Autor: Manuel Matos Monteiro

  • O mais estranho almoço

    O mais estranho almoço


    — Tu é que escolheste o restaurante.

    — Eu sei disso, pá. Ou achas que estou senil? Mas isto hoje está horrível. Que queres que te faça? É irritante atirares-me isso à cara. Isto era o meu cantinho favorito. Hoje, é o pior restaurante em que já estive. Além disso, está aqui um cheiro…

    Puxei os meus ombros para a frente, aproximei a minha cara da cara do meu amigo, fixei um olhar trespassante nos seus olhos e disse-lhe:

    — Meu, tu hoje dizes mal de tudo. Do cheiro a cão no teu elevador, dos fones que compraste, do Trump, do Biden, do riso da Kamala, do Maduro, do Irão, do Netanyahu, do Hamas, dos senhorios, dos inquilinos, do SNS, da medicina privada, das obras dos teus vizinhos que não te deixam dormir…  Até com o empregado já implicaste.

    — Mas discordas do que disse? Explica-me lá em que é que estou errado, então. E demonstra-me porque é que estou errado. Diz lá. Quanto ao Mário que trabalha aqui, não sei o que lhe deu hoje. O gajo é que está nitidamente a querer implicar.

    people walking near buildings

    — Não é isso. É que só puxas assuntos para dizer mal. E falas com tanta, tanta ira. Repara só nisto: conseguiste criticar tanto quem fala das alterações climáticas como conseguiste criticar tanto não se fazer nada contra as alterações climáticas. Não sei como queres combater algo que dizes não existir. É, no mínimo, muito confuso.

    — Eu tinha-te como um gajo informado. Se achas que o mundo está bem, vou ter de reconsiderar a tua inteligência.

    Fechou os olhos, levou a mão direita à testa e disse:

    — Este cheiro dá cabo de mim.

    — Não queres ir para a esplanada?

    — Já te disse que não.

    — Então, não sei.

    — Que cheiro tão intenso. Que agonia, pá. Não te cheira a nada?

    — Não.

    — Só podes estar com problemas de olfacto. Tens de ir ao médico. Estou a falar a sério.

    Em dado momento, o meu amigo teve um clarão:

    — Isto é naftalina!

    Levantou-se e deu uns passos para inspeccionar o restaurante com o nariz, executando inspirações muito rápidas e audíveis. Por instantes, o movimento frenético do seu nariz fez-me representar mentalmente um cão com um metro e setenta e oito centímetros. Algumas cabeças de outras mesas moviam-se para o fitar, e um vetusto senhor interrompeu a sopa e mexeu involuntariamente os lábios perplexos, numa manifestação bucal de quem fita um indivíduo a falar sozinho na rua, proclamando ser Jesus Cristo.

    Quando regressou à nossa mesa, decretou com uma expressão facial de detective:

    — Isto é naftalina misturada com outra coisa.

    Como não comentei, por não sentir nenhum odor estranho, acrescentou:

    — Que esterco, pá. Que nojo, pá. Não bastava já o estado da comida.

    — Meu, estás com a telha hoje. Falas de tudo com uma fúria. Olha, esta massa está muito boa.

    — Eles estragam isto tudo com os molhos, designadamente a massa. A gastronomia nunca foi a tua especialidade.

    — Pois não.

    — Este cheiro é uma coisa…

    — Ó meu, aquele senhor de bigode branco já olhou para ti como se fosses um maluquinho quando te puseste a farejar.

    cooked pasta

    — Eu quero lá saber. Dás muita importância ao que os outros pensam. Não é admissível comer com este cheiro.

    — Ainda bem que sou desprovido de olfacto, apesar de sentir o cheiro da comida.

     — É porque a comida estragada tem um cheiro mais forte.

    O meu amigo pegava nervosamente no telemóvel a todo o instante, suspirando e bufando. Olhei para o seu relógio de pulso e comecei a ver o movimento dos segundos. Prometi a mim mesmo fazer contas.

    — Não paras de mexer no telemóvel e de olhar para todos os lados depois. Já contei: em média, de sete em sete segundos, consultas o telemóvel. A seguir, olhas para a frente, para a esquerda e para a direita, para trás. Estás neste ritual desde que chegámos.

    — É para me abstrair desta comida putrefacta. Tenho a certeza de que vou ficar doente.

    — Então, não comas mais.

    — Tanto faz. Se for para ficar doente, já comi o suficiente. Só esta pestilência dá cabo da saúde de qualquer um.

    Em dada altura, o meu amigo gritou:

    — Porra, olha para esta merda! Vou chamar o empregado.

    — Deixa ver.

    — É um cabelo. Foda-se, só faltava cabelo no meio desta carne podre. Que bosta, pá! Foda-se.

    Analisei o putativo cabelo, enquanto o meu amigo consultava o telemóvel e praguejava.

    — Meu, isto é um fiozinho de roupa. Acho que é da tua camisa.

    — É um cabelo.

    — É esverdeado.

    — Há quem tenha o cabelo verde.

    — Isto não é um cabelo em parte nenhuma do mundo.

    — É. E não é verde. Além do olfacto, tens de ver também esse problema de daltonismo. Tu não estás bem. É o olfacto, é a visão. Olha que isso pode ser neurológico.

    — Meu Deus, dai-me paciência para o aturar.

    — E a mim dá-me o triplo da paciência.

    — Está tudo mal, menos tu. Ao menos, coopera com quem te ajuda.

     — Vou mas é pedir ao empregado que me troque o prato. Vou pedir outra coisa, que isto está uma bela merda. E agora até cabelos tem. Estou com a nítida sensação de comida estragada na boca. E este cheiro não sai… Aposto que vou passar mal a noite. É hoje que peço o livro de reclamações. A ASAE tem de vir cá. Por muito menos, já fecharam outros estabelecimentos. Isto hoje é de mais, caralho.

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    O telemóvel do meu amigo sussurrou um chilreio por um instante.

    Agitou-se na mesa e, ao agarrar no telemóvel, deixou cair o garfo. No meio da dança de braços e objectos, ficou com bastante molho a destoar no verde da camisa e no dedo mindinho da mão esquerda, que pingava. Submerso no telemóvel, não deu conta da subtracção de um objecto da mesa nem do molho. Decidi levantar-me, peguei no garfo e passei o guardanapo pelo talher muitas vezes, até o repor na mesa. O meu amigo não deu conta de nada, e eu ouvia-o murmurar uns sons imperceptíveis.

    — Estás a gemer?

    Ele continuava com os olhos presos ao telemóvel.

    Esperei largos momentos, enquanto observava uma metamorfose facial.

    — Até os teus dedos dos pés e os botões da tua camisa sorriem.

    Ele nada disse, e eu olhei para o círculo de molho na camisa, mas decidi calar-me. Um sorriso ocupava-lhe toda a largura da cara.

    Quando voltou a si, o meu amigo pediu-me desculpa pela demora.

    — Não ias pedir outro prato?

    — Ah. Não. Isto come-se. Vou pedir uma sobremesa.

    Acabou de comer a carne num ápice, chamou o empregado e pediu «o de sempre».

    — Estas farófias são óptimas. Acho que vou pedir outras. Não queres provar?

    — Não gosto muito de farófias.

    — É porque não provaste estas.

    Os suspiros davam agora lugar a murmúrios de prazer quase sexual.

    — Que coisa tão boa.

    Peguei numa colher e saboreei umas farófias medianas.

    — Também tens uma baba-de-camelo que é uma maravilha. Posso dividir contigo.

    O meu amigo pediu baba-de-camelo ao empregado com quem discutira.

    — Ó Mário…

    Repetiu o nome com suavidade e doçura:

     — Ó Mário… somos amigos desde que havia dinossauros. Há bocado, fui parvo contigo. Não faças caso.

    O empregado deu-lhe uma palmada amiga no cocuruto e perguntou-lhe se ele queria um tira-nódoas, mas o meu amigo disse que não. Pareceu-me não ter percebido que tinha uma grande mancha na camisa.

    — Já não te cheira a naftalina?

    A sua cabeça absorta inclinava-se de novo sobre o telemóvel, como se o destino pendesse do que ali morava. Era a fácies de quem examinava e reexaminava até ter a certeza de que a sentença de morte fora, afinal, uma troca de nomes.

    Esperei uns momentos e repeti a pergunta num tom alto e grosso:

    — Ouve lá: já não te cheira a naftalina?

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    — Já passou.

    Os seus olhos moviam-se da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se desenhassem linhas.

    Quando veio a conta, decidiu que me pagava o almoço. Sendo a forretice, de longe, o seu pior defeito, disse-lhe que não, imaginando o que lhe doeria.

    — Quem convida é quem paga.

    — Isso nunca foi regra entre nós.

    Agarrou na conta, puxou de um cartão e acenou ao empregado.

    — Se quiseres, dá-lhe uma gorjeta.

