autor de quase meia centena de livros, entre romances, novelas e contos, a sua obra tem sido distinguida no Brasil com vários prémios, dos quais se destacam o Prémio Jabuti de Literatura Infanto-Juvenil (Nadando contra a morte, 1998), o Prémio Biblioteca Nacional (Os filhos do deserto combatem na solidão, em 2018) e o Prémio Paraná de Literatura (Kzar Alexandre, o louco de Pelotas, em 2018).
Lourenço Cazarré
Em 2009, Lourenço Cazarré publicou também ao romance A misteriosa morte de Miguela de Alcazar, que ‘convoca’, como personagens, diversos escritores de livros policiais, e onde se destaca um português, o gerente do hotel onde ocorre um homicídio. Esta obra está agora a ser reescrita em parceria com o director do PÁGINA UM, o também escritor Pedro Almeida Vieira, e publicada em folhetim aos domingos.
Lourenço Cazarré tem também colaborado no PÁGINA UM com diversos textos e ensaios, prevendo-se para breve a publicação de uma resenha sobre um livro de crónicas de Eça de Queirós.
De acordo com o comunicado de imprensa, o Prémio Imprensa Nacional/Ferreira de Castro, além de homenagear a figura incontornável e exemplar de Ferreira de Castro, pretende reforçar os vínculos de pertença à língua e cultura portuguesas, estimular a participação de portugueses residentes no estrangeiro e lusodescendentes, prestando, assim, às comunidades portuguesas dispersas pelo mundo o justo reconhecimento pelas atividades que desenvolvem nos seus países de acolhimento.
Concorreram à 5ª edição deste prémio um total de 69 candidaturas provenientes da Bélgica, Reino Unido, Estados Unidos da América, Cabo Verde, Brasil, França, Irlanda, Suíça, Espanha, Canadá, Sri Lanka e Portugal.
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Neste nosso cantinho da Europa Ocidental, com a profusão das democracias liberais e as garantias dos “direitos humanos”, habituámo-nos a uma ideia de paz permanente e cooperação. Essa será uma das razões que explica o progressivo desinvestimento nas Forças Armadas, sendo que também contribuirá certamente a crescente rejeição de quaisquer sentimentos ‘nacionalistas’ ou patrióticos.
Muitos românticos acreditam até que não precisamos de Forças Armadas, que os conflitos bélicos são uma expressão de masculinidade tóxica, e o simples desejo de vivermos todos em paz e harmonia é suficiente para este cenário se concretizar. Idealistas, têm dificuldade em entender que, infelizmente, o conflito, por vezes beligerante, é um fact of life. Em suma: sem prejuízo de tudo ter de ser feito para evitar a tragédia da guerra, tudo deve ser feito também para, no caso de nos bater à porta, sermos capazes de nos defender.
Sucede que a soberania nacional soçobrou, de várias formas. Portugal quase se tornou num país ‘satélite’ da União Europeia. Neste lugar tão pacato como irrelevante à escala internacional, as Forças Armadas foram sendo preteridas, deixadas para segundo plano. Mas sinais de alarme e gritos de socorro têm-se vindo a amontoar, embora sem efeito, caindo nos ouvidos moucos dos últimos Governos. O mais recente tomou a forma de uma carta de nove páginas enviada, esta quarta-feira ao Presidente da República, por oficiais-generais do Grupo de Reflexão Estratégia Independente (GREI), a denunciar a “insustentável situação dos militares das Forças Armadas”. Recorde-se que no último dia de 2022 o número de militares do Exército, Força Aérea e Marinha registou um mínimo histórico, com apenas 21.080 efectivos – um pouco abaixo do número de oficiais da Guarda Nacional Republicana.
No documento, apontaram a “falta de pessoal” como o maior problema, entendendo ser um reflexo da perda dos direitos dos militares nos últimos Governos, a falta de progressão nas carreiras e as baixas remunerações. E fazem uma observação bastante sibilina: “até parece que o objetivo prosseguido é depauperar as FFAA [Forças Armadas] dos seus recursos humanos, deixá-las esgotarem-se e, assim, exauridas, chegarem à extinção”. Palavras certeiras. De facto, parece mesmo haver dolo e uma intenção clara no sentido de enfraquecer as Forças Armadas. Numa Europa que ‘comanda as operações’ a partir de um núcleo reduzido em Bruxelas, até já discutindo a criação de um exército europeu, e se Portugal já abdicou de grande parte da sua soberania, para que precisa de uma Defesa robusta e pujante?
O escárnio recorrente e a aversão a demonstrações de força, que encontra o seu apogeu nos discursos de autoflagelação, penitência e culpabilização pelo nosso passado, têm como consequência natural a desvalorização das Forças Armadas. É certo que quase todos os sectores, em Portugal, estão na mó de baixo, e este dificilmente poderia fugir à regra. Mas, apesar disso, há uma evidente e concertada acção que visa a desmoralização dos nossos militares.
Os exemplos são abundantes. Começo por um que me indignou sobremaneira, sendo eu filha de um militar da Força Aérea: a nomeação de uma “socióloga” como Ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras – a “primeira mulher” a ocupar o cargo. Quisesse alguém humilhar as Forças Armadas, teria dificuldade em fazer uma escolha que melhor manifestasse essa intenção. Sim: a nomeação de Helena Carreiras foi uma flagrante humilhação.
Esta opinião pode ser impopular num ‘Ocidente’ – é apenas o Ocidente que o faz – que finge acreditar que homens e mulheres são “iguais”, e que partilham exactamente das mesmas apetências, capacidades e inclinações, mas a biologia importa-se pouco com a ideologia de cada um. A ideologia da “igualdade de género”, que pretende uma paridade absoluta, é não só contrária à natureza dos sexos; é incompatível com a criação de uma superpotência militar.
E, claro, Helena Carreiras distingue-se pela sua preocupação com as “questões de género” nas instituições miliares e a “integração das mulheres”, áreas em que concentrou a sua investigação. Em Novembro passado, chegou a falar na existência de um “machismo estrutural” nas Forças Armadas – um discurso woke e absolutamente patético, que me envergonha e repugna como filha de um militar. A senhora ministra está mais preocupada em impregnar o seu activismo feminista nas entidades que tutela, do que em dignificar os profissionais que põem a sua vida ao dispor pelo país. Um circo pegado.
E sem 2020 os generais-oficiais do GREI já tinham alertado para o estado de “pré-falência” das Forças Armadas, algumas das medidas entretanto apresentadas pelo Ministério da Defesa para remediar a situação, foram menos do que meros ‘paliativos’.
A título de exemplo, as medidas apresentadas em Outubro de 2023, são cómicas, e quase trágicas. Com vista a aumentar o número de candidatos, desceu-se a exigência: os militares podem agora ser ‘minions’ de 1,54 metros, e algumas doenças crónicas já não bastam para excluir uma candidatura. Em cima da mesa, esteve também a abertura a estrangeiros, mas a ideia ficou, pelo menos por enquanto, em águas de bacalhau.
Tudo isto seria desnecessário, se houvesse uma valorização efectiva das Forças Armadas e do seu papel. Respeite-se aqueles que se colocam na linha da frente pela defesa da nação, honrando a sua coragem e abnegação – e não espezinhando a masculinidade, qualificando-a como “tóxica” -, ao invés de lançar acusações de machismo e dissertar sobre a igualdade de género na Defesa, e talvez os portugueses voltem a querer servir o país como militares.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Uma vez mais, a elite mundial encontra-se, esta semana, nos Alpes suíços, em Davos, para discutir o que será feito dos muitos milhões de almas cujas vidas estão à mercê desta pequena agremiação de líderes políticos e magnatas. É a reunião anual do “Fórum Económico Mundial”, criado pelo economista suíço-alemão Klaus Schwab em 1971.
Embora os olhos do Mundo devessem estar postos nesta cimeira, e o escrutínio sobre aqueles que por lá passam devesse ser implacável – porque são eles que, assemelhando-se a Deuses no Olimpo, tomam as derradeiras decisões que afectam todos nós -, a maior parte das pessoas não sabe nem sonha a dimensão do poder concentrado nestes “escolhidos”. Escolhidos, é uma maneira de dizer, pois constituem literalmente apenas um “punhado” não eleito de pessoas: este ano, o encontro contará com 2.800 convidados. Um número reduzido comparando com os cerca de oito mil milhões de pessoas a habitar o planeta, e sobre os quais os 2.800 participantes exercem um poder desmesurado.
Num vídeo de 2016, entretanto removido da sua página oficial (mas ainda disponível no Facebook), o Fórum Económico Mundial fazia oito previsões para o Mundo em 2030, e vaticinava que o cidadão comum “não terá nada e será feliz”, pois tudo será “alugado”. Tradução: abolição da propriedade privada.
Também se previa o fim dos combustíveis fósseis, e dos Estados Unidos como potência mundial hegemónica, e o consumo de carne apenas como um “regalo ocasional”. Tudo isto faria parte da construção de um “mundo melhor”. Atendendo ao poder desta elite para determinar os destinos do globo, convenhamos que estas não são ‘previsões’, mas planos traçados e já em marcha, conforme, de resto, nos vão informando as ‘notícias’ diárias. Ainda hoje, soubemos que a União Europeia tenciona acabar com os veículos com mais de 15 anos.
Não são poucas as ideias macabras já lançadas nestas cimeiras. Uma delas, envolvia o desenvolvimento de uma tecnologia que visa o registo da “pegada ecológica individual”. Trata-se de uma plataforma para inventariar tudo aquilo que comemos, consumimos, e os locais e a forma como viajamos. Um mundo onde cada passo que damos fica registado no ‘digital’ – é difícil imaginar uma distopia mais tenebrosa.
