Autor: Manuel Matos Monteiro

  • Dois ingredientes de combate aos problemas de saúde mental

    Dois ingredientes de combate aos problemas de saúde mental


    Estava num museu londrino quando uns girassóis de Van Gogh me fizeram parar. Eram belos, magníficos…

    Que porcaria de adjectivos que não comunicam nada do que senti.

    Recomecemos.

    Era muito, muito, muito mais do que isso — um arroubo estético‑espiritual em que senti que, por uma vintena de experiências assim, qualquer vida já valeu a pena. Já sentira isso na poesia, na literatura, na música, numa lagoa em São Miguel ao ver o Sol nascer, com o céu azul infindo e o Sol à distância de um mover de mão, mas aquela tela do museu londrino continha propriedades mágicas, porque o olhar e a coisa olhada se tornavam num só ente.

    O meu espírito flutuava por outras regiões, como se a existência tivesse umas brechas minúsculas que se abrem meia dúzia de vezes ao longo da vida. Estava completamente absorto e extático, completamente instalado no sublime, quando o meu amigo e a minha amiga que me acompanhavam me sacudiram:

     — Estás aí há mais de meia hora! Já vimos tudo. Que é que estás a fazer?

    Para mim, a experiência ainda estava no início, e eu morava ali havia dois minutos. Pedi que me deixassem contemplar a tela mais uns minutos e continuei imerso no quadro, enquanto pensava na palavra «gratidão» e dizia de mim para mim: «Por que raio estou a pensar nesta palavra?»

    Quando os meus olhos se moveram vagarosamente do quadro, li numas letras pequenas que o pintor havia feito aquele quadro para descrever pictoricamente a gratidão. Voltei a reler para concluir que não sonhara.

    Nunca mais deixei de olhar para um girassol sem lhe agradecer, e o mais curioso é que ele me retribui sempre.

    Bem sei que há vidas dificílimas, bem sei que há muita injustiça, bem sei que temos tendência para contabilizar mais o que nos falta do aquilo que temos, mas é preciso vasculhar a gratidão nas nossas vidas.

    a large field of sunflowers with a sky background

    Sem gratidão, definhamos e tornamo-nos pessoas-cactos, criaturas inaturáveis para os outros.

    Além da gratidão, é forçoso cultivar o acto da escuta. Poucos terão dado conta de que se aprende mais a ouvir do que a falar. Há pouco tempo, cruzei-me com uma amiga no metro. Ela falou sem parar, sempre e só sobre a sua vida, e, quando saiu na estação perto da sua casa, perguntou-me: «Contigo, está tudo bem, não está?» Antes de eu ter tempo de responder, ela respondeu por mim: «Está tudo bem, claro, é assim mesmo. Gostei muito da nossa conversa. Bom ver-te!»

    Ela ficara contente com a conversa, mas não houve conversa: houve monólogo, e isso satisfê-la.

    Noto crescentemente que as pessoas perderam a capacidade de escutar o Outro. Escutar… algo mais fundo do que ouvir.

    A cara do Outro tem escrita que está noutro lugar quando não estamos a ser escutados.

    Numa discussão, a maioria das pessoas, pura e simplesmente, não ouve, apenas fica a pensar no que dizer a seguir, enquanto o outro vai falando. Como as pessoas não se ouvem nas discussões, têm sempre de acrescentar que não disseram o que os outros disseram que elas disseram — têm, em suma, de rebater inúmeras falácias do espantalho. E há argumentos espantosos entre pessoas que se conhecem bem e se respeitam: «Mas, para ti, a vida das crianças do país x não vale nada?», diz uma. «Não te importas com o genocídio, já percebi», responde a outra.

    two women's sitting in front of sunflowers

    Se as pessoas se descentrassem do seu umbigo, praticariam mais o egoísmo altruísta, seriam mais felizes e fariam os outros mais felizes. Tudo isto soa a conversa pueril e livro de auto-ajuda? Talvez. A criação excede o criador, e eu limito-me a descrever o que a vida me apresenta. Sim, acredito no egoísmo altruísta, por ridiculamente trivial que possa soar este oximoro. Pelo que observo, sou obrigado a ter muita dificuldade em acreditar na felicidade (perdão pela rima) sem o verbo dar conjugado na primeira pessoa. (Que é isso da felicidade?, dirão muitos. É o pano de fundo, contraponho.) Tenho muita dificuldade ainda em acreditar no bem-estar de cada um se não nos interessarmos vivamente por outros. (Não escrevi «pelos», a abrangência seria maior.) E esse interesse acarreta escuta. Inevitavelmente.