    Pus todas as moedas de todas as cores que tinha em cima da mesa.

    — Fazes bem. O Mário é muito porreiro.

    — Tu é que estavas danado com ele.

    — O gajo é seis estrelas. Este restaurante só tem empregados muito bacanos. E come-se maravilhosamente aqui. Não achas?

    — O meu prato estava muito bom.

    — Esta vista é uma coisa incrível. Olha lá…

    Aquiesci.

    —  Por este preço, comer assim, ser tão bem atendido e ainda ver este rio ao fundo… Não conheço restaurante melhor. E tem as melhores farófias e a melhor baba-de-camelo do mundo.

    — Gostaste, então?

    — Já comi melhor aqui, mas gosto sempre.

    — Voltarei de bom grado. Ouve lá: ainda achas que há oitenta por cento de probabilidades de haver uma III Guerra Mundial nos próximos cinco anos?

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    — Como assim?

    — Estou a citar ipsis verbis o que disseste no início do almoço. Disseste que íamos os dois respirar poeira atómica brevemente.

    — Oh… isso foi metafórico.

    — Metafórico?

    — Não vai haver guerra nenhuma. Vamos dar um passeio pelo rio e fazer a digestão?

    Levantámo-nos e caminhámos pelo rio.

    — Já viste o luxo que é andarmos aqui a ver este azul com este sol depois de uma refeição destas?

    — O poder que elas têm sobre ti é tremendo, não é?

    O meu amigo passou o braço por trás do meu pescoço e pousou a mão no meu ombro direito.

    — A vida é bela, amigo. Somos todos perecíveis, o importante é encher a vida de coisas belas e com significado. Nós é que complicamos, porque contabilizamos sempre o que nos falta e não o que temos. Celebremos a nossa amizade, mas é. Tinha saudades de estar contigo, pá.  

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O nome e a coisa

    O nome e a coisa


    — Há aqui muitas coisas no teu texto que tens de substituir. Na página 4, referes «a atitude autista do Governo». Quando queres dizer que alguém não ouve ou se mostra insensível ou inflexível, não deves usar «autista» como insulto, porque estás a estigmatizar, a ofender, a perpetuar um estigma…

    — Tens razão. Deixa-me apontar. Eu altero isso.

    — Também recorres a outras doenças para insultar. Escreveste «bipolar nas suas opiniões» na página 83, e «a situação raia a esquizofrenia» na página 114. Não podes estar a…

    — Sim. Estou a anotar tudo.

    — Mas percebes?

    — Percebo. Não era minha intenção ofender…

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    — Não interessa! Isso ofende. Não sabes o que é…

    — Ei! O meu irmão tem trissomia 21.

    — Isso não te dá propriamente lugar de fala. Além disso, não quer dizer que não tenhas preconceitos inconscientemente.

    — Inconscientemente? Tu é que sabes? Nem o meu psicanalista ao fim de seis anos me apresentou cabalmente ao meu inconsciente.  

    — Sabias que um museu alemão criou um horário para pessoas não brancas? O museu Zeche Zollern, em Dortmund, reservou quatro horas aos sábados para criar um «espaço seguro» para pessoas racializadas, indígenas e outras que queiram visitar a exposição This Is Colonial [Isto É colonial]. Os responsáveis pelo museu defendem que o horário específico permitiria que essas pessoas pudessem explorar a exposição sem «ainda mais discriminação (mesmo que inconsciente)». Mesmo que inconsciente, ouviste bem?

    — Se não é consciente, é inconsciente. Já se nasce com culpa, é o que é. Deixa-me lá ver o que assinalaste no texto.

    — Vê tudo o que está em vermelho. Não assinalei nada de gramática ou de ortografia, só assinalei palavras e expressões ofensivas.

    — Estava à espera de que assinalasses isso e conselhos estilísticos… Sinal dos tempos. Bem, isto é só vermelhos! Olha lá, não assinalaste «cegueira» e «surdez»?

    a man walking a dog on a leash down a sidewalk

    — Foram usadas metaforicamente.

    — «Autista», «bipolar» e «esquizofrenia» também.

    — Não é a mesma coisa, não se referem à saúde mental, mas deixa-me assinalar essas também.

    — «Argumento deficiente» na página 127? Já sei, já sei. Altero também. É muito engraçado, pagas mal como o caraças, não tens nenhum negro ou trans na tua editora… mas siga. Bem, se virmos bem as coisas, até tens muitos negros e alguns trans… mas só nas fotografias das redes sociais. E se te preocupasses em contratar pessoas com essas características todas, em lugar de censurar palavras?

    — Não estou a censurar, porque não estou a excluir ninguém. Estou a usar linguagem que inclua todos.

    — «Todos» já não exclui?

    — «Todes» é mais inclusivo, de facto, mas ainda não me habituei.

    — Deves ter preconceitos… mesmo que inconscientes.

    — Mas eu admito que os tenho, ao contrário de ti. Estou num processo de desconstrução…

    — Para mim, é simples: «todos» abrange mesmo «todos». É a gramática.

    — A gramática pode ser muito opressora.

    — Tu és mais opressora do que a gramática. Escuta uma coisa: esta da página 139 não pode ficar?

    — É mais prudente não ficar.

    — Diz-me uma coisa: quem se sentirá melindrado com isto?

    — Deixa ver… «Tratado abaixo de cão». Não pode ser, porque passa a ideia de que os cães podem ser maltratados.

    adult chocolate Labrador retriever

    — Sou vegetariano, penso que tenho lugar de fala, ou se calhar não: só os cães é que terão lugar de fala. Vamos ter de decifrar como ladram perante essas expressões. Altero essas também. Já vi entretanto que assinalaste «maluco» e «palhaço»… também não posso usar «maluco» e «palhaço».

    — Se te informasses, saberias que hoje se diz «neurodivergente».

    — Mas isso é um grande saco em que cabe muita coisa, pelo que não saberemos do que estamos a falar…

    — Quanto a «palhaço», não podemos usar profissões para ofender.

    — Já te ouvi usar «azeiteiro» para desqualificar outras pessoas…  Nunca usaste «peixeira», «peixeirada»?

    — Teria de pensar nisso. Isto é todo um longo processo de desconstrução…

    — Não é longo, é infinito. Também marcaste que a «Europa é um anão militar»? É para não ofender os anões?

    — Claro. Além disso, são pessoas com nanismo. «Verticalmente desafiados» na língua inglesa.

    — Já reparaste que usaste «claro»? O Bloco de Esquerda tinha um cartaz com a frase «razões fortes, compromissos claros». A Joacine Katar Moreira escreveu: «A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava.» Lá está… deves ter preconceitos… mesmo que inconscientes.

    — Isto é todo um processo de…

    — … desconstrução, já sei. Mas porque tens de me desconstruir a mim também? A Branca de Neve e os Sete verticalmente Desafiados… Havia de ser bonito. Sabes que, para não ofender os anões, para não os estigmatizar, já propuseram a remoção dos anões do próximo filme da Disney? Curioso é que os actores anões, que têm lugar de fala, estão contra por uma estranhíssima razão: se isso for avante, perderão a oportunidade de representar. Parece que o ganha-pão é mais importante do que o putativo estigma.

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    — Continua a ver os vermelhos, por favor.

    — Assinalaste «prostituta» na página 240?

    — É trabalhadora do sexo que se diz.

    — Que verbo e substantivo usarás para exprimir a ideia de alguém se prostituiu. No sentido sexual ou não, «prostituir» e «prostituição» ficam como?

    — Isto é toda uma longa estrada de…

    — … desconstrução! Já sei, já sei. Se eu usar «comportamento nobre», estarei a ser classista? Quando dizes «oxalá», estás a promover o islamismo? Se eu disser que ele é um porco, um camelo, um urso, estou a pressupor que esses animais são usados para ofender, pelo que estarei a ser especista. Já nem digo «vaca» ou «cabra», porque são certamente expressões do patriarcado. Fu… Eu altero isto tudo, deixa. Continuemos.

    — O que tu não percebes é que não tens lugar de falar em todos os aspectos de que reclamas.

    — Se tivesse, poderia usar?

    — Talvez, não sei.

    — Eu pensava que tinha autoridade de usar as palavras que quero.

    — Não tens.

    — E quem te investiu dessa autoridade? O Espírito Santo? Já que falas em lugar de fala, ouço-te falar do que se deve fazer pelos pobres, desempregados, Negros, trans, mas tu não tens lugar de fala nenhum senão ser mulher! Olha que esse argumento se vira contra todos, a não ser que encontres um anão autista, racializado, cego, surdo e trans. Que é isto na página 350: «sem-abrigo»?

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    — É «pessoa em situação de sem-abrigo» que tem de estar.

    — Altero essa também, mas deixa-me que te diga uma coisa: devias mergulhar no proletariado para ver como se fala. Ficarias horrorizada. E mais: são muitas as situações em que não são essas minorias quem reclama, mas antes uma minoria ruidosa dentro dessas minorias que faz passar a ideia de que são a maioria dentro da minoria.