Reclamar-se a preservação da democracia é incompatível com uma atitude indiferente face a este projecto denominado “Fórum Económico Mundial”; um democrata só pode condenar a sua existência. Com efeito, aquilo que esta cimeira representa é uma obscena e antidemocrática concentração de poderes e uma medonha promiscuidade entre o poder político e o económico. Não importa que se vistam com pele de cordeiro, apregoando bandeiras agradáveis ao ouvido, como a erradicação da fome e a igualdade de género; é indefensável que as elites reunidas na Suíça tenham o bem colectivo em mente. Utilizam eufemismos para desígnios duvidosos, como a “luta contra a desinformação”, que, obviamente, irá desembocar na censura e na supressão da liberdade de expressão.
Como é tradição, os media noticiam o encontro com a leveza de quem faz um boletim meteorológico. De resto, mantém-se um registo idêntico ao dos artigos sobre a reunião do famoso grupo Bilderberg em Portugal em Maio do ano passado. Conferências aparatosas organizadas pelos mais poderosos do mundo, onde a política e o “Grande Capital” estão de mãos dadas (ou mais que isso), não fazem soar quaisquer alarmes aos “guardiões da democracia”. Nem suscitam ponta de desconfiança. Não. A cobertura noticiosa esgota-se num estilo ‘panfletário’. E depois, claro, ficam muito surpresos e de queixo caído, porque já ninguém compra jornais.
Dos partidos políticos, também não se ouve, por estes dias, uma palavra de desconfiança para com as figuras que esta semana aterraram em Davos – muitas delas em jactos privados, para depois dissertar sobre as alterações climáticas. Nem da ala direita, tipicamente mais sensível à defesa da soberania nacional, nem da ala esquerda, sempre mais vigilante com os poderes instituídos.
Não é nos “senhorios”, nem na classe média ou nos donos de alojamento local, amiúde alvos da ‘esquerda’, que reside o capitalismo malévolo e nocivo, mas nas instituições representadas pelas personalidades que aterram em Davos. Estes, sim, são os verdugos que nos manuseiam como marionetas, fomentando guerras, inflacção e crises económicas que resultam em transferências de riqueza estratosféricas.
Estas são as elites que cometem o ‘assassinato’, para depois fingirem o papel de agentes policiais. São os causadores de problemas, que, de seguida, se apresentam perante nós como portadores de respostas e soluções. No entanto, não é preciso muito para concluir que, longe de zelar pela ‘plebe’, aquilo que ambicionam é uma interferência crescente e cada vez mais ruinosa nas nossas vidas, sem sequer terem passado pelo ‘crivo’ eleitoral para esse efeito.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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LUÍSA COSTA GOMES, FILIPE HOMEM FONSECA, AFONSO CRUZ E MANUEL MONTEIRO
Editora (Edição)
Minotauro (Outubro de 2023)
Cotação
16/20
Recensão
Assim se faz Portugal, editado pela Minotauro (chancela da Almedina), nasce de um Podcast da TSF com o mesmo nome. Na verdade, este livro é a versão ‘encadernada’ dos episódios que foram para o ar, diariamente, entre Março e Julho deste ano. Em cada um deles, Maria Rueff disserta sobre o país, fazendo uso da sátira e a caricatura – algo que faz como ninguém –, à crítica social mordaz. Contudo, as palavras da humorista não são da sua autoria, mas sim dos quatro escritores que agora assinam este livro.
E se no programa de rádio, Maria Rueff empresta a sua voz aos textos deste ‘quarteto fantástico’, na versão literária ficou apenas encarregue do prefácio. Ou será que não ficou? Como o leitor rapidamente descobrirá, a prosa não é o seu dom, e é, assim, logo no prefácio que se introduz a tónica humorística, desenganando-se quem espera ler um texto escrito pela mão de Rueff.
Digamos que se Maria Rueff foi quem deu a voz na TSF, as ‘suas’ palavras não saíram de desconhecidos nem de ghost writers, mas vieram sim de um quarteto bem estabelecido no mundo nas Letras.
Luísa Costa Gomes é uma conhecidíssima escritora que dá cartas em estilos tão variados como os romances, crónicas e contos, tendo recebido alguns prémios, onde se destaca o Prémio de Ficção do PEN Clube.
Filipe Homem Fonseca, ao título de escritor soma ainda os de argumentista, dramaturgo, humorista, músico e realizador. Também já escreveu para diversos géneros de produções audiovisuais, desde séries de televisão a documentários, e é autor de dois livros de poesia.
Manuel Monteiro, que é um dos novos colunistas do PÁGINA UM [e, portanto, aqui se faz um disclaimer], é escritor e um destacado revisor linguístico, tendo criado a Escola da Língua. Um dos últimos livros que publicou debruça-se sobre um tema já por diversas vezes falado neste jornal, e chama-se Sobre o politicamente correcto. Para nosso deleite, recupera este assunto também neste Assim se faz Portugal.
Já a arte de Afonso Cruz é sobretudo a escrita de romances, alguns premiados, e dos quais se destacam as obras Para onde vão os guarda-chuvas e Jesus Cristo bebia cerveja.
Por tudo isto, e por este leque, Assim se faz Portugal é, sobretudo, tal como o programa da TSF que lhe corresponde, um livro de entretenimento caricaturando a sociedade portuguesa. Constitui um exercício de nos olharmos ao espelho e rirmo-nos; e que os autores fazem belissimamente, com inteligência, perspicácia, sagacidade. Como não poderia deixar de ser, sempre num português majestoso.
Com um sentido de humor afiado, estas reflexões incidem sobre as mais variadas questões sociais e culturais, ou até políticas; por vezes, todas estas dimensões, inevitavelmente, se misturam.
Garantindo que não existe da nossa parte qualquer favoritismo em relação a Manuel Monteiro por ser nosso colaborador, temos de lhe fazer justiça: as suas crónicas sobressaem pela pertinência, e, qual lufada de ar fresco, destoam da linha mais ‘politicamente correcta’ que perpassa por alguns dos outros textos. Eis o que ele escreve sobre a figura muito representativa de “O moderninho digital”:
“O moderninho digital não procura informação para formar ideias. Ele forma ideias para procurar informação. O moderninho digital é um ser espantoso: ele reproduz acriticamente o que ouve da sua tribo e simultaneamente jura que tem pensamento próprio”. (pág. 106).
Manuel Monteiro também se lança à “higienização em curso” que levou à recente censura, por exemplo, dos livros de Roald Dahl, e à qual não escaparam as palavras “mãe” e “pai”.
Quase nada ficou por passar a pente fino por este divertidíssimo quarteto. Desde a linguagem (e o linguajar), à inteligência artificial (e a estupidez natural), e da espuma dos dias às bizarrices dos seres humanos (e em particular dos portugueses, ou de algumas camadas da juventude).
Apenas se lamenta algumas ocasiões em que a crítica vai no sentido mais “fácil”, isto é, na linha do que convenciona a moral vigente. Um exemplo disso é esta passagem, pela mão de Afonso Cruz:
“Continuamos a assistir a inúmeras desigualdades cuja existência é vergonhosa. Nalguns casos, como a fome, a guerra e a miséria (…)”. (pág. 100).
Não é de chocar que o tema das desigualdades venha à baila quando se faz crítica social, mas não deixa de ser uma matéria tão ‘mastigada’, que se torna enjoativa; porquanto, este tipo de homílias sobre as injustiças e agruras da vida, já nós ouvimos todos os dias: na comunicação social, na política, e por essas redes sociais fora. Repisar estes assuntos quando se faz sátira é uma opção válida, mas não é irreverente; lembra os humoristas de hoje a condicionarem-se pelo discurso polido que alguns querem impor.
Em conclusão: foi uma ideia iluminada, a de ‘transformar’ a rubrica radiofónica numa versão a ser lida. Para quem ainda possa ter prendas de Natal em atraso, esta é uma sugestão sólida.
A ‘cadeira do poder’ de António Costa ainda está quente – tanto que ele ainda lá está, como primeiro-ministro em gestão –, e já vemos o seu primogénito, Pedro Tadeu Costa, a ser alavancado pela comunicação social para eventuais ‘voos’ altos na política portuguesa. Findo o Congresso do Partido Socialista (PS), depois de vermos Costa ‘filho’ na SIC Notícias no domingo à noite – como é sabido, o seu tio, Ricardo Costa, é Director de Informação da SIC – a fazer comentário em conjunto com a vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD), Inês Palma Ramalho, ontem podíamos vê-lo na CNN, frente a Margarida Bolseiro Lopes, vice-presidente da Comissão Política Nacional do PSD. Há pouco tempo, Pedro Tadeu Costa também já tinha estado na CNN a defender a candidatura de Pedro Nuno Santos à liderança do PS.
Mas, vejamos: quais os ‘títulos’ que acumula para ser posto a “debater”, nestas estações televisivas, com duas dirigentes do Partido Social Democrata? Pedro Tadeu Costa destaca-se agora, aos 33 anos, por ser presidente da junta de freguesia de Campo de Ourique (venceu as autárquicas de 2021 por apenas 25 votos, depois de uma juíza ter negado recontagem) e também deputado do Grupo Municipal do PS na Assembleia Municipal de Lisboa. Para além de, claro, ser filho do primeiro-ministro demissionário.
De imediato, surge a dúvida: quão comum é vermos presidentes de juntas de freguesia a fazer comentário político regular? Sobretudo, como se o seu estatuto comparasse com o das duas dirigentes do PSD?
Dizem alguns que o currículo do jovem (ou deveríamos antes chamá-lo D. Pedro I, da dinastia Costa?) fá-lo meritório do espaço recentemente adquirido nos media, onde opina de forma desprendida, como se o Governo do seu pai não tivesse arrasado o país. Mas se atentarmos às suas qualificações académicas e profissionais, concluímos que o ‘palco’ mediático que tem vindo a ganhar é desproporcional. Inevitavelmente, a sensação que fica é de estar-lhe a ser pavimentado o caminho para quando chegar o dia em que já esteja ‘maduro’, poder candidatar-se a altos cargos políticos, seguindo as pisadas do seu progenitor.