    Em suma, que a conversa já vai longa, se as pessoas escutassem o Outro, os psicólogos e psiquiatras teriam um quarto dos clientes.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tullius Venenus e o poder

    Tullius Venenus e o poder


    «Proletários de todo o mundo, uni-vos!», escreveram Marx e Engels em 1848, frase que muitos repetiram e proclamaram.

    O sonho de Marx e Engels não poderia, no entanto, estar hoje mais esfarelado, apesar de um por cento da humanidade acumular quase o dobro da riqueza dos restantes noventa e nove por cento. Mas pronto… já não haverá salários em atraso, já não haverá acidentes laborais, evoluímos tanto que, parafraseando José Alberto Braga, em Pensamentos & Reflexões, os escravos até já têm Cartão de Cidadão.

    Nos dias de hoje, o mote é outro.

    O mote é o seguinte: «Proletários de todo o mundo, apartai-vos e dilacerai-vos, procurai o maior número de fragmentações entre vós!»

    pair of pink boxing gloves

    Jovens e velhos, guerreai uns contra os outros!

    Homens e mulheres, lutai encarniçadamente uns contra os outros!

    Trabalhadores do público e trabalhadores do privado, apartai-vos e insultai-vos!

    Nacionais e estrangeiros, lutai uns contra os outros!

    Brancos e não-brancos, lutai uns contra os outros!

    Imigrantes legais e imigrantes ilegais, lutai uns contra os outros!

    Descendentes de ex-colonizadores e descendentes de ex-colonizados, lutai uns contra os outros!

    Pobre, o teu inimigo é o miserável!

    Remediado, o teu inimigo é aquele que vai nu!

    Trabalhadores empregados, a vossa luta é contra os desempregados, contra a malta do RSI, que gasta o dinheiro em cidades cosmopolitas e hotéis de cinco estrelas, e contra esse grande saco a que se chama «subsídio-dependentes».

    Trabalhadores de todos os sectores, difamai as demais classes profissionais! Atacai todas as greves que não sejam da vossa profissão!

    a couple of dogs running across a lush green field

    Fura-greves, reclamai o vosso brio profissional e atacai os suínos grevistas! Quando há uma greve, os jornalistas são vossos amigos! Vejamos: há uma greve nos transportes públicos, e pergunta-se a quem não apanhou o transporte se está satisfeito. É esta a deontologia jornalística sobre uma greve: estar de microfone na mão a ouvir os que sofrem com a greve.

    Motoristas de táxi, lutai contra os motoristas dos TVDE!

    Motoristas dos TVDE, lutai contra os motoristas de táxi!

    Feministas cis e activistas transgénero, arranjai o maior número possível de divisões entre vós! Feministas brancas e feministas não-brancas, dividi-vos e canibalizai-vos!

    Trabalhador dos mil euros, luta mas é por mais impostos para o trabalhador dos dois mil euros!

    Pessoal do Ocidente, arranjai lutas identitárias, e, dentro de cada luta identitária, fragmentai-vos o máximo! Isto vai ser a loucura! Fora do Ocidente, esses direitos estão todos bem resolvidos, pelo que lutai apenas no Ocidente, berrai apenas no Ocidente… e contra o Ocidente, o grande caldeirão de todos os males. É certamente mais importante para o mundo que o «todes» vingue sobre o «todos» no Ocidente do que lutar (lutar?, piar…) contra regimes fora do Ocidente com ordenamentos jurídicos que punem com prisão e morte a mulher adúltera e os homossexuais.

    an owl is sitting on a tree branch

    As multinacionais que apoiam as ditaduras mais repressivas, que exploram África, que fazem tudo para fugir aos impostos, usam as bandeiras inclusivas quando se trata do mundo ocidental, e, portanto, está tudo bem. Só um exemplo: Elon Musk tem menos carga fiscal do que um comerciante no Uganda.