    — Continua a ver o que assinalei.

    — «Mercado negro»?

    — Nem de propósito. Lê este artigo aqui no Ciberdúvidas. Ouve bem: «Não podemos, todavia, esquecer que aqueles adeptos [os adeptos que insultaram Marega com base na cor da pele] não são os inventores da linguagem do ódio. Eles apenas usam o que já se encontra à disposição. É a própria sociedade que guarda, mantém e perpetua as expressões que veiculam o preconceito. Termos como “mercado negro”, “dinheiro negro”, “magia negra”, “lista negra” ou “humor negro” denunciam um preconceito associado à cor da pele, cuja origem se perde no tempo.»

    — Ah, os energúmenos racistas são vítimas destas expressões. Coitados… A culpa afinal nem é bem deles. É da malta que usa «mercado negro», «humor negro» e «magia negra». Espantoso. Imagino o neonazi a falar com o juiz: «Meritíssimo, tenha misericórdia de mim: eu ouvia muito “judiar”, “judiaria”, “mercado negro”, “futuro negro”, “cenário negro”, “humor negro”, e dei por mim a espancar negros e judeus.

    — Continuas preso a um paradigma cultural que está a ser abolido.

    — Eu altero o «mercado negro», descansa.

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    — Não revelas empatia, é o que é.

    — Poupa-me a isso, por favor. Sabes que a maior parte dos Negros que foi consultada nos Estados Unidos se revelou contra a substituição de black por «afro-americano», e que foi, contudo, este último que vingou na altura da transição dos conceitos? Espera, espera, espera… página 402, assinalaste «denegrir»?

    — Essa é claramente racista.

    — Nossa Senhora da Agrela! E «branquear» não é? Olha, sabes uma coisa? Mudei de opinião. Não vou alterar nada. Nada de nada. Não publiques o livro. Desisto.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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  • Que é isso de ser revisor?

    Que é isso de ser revisor?


    A pretexto da publicação do livro “Por amor à língua e à literatura“, de Manuel Monteiro, editado este mês pela Objectiva


    Ser revisor de textos como principal ocupação profissional é ter uma vida diferente. É ver menos pessoas do que na maior parte dos trabalhos. É estar em casa mais tempo. É não ter horários, mas prazos. (Nota: há revisores internos com horários e que revêem in loco, pese embora a crescente tendência para o teletrabalho.) É gozar do prazer de passar os dias a ler (verdade seja dita: nem sempre se lê aquilo de que se gosta, mas sempre se aprende algo) e ainda ser pago por isso. Um revisor é, por imperativo profissional, um leitor omnívoro. Um especialista das engrenagens da língua, das suas estruturas maiores às suas partículas mais ínfimas, aos seus ossinhos e parafusos.

    Quem se aventura na revisão deve estar preparado para conviver com a ingratidão. Porque o revisor sabe quão diferentes são os livros antes de passarem pelas suas mãos. E, contudo, eles reservam-lhe apenas um lugar minúsculo na ficha técnica (quando o reservam). Ao contrário de um tradutor, o nome do revisor não constitui um chamativo da obra, apesar do acréscimo de valor que dá aos livros que cinzela.

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    O revisor é, no fundo, o escritor da sombra que dá sol às obras, o duplo do actor de cinema que entra em cena quando este não está preparado para o salto. Dependendo da margem que as editoras e os autores lhe concedem, dependendo também do seu perfil — mais ou menos intervencionista —, ele pode ser um mero reparador de erros (deve ser mais do que isso, até porque deve trabalhar a eufonia, a clareza, entre outras dimensões), ou alguém que reescreve frases, embelezando-as. Sim, o bom revisor deve amar as palavras. Não poderá ser apenas um engenheiro ou um contabilista das mesmas. Só amando as palavras, poderá lascá-las, apará-las, envernizá-las, poli-las, perfumá-las.

    Seria muito útil publicar-se um livro de um grande escritor no estádio de pré-revisão, de modo que os leitores compreendessem a importância do revisor.

    São necessárias três características para o ofício.

    Primeira: boa cultura geral. Quanto mais assuntos se dominarem, mais erros de conteúdo se detectarão (muito poucas vezes se contrata um revisor científico, além do revisor linguístico, para obras mais especializadas). A língua é um manto que cobre todas as realidades, pelo que o revisor tem de trabalhar com a palavra certa da toponímia, da medicina, da psicologia, da filosofia, do direito, entre uma caterva de outros exemplos: «alugar» para bens imóveis é um erro da língua, porque é um erro à luz do direito.

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    Acresce que o revisor deve desconfiar de tudo-o-que-os-outros-tomam-por-garantido-porque-toda-a-gente-diz-assim, dado que há ziliões de situações destas, como a citação da liberdade de expressão permanentemente atribuída a Voltaire (mas que não é de Voltaire), ou o poema atribuído a Brecht que reza que «primeiro levaram os comunistas» (mas que não é de Brecht), ou o parque em Coimbra amiúde referido como Portugal dos Pequeninos (mas que se chama: Portugal dos Pequenitos).

    Segunda: elevada capacidade de concentração. Ao rever, é preciso ler simultaneamente com um duplo olhar: o olhar da forma, atento à vírgula que falta ou está a mais, aos particípios passados, ao clítico, ao infinitivo, a tanta coisa, e o olhar do conteúdo, que exclama «eureca!» quando a personagem que era coxa, em dado momento da narrativa, desata a correr mais do que as outras, ou quando o vocalista e o conjunto musical não combinam, estando um dos dois por corrigir. (Em cima disso, ainda deverá ler com o ouvido. E ler com o ouvido é menos familiar do que ler com o cérebro, ou seja, mais difícil.) Um revisor assemelha-se, neste sentido, a um trabalhador numa torre de controlo — a sua concentração tem de ser total e ininterrupta, porque a mínima distracção será fatal. Terceira: conhecerem-se as leis e os processos da língua, os seus erros mais frequentes, e, ainda assim, manter-se sempre a humildade de consultar todos os livros e todas as doutas opiniões.

    Há um corolário nocivo a que dificilmente qualquer revisor escapará: o seu olhar de leitor será contaminado pelo seu olhar de revisor. A fruição da leitura ressentir-se-á do seu sempre atento olho de lince, e, não raro, o revisor terá vontade de emendar o que lê. Mais do que isso: muitos revisores têm vontade de corrigir e ensinar os outros durante as conversas, a troca de mensagens, e até quando ouvem rádio ou vêem televisão ou cartazes na rua.   

    Por vezes, penso que a profissão que mais se aparenta com a do revisor é a do árbitro de futebol. Estranha comparação, dir-se-á em primeira análise. A verdade é que o único aspecto visível do trabalho de ambos é o erro. Dá-se pela existência de tais ofícios apenas quando falham. Pior: ao contrário do árbitro, no caso do revisor, o público nem sequer poderá dizer que ajuizou bem, pois não poderá analisar as situações que o revisor teve de resolver. Na cabeça de quem lê, as escolhas foram do escritor ou tradutor.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A fascinante persona de Fábio Fausto nas redes sociais…

    A fascinante persona de Fábio Fausto nas redes sociais…


    Antifascista

    Antipatriarcado

    Antigenocida (mas dos genocídios maus)

    Anti-imperalista

    Anti-islamofobia

    Antigordofobia

    Feminista e LGBTQIA+ (mas só para o Ocidente, porque é multiculturalista)

    Adora a Netflix, a Big Tech e a Big Pharma, mas odeia de morte o capitalismo

    É contra a especulação financeira (excepto a do filantropo Soros)

    Versões prováveis do Fábio Fausto

    Valoriza muito o sentido de humor nas pessoas (mas somente o humor inclusivo)

    Assim como há quem se benza com Pai, Filho e Espírito Santo, Fábio Fausto, sendo laico, benze-se com «Igualdade», «de» e «Género», mantra que repete cinquenta vezes por dia

    Gosta de pronomes inclusivos e só vai a Manhattan quando se chamar Womanhattan

    Prefere ler Herstory a ler History

    Usa peoplekind em lugar de mankind, porque é mais inclusivo

    Está numa relação aberta (ainda não informou a parceira, mas apenas porque não tem nenhuma)

    Pacifista

    Progressista

    Globalista

    Decolonial

    Pró-Ucrânia, mas anti-OTAN

    Pró-Palestina, vai a manifestações com a bandeira do arco-íris e a bandeira da Palestina

    Gosta de mulheres, mas afirma-se queer

    Sente as trepidações dos ventos do tempo e está sempre do lado do vento que sopra, não por oportunismo, mas apenas por querer estar sempre do lado do progresso