De facto, olhando para o seu percurso, vemos claras semelhanças entre Costa pai e Costa filho. Ambos se filiaram na Juventude Socialista com apenas 14 anos, e ingressaram na licenciatura de Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sendo que Pedro Tadeu Costa tem também uma pós-graduação em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação pelo ISCTE. No então, Pedro não tem inscrição na Ordem dos Advogados, presumindo-se que não se inscreveu ou não concluiu o estágio.
Pedro Tadeu Costa ‘transformou-se’ agora em comentador da CNN Portugal.
António Costa deu o seu primeiro salto na Política servindo na Assembleia Municipal de Lisboa. Pedro, por seu turno, começou a trabalhar como autarca na Assembleia de Freguesia de São Domingos de Benfica em 2013, passando para a Junta de Freguesia de Campo de Ourique em 2017.
Em entrevista recente, o ‘rebento’ de António Costa assumiu a sua preferência por Pedro Nuno Santos, em detrimento do seu próprio pai, para a liderança do partido. Faz sentido: a hipótese de integrar um executivo comandado pelo pai já está descartada, enquanto que, pelo novo secretário-geral, é uma hipótese cada vez mais palpável.
Poderia até pensar-se que Pedro Tadeu Costa sofre da típica vergonha dos adolescentes – pese embora estar já a caminho dos 34 anos – em relação aos pais. Mas a “vergonha” é um mal que não toca aos famosos ‘boys’ carreiristas do PS. Pelo contrário: se partilham os apelidos entre si como resultado dos laços familiares, o ‘descaramento’, a ‘arrogância’ e a ‘prepotência’ serão os seus nomes do meio.
E, se dúvidas houvesse, o Congresso deste fim-de-semana foi o teste do algodão quanto ao sentimento de impunidade e à prepotência que grassa no Partido Socialista. Durante dois penosos dias, assistimos a um deplorável espetáculo onde o lambe-botismo foi prato principal e onde os sabujos de António Costa não se coibiram de mostrar provas do seu respeito e lealdade incondicionais, branqueando o lastro de incompetência e destruição que foi o seu legado. Pelo meio, António Costa ainda fez o número do “mártir”, com a inenarrável tirada “podem ter-me derrubado, mas não me derrotaram”.
Costa, que parece crer-se uma espécie de Deus-Todo-Poderoso, pode fingir-se vítima da Justiça; mas, na verdade, é o carrasco dos portugueses. E, pelos vistos, não lhe basta: nos bastidores, os cordelinhos já estão a ser puxados para que o seu filho possa almejar, num futuro não muito distante, dar cabo do que reste do país.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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Como seria a autobiografia de Salazar, se existisse? Não sabemos, e apenas podemos imaginar. Foi o que fez Carlos Ademar, historiador, escritor e antigo inspector da Polícia Judiciária, que ‘encarnou’ o antigo chefe do Estado Novo e escreveu um livro de memórias na primeira pessoa. Mas com um twist. Nesta Autobiografia do doutor Oliveira Salazar, encontramos o ditador num estado vulnerável, perto do fim, a confrontar-se com o passado e com os seus fantasmas – que são muitos, e implacáveis. O PÁGINA UM falou com o autor sobre esta obra que alia factos com ficção, e que, apesar do título, tem um objectivo bem delineado, muito além do seu cariz biográfico: “destruir” o mito por trás do homem.
Sei que a ideia para este livro surgiu da Autobiografia do General Franco, de Manuel Vázquez Montalbán, lançada há uns bons anos. Durante este tempo, foi amadurecendo o “projecto”?
Sim; na verdade, o ‘clique’, digamos assim, foi-me dado pelo Montalbán, quando li essa obra, já para aí há uns 15 anos. Como é natural, eu não queria replicar totalmente a sua ideia. Aquilo que retirei foi confrontar o nosso “ditador-mor”, como eu lhe costumo chamar. E de facto tem razão, porque ao longo dos anos eu andei à procura de… também andei à procura de tempo, que não tinha [risos], porque é uma obra muito exigente em termos de pesquisa. E, portanto, não era coisa que se fizesse em três ou quatro meses. Precisava de muito tempo, e só agora há dois anos, quando mudei de estatuto profissional, é que passei à disponibilidade [risos]. Ainda não estou reformado, mas estou a caminho da reforma.
Como inspector da Polícia Judiciária?
Sim. Eu estava na Escola, no agora Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais. E dos vários projectos que tinha em mente, agarrei-me a este porque era o mais apaixonante. Foi aquele que me seduziu mais, não obstante o trabalho que teria pela frente. Ao longo dos anos, fui burilando a ideia, para arranjar uma forma de a trabalhar, e não replicar exactamente aquilo que o Montalbán fez. Ele pôs o general Franco a fazer o discurso oficial do regime, e eu também o fiz relativamente ao meu “Salazar A”. Depois, o Montalbán faz o contraditório do discurso. E eu encontrei aqui uma fórmula que acho que não me correu mal, modéstia à parte, porque me agarrei a um facto da vida real do Salazar, que tem a ver com aquele período de 1969/70. Ele fica doente em 1969, e está no hospital durante largos meses, e em Fevereiro regressa a São Bento, já não como Presidente do Conselho. Mas pensa que ainda é, e morre depois em Julho de 1970. Aquele é um período em que ele anda entre a lucidez e a perturbação. Tem momentos de lucidez, que lhe permitem dar entrevistas, designadamente a que deu ao jornalista do L’Aurore, em Agosto de 1969, e preparar com o seu próprio punho um pequeno discurso para dirigir aos portugueses por ocasião do seu 80º aniversário. E eu explorei esta fase da sua vida, colocando-o a fazer o discurso oficial quando está lúcido, e o contraditório quando está perturbado. Portanto, podemos dizer que temos uma autobiografia na verdadeira acepção da palavra, ainda que sempre com aspas, obviamente [risos]. Porque apesar de ser ficção, é sempre a personagem, Salazar, a escrever em ambos os discursos.
Sim. Biografias, já há várias de Salazar. Aliás, saiu agora uma recentemente, da qual soube já depois de publicar o meu livro. Mas há muitas, e há uma monumental que me serviu, de facto, de base de trabalho. Foi feita por alguém insuspeito, no sentido em que era um incondicional apoiante de Oliveira Salazar, e foi seu ministro dos Negócios Estrangeiros na década de 1960; estou a falar de Franco Nogueira. Franco Nogueira tem uma obra monumental de seis volumes grossos só sobre a vida de Salazar. E apesar de ser um seu admirador e da sua obra, não se coibiu de contar determinados episódios que não abonam muito a seu favor. Eu usei sobretudo os dois primeiros volumes da obra, que se reportam às primeiras décadas de vida, e particularmente o primeiro volume, que vai até ao momento em que ele chega a Ministro das Finanças, e não há assim tanta coisa escrita sobre esse período. Esse primeiro volume foi muito importante para encontrar determinadas histórias e episódios que me foram muito úteis para fazer o próprio contraditório; para contrariar o discurso social de Oliveira Salazar.
Nesse ‘contraditório’, Salazar é muito duro consigo próprio; como se se achasse uma fraude absoluta, desde a sua aparente modéstia às origens humildes. Para construir este monólogo interno, embora se trate de ficção, serviu-se de alguns factos? Há motivos para crer que ele se sentia assim?
Nós, obviamente, nunca saberemos, porque ele não deixou memórias. Deixou os seus discursos; mas relativamente a essa questão, nunca saberemos. Agora, do ponto de vista da pessoa interessada por este período e por esta personagem, pelo seu tempo e por aquilo que fez e não fez, penso que não é completamente descabido pensar que neste período, particularmente em 1969/70, em que ele estava muito abandonado… Ele, de facto, nos últimos dois anos de vida, viveu num mundo de fantasia. Havia ministros antigos dele que iam a São Bento pedir autorização para fazer uma viagem a Londres, por exemplo. Esta é uma história contada pelo Joaquim Vieira, se não estou em erro, no livro sobre a governanta de Salazar, a dona Maria. Salazar não diz nada, está naqueles momentos em que está em baixo, e é a dona Maria que se aproxima dele, lhe segreda algo ao ouvido, e depois diz ao ministro que está autorizado a ir a Londres. E ele está sujeito a isto. Digamos que não ‘enobrece’ muito uma pessoa chegar ao fim de vida e passar por estas situações.
Mas relativamente ao que me perguntou, eu não tenho dúvidas de que ele próprio, neste isolamento e solidão, se tenha debatido com determinadas coisas que fez ou que não fez. Sobre o facto de ele ser dissimulado, isso não há dúvida absolutamente nenhuma, e basta dar-lhe o exemplo do assassinato de Humberto Delgado. O livro do Fernando Dacosta, Máscaras de Salazar, fala neste episódio, e depois há o Joaquim Vieira, no livro sobre a Micas, que era uma das raparigas que foi viver lá para casa e manteve uma relação de proximidade com Salazar, que conta a mesma história. Portanto, digamos que há várias fontes que dão a mesma informação.
Em que caso, por exemplo, isso se observa?