    Alguém nas altas e obscuras hierarquias sorri com o pagode cá em baixo, mas que importa isso quando se está em hipnose?

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Cristo e a hipocrisia (que nos rodeia)

    Cristo e a hipocrisia (que nos rodeia)


    Hoje é dia de Natal, e começo com uma obviedade: não haveria Natal sem Jesus Cristo. Um dos aspectos mais interessantes de Cristo foi mencionado por Chesterton: Cristo é tão rebelde (Chesterton não usou este termo) que, na Cruz, desafia a própria divindade que reclama para si: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»

    Outro aspecto pouco falado e curiosíssimo em Cristo é a sua veemente repulsa da hipocrisia e, particularmente, do moralismo hipócrita, ele que tantas vezes usou as palavras «hipocrisia» e «hipócritas».

    Cristo condenou duramente a auto-sinalização de virtude e usou a palavra «hipócritas»: «Quando deres esmola, não te ponhas a trombetear publicamente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de ser glorificados pelos homens.» Há mais citações de Cristo deste jaez.

    low angle photography of turned on lamp

    Quando condena os escribas e os fariseus, chama-lhes «hipócritas», que eu contasse, sem a ajuda do ChatGPT e consultando a Bíblia em papel, oito vezes. Apenas um trecho a título de exemplo: «Escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de ganância e cobiça! […] Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda a podridão.»

    No Inferno de Dante, os hipócritas são condenados ao castigo de vestir belos mantos que brilham como ouro, mas que, por dentro, pesam como chumbo e fazem os ossos ranger.

    Lembrei-me de tudo isto porque muito recentemente ouvi um indivíduo dizer que a coisa que mais asco lhe causava eram as pessoas que traíam as namoradas na noite, cinco amnésicos minutos antes de procurar a sorte com todas as que encontrava na noite, enquanto a namorada dormia a sono solto em casa.

    Dei por mim a reflectir…

    closeup photo of religious statue

    Oh, quantos pequenos aldrabões vi eu bradar contra os grandes aldrabões, o seu inimigo dilecto.

    Oh, quantos clamam pela criminalização do discurso de ódio enquanto o praticam com frequência…

    Oh, quantos se deslocam nos transportes mais poluentes para ir a grandes cimeiras pelo clima…

    Oh, quantos engraçadinhos vemos hoje a moralizar e policiar os outros por fazerem piadas não-inclusivas, e que faziam facécias mil vezes menos inclusivas quando os ventos do tempo eram outros… Desconfiai sempre daqueles que estão com os ventos do tempo… deles, a História não reza… nem nunca rezou.

    Oh, quantos são ardentes defensores da liberdade de expressão, mas apenas para as suas ideias…

    Oh, quantos adoram e se preocupam com os pobrezinhos e sofrem, contudo, de aporofobia, isto é, da fobia de pobres, de quem gostam muito… mas longe, bem longe. A demagogia com os pobres fica sempre bem, é fácil e dá palmas.

    Oh, quantas criaturas vi nas redes sociais a proclamar-se feministas e que, fora das redes, são precisamente as menos feministas que conheci…

    Oh, como tantos proclamam com sorrisos de plástico o multiculturalismo enquanto abstracção e têm nojo dele na prática…

    Oh, quantos patrões conheci que pagam menos de cinco euros por hora aos seus trabalhadores, que adoram ter estagiários não-remunerados por seis meses ou mais, e vão a colóquios e comícios proclamar-se anticapitalistas.

    Oh, quantos valentes que garantem que dizem sempre o que pensam, mas que, perante o patrão ou alguém com bons contactos, estão sempre a dar graxa e a perguntar com as costas curvadas e voz delico-doce:

    «Quer o chazinho mais quente? Quer mais um pacote de açúcar? Ou prefere adoçante? Deixe estar, que eu vou buscar. Veja lá se está bem assim.»

    Comecei com Cristo e termino com Cristo.

    Antes de citar Cristo, permitam-me citar Scott Fitzgerald: «De cada vez que te apetecer criticar alguém, lembra-te sempre de que nem toda a gente neste mundo gozou algum dia das mesmas vantagens que tu.»

    E agora, sim, cito novamente Cristo:

    «Como podes dizer a teu irmão: “Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho?”, quando não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.»

    Feliz Natal, caríssimos.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.