    Já viajou muito pelo mundo, pelas principais cidades cosmopolitas, vive na Lapa, gosta de viajar em executiva, de ir aos lugares mais finos do Príncipe Real e a hotéis de cinco estrelas, mas o seu coração está na Cova da Moura e no Bairro da Serafina, que são os seus destinos de sonho para uma viagem que ainda não realizou

    Não foi a muitas manifestações pelo Bem (com excepção das mais mediáticas), mas põe gosto em todas

    Sonha em linguagem inclusiva

    Adora gatos e livros, especialmente livros escritos por pessoas racializadas, mulheres e trans

    Apesar de não dispensar um bom bitoque na Portugália, sonha ser vegano

    Obcecado com questões de género e ecologia (ainda que troque de iPhone todos os anos e viaje muito de avião)

    Nunca faz generalizações nem tem preconceitos, excepto sobre a escumalha dos fogareiros (vulgo taxistas) e da bófia

    Nunca discriminou ninguém com base na classe, na etnia, no género ou na orientação sexual, porque não paga estágios remunerados a todes por igual

    Adora pessoas trans e a cultura africana, sobretudo nas redes sociais

    Nunca fez uma rasteira a um cego

    Gosta de ser fotografado com pessoas com perturbação do espectro do autismo e com trissomia 21, desde que haja legendas

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    Quando era pequeno, foi o primeiro a reciclar lixo no seu bairro

    Nunca, ao contrário dos colegas, apalpou uma menina quando era pequeno e está muito arrependido de ter contado uma anedota sexista aos doze anos

    Não é apologista da violência, mas já deu uns sopapos a uns fachos

    Hiperconsciente do seu privilégio de homem branco hétero e cis

    Principal qualidade: empatia (mas detesta e lincha pessoas tóxicas, tem de ser… não podemos ser tolerante com os intolerantes, já explicou Popper)

    Defeitos: só tem dois — detesta a hipocrisia e é muito teimoso na defesa dos seus ideais!

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O curioso percurso de Fábio Fausto…

    O curioso percurso de Fábio Fausto…


    O povo era quem mais ordenava, o povo era sábio, mas as coisas mudaram, e não poucos saíram da toca: afinal, o povo é medíocre, provinciano, boçal e estúpido. Em certas cabeças bem-pensantes, dizer mal do povo já não parece mal. Pelo contrário: parece bem. É chique. É cosmopolita. Mostra superioridade moral, intelectual e civilizacional. Há até nesses bem-pensantes quem veja os novos pobres como entes diferentes dos pobres de outrora: eles são, dizem-nos, a expressão máxima da mediocridade. Raras vezes, a aporofobia terá ido tão longe.

    Valerá a pena dizer que esse discurso só reforça o que alegadamente querem combater?

    Bem, estou aqui para falar de Fábio Fausto.

    grayscale photo of man with shop bags walking past beggar siting on sidewalk

    Fábio Fausto começou a carreira a fazer piadas sobre gajas, mamas ou falta delas, louras (que eram sempre burras), homossexuais, pobres e racializados (na época, a nomenclatura era outra). Havia quem o considerasse engraçado, havia quem o considerasse vulgar, mas Fábio Fausto tinha êxito comercial.

    Com os ventos do tempo a mudar, Fábio Fausto metamorfoseou-se num racista e machista em desconstrução. Hoje, dá prédicas que recebem muitos gostos e aplausos sobre os pensamentos malsãos dos homens e da sociedade, sobre as categorias mentais dos homens (que dividem as mulheres entre «putas» e «santas», afirma), e — aspecto mais irritante — gosta de policiar e moralizar os outros por coisas menos graves do que ele repetidamente fazia. A sua redenção de faceto boçal machizóide fez, qual Hulk rasgando a camisola, emergir um pregador feminista. A essa conversão, juntou-se outra: depois de muito descolonizar o pensamento, renasceu como anti-racista com a cartilha hodierna.

    Com a pletora de informação que tomba a toda a hora, se o que aconteceu há duas semanas aconteceu «há muito tempo», o que aconteceu há bastantes anos… não aconteceu, de modo que o Fábio Fausto actual não é confrontado com o Fábio Fausto pretérito quando faz o papel de inquisidor.

    A propósito de Fábio Fausto, alguém se lembra das declarações do Anjo Torquemada quando discutia o aborto com Paulo Portas? (O escriba destas linhas é insuspeito de ter simpatia por Paulo Portas e votou «sim» no referendo do aborto.)

    Aqui vão as declarações do Anjo Torquemada:

    «Não me fale de vida, não tem direito a falar de vida. O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Não tem a mínima ideia sobre o que isso é. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança.»

    five children smiling while doing peace hand sign

    Além de uma insinuação desprezível sobre a vida sexual de Paulo Portas, o Anjo Torquemada usou o mais estapafúrdio argumento: só quem tinha pelo menos uma filha (e gerada pelo próprio) poderia invocar o argumento do direito à vida.

    Quando a máscara dos Anjos Torquemadas cai, o rosto visível costuma assustar.

    Voltemos a Fábio Fausto.

    O Fábio Fausto de outros tempos ainda mora, porém, na cabeça de alguns (muito poucos, é certo). Dentro dessa minoria que se lembra do pretérito Fábio Fausto, há quem acredite que o pecador viu a luz; há quem veja mero oportunismo e gestão da carreira; e há até quem julgue ter Fábio Fausto mudado por acreditar ser assim que «saca umas gajas» (há quem garanta que, num contexto privado, ele fale assim, mas seja-lhe dado o benefício da dúvida, coisa que ele não dá aos outros).

    Talvez, quem sabe?, a resposta esteja em Freud: não odiamos nos outros aquilo que nos é distante, mas o que nos é interiormente próximo. Para o Pai da Psicanálise, o ódio não era o oposto do amor — a indiferença era o oposto do amor, pois ela, ao contrário do ódio e do amor, não tinha associada o vínculo ao objecto amado/odiado. Talvez, quem sabe?, a resposta esteja na síntese de Hermann Hesse: «Se odeia uma pessoa, odeia nela algo que faz parte de si.»

    Regressemos a Fábio Fausto, ainda que dele não tenhamos saído. A sua cronologia nas redes sociais é fascinante: na era dos confinamentos, andava muito indignado com a falta de civismo e humanidade, vituperando ajuntamentos e aqueles que não usavam máscara ou não praticavam o devido distanciamento social. Era uma questão de cidadania, dizia, ainda que frequentasse ajuntamentos lúdicos sem máscara. Quando se deu a invasão da Ucrânia, Fábio Fausto pôs a bandeira da Ucrânia. Mais recentemente, pôs a bandeira da Palestina e a bandeira do arco-íris (outra conversão), ainda que na primeira não haja possibilidade de bandeiras da segunda. Para que não restasse um grânulo de dúvida, inscreveu também nas redes sociais que era «antifascista». Pelo meio, tornou-se ainda num grande activista da habitação, dos transgénero e do clima.

    Versões prováveis do Fábio Fausto

    O que mais impressiona em Fábio Fausto, que não se distingue pela cultura geral, é conseguir apresentar-se como especialista instantâneo de todos os assuntos: epidemiologia, História da Ucrânia, conflito israelo-palestiniano, alterações climáticas, todas as ramificações das questões de género, todas as especificidades do mercado da habitação.

    Da minha parte, faço o enorme esforço de dar o benefício da dúvida a Fábio Fausto, mas, com novos ventos a soprar pela Europa (havia quem estranhamente entendesse haver uma singularidade lusa que nos tornaria imunes a tais ventos), se as coisas virarem muito (da minha parte, confesso que a AfD é, desses partidos, o que mais me infunde terror, vejam o que é esse partido e o que propõe para crianças com deficiência), suspeito de que Fábio Fausto não sacrificará tudo para lutar pelos seus mutantes ideais. Não estou a ver Fábio Fausto no Tarrafal. Não, ele não é desses. Se/quando o paradigma mudar, não me admiraria de o ver com a bandeira de Portugal nas redes sociais, a cantar o hino nacional e a exaltar os Descobrimentos, com a inscrição «Deus, Pátria e Família». Dirá então ser um antifascista em desconstrução.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A liberdade de dizer coisas abjectas

    A liberdade de dizer coisas abjectas


    1 – Comecemos pelo que deveria ser uma obviedade: defender a liberdade de expressão para as ideias A, B e C não é concordar com as ideias A, B e C. Não compreender isto é não compreender a essência da democracia. Ou defendemos a liberdade de expressão para exprimir ideias que consideramos abjectas, ou não defendemos a liberdade de expressão.