No caso do assassinato de Humberto Delgado, há um telefonema que Salazar recebe na madrugada, pelas 2 hora ou 3 horas. Ninguém telefonava para São Bento a essa hora. E é a dona Maria que vai atender, e quem estava do outro lado era o Jorge Silva Pais, o director da PIDE. E ele diz que precisa de falar urgentemente com o senhor Presidente do Conselho. Entretanto, a dona Maria chama o doutor Salazar, e uma hora depois estão os dois sentados no gabinete a conversar sobre o que se terá passado naquele dia; coisa tão grave que levou, primeiro ao telefonema, e depois à viagem do Silva Pais a São Bento, e fez levantar Salazar e vestir a sua farpela, porque o recebeu de fato e gravata àquelas horas da madrugada. O que é certo é que Salazar ordena silêncio total sobre o assunto; não se fala nisso, acabou, não sabemos de nada. Entretanto, cerca de um mês e meio depois, os corpos do General Humberto Delgado e da sua secretária aparecem em Espanha e são identificados. E Salazar faz um discurso na televisão dirigido à Nação, dizendo que não sabe nada, e que a ‘nós’ não nos interessava a morte dele; a outros, sim, poderia interessar, mas ‘nós’ não sabemos nada. Ou seja, sobre o ser dissimulado que ele era, não há absoluta dúvida. Sempre foi assim. Aliás, a alcunha que o ‘Salazar B’ lhe aplica, muitas vezes, no livro, é o ‘Manholas’, que era a alcunha do pai dele, António ‘Feitor’. Feitor, porque era feitor da família mais rica entre Coimbra e Viseu, os Perestrelo. Mas ele, além de feitor, também era comerciante, e vendia propriedades num bairro que estava a nascer à volta da estação de comboios da CP de Santa Comba. Comprava e vendia terrenos, e a alcunha de Manholas vem daí. E depois, penso que é o Henrique Galvão que lhe adapta, e chama a Salazar o ‘Manholas filho’. E eu uso muito, porque de facto, se alguma coisa o caracteriza é isto. Era um ser muito dissimulado, calculista. Conhecia e sabia ler muito bem – enfim, mérito dele – os homens, e sabia muito bem o que fazer e o que não dizer. A gestão dos silêncios, tudo isto ele fazia muito bem, sempre com o objectivo de levar a água ao seu moinho.
Como foi o exercício de se colocar na ‘cabeça’ de Salazar?
A parte menos agradável foi fazer o discurso oficial. Mas até isso me deu algum gozo. O discurso oficial é baseado, naturalmente, nos seus discursos, ou de pessoas que estavam muito próximas; no fundo, eram as ideias defendidas e aplicadas pelo Estado Novo. Mas, sobretudo quando estava a rever texto, deu-me algum gozo porque quase que estava a ouvir a voz dele, aquela sibilante que ele tinha por ser de lá de cima da zona de Viseu. Mas muito mais gozo deu-me fazer o contraditório, como será bom de ver.
E porquê?
Porque eu sou um amante da liberdade e da democracia, e dá sempre algum prazer arranjar argumentos para destruir determinadas teses. E neste caso, não era muito difícil. Portanto, conseguir ‘destrunfá-lo’, desarmá-lo, e provar por A mais B que ele era mentiroso, aldrabão… Desde logo, tendo em conta o exemplo que lhe dei, e muitos outros episódios. Deu-me, de facto, muito prazer. Enfim, estamos a falar nisto e estão a aparecer-me algumas histórias e descobertas que eu fiz; quer dizer, quem tenha lido a biografia do Franco Nogueira sabia. Eu não sabia porque nunca a tinha lido e li-a de propósito para este trabalho. Mas descobrir que Salazar tinha sido um poeta, nos seus primeiros tempos de professor, e chegou até a publicar um livro de poesia. Eu dou alguns exemplos, que fui também buscar ao Franco Nogueira…
Essa é uma faceta pouco conhecida dele…
Pois é [risos]. E aquilo era tão mau [risos]. Ele era um escritor exímio, um grande prosador. Aliás, António José Saraiva tem um texto num extinto jornal, se não estou em erro, em que o elogia como um grande prosador da política portuguesa, talvez o maior, dizia ele. E isso é inquestionável. Mas depois vamos ver aquela poesia, e aquilo é uma coisa aflitiva, até. E desmascará-lo, colocar essa poesia aí, é interessante. Porque ele teve o cuidado, quando começou a perceber que podia vir a ter um futuro político – ele era um tipo inteligentíssimo, obviamente… Estava inserido no meio católico, e começa por fazer o seminário, como é sabido, e depois vai dar aulas para um colégio religioso em Viseu enquanto está à espera de ter idade para tomar as ordens maiores. Depois acaba por não as tomar, e vai para Coimbra para fazer o curso de Direito, e aí já está convencido de que o seu futuro não é ser padre. Ele achava que poderia ser muito mais útil à Igreja na vida política, do que propriamente na vida eclesiástica. E não quer dizer que tenha sido só ele a autoconvencer-se; o director do seminário e do colégio são pessoas com alguma influência na Igreja, e encaminham-no nesse sentido.
Quando ele chega a Coimbra, leva cartas de referência desta gente toda e é inserido no meio católico de Coimbra, que também era um meio muito forte, sobretudo a Universidade e a Faculdade de Direito, onde ele vai estudar. Rapidamente se destaca, e cá está a vertente “manholas” a vir ao de cima mais uma vez. E veja este exemplo. No primeiro ano em que chega a Coimbra, não tem praticamente contactos nenhuns em na política. Eu recordo que, quando ele chega a Coimbra, estávamos no início da Primeira República, instaurada a 5 de Outubro de 1910, e ele começa as aulas em meados desse mês. Como sabemos, a República caracteriza-se por um sentimento anticlericalista do mais feroz que possamos imaginar. E todo aquele núcleo católico une-se em torno de um inimigo comum, que é a República. No primeiro ano, ele não faz grandes contactos, é sobretudo estudar e aplicar-se para que, no fim do ano, quando as notas fossem conhecidas, ele entrar naquele meio já ‘por cima’; ou seja, não como um soldado raso, mas já um ‘oficial de topo’. Porque ao aperceberem-se das notas e do potencial daquela figura, havia que o catapultar. E ele quando adere, já é reconhecido como alguém que pode vir a ter um futuro na vida política, em defesa da Igreja, para tentar repor o domínio da Igreja, que a existia até à implantação da República, em praticamente toda a sociedade. O papel de Salazar vem a ser este. E à medida que se vai destacando, vai sempre subindo na hierarquia do grupo católico de Coimbra; ao ponto de, já enquanto professor, a Igreja o convidar para abrir e encerrar sessões. Davam-lhe sempre o papel principal, e ele era um ‘mero’ professor de Direito. Portanto, a Igreja tem um papel fundamental na sua ascensão.
Foi o calculismo de Salazar, como diz, aliado ao seu conhecimento do povo português, que lhe permitiu ser um ditador bem-sucedido?
Sim, não tenho dúvida absolutamente nenhuma. Eu já fiz essa referência relativamente ao conhecimento do Homem e do povo português, particularmente. Porque ele usa, e bem, o facto de termos vivido uma primeira República muito tumultuosa. Foram 16 anos de verdadeiro tumulto, com 40 e tal governos; não havia estabilidade, e isto foi péssimo para a democracia e para a liberdade. Os republicanos não souberam aproveitar a oportunidade que tiveram e desperdiçaram-na, e ele aproveitou isso. De facto, ele é quem acaba por encabeçar esse movimento. A astúcia dele passa por aí. Quando chama Estado Novo ao regime que criou em 1933, já é um bocadinho isso; ou seja, é acabar com o “estado velho” para começar uma coisa nova. É o mesmo exemplo do que o Sidónio Pais tinha feito, quando tomou o poder num golpe de Estado em 1917 e chamou ao seu regime ‘República Nova’. Esta ideia de começar de novo. E Salazar não escolheu a palavra “República”, porque não o deixava muito confortável. Porque grande parte dos apoiantes dele nem republicanos eram, eram monárquicos [risos]. De facto, quem faz o 28 de Maio, que depois acaba por levá-lo ao poder, é uma mescla, gente de variadíssimas tendências: monárquicos, fascistas, até republicanos moderados havia. Portanto, ele procura não beliscar as sensibilidades que lhe estão mais próximas, e de quem mais o apoia.
Por volta do 28 de Maio de 1926, ele vai escrevendo também para jornais católicos, vai fazendo crítica particularmente à política económica e financeira, e vai-se tornando também notado pelos escritos que vai produzindo. E há uma altura já em plena ditadura, em que Portugal precisa desesperadamente de um empréstimo. E esse empréstimo é negociado à exaustão, as exigências são muitas porque ninguém confia na ditadura, nem na política económica que estava a ser seguida pelos generais, e o empréstimo acaba por não chegar. Mas ao longo deste processo, Salazar vai sempre criticando duramente o empréstimo. Quando ele é convidado para ser Ministro das Finanças, a Igreja tem um papel importante a catapultá-lo. Mas ele depois vai ter um outro apoio muito importante, que é o Presidente da República, o general Óscar Carmona, que quando vê nele uma solução, afasta os militares das Finanças, e mete Salazar como ministro das Finanças. E quem disse que a pessoa ideal para ocupar o lugar era o Dr. Oliveira Salazar, foi nem mais nem menos do que o Cardeal de Lisboa de então – que ainda não era Manuel Gonçalves Cerejeira, que só vem mais tarde –, António Belo. Mas quando Salazar começa a trabalhar, rapidamente se apercebe que o empréstimo dava muito jeito. Ele tinha escrito vários artigos contra o empréstimo, e para não ficar mal na fotografia, fala com o seu mais antigo e fiel amigo, Mário Figueiredo; um verdadeiro nazi, como se veio a saber pela altura da Segunda Guerra Mundial. Salazar incumbe-o de fazer um périplo pelas principais capitais europeias, no sentido de conseguir o tal empréstimo. Mas tudo em segredo. A verdade é que as coisas não correm bem, e o empréstimo acaba por não vir na mesma. E era suposto que ninguém soubesse, mas alguém soube desse pedido de empréstimo, e fez sair um artigo em Espanha, ao nível das elites. E soube-se assim que Salazar tinha feito aquilo que tanto tinha condenado. E isto é mais uma demonstração da sua forma de ser. Era um tipo que não olhava a meios para atingir os fins, e que tudo fazia para salvaguardar a sua imagem – isso para ele é que era o fundamental. A imagem do pobre, honesto, era sagrada.
Quando é que acha que ele percebeu que podia mesmo ter um papel importante nos destinos do país?