    2 – O artigo «Why Do Citizens Think They Cannot Speak Freely?», de Jan Menzner e Richard Traunmüller, publicado em 11 de Agosto de 2022 na revista Politische Vierteljahresschrift, refere que as restrições à liberdade de expressão têm assolado o mundo dito democrático, e que, na Alemanha, enquanto, em 1971, 83 % dos Alemães se sentiam livres para expressar a sua opinião política, volvidos 50 anos, em 2021, apenas 45 % sentiam tal liberdade. Muito mais dados destes poderiam ser trazidos à colação, designadamente no Reino Unido, em que o direito a não ser ofendido se tem sobreposto à liberdade de expressão, bastando um indivíduo sentir que foi vítima de uma ofensa criminal com base numa determinada característica identitária para isso engrossar as estatísticas dos crimes de ódio.

    angry face illustration

    3 – Entre todas as dissemelhanças das ditaduras, há, pelo menos, uma característica comum a todas: a ausência de liberdade de expressão.

    4 – Se o critério para erigir restrição de discurso for a existência de pessoas que se sintam ofendidas ou melindradas, e se quisermos abranger todos os potencialmente ofendidos ou melindrados, concluiremos que não poderemos falar de nada, porquanto haverá sempre tantas sensibilidades diferentes quantas pessoas houver no mundo. Acresce que vivemos num ambiente cultural em que tudo hoje encerra algo potencialmente ofensivo para alguém. Citando a humorista Joana Marques: «Lembro-me de uma senhora que se ofendeu muito quando falei de comida servida em tábuas. Achei que era dos temas mais inócuos de sempre. Serviu-me de lição.» Vejamos outro exemplo: em lugar de se discutir se Will Smith deveria ter sido expulso da cerimónia dos Óscares na sequência da agressão física a Chris Rock, por causa de uma piada sobre alopecia, o jornalismo centrou-se nos «limites do humor», numa época em que tantos são cancelados e perdem o emprego (por vezes, a carreira, veja-se o que aconteceu a Tim Hunt) devido a uma piada — o que foi cristalinamente sintomático da atmosfera cultural hodierna.

    5 – Para quem entende que as «más ideias» devem ser proibidas, de modo que não se propaguem, sublinhe-se que Hitler e Estaline (muitos outros exemplos podem ser invocados, refiro apenas estes dois por serem muito fortes e muito conhecidos) subscreviam tal crença e que aplicaram tal tese com denodo — e com as consequências que conhecemos.

    photography of woman standing on desert

    6 – Tal como Christopher Hitchens não conhecia um período da História dos Estados Unidos em que «um cerceamento da linguagem» correspondesse a «um alargamento dos direitos», também eu não conheço tal período histórico (nem sequer conheço quem conheça): nem nos Estados Unidos nem fora deles.

    7 – A liberdade de expressão é o corolário democrático de cada cabeça poder pensar diferentemente, e, por conseguinte, o direito de cada um a não ser garrotado quanto à possibilidade de expressão do seu pensamento.

    8 – O direito de liberdade de expressão não é apenas o direito de falar expresso no ponto 7 — é também o (muito menos falado) direito de ouvir e conhecer o que cada um pensa. Quanto maior a autocensura (a censura efectuada pelo próprio) e a heterocensura (a censura do Outro), menos ficamos a saber o que o Outro pensa, ou seja, mais facilmente somos enganados e manipulados. Vejamos um exemplo muito concreto: quem leu e ouviu os comentários feitos no dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, concluirá, se acreditar, que, no Ocidente, são quase, quase, quase todos feministas encartados.

    9 – Ao longo da História, a ortodoxia dominante foi, não raro, quebrada por vozes de quem era encarado como louco, perigoso, diabólico. Todas as vozes dissonantes têm razão só por serem contra a ortodoxia dominante de determinado tempo e determinado lugar? Evidentemente, não. Assinale-se apenas que, dentro dessas vozes dissonantes, pode haver uma ideia que, ultraminoritária e herética à época, constituirá o embrião das «boas ideias» do futuro. A História está pejada de exemplos e mártires destes.

    10 – Convirá sempre lembrar que erigir tabus não apaga essas ideias impronunciáveis de todas as mentes, mas que apenas esconde a dimensão da sua existência, podendo, com uma probabilidade que não deve ser subestimada, pavimentar a estrada para o surgimento de maiorias silenciosas, que um dia poderão explodir de forma descontrolada. Mais: no dia em que aparece Fulano a quebrar tais tabus, as pessoas poderão vingar-se nas urnas do longo silêncio acumulado.

    people in green and black jackets standing on green grass field during daytime

    11 – A persuasão é um método mais eficaz de mudar mentalidades do que a proibição por decreto ou do que a «proibição» pela via de um ambiente cultural muito opressivo. Para convencer o Outro de que X é melhor do que Y, costuma ser preferível propor e conquistar mentalidades a impor sem ter um número considerável de mentalidades conquistadas. Enquanto a persuasão, os argumentos, as estatísticas, os números, a lógica (e a dose certa de pathos, consoante os auditórios) podem incrustar uma ideia na cabeça do Outro, a proibição incute apenas o medo de se defender uma ideia, desistindo de a inculcar nas mentes alheias pela força das palavras e dos argumentos. Em suma: a proibição é, perdoe-se-me a rima, uma rendição. Quanto ao mais, a proibição vem acompanhada da fragrância sedutora da transgressão, permite a vitimização («Não me deixam falar! Fui censurado! Não posso dizer o que penso! É isto uma democracia?») e cria a dúvida («Se não podemos defender esta ideia, deve haver interesses muito fortes que a querem proibir», «Têm medo de que esta ideia se discuta, estão assim tão seguros dela? Têm medo de quê, afinal?»).

    12 – Se é verdade que a violência verbal pode, em certos casos, concitar a violência física, não é menos verdade que deixar os outros aliviar a tralha que os enraivece pode funcionar como um saco de pugilismo que lhes esvazia o ódio, a raiva e o ressentimento. Daqui se segue que tirar-lhes tal saco de pancada pode desaguar na solidificação do ódio, da raiva, do ressentimento e na expressão de uma maior violência física.

    13 – Quando a censura é desocultada, a ideia proibida e a pessoa amordaçada crescem em simpatizantes. Mais: a solidificação de ódios é garantida, e tanto maior quanto maior a pena para o que disse o que não deveria ter dito.

    14 – Há dois tipos de censura: não podes falar sobre x de certa forma (censura negativa) e tens de falar sobre y desta forma (vejam-se os critérios anunciados para os Óscares).

    grayscale photo of people on street near buildings during daytime

    15 – Muitos terão ouvido a frase atribuída a Voltaire (mas de Evelyn Beatrice): «Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.» Seria tão saudável que os habitantes do espaço público a repetissem diariamente e, acima de tudo, a aplicassem. Não deixa de ser curioso que tantos invoquem a liberdade de expressão, mas que tão poucos a invoquem para a defesa das ideias que não são as da sua tribo. Em matéria de confinamentos, da guerra na Ucrânia, de Israel versus Palestina, encontramos tantas pessoas que procuraram garrotar a opinião dos outros e que um dia descobriram o princípio sacrossanto da liberdade de expressão: o dia em que sentiram a expressão das suas ideias cerceada. É forçoso dizer-lhes, de modo que aprendam a duras penas: «Desculpe-me, mas não defendeu a liberdade de expressão para a ideia X. Como pode agora reclamar o sacrossanto direito da liberdade de expressão para a ideia Y?»

    Termino com uma sugestão: faça-se um inquérito, totalmente anónimo, que pergunte a cada jornalista, opinador e comentador: Sente total liberdade por parte da sua entidade patronal para dizer o que pensa?
    Quando escreve ou fala, o medo da reacção das redes sociais e da ortodoxia dominante leva-o/a a não dizer o que pensa?

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os tecnodeslumbrados

    Os tecnodeslumbrados


    Antes de me aventurar por assuntos mais densos, começo com uma história ligeira.

    Jantava com um amigo numa mesa de duas pessoas. Passado pouco tempo, uma vintena de indivíduos ocupou uma mesa próxima de nós. Não falavam, gritavam, enchendo o restaurante de ruído. Expeliam boçalidades de dois em dois grunhidos. Os seus rostos cintilavam de estupidez. O barulho era tanto, que mal conseguíamos ouvir‑nos. Até o som do seu riso era alarve e boçal, assim como as suas frases, piadas, penteados e roupa. Perguntei ao empregado se podíamos mudar de mesa, mas estavam todas ocupadas.

    Quando saímos do restaurante, comentei irritado com o meu amigo:

     — Mas que bimbos do caralho, porra!

     — Eu vi um bimbo.

     — Só um?!

     — Sim. Aquele que, quando tocou o telemóvel, nem sabia o botão para tirar o som. Ganda bimbo!

    Fiquei com a boca em ó. O meu amigo (décimo dan de tecnofilia) ainda me conseguia surpreender. De toda aquela selvajaria, o meu amigo só retivera que um não sabia tirar o som do telemóvel: eis o único critério na sua cabeça que permitia detectar um energúmeno.

    Outro episódio: falava com um amigo num café, e, em dado momento, fiquei em silêncio. Acto contínuo, ele começou a dizer: «Ꞌtou? Ꞌtou? Ꞌtou?»