É um processo progressivo, que demora algum tempo, mas ele à medida que se vai envolvendo nos meandros políticos de Coimbra, tem um grande amigo que é também um dos grandes responsáveis pela sua inteligência e por aparecer como um hipotético Salvador da Pátria: o então padre Cerejeira. Mal ele acaba o curso de Direito, Cerejeira convida-o para ir para o antigo Convento dos Grilos – que os saudosistas continuam a chamar uma “república”. Mas esse Convento não tem nada a ver como uma república; era uma casa muito grande, cada um tinha o seu espaço, salas de estudo, e ali recebiam amigos e convidados, faziam reuniões do Movimento Católico… Portanto, aquilo era muito mais, e tinha mais condições do que qualquer república coimbrana. Salazar vai para lá por volta de 1915/16 e só sai em 1928. E à medida que se vai percebendo que poderia vir a ser alguém, o padre Cerejeira terá convencido Salazar a procurar o livro de poesia que ele tinha publicado com tanto amor e carinho, e que se chamava “Ais”… E ele recupera os livros todos que consegue, e destrói aquilo. Ao ponto de, quando Franco Nogueira faz o primeiro volume da biografia dele em 1977, ter andado à procura de um livro para ter um poema ou outro para decorar a biografia, e já não encontrou. Falou com velhos camaradas de Coimbra; um ou outro lembrava-se do livro, mas disseram-lhe que tinha desaparecido. E então, os poemas com que Franco Nogueira nos dá uma amostra das “capacidades poéticas” de Salazar, vai buscá-los aos jornais para onde ele tinha escrito alguns poemas. Enfim, este aspecto ilustra bem a importância que a preservação da imagem tinha para Salazar. Ele convenceu-se de que aquele livro poderia prejudicá-lo.
Não se queria expor ao ridículo…
A última coisa que ele quereria era isso!
Recomendaria este livro a alguém que simpatize com Salazar?
Eu, francamente, recomendaria este livro a muita gente, particularmente a quem nós vamos chamando de ‘saudosistas’. Porque, de facto, de há uns anos a esta parte, está a crescer uma onda de saudosismo, como se o regresso ao passado e a emergência de uma figura do tipo de Salazar fosse a Salvadora da Pátria; como dizem que ele foi quando entrou em 1928. Obviamente, este livro nunca pretendeu ser um livro académico, é um livro de ficção. Embora eu não tenha gostado da palavra “ficção”, que está na capa, e que foi uma exigência do departamento comercial. Mas a verdade é que era preciso pôr ali qualquer coisa para que as pessoas nas lojas soubessem onde arrumar o livro. Romance não era, ficção histórica também não, e então ficou só ‘ficção’ debaixo do título. Mas nunca me agradou.
Mas se tem uma componente ficcional…
De ficção só tem a estrutura, tudo o resto é História. Não consultei arquivos, mas fui consultar o que está publicado, e tive o cuidado de ir buscar autores que foram amigos dele e pessoas que colaboraram com ele, assim como pessoas que não gostavam dele. E, portanto, além de serem muitas as fontes, são diversificadas também a este nível. Respondendo à sua pergunta, o livro é recomendado a todos porque de facto dá-nos uma imagem muito mais real do Salazar do que o mito que foi criado. Daí que eu goste de dizer que o livro desconstrói o mito do Salazar. De facto, é disso que se trata. E nos dias de hoje, este livro também nasceu para fazer frente à tal onda de saudosismo que está instalada e que tem vindo a crescer nos últimos tempos. Por isso, para quem quiser conhecer melhor o Dr. Oliveira Salazar – é a minha opinião e eu sou suspeito porque sou o autor –, é um livro altamente recomendado.
O ‘activista’ Sérgio Tavares publicou esta semana um vídeo no seu canal de Youtube onde inquiria os transeuntes nas ruas do Porto sobre as suas intenções de voto para as próximas legislativas. Ressalvando que a vox populi (ainda mais do que as sondagens) tem enviesamentos que, do ponto de vista de rigor, deixam muito a desejar, ouvir esta ‘amostra’ da ‘voz do povo’ mostra-se esclarecedora sobre a suposta ‘invencibilidade’ do Partido Socialista.
Houve um excerto, em particular, que se tornou ‘viral’, atingindo centenas de milhares de visualizações e suscitando comoção nas redes sociais: uma senhora dizia que, no dia 10 de Março, tencionava votar para “manter o que está” (o Partido Socialista) porque já é reformada, e que os sucessivos escândalos a que temos assistido em Portugal também são comuns “nos outros países”. Questionada sobre a necessidade de haver um “grito de revolta”, retorquiu que, por ela, deixa-se andar, e acrescentou: “os mais novos que o façam”.
E é nestas alturas que somos confrontados com o ‘lado negro’ do voto universal, tido como uma enorme conquista do mundo Ocidental.
Note-se que a posição desta cidadã não poderia ser mais legítima. Com o avançar da idade, se não antes, é natural que se instalem o comodismo e o desejo de segurança. É normal, e expectável, que um reformado queira apenas assegurar a sua subsistência e não deseje alterações profundas ao status quo. Mais vale pouco, mas certo, do que o risco de perder o pouco que se tem.
Na verdade, o insensato é exigir que os reformados – que, como sabemos, são muitos, neste país envelhecido – tenham ambição e uma visão de futuro para o país, e que se preocupem, por exemplo, com propostas no sentido de estancar a sangria de jovens para o estrangeiro (um dos muitos males com que nos debatemos).
No final de Novembro, aliás, foi divulgada uma sondagem do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica que mostra, precisamente, que o PS tem nos maiores de 65 anos mais de um terço dos seus eleitores (35%). Em contrapartida, nos jovens entre os 18 e os 34 anos, colhe a preferência de apenas 6%. É, além disso, o partido mais favorecido pelos que apresentam níveis de escolaridade mais baixos.
Percebe-se assim que, se contássemos exclusivamente com os mais jovens, a composição da Assembleia da República seria muito diferente, e a hegemonia do partido agora liderado por Pedro Nuno Santos teria os dias contados. O mesmo aconteceria se privilegiássemos o voto de quem concluiu pelo menos o ensino secundário, ou o superior.
Talvez por isso, diga-se a propósito, os partidos à esquerda tenham chumbado um projecto de resolução da Iniciativa Liberal para que se ensinasse literacia financeira nas escolas – e o Bloco de Esquerda até tenha dito que a proposta visava “doutrinar” os alunos. Aparentemente, ensinar os mais jovens a gerir o seu dinheiro é doutrinação, mas dizer-lhes que talvez fosse boa ideia mudarem de sexo, já não é.
Na rubrica de Sérgio Tavares, vemos também portugueses ‘alienados’ da política; uns, por terem perdido a esperança, outros apenas por desinteresse. Mais uma vez, absolutamente legítimo e normal. E embora alguns possam atribuir a culpa aos agentes políticos por este alheamento, a verdade é que uma fatia significativa da população simplesmente não tem aptidão ou interesse em matérias políticas. Não importa quantos direitos políticos se ofereça; será sempre uma minoria a envolver-se e comprometer-se activamente com um desígnio maior para o país.
E é por isso que a visão de uma soberania popular plena expressa na possibilidade do voto para todos tem mais de romântico do que real. Como de resto já foi estudado, e como pudemos observar durante a pandemia de covid-19, as “massas” são altamente manipuláveis. Não são elas que fazem revoluções, ou que mudam os destinos de uma nação. Assim, em democracia, vence quem é mais hábil a manobrar o povo, e não necessariamente quem é mais competente ou idóneo.
Em todo o caso, vale lembrar que hoje o “jogo” está de tal maneira viciado, que as fichas devem ser postas noutros sítios. O combate político deve fazer-se de outras formas. A cruzinha que somos convocados a fazer de quando em vez, e que faremos no dia 10 de Março, já se tornou quase uma mera formalidade. Sobretudo nestas circunstâncias em que o voto dos muitos que encolhem os ombros e dizem “os mais novos que façam”, tem o mesmo peso desses “mais novos” que estão sôfregos por fazer, e mudar, alguma coisa.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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Esta é, por excelência, a altura de fazer os habituais balanços e traçar metas para o ano seguinte. Se fizermos esse exercício, enquanto país, provavelmente concluiremos que 2023 foi negro, em todas as dimensões. A menos, claro está, que partilhemos da opinião da redactora principal do Público, Bárbara Reis, para quem “Portugal é um país normal”, e os ‘rumores’ de que as coisas não estão nada famosas, mais não são do que mentiras para ganhos políticos. Curiosamente, ou por ironia, no encadeamento deste texto da antiga directora do Público surge a ligação para uma notícia do mesmo jornal, deste mês, revelando que o “preço das casas duplicou desde o início da governação de Costa” e “as rendas aumentaram em 56% desde 2017”.
Enfim, adeptos da mediocridade, e acomodados com a miséria, sempre os haverá. Neste caso, compreende-se, pois o jornal que emprega Bárbara Reis também aparenta ser “normal”; se o “normal”, singelo até, é seguir o optimismo de quem está no poder.
Seja como for, não é aos concidadãos acomodados e confortáveis que me dirijo aqui, porquanto, quero acreditar, os leitores do PÁGINA UM, como sabemos, não se contentam com o “normal”.
Dirijo-me sim àqueles que sonham com um Portugal melhor, e aproveito o elã tão característico desta época para recomendar um livro que considero ser de leitura obrigatória: As causas do atraso português, do economista e professor catedrático Nuno Palma, da Universidade de Manchester. Em resumo, a obra tenta explicar as raízes históricas da nossa divergência económica face aos países mais ricos da Europa Ocidental.
Para que consigamos inverter esta acelerada marcha de empobrecimento, é vital procurar entender, primeiro, os motivos da nossa desgraça. O porquê de estarmos como estamos; um diagnóstico acertado. E a meu ver, tal só será possível se deixarmos os clubismos de lado (ou clubites, nos casos mais agudos), e os dogmas cristalizados (alguns com mais de um século).