    O meu amigo, de tanto falar ao telemóvel, pensou que eu, ali ao lado dele, me tinha transformado num telemóvel e ficado sem rede ou sem bateria…

    Já passei o jornal a uma amiga para ler uma notícia e reparei que ela mexia com os dedos no papel para ampliar a letra, como faz no telemóvel. Contou-me outra, acredite quem quiser, que já deu por si a clicar no canto superior de uma página de papel, como se estivesse a fechar uma página da Internet.

    Disse-me um amigo que, quando foi obrigado a usar uma singela esferográfica para preencher uns papéis, ficou assustado com a sua irreconhecível caligrafia, dado que não escrevia fora do computador e do telemóvel fazia decénios.

    Já vi uma pessoa a tentar entrar no meu prédio carregando no comando que abre a garagem. Cruzámos olhares, e o indivíduo deu um pequeno salto quando teve o clarão. 

    Jacques Ellul, um visionário que deve ser lido, avisou-nos: o caminho da sociedade tecnológica é o caminho de uma sociedade que privilegia crescentemente o reflexo em detrimento da reflexão. Ellul dava o exemplo do homem que conduzia a alta velocidade na auto-estrada. Só lhe era exigido que tivesse reflexos, pois uma reflexão a cento e cinquenta quilómetros por hora poderia ser fatal.

    person clicking Apple Watch smartwatch

    Mas tudo isto é nada quando lemos notícias atrás de notícias de jovens que se suicidaram por não conseguirem a selfie («autofoto» em português) perfeita, que morreram ao tirar uma selfie com armas ou em cima de rochas, de influenciadores que morreram durante ou depois de vídeos ao vivo no TikTok a fazer proezas como ver quem bebe mais, de criaturas que mataram e tiraram selfies com os assassinados. É possível fazer uma enciclopédia com estas notícias.

    Por que razão quase toda a gente tem cara de parva quando tira uma autofoto? (Perdão, uma selfie.)

    A propósito: chegará o dia em que os portugueses que não têm uma selfie com o Presidente Marcelo serão uma minoria?

    «Três em cada quatro jovens afirma [afirmam] já ter pensado em mudar a sua aparência por causa das redes sociais», revela-nos Teresa Amaro Ribeiro, em 9 de Junho de 2023, no Expresso.

    A tecnologia é uma força poderosíssima e avança sem referendos ou eleições. Invadindo todos os cantos e recantos, não poderia deixar de fora o modo como comunicamos. Sem sequer dissecar a substituição das palavras pelos emojis e outros quejandos, deixo uma observação sobre os efeitos da tecnofilia na linguagem, pública e privada, algo comprovável e comprovado dia após dia após dia após dia: há um uso constante de conceitos da informática e da tecnologia para tudo e mais alguma coisa — o programa do partido XYZ precisa de um upgrade; esta é a altura de fazer um reset ao metabolismo, de fazer um reset ao sedentarismo e aos maus hábitos, o Governo precisa de fazer um reset; o seu discurso, Senhor Deputado, é, em matéria de imigração, um copy-paste do discurso de Le Pen; lemos até que Liz Truss é uma versão 2.0 de Margaret Thatcher. Há, diga-se, versões 2.0 de tudo. E, claro, aconselhamos os outros a mudar o chip, lemos que a equipa ou o dirigente político mudaram o chip, que Fulano mudou o chip no discurso ou num dado comportamento.

    a man wearing a black t - shirt and a pair of virtual glasses

    O transumanismo em curso reflecte-se na linguagem.

    Já reparou como, hoje em dia, as pessoas são tal qual os computadores: a toda a hora, elas dizem que estão a «processar»? «Espera, ainda estou a processar», ouço, no mínimo dos mínimos, uma vez por semana.

    O próprio conceito de lar é transferido para a tecnologia: entramos em salas de conversação, em que temos inúmeros amigos, com cem aspas de cada lado, abrimos janelas. No período dos confinamentos, tivemos a aplicação (perdão, a app) designada Confession: A Roman Catholic App para os católicos confessarem os seus pecados.

    Alguém nas obscuras hierarquias nos pergunta como nos sentimos, de modo que, partilhando publicamente um átomo da nossa interioridade, atenuemos a solidão, afaguemos a vaidade, aliviemos a tralha que acumulamos e alimentemos a bisbilhotice. Já tive um telemóvel que me perguntava assim que o ligava: «Como está hoje?»

    Parafraseando George Orwell, o que está diante do nosso nariz é precisamente aquilo em que é mais difícil reparar. As ressonâncias religiosas na linguagem tecnológica não são poucas — estamos «ligados», estamos na «Rede», «salvamos» e «convertemos» documentos. Uma conhecidíssima marca tecnológica tem até o símbolo que associamos ao pecado original.

    Se, noutro século, Hegel entendeu ser a leitura do jornal a oração matinal do homem moderno, hoje, especialmente para as novas gerações, as «novidades» das redes sociais, o acto de consulta das inúmeras mensagens e notificações de toda a espécie são a nova oração matinal, ou… a prece de todas as horas. Por que razão toda a gente se sobressalta quando verifica o tempo que passou na Internet ou nas redes sociais? Porque o vício mascara o tempo cronológico. Khrónos, ensinaram-nos os Gregos, étimo em que assentam a «cronometragem», o «cronómetro», a «cronologia», a «cronobiografia», o «cronograma» (entre outros), é a ditadura da medição do tempo pelo relógio, conceito diferente de kairós, outra forma de tempo.

    No mundo laboral, sublinhe-se, o direito a desligar deveria ser um direito constitucionalmente consagrado.

    E a vida eterna, perguntarão alguns?

    Um excerto da imprensa (entre outros de semelhante jaez): «Elon Musk, por exemplo, está a trabalhar num projecto para ligar o cérebro humano a um computador. A ideia é “libertar” o cérebro do corpo, quando este estiver envelhecido, e abrir a porta para uma vida digital… eterna.»

    eye, eyelashes, macro

    Mais um paradoxo hodierno: nunca houve tantos canais de comunicação, enquanto os dados da saúde mental (cá e lá fora) são crescentemente tenebrosos, mormente entre os mais jovens, assim como dificilmente encontramos um período em que as pessoas se digam sentir tão sozinhas, pese embora a pletora de canais de comunicação que habitam. No Expresso, em 30 de Maio de 2023, lemos: «Estudo revela que 86% dos jovens portugueses estão viciados nas redes sociais […] 80% dos jovens prefere[m] comunicar pelas redes sociais, em vez de pessoalmente. Dois em cada cinco jovens reconhecem que as redes sociais têm impacto negativo na sua saúde mental.» Em 12 de Junho de 2023, o mesmo jornal revela-nos os dados de um estudo da OMS: «Segundo um estudo da Organização Mundial da Saúde, divulgado no ano passado, 28% dos adolescentes portugueses sentem-se infelizes e 9% dizem-se “tão tristes que não aguentam mais”.»

    Uma notícia do The Guardian merece a nossa máxima atenção. Conseguimos estar sozinhos com os nossos pensamentos? Parece que não. A experiência relatada pelo The Guardian consistia em estar sentado, sozinho, numa cadeira, sem distracções sensoriais. A única possibilidade de distracção era um botão que dava um choque eléctrico.

    Dois terços dos homens carregaram no botão que dava um choque eléctrico, descrito como doloroso, durante os quinze minutos em que permaneciam sentados consigo mesmos.

    Um deles deu o choque eléctrico a si mesmo cento e noventa vezes.

    Fala-se muito da necessidade de conviver (ou de socializar, como se diz hoje, ainda que este último conceito no sentido de «conviver» seja uma total invenção recente) e de saber interagir com os outros. Fala-se menos da sobredosagem de estímulos, da velocidade e instantaneidade como inimigas da memória (e temos hoje estudos que demonstram que o consumo de redes sociais e da Internet deterioram a memória e a qualidade do sono, enquanto diminuem drasticamente a capacidade e o tempo de atenção a um assunto), da reflexão e da decisão acertada, e sobretudo da incapacidade hodierna de sabermos estar sozinhos. Tinha razão Pascal ao entender que os problemas do Homem nasciam da incapacidade de estar sozinho num quarto.

    O Inferno nem sempre são os outros. O Inferno também somos nós.

    Pós-escrito: propus ao Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa (ILLLP) a inclusão dos verbetes «tecnofilia», «tecnófilo» e «tecnodeslumbrado» (esta última da minha alta recreação) no Dicionário da Língua Portuguesa (DLP).

    Citações do Unabomber por mim traduzidas

    «Quando uma nova tecnologia é introduzida como uma opção que um indivíduo pode ou não aceitar, isso não quer dizer necessariamente que PERMANEÇA [maiúsculas do autor] opcional. Em muitos casos, a nova tecnologia muda a sociedade de tal maneira, que as pessoas acabam por se ver forçadas a usá-la.»