E esta é uma das razões por que destaco o livro: tanto quanto humanamente possível, trata-se de uma análise objectiva e bem suportada cientificamente. Ouvir o autor falar em entrevistas confirma a minha tese: critica com igual facilidade tanto as típicas propostas de esquerda como de direita (liberais incluídos); muitas delas “míopes”, embora por motivos diferentes.
De facto, dificilmente os acólitos das várias ‘seitas’ políticas (vulgo partidos) conseguirão metê-lo numa ‘caixinha’ – esta liberdade de pensamento é, quanto a mim, uma fantástica qualidade.
Poderá dizer-se que é uma obra polémica, porque desfaz muitos ‘mitos’. Aconselha-se, por isso, uma leitura livre de preconceitos, e uma abertura para questionar até algumas “verdades” ouvidas repetidamente ao longo da vida. Não é tarefa fácil, mas diria que vale a pena o esforço.
Prevendo-se um 2024 com desafios acrescidos, é urgente repensarmos ideias e fórmulas datadas, anacrónicas e mais do que experimentadas que, já vimos, não resultam.
Como se diz por aí, loucura é repetir as mesmas acções, à espera de resultados diferentes. Há que abandonar esta insistência esquizofrénica nas mesmas práticas, na esperança de que algo mude.
Assim, para levantar um pouco o véu, destaco aqui algumas ideias, que talvez surpreendam alguns, avançadas neste As causas do atraso português.
– É preciso recuar muito para se entender as origens do “atraso português”, havendo já, no século XIX, personalidades como Antero de Quental que tentavam apurar as causas do ‘fenómeno’. E, de facto, é uma questão antiga: foi logo a partir do século XVII que Portugal começou a divergir da Europa Ocidental.
– Cada novo regime procura sempre desresponsabilizar-se dos resultados das suas más políticas, remetendo as culpas para os antecessores. Tal como António Costa agita o fantasma do “Passos Coelho”, e como a democracia culpa o Estado Novo, Salazar fazia o mesmo com a República, e por aí fora. Acredita quem quer…
– De diversas formas, a escravatura não teve um efeito benéfico para o país, tendo até sido perniciosa, assim como foi a descoberta do ouro no Brasil. A este respeito, Nuno Palma fala numa “Maldição dos Recursos”.
– A cultura portuguesa e o catolicismo “entranhado”, ao contrário do que muitas vezes se diz, não parecem factores revelantes para explicar o nosso crónico atraso; nem sequer a nossa localização “periférica”.
– E last but not the least: os fundos europeus são, em grande medida, prejudiciais ao desenvolvimento do país.
Nuno Palma é pessimista: na sua óptica, caminhamos a passos largos para nos tornarmos no país mais pobre da Europa – da Europa Ocidental já somos – e pouco há a fazer quanto a isso, de tão acomodados que estamos. Poderia dizer-se que “estamos como a Bárbara Reis”. Vemos a Saúde, a Economia, a Educação e a Justiça em farrapos, com margem para piorar… e achamos “normal”.
Sendo eu mais optimista, talvez por ser mais jovem, não deixo de sofrer de um medo aterrador que o vaticinado pelo economista se concretize; por isso, e porque não me conformo com esta podre ‘normalidade’, não poderia recomendar de forma mais veemente As causas do atraso português, ou a escuta das entrevistas dadas pelo autor. Não para que 2024 seja o ano em que finalmente saímos desta ‘cloaca’ (já estamos um bocado em cima da hora) mas para que comecemos desde já a trabalhar nesse sentido.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
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A semana ainda só vai a meio, e já fomos brindados com várias “notícias” feitas à medida para servirem de armas de arremesso político. Algumas, a roçar a propaganda: fiéis à habitual fórmula das meias-verdades desprovidas do devido contexto ou de qualquer contraditório. Assim, encaixam como uma luva nos amplos consensos que, para quem se senta no poder, dá jeito que continuem a ser difundidos e alimentados.
Refiro-me, por exemplo, ao estudo que retratou Portugal como um país de reduzidos impostos (comparando com a União Europeia), e tentou colar àqueles que clamam pela redução da carga fiscal uma imagem de egoístas que não querem mesmo é contribuir, de maneira nenhuma, para a sociedade.
Na introdução do estudo, somos esclarecidos sobre o seu intento: não é “um estudo aprofundado sobre a fiscalidade em Portugal. A tributação de um país é um tema demasiado vasto e complexo, que requer investigações focadas e detalhadas a respeito de cada (tipo de) imposto. Aqui pretende-se fazer uma primeira análise de alguns aspetos importantes, com o objetivo de contribuir para o debate público e político sobre impostos em Portugal.”
Portanto, não é, assumidamente, um trabalho exaustivo; nem poderia ser, atendendo à sua dimensão de apenas 30 páginas. Mas é um facto que contribuiu para o “debate”. Neste caso, serviu para ‘ilibar’ os últimos Governos socialistas da sangria fiscal a que nos têm sujeitado.
Aquilo que talvez fosse menos provável, num país decente, é o facto de a associação ter o antigo governante socialista Paulo Pedroso (desfiliado do PS desde 2020) como presidente da direcção. Em todo o caso, podemos, com certeza, ficar descansados quanto à isenção do dito estudo, certamente livre de motivações políticas.
Outra notícia bastante politizada – tanto que foi logo aproveitada para vários artigos de opinião – dava conta do lucro de mais de 1.600 milhões de euros que os estrangeiros deram à Segurança Social em 2022, com base num relatório do Observatório das Migrações. Perfeita para sustentar a política imigratória de “portas escancaradas” seguida pelo Governo ainda em funções.
Houve quem se apressasse a dizer que este saldo positivo de 1.600 milhões – que resulta da diferença entre o valor das contribuições, que foi de 1.861 milhões, e as prestações sociais recebidas, de “apenas” 257 milhões – era a prova de que os imigrantes não procuram o nosso país com o objectivo de beneficiar dos apoios sociais. Estou de acordo. Quase todos, acredito, vêem em busca de melhores condições de vida.
No entanto, o peso das contribuições dos estrangeiros para a Segurança Social, e os “recordes” de que se falam, são apenas uma consequência directa e natural de vários factores que todos conhecemos. Ou seja, é um reflexo de uma comunidade estrangeira que continua a crescer a um ritmo acelerado, composta sobretudo por pessoas em idade activa – incluindo muitos homens solteiros. De facto, apesar de o relatório contabilizar 750 mil estrangeiros, há notícias que apontam para 800 mil.
Assim, falamos de 8% da população, com a esmagadora maioria no mercado laboral. Não será de espantar que a sua fatia de descontos para a Segurança Social seja significativa. Além disso, para explicar o saldo ‘astronómico’, há que ter também em conta outras variáveis, como a subida dos salários – tanto o mínimo como o médio – e o aumento das pessoas empregadas nos últimos anos.
Saliente-se ainda que, por cada trabalhador, cerca de 34% da remuneração vai para este fundo social. Num salário bruto de 1.500, por exemplo, estamos a falar de 510 euros por mês. Não é coisa pouca.
Portanto, é evidente que ninguém mente se disser que “sem os imigrantes, alguns sectores económicos entrariam em colapso”. Afinal, estamos a falar de quase 10% da população. Mas afirmá-lo não serve, por si só, de argumento para coisa nenhuma; é a simples constatação de um facto observável. É a realidade actual, é certo; mas não é uma realidade imutável nem irreversível.
Enfim, está a ser uma semana produtiva para alguns órgãos de comunicação social, sempre prontos a dar destaque a notícias que sedimentam as narrativas oficiais. O poder político agradece.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O novo romance de Jaime Nogueira Pinto leva-nos até ao fim da Guerra Fria, nos anos 1980, para adentrarmos no empolgante e misterioso mundo dos operacionais da CIA. Os passageiros da Sombra é sobre um grupo de agentes que se vê, inesperadamente, numa delicada operação para descobrir os responsáveis pela morte de um representante da Agência na África do Sul, em pleno conflito entre as forças do MPLA e da UNITA. Aquilo que venham a desvendar poderá mesmo pôr em causa o apoio dos americanos aos rebeldes em Angola. Para montar o enredo, que passa também por cidades como Lisboa, Roma e Paris, o escritor, politólogo e historiador recorreu às suas próprias experiências, misturando-as, no entanto, com uma boa dose de imaginação. Afinal, trata-se de ficção. E é através da ficção, aliás, que prefere dar a conhecer o seu passado, já que se diz supersticioso em relação à escrita de memórias. O livro foi o pretexto para uma conversa com o PÁGINA UM, que desembocou num tema no qual é ‘especialista’: a direita, ou “as direitas”, o momento que atravessam em Portugal e na Europa, e o papel que poderão desempenhar em cenários políticos próximos.
Para este seu segundo romance, porque optou por um enredo assim, envolvendo espiões da CIA?