    Theodore Kaczynski à saída do tribunal/ 4 de Abril de 1997. (Foto: D.R.)

    Technological Slavery: The Collected Writings of Theodore J. Kaczynski, a.k.a. “The Unabomber” (Feral House, 2010)

    «A sociedade de hoje tenta socializar-nos num grau maior do que qualquer sociedade anterior. Os especialistas dizem-nos até como devemos comer, fazer exercício físico, fazer amor, criar os nossos filhos e assim por diante.»

    Idem, ibidem

    «Quando se introduz uma inovação técnica, as pessoas normalmente tornam-se dependentes, de modo que deixam de conseguir passar sem ela, a não ser que seja substituída por alguma inovação ainda mais avançada. Não se trata apenas de os indivíduos se tornarem dependentes de um novo produto tecnológico, trata-se também, e em maior grau, de o sistema, no seu conjunto, se tornar dependente dele. (Imaginem o que ocorreria ao sistema actual se os computadores, por exemplo, fossem eliminados).»

    Idem, ibidem

    «Imaginem uma sociedade que sujeita as pessoas a condições que as fazem sentir-se terrivelmente infelizes, e que depois lhes dá as drogas para remover a infelicidade. Ficção científica? Já acontece de certo modo na nossa sociedade. [O autor instiga-nos longamente a pensar quantas pessoas conseguiriam aguentar a vida numa sociedade tecnológica hodierna sem recurso, por exemplo, à indústria do entretenimento ou a antidepressivos, e como uma sociedade tecnológica hodierna conseguiria domar o comportamento humano, garantindo a coesão social, sem recurso a antidepressivos, técnicas de videovigilância, propaganda de larga escala, indústria do entretenimento, etc.]»

    Kaczynski estudou em Harvard.

    Idem, ibidem

    «A selecção natural favorece sistemas de autopropagação que procuram a sua vantagem de curto prazo, com pouca ou nenhuma consideração pelas consequências de longo prazo.»

    Anti-Tech Revolution: Why and How (Soregra Editores, 2016)

    «Estudantes de acidentes industriais sabem que o sistema tem maior probabilidade de sofrer uma desagregação catastrófica quando (i) o sistema é altamente complexo (pequenas disrupções podem produzir consequências imprevisíveis) e (ii) inextricavelmente ligado (o desmoronamento de uma parte do sistema propaga-se rapidamente a outras partes). O sistema mundial tem sido altamente complexo por um longo tempo. O novo elemento introduzido é o sistema mundial ser agora inextricavelmente ligado. Isto é o corolário da existência de rápidas e mundializadas redes de transporte e comunicação, que tornam possível que o desmoronamento de uma parte do sistema mundial se propague rapidamente a outras partes. À medida que a tecnologia avança e a globalização galopa dominante, o sistema mundial torna-se ainda mais complexo e inextricavelmente ligado, de modo que uma desagregação catastrófica do mesmo deve ser esperada mais tarde ou mais cedo.»

    Idem, ibidem

    «Na minha vida nos bosques, encontrei certas satisfações que esperava, como liberdade individual, independência, um certo ingrediente de aventura e uma vida de baixo stresse. Também obtive algumas satisfações que não tinha compreendido profundamente ou previsto, ou até que chegaram a mim como surpresas completas. Quanto mais íntimo te tornas com a Natureza, mais aprecias a sua beleza. É uma beleza que não consiste apenas em imagens e sons, mas na apreciação do todo. Significativo é que, quando vives nos bosques, em vez de apenas os visitares, a beleza se torna parte da tua vida, em lugar de algo que apenas observas de fora. Relacionado com isto, parte da intimidade com a Natureza que adquires é a nitidez dos teus sentidos. Na vida da cidade, tendes, de certa forma, a virar-te para o interior. O ambiente que te circunda está inundado de imagens e sons irrelevantes, e ficas condicionado a bloquear a maior parte deles. Nos bosques, a tua percepção das coisas vira-se para o exterior, para o ambiente circundante, já que ficas muito mais consciente do que se passa em teu redor. Por exemplo, repararás em coisas inconspícuas no terreno, como plantas comestíveis e rastos de animais. Se um ser humano passou e deixou apenas uma pequena parte de uma pegada, provavelmente darás conta. Sabes os sons que chegam aos teus ouvidos: isto é o canto de pássaro, isto é o zumbido de moscardo, isto é o início da corrida de veado, isto é uma pinha arrancada por um esquilo e que aterrou num tronco. Se ouves um som que não consegues identificar, isso prende imediatamente a tua atenção, mesmo sendo tão débil, que seja dificilmente audível. Este alerta, esta abertura dos sentidos é dos maiores luxos de viver próximo da Natureza. Não consegues entender isto, a não ser que o tenhas experimentado. Outra coisa que aprendi é a importância de ter trabalho com propósito relevante. Ou seja, trabalho com propósito realmente importante – assuntos de vida e de morte. Não descobri verdadeiramente o que era a vida nos bosques até que a minha situação económica era tal, que tinha de caçar, colher plantas e cultivar um jardim para comer. Durante parte do tempo em Lincoln, especialmente entre 1975 e 1978, se não tivesse êxito a caçar, não tinha carne para comer. Do mesmo modo, não tinha vegetais se não os tivesse colhido ou cultivado. Não há nada mais prazeroso do que o preenchimento e a autoconfiança que esta auto-suficiência traz. Vivendo próximo da Natureza, descobre-se que a felicidade não é maximizar o prazer. É tranquilidade. Quando desfrutaste longamente da tranquilidade, adquires aversão à ideia de um prazer muito forte – um prazer excessivo cria uma disrupção na tua tranquilidade. Aprende-se ainda que o tédio é uma doença da civilização. Penso ser fundamentalmente tédio as pessoas terem constantemente de estar entretidas ou ocupadas, porque se não o estão, algumas ansiedades, frustrações, descontentamentos e outros quejandos começam a vir à superfície, e isso fá-las sentir-se desconfortáveis. O tédio é quase inexistente quando te adaptas à vida nos bosques. Se não tens trabalho que precisa de ser feito, podes sentar-te por horas não fazendo nada, apenas ouvindo os pássaros ou o som do vento ou o silêncio, observando as sombras a mover-se enquanto o Sol viaja, ou simplesmente observando objectos familiares. E não te aborreces, estás simplesmente em paz. Uma coisa que descobri quando vivia nos bosques é que ficas de tal modo, que não te preocupas quanto ao futuro, não te ralas com a morte, se as coisas estão bem agora, tu pensas “bem, se eu morrer na próxima semana, que importa?, as coisas estão bem agora”. Julgo ter sido Jane Austen quem escreveu num dos seus romances que a felicidade é sempre algo por que esperas, não algo que possuas em determinado momento. Isto não é sempre verdade. Talvez seja verdade na civilização, mas quando saltas fora do sistema e te readaptas a uma diferente forma de viver, a felicidade é algo que tens aqui e agora.»

    Entrevistas do autor às publicações periódicas Blackfoot Valley Dispatch e Earth First!

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Raios partam a ‘empatia’

    Raios partam a ‘empatia’


    Se copiasse todos os exemplos, só do último mês, do jornalismo e dos habitantes do espaço público que usaram «empatia», «empático», «empatizar» para este jornal, esse acervo teria muito mais caracteres do que todos os artigos do PÁGINA UM. (Não, não é ironia. É matemática.)

    Comecemos com exemplos respigados da linguagem publicada.

    grayscale photography of kids walking on road

    «Duas palavras: empatia e humildade», disse o então recém-empossado secretário-geral do Partido Socialista, em 13 de Janeiro de 2024, palavra que repetiria, assim como outros dirigentes políticos, na campanha eleitoral, designadamente nos debates das legislativas. Para muitos problemas de Portugal, não poucos políticos apresentam-nos a solução em sete letras: empatia. Muito recentemente, houve até quem apresentasse a solução para os protestos da polícia e demais sectores profissionais da seguinte forma: «É preciso empatia.»

    Outro exemplo, desta vez do jornalismo: «A empatia, de uma forma geral, é enganosa, mas, na área artística, sofre do eterno défice: não chega a 1 %.»

    Neste fim-de-semana, no programa televisivo A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, falavam das grandes duplas futebolísticas e, em dada altura, disseram que dois futebolistas… jogavam com… grande… empatia. Zeus!

    É impossível passar um só dia sem ser inundado dos vocábulos «empatia», «empático», «inclusão», «inclusivo» e seus familiares.

    Quer insultar alguém? Diga que lhe falta empatia.

    group of man gathering inside room

    Como se resolvem todos os problemas do mundo? Com empatia.