Por várias razões da minha vida, nos anos 1980-90, ainda antes do fim da Guerra Fria, com as questões todas ligadas às lutas em África… Aliás, o meu livro Jogos Africanos tem essas histórias todas que serviram um bocadinho de fundo a isto. E eu confesso que a ficção foi uma coisa que eu demorei muito tempo a arriscar-me a escrever, porque tinha a ideia de que a ficção, ou é, de facto, aqueles grandes escritores, como Tolstói, Dostoiévski, Dickens, Balzac, Scott Fitzgerald, Faulkner, enfim, todos esses “grandes”; ou, então, é estas coisas que às vezes vendem muitos livros, mas que a gente lê meia dúzia de linhas e põe de lado. E não me achava nem tão bom como uns, nem tão mau como outros, portanto, nunca me meti nisso. Mas depois, por circunstâncias da minha vida, de certo modo, precisei de escrever um bocado mais sobre a minha história. E escrevi o Novembro. Enfim, estas coisas da ficção… Enquanto nós, na História, na História das ideias e de Portugal – e eu já publiquei muita coisa sobre a História de Portugal do século XX –, temos um guião, e não temos de o inventar, apenas de dar-lhe forma e às vezes investigar alguns pontos; na ficção, somos livres, temos um poder quase divino porque podemos dar largas à imaginação. E este não é propriamente um livro só de imaginação, mas também, e sobretudo, um livro que tem algum conteúdo histórico internacional de todos aqueles finais da Guerra Fria em África, nomeadamente em Angola. E, portanto, a intriga anda toda muito centrada nisso. E a partir daí, falo de mundos, de pessoas, e lugares que eu conheci, e que para a ficção, reinventei. Como dizia Cervantes, do Dom Quixote, na poesia somos livres. Na História, não; temos de seguir os acontecimentos rigorosamente.
E, portanto, isto é uma mistura, porque também há História, e há personagens aqui que são históricas. Aliás, algumas personagens são figuras públicas, da política. E que, em dadas alturas, ocupavam certos cargos, ou morreram, e por aí fora. Portanto, isso também é uma espécie de pano de fundo. E depois, a intriga, com aquelas cinco ou seis personagens principais, essas são inventadas por mim. São inspiradas, pelo menos em parte, em pessoas parecidas com aquilo; e em meios, ambientes, perfis…. Mas fui eu que as criei, sou eu que as ponho a falar e a pensar, dando-lhes depois uma coerência interna. Como viu, o sistema da divisão da história é assumindo cada uma dessas personagens, em diferentes momentos, e a pessoa sabe que a partir dali, é como se nós fôssemos essa personagem. Achei que era um material com algum interesse, embora eu já o tivesse tratado em livros anteriores, nomeadamente em Jogos africanos, que é um livro de História que vai desde esse período da Independência de Angola e Moçambique até ao fim da Guerra em Angola; portanto, cobre esses 20 anos.
Mas as personagens também foram inspiradas em pessoas que conheceu?
Sim, conheci pessoas assim. Depois, há sempre um “problema” para o autor, que acaba por estar um bocado “metido” nas personagens. É quase impossível desvincularmo-nos. Aliás, é aquela coisa que o Prémio Nobel Orhan Pamuk dizia: a ficção ou o romance têm a vantagem de podermos contar as histórias passadas connosco como se tivessem passado com outros, e as histórias passadas com os outros como se tivessem passado connosco. Eu comecei a escrever este livro há cerca de cinco anos, mas depois pelo meio escrevi e publiquei outras coisas; publiquei a biografia do António Champalimaud, um sobre as pestes na altura da covid-19…
O Contágios.
Sim. E escrevi um último chamado Hegemonia – 7 Duelos pelo Poder Global. E, portanto, interrompi a escrita deste livro, e entre o ano passado e este, acabei-o. E pronto, como se costuma dizer, está “a andar”.
Os seus romances acabam por servir um pouco como “memórias”?
Sim, eu tenho um bocadinho de superstição com as memórias. E acho que esta forma da ficção, que, aliás, já no Novembro usei, dá alguma defesa também. De certo modo, é uma forma de expormos mais facilmente os nossos pontos de vista sobre algumas coisas e de imaginar situações. E a ficção acaba por ser muito criativa. No fundo, cria mundos; o problema, depois, é encontrar essa coerência interna, com as personagens, que às vezes não é fácil. Mas de um modo geral, as coisas que contei, conheci os sítios, os países, conheci pessoas assim – não quer dizer que correspondam exactamente a estas personagens. As personagens juntam pessoas reais e depois acrescentam-se coisas, bem ou mal, piores ou melhores, porque há essa liberdade. Eu, por exemplo, para esta intriga, arranjei um fim que é completamente ficcionado; não aconteceu nada assim. Quer dizer, o livro começa com o aparecimento de um cadáver de um branco numa zona em que não era suposto aparecer, e depois vem-se a saber que ele era uma espécie de representante de uma agência americana de segurança e espionagem. E isso nunca aconteceu, não houve nenhuma pessoa morta nessas condições [risos]. Portanto, isso é completamente ficcionado.
Este livro também acaba por reflectir os jogos de poder dos bastidores, com os serviços secretos americanos. No fundo, as decisões que são tomadas nas sombras.
É; sobretudo, as pessoas aqui têm a noção de que as conclusões a que eles cheguem, no fim, têm de as transmitir aos decisores políticos. No fundo, nesta história, vê-se que toda a equipa do Hector Gordon, a equipa que está a trabalhar neste inquérito, para saber o que se passou e perceber como é que lhes desapareceu o representante… Eles sabem que, depois, a decisão política – neste caso, se continuavam ou não o apoio aos rebeldes –, não vão ser eles que a vão tomar. Eles limitam-se a fazer uma investigação, a dar uma opinião, mas, em último caso, é o poder político que decide.
Durante este período da Guerra Fria, tinha uma postura crítica sobre a política externa norte-americana?
Vamos lá ver: é evidente que, na Guerra Fria, as pessoas que gostam de viver em liberdade, melhor ou pior, preferiam que acontecesse o que aconteceu, ou seja, que fossem os Estados Unidos a ganhar a Guerra, e não a União Soviética. Isso é uma motivação forte. Quer dizer, se estivéssemos num mundo dominado pela União Soviética, não era possível estar a escrever um livro com críticas à União Soviética [risos].
Mas como defensor que sempre foi do Império português…
Sim, isso está reflectido, mas pronto, desapareceu. Portanto, esse também é um ponto importante. Eu fui defensor de Ultramar e fiz questão de lá servir. Mas isso acabou, não vou ressuscitar o Império português. No livro, há uma personagem, o português da história, o Carlos, que de certo modo, claro, encarna alguns pontos de vista meus; alguns pontos de vista até críticos do anterior regime, e de várias coisas… Depois, há um luso-americano, o Frank, mas a personagem portuguesa é o Carlos, que é um conservador que esteve na Guerra do Ultramar, e que depois é apanhado nesta missão toda; está numa “prateleira”, num banco onde está bem, mas não tem nada que fazer. E também teve um problema na sua vida pessoal, portanto, está disponível para se meter nesta aventura. Depois, os outros são americanos, a maioria das personagens.
E, por exemplo, no livro, quando Carlos critica o “discurso dominante” para o qual diz que os americanos contribuíram, com a exaltação do bloco central, e a “mediocridade” que aponta a esse paradigma… Isto reflecte o seu sentimento pessoal?
Sim, nós sentimos isso, eu tenho isso até muito tratado, em ficção, no Novembro. A seguir ao 25 de Novembro, quer a Europa quer os Estados Unidos, o que queriam em Portugal era o que aqui está já há 50 anos: o bloco central. Não queriam outra coisa. Não queriam radicalismos, nem uma coisa que fosse para a direita nem para a esquerda, mas exactamente o bloco central, muito representado neste livro pelo doutor Mário Soares.
E a sua discordância desse sistema não o fez ressentir os Estados Unidos?
Quer dizer, para os interesses dos Estados Unidos, naturalmente, isso funciona, para o interesse dos portugueses não [risos]. Mas quem tinha o poder… Até porque Portugal, a partir da descolonização, fica uma potência europeia de terceira classe; nem é de segunda, é mesmo terceira classe. Portanto, já não tem capacidade para ter grandes independências nesse sentido. Na Guerra Fria, o dilema era entre os soviéticos e esta solução. Aos soviéticos, de facto, também não lhes interessava muito ter aqui uma espécie de Cuba na península, mas isso foi uma coisa que eu tratei longamente em ficção no Novembro. O Novembro é muito isso, mas aí as personagens são praticamente todas portuguesas. Mas há aqui uma referência, quando o Hector Gordon conheceu o Carlos, exactamente nessa altura em que ele esteve a servir em Espanha, onde coordenava as operações da Agência para Portugal. Foi uma altura em que houve aqui uma intervenção grande dos soviéticos, e dos americanos também; e, depois de outros países europeus, dos franceses, dos alemães. Portanto, andaram aqui muito em cima; a ajudar uns e a contrariar outros, mas foi uma altura muito internacionalizada.
Agora, aliás, faleceu, Henry Kissinger, uma figura incontornável desta altura, e não só, e que também surge no livro…
Certo. Eu estive com ele duas vezes em reuniões grandes, mas conheci bem foi o seu mentor, o Dr. Fritz Kraemer, nos anos 1980. É engraçado, escrevi também uma crónica no Observador sobre ele. É um personagem muito interessante, e foi o homem que, de certo modo, descobriu o Kissinger. Como sabe, o Kissinger era judeu alemão e foi com a família em 1938 para os Estados Unidos. E depois, durante a guerra, naturalizou-se americano, alistou-se no exército americano, e veio combater para a Europa. E o Fritz Kraemer, que também teve o mesmo percurso, também era judeu luterano, foi para os Estados Unidos em 1939. O Kraemer era superior do Kissinger, era mais velho, e disse, aliás, uma coisa muito engraçada sobre ele. Quando o conheceu – na altura o Kissinger tinha 19 anos e o Kraemer 36 –, disse que ele ainda não sabia nada e já percebia de tudo. É uma frase gira. E quando o Kraemer morreu, estavam de relações cortadas, mas o Kissinger fez-lhe uma grande homenagem.
A opinião que tem do Kissinger é mais favorável ou desfavorável?
É favorável, é um realista político, um teórico do realismo político. Talvez o livro mais interessante dele seja a sua tese de doutoramento, em que ele escreve sobre o Congresso de Viena: chama-se A world restored. E ele presta uma grande homenagem ao Metternich, naquele sentido de Estado. Portanto, no fundo, é um realista político. E tinha, digamos, a ‘carga’ e a tradição alemã, embora ele tivesse saído da Alemanha muito novo, com 15 anos, quando foi para os Estados Unidos com os pais e com o irmão. O Nixon ficou muito impressionado com um livro dele chamado Poder Nuclear e Política Externa, um dos primeiros livros do Kissinger. E o Nixon quis conhecê-lo, e depois quando foi para presidente, chamou-o para National Security Adviser. E já em 1973, passou a secretário de Estado. E serviu também com o Gerald Ford, que era o vice-presidente do Nixon, depois do Watergate; e foi quem ficou quando o Nixon saiu. O Kissinger teve coisas fundamentais, bem-sucedidas, como por exemplo aquela abertura à China. Depois teve também coisas mal-sucedidas, como os acordos de Paris e do Vietname. Passado um ano ou dois dos acordos, os norte-vietnamitas invadiram e conquistaram tudo, portanto… Ele teve êxito nalgumas coisas, noutras não teve, mas tinha de facto uma grande capacidade pensante. Isso também é importante, e actualmente não me parece que exista muito.
Mas merecia, por exemplo, ter recebido o Nobel da Paz, como recebeu?
Ele ganhou o Nobel da Paz, mas não só a guerra continuou, como os americanos perderam. Recebeu-o juntamente com o colega dele norte-vietnamita, só que os norte-vietnamitas ganharam a guerra pouco tempo depois. Enfim, eu pensei sempre que este era um mundo bastante interessante, e que eu por várias razões tive oportunidade de conhecer bem.
Agora estou a escrever um livro sobre os valores europeus, e é uma espécie de cartilha, ao longo da história, da literatura, da política; tenho um guião, não vou inventar. A ficção, claro que também parte sempre da nossa experiência do mundo, quer aquela que é directa, como aquela que é a experiência dos outros, através da leitura, do cinema, do teatro, através de tudo.
Falemos agora da direita, e do momento que atravessa, começando pela Europa.
Hoje, na Europa, há fundamentalmente duas famílias de direita. Ambas são nacionalistas, no sentido em que o valor nação e a independência nacional são denominadores comuns de todas as direitas. E, portanto, até em contraponto com uma certa tendência ou vocação “federalizante” da União Europeia. Esse aspecto nacional é importante. E, depois, acho que há essencialmente duas linhas bastante marcadas nessas direitas. Uma que eu chamaria nacional conservadora, e está mais ligada a valores religiosos, o conceito de família, e é mais tradicionalista. É, por exemplo, o caso dos polacos, que estão muito nessa linha. Portanto, têm muito essa preocupação com esses valores de família, a não permissão do aborto, e da eutanásia, o casamento ser entre um homem e uma mulher, e não ser dois homens ou duas mulheres. Essas coisas tradicionais.
E depois, há uma direita mais popular, ou populista, se quiser, que está mais preocupada, por exemplo, com questões de imigração e de segurança. É uma direita que eu vejo muito aparecer com estes partidos que têm ganho agora eleições, como o Partido da Liberdade na Holanda, do Geert Wilders, os democratas suecos, ou até mesmo o Rassemblement National, da Le Pen. Esta direita não está muito preocupada com as questões mais tradicionais. Para mim, são estas duas as famílias significativas que aparecem. A grande diferença destas direitas em relação às direitas tradicionais, é que as direitas tradicionais eram muito cépticas e críticas da democracia partidária. E estas não são, pelo contrário. Estas, estão muito preocupadas em dizer que são elas, essencialmente, que representam o povo e o voto popular.
Mas são acusadas de fascismo.
Ah, isso os inimigos chamam-lhes de tudo. Mas a direita já há muito tempo que faz parte de governos, nomeadamente na Hungria e na Polónia, e nunca acabou com as eleições. Tanto que na Polónia, agora, perderam as eleições e vão sair. Portanto, isso é uma treta. Os movimentos fascistas tinham a preocupação exactamente de dizer que eram contra a democracia, porque a democracia não era uma expressão da vontade popular, mas sim de grupos de interesses, de oligarquias, e das oligarquias do poder. E as de hoje não, e têm cumprido. Nos Estados Unidos, o Trump esteve quatro anos no poder e não acabou com a democracia. Perderam as eleições e saíram. Podem ter protestado, enfim, alegadamente, que houve fraude, mas na hora de sair, saíram. Portanto, não me parece que essa agenda anti-democrática esteja de pé.
Quais considera serem os principais factores que explicam este crescimento da direita?
Este crescimento da direita tem essencialmente a ver com o facto de os partidos tradicionais, e até os partidos conservadores tradicionais, incluindo os democratas-cristãos, não se terem adaptado nem encontrado respostas para problemas novos. E, na Europa, há dois problemas muito fortes – um deles é a desindustrialização, com o fim da Guerra Fria, e a migração praticamente das indústrias todas para fora da Europa, algo que se deu em quase todos os países, com a Alemanha a ser uma das excepções, porque ainda guardou uma certa capacidade industrial, nomeadamente no ramo automóvel. Mas de um modo geral, o aparecimento e o sucesso de novos partidos repousa essencialmente, sobretudo hoje, que não há propriamente grandes influências internacionais… Não há União Soviética, e os Estados Unidos continuam a existir, mas não estão propriamente a fazer partidos onde não faz sentido existirem. Portanto, a força dos novos partidos resulta essencialmente de um vazio criado anteriormente. E aqui em Portugal, lá está, as pessoas também estão um bocado fartas do centrão. Quer dizer, já há 50 anos que o poder tem sido ou dos socialistas, ou do PSD, e a situação também não é brilhante. Se formos ver, há 50 anos, a ordem, até do ponto de vista económico… Nós hoje estamos muito mais para trás. Já fomos ultrapassados por quase todos os países que estavam no âmbito soviético. Portanto, não podemos dizer que toda esta governação tenha sido brilhante. Assim, não é de estranhar que surjam novas forças. Aliás, embora nós não tenhamos em Portugal, pelo menos por enquanto, aqueles problemas que na Europa geraram essa grande força dos novos partidos, como o problema de uma imigração massiva.
Mesmo assim, a imigração não pára de aumentar…
Começa a estar um bocadinho, mas ainda estamos muito longe disso. Não temos os problemas de uma imigração, culturalmente, de difícil integração, como a França tem, ou os suecos têm. Não temos isso, e também não temos um problema, por exemplo, de separatismo como tem a Espanha, que dá origem ao Vox. O Vox é exactamente uma resposta dos espanhóis, digamos, “zangados” com o separatismo catalão e achando que o Partido Popular não está a defender capazmente essa unidade da Espanha.
E em Portugal, o Chega surgiu também como uma forma de a direita se afirmar, depois de décadas de “timidez”?
É curioso, porque o partido Vox em Espanha nasceu essencialmente de políticos e quadros médios do Partido Popular, e que saíram por não estarem contentes. E aqui, o doutor Ventura vem do PSD. Nestas coisas da política, vai-se também buscar exactamente onde há vazios e, de facto, em Portugal havia um vazio à direita muito grande, que vinha já desde há quase 50 anos. Portanto, nesse aspecto o Chega foi pegar numa série de questões… Enfim, também são partidos de protesto. Às vezes, pode até nem ser tanto o que eles significam do ponto de vista do que querem fazer, mas que aparecem como protesto ao que está. E, portanto, à medida que a situação se agrava, normalmente esses partidos também vão crescendo. É natural, é o que está a acontecer na Europa toda.
Mas acha que as propostas que apresentam podem realmente solucionar os problemas?
As propostas são mais ou menos todas iguais. Se for ver o que os partidos dizem que vão fazer, a parte técnica de soluções é mais ou menos igual. O que interessa aqui, acima de tudo, para fazer a distinção da política, são os valores e princípios políticos. Portanto, por exemplo, se é mais partidário da independência nacional ou é mais europeísta, ou se aceita a eutanásia ou se é contra. São essas questões, umas de costumes, outras de política. Porque hoje, há duas coisas que não estão muito em questão, e uma delas é o modelo democrático. Aliás, é muito engraçado, porque os partidos de esquerda, o Bloco e o Partido Comunista, cujas ideias já foram várias vezes postas em prática, não têm essas acusações. Quer dizer, o comunismo teve 70 anos na União Soviética, e não fez grande coisa. Mas aparecem, de certo modo, como se nunca tivessem sido experimentadas. E os partidos que aparecem à direita com alguma radicalidade são imediatamente acusados de fascistas ou de nazis, ou reacionários, extrema-direita. É engraçado, porque não há direita, só extrema-direita, passa-se do centro para a extrema-direita…
[risos] E parece-lhe que essa retórica, que tem predominado, vai acabar?
Já acabou. E como vamos ter no próximo ano o aniversário dos 50 anos do 25 de Abril numa situação pós-eleitoral que deve ser relativamente complicada, pode ser uma situação interessante.
Tem algum palpite em relação ao resultado das legislativas?
Eu não tenho muitos palpites [risos]. Não, não tenho. Essas sondagens que aparecem valem o que valem, mas não me parece também que sejam absurdas. Ter os dois partidos principais, PSD e PS, mais ou menos empatados, haver uma subida forte do Chega e uma quebra do Partido Comunista, uma manutenção, mais ou menos, dos outros… Parece-me relativamente normal que sejam essas as posições.
Se Portugal seguisse a tendência da Europa, o Chega talvez acabasse por formar governo…
Não sei não, porque na Europa, governos dessa linha da direita só há na Itália, na Hungria… Na Holanda ainda não fizeram Governo, mas é natural que consigam também, têm 37 deputados mais ou menos.
E na Alemanha, a direita também está a crescer…
Sim, na Alemanha o AfD também subiu bastante. O que vamos assistir é uma coisa muito interessante, que é: fora da esquerda, não se poderá fazer governos sem esses partidos de direita entrarem ou a apoiarem. Essa é que será a situação. Não quer dizer que eles sejam Governo, mas não se vai governar sem eles, e isso é um ponto interessante. Essa é que é será a novidade.