    O uso descomedido do vocábulo «empático» e da expressão «com empatia» redundou no inevitável: qualquer palavra que seja utilizada imoderadamente acaba por perder precisão semântica. Hodiernamente, em muitas situações, encontramo-las («empático», «com empatia», «empatizar») para exprimir conceitos distintos (e alguns distantes dos dicionarizados), como «compassivo», «compreensivo», «carismático», «simpático», «com inteligência interpessoal (acima da média)» (diferente de «inteligência intrapessoal»). Quando alguém adjectivar outro como sendo «empático», pergunte-se-lhe a definição.

    Temos de ser «empáticos», temos de ser «inclusivos», temos de cultivar e promover a «empatia» e a «inclusão» (a «diversidade» — ora explícita, ora implicitamente — é parceira da «inclusão»). Por paradoxal que possa parecer, a toda a hora, dizem-nos concomitantemente que devemos evitar pessoas «tóxicas» e relações «tóxicas». E temos, claro está, a crescentemente falada e escrutinada «masculinidade tóxica» (não deixa de ser curioso que se empreguem tantas vezes os vocábulos «misoginia»/«misógino», sem nunca se nomear sequer a misandria — certamente, a primeira superabunda, enquanto a segunda é inexistente), temos os «activos tóxicos», temos ambientes de trabalho «tóxicos», entre uma pletora de exemplos.

    white and black metal pipe

    Ficamos, por conseguinte, sem saber se quem é «tóxico» será digno de «empatia», e se a tão proclamada «inclusão» deverá abranger as pessoas «tóxicas».

    O historiador dos primeiros decénios da linguagem publicada do nosso século há-de interrogar-se atónito sobre dois paradoxos: aqueles que mais clamavam pela criminalização do discurso de ódio atiravam, do alto da torre da superlativa moralidade, frases prenhes de ódio, enquanto esbracejavam com as fácies carregadas de ressentimento e ódio, e inúmeras criaturas que tinham a empatia e a inclusão na boca a toda a hora estavam constantemente a sinalizar os outros como entes tóxicos de quem nos deveríamos afastar e, se possível, ostracizar e linchar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Velha Esquerda e a Nova Esquerda: de qual gosta mais?

    A Velha Esquerda e a Nova Esquerda: de qual gosta mais?


    A Velha Esquerda queria habitação e saúde para todos. A Nova Esquerda quer habitação e saúde para todes.

    A Velha Esquerda considerava a Disney um instrumento do imperialismo que promovia os valores do capitalismo e das classes dominantes. A Nova Esquerda acha a Disney fofinha e inclusiva, vendo nela uma aliada (ou aliade) dos grupos discriminados (ou grupes discriminades).

    A Velha Esquerda defendia as fábricas e quem nelas trabalhava. Para a Nova Esquerda, as fábricas são um grave problema quanto às alterações climáticas e constituem antros de repulsivos homens brancos heterossexuais cis que são racistas, misóginos, xenófobos, homofóbicos, transfóbicos, islamofóbicos e gordofóbicos.

    person holding tool during daytime

    A Velha Esquerda falava de operários e proletários. A Nova Esquerda fala em nome de conglomerados de minorias como se fossem monolíticas e como se lhe houvessem outorgado mandatos para as representar, excepto quando se trata da Palestina, porque nesse território não há mulheres nem homossexuais nem não-binários — há até os Queers for Palestine (não é piada), pelo que qualquer dia ainda veremos os Toureiros Veganos.

    Antes do apedrejamento: o autor destas linhas foi sempre favorável ao casamento homossexual e até é vegetariano.

    A Velha Esquerda queria que os trabalhadores tomassem conta dos meios de produção. A Nova Esquerda quer que haja diversidade de toda a espécie, mas apenas nos cargos mais remunerados, poderosos e mediáticos, porque os demais cargos estão cheios de «deploráveis», parafraseando a expressão («cesto de deploráveis») de Hillary Clinton.

    A Velha Esquerda era soberanista, antiglobalização e anti-EUA. A Nova Esquerda é anti-EUA, mas importa, sem traduzir para as realidades de cada país, todas as lutas e todos os conceitos do país que alegadamente detesta. Acresce que a Nova Esquerda é globalista.

    A Velha Esquerda lutava contra a existência de escravos no presente. A Nova Esquerda está mais preocupada com os escravos do passado, tendo até trocado o vocábulo «escravos» por «escravizados», e luta pela censura de palavras ofensivas em livros de autores mortos, por reparações históricas e pelo derrube de estátuas dos que pactuaram há séculos (na imaginação ou na realidade) com a escravatura, enquanto se aproveita dos escravizados dos TVDE para viagens de curta distância em que esses escravizados ganham cêntimos.

    person holding iphone 6 inside car

    A Velha Esquerda falava de exploração. A Nova Esquerda fala de inclusão, empatia e discriminação.

    A Velha Esquerda chegou a ser acusada de homofobia em 2015 (concretamente: de agressões verbais e físicas por pura homofobia) na sua maior festa anual. A Velha Esquerda afirmou ser a homossexualidade uma «coisa mesmo muito triste» (aspas de citação, ouça-se a entrevista de Carlos Cruz, de 1991, ao então secretário-geral Álvaro Cunhal). A Nova Esquerda, felizmente! (zero ironia), não fala assim (fala até em «orgulho gay» e em «género atribuído à nascença», algo bem diferente da orientação sexual, e que muitos insistem em confundir) nem agride ninguém LGBTQIA+ — excepto quando estão em causa Israel e a Palestina, como se viu no Finalmente, em que houve conflitos entre membros LGBTQIA+ e activistas pró-Palestina.

    A Velha Esquerda via um homem de unhas pintadas e chamava-lhe depreciativamente «burguês» (entre outros impropérios hoje impronunciáveis num texto jornalístico), preferindo representar os homens de unhas sujas do trabalho. A Nova Esquerda não aprecia unhas sujas e, quando vê um homem de unhas pintadas, chama-lhe «minoria discriminada», «grupo oprimido». Algumas franjas da Nova Esquerda vêem até nisto o motor do progresso, como a Velha Esquerda via na luta de classes o progresso da humanidade.

    group of people under garment

    Antes do linchamento: quem escreve estas linhas já foi, bastas vezes, com a cara e os lábios pintados a concertos dos The Cure, entre outros exemplos que poderia invocar (a vida privada não tem de ser transportada para os jornais), pelo que é inútil acusarem este escriba de perpetuar «papéis de género». Sim, os «papéis de género» podem ser castradores para muitos, designadamente para os homens, que foram mais limitados na sua socialização quanto à expressão de afectos e emoções (as mulheres são menos julgadas socialmente se se abraçarem, beijarem, chorarem na rua, se disserem que outra mulher é bonita, ainda que isto esteja a mudar), na indumentária, na maquilhagem, no que estupidamente se considera «roupa e coisas de mulher» (as mulheres usam calças e saias, pintam-se, e não são olhadas de lado por isso), no vasto rol de «profissões de mulher» (sim, também há quem entenda haver profissões de homem), etc., etc.

    É precisamente sobre a desconstrução de «comportamentos e emoções de mulher», ironicamente anunciada no título, que os supracitados The Cure se ocupam na música com que terminam muitos concertos: Boys don´t cry, canção que pretendia desmanchar a abstrusa ideia de que os homens a sério não deveriam chorar nem ter uma série de pensamentos e comportamentos considerados femininos.

    A Velha Esquerda queria agregar todos os que via como explorados. A Nova Esquerda quer segmentá-los e encontrar novas categorias identitárias até ao infinito, ou seja, até ao superlativo individualismo.

    assorted-color plastic interlocking toy lot

    A Velha Esquerda falava de luta de classes, acidentes laborais e salários em atraso. A Nova Esquerda fala de escolher os espaços públicos em função do género com que cada um/e se identifica, de masculinidade tóxica, de descolonizar o pensamento (ela diz: «decolonizar», porque é colonizada pelo inglês, que suprema ironia) e da necessidade de novos pronomes para acomodar novos géneros.

    De quando em quando, a Nova Esquerda, tal como a Velha Esquerda, gosta de usar métodos fascistas para combater aqueles a quem chama «fascistas», seja queimar cartazes ou livros. Haja alguma similitude em tanta diferença.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Palavras de todos os dias

    Palavras de todos os dias


    Agora

    Experimente ouvir uma pessoa na televisão, na rádio, num contexto público ou privado, a falar durante quinze minutos. Quantas vezes disse «agora»? Com o sentido de quê? De «mas», de «por outro lado», de elemento de ligação de raciocínios quando tacteia em busca das palavras, de coisíssima nenhuma.

    Exemplos deste (ab)uso que devemos evitar:

    «Concordo consigo… Agora… em relação à crise, eu não penso que haja crise alguma.»

    «Nada tenho contra a Paula… Agora… não me casava com ela.»

    «Os extremismos têm crescido. Agora… a melhoria da qualidade das instituições e da percepção que os Portugueses têm delas é importantíssima neste combate aos extremismos e populismos.  

    closeup photo of cutout decors

    Amigo

    Por preguiça, por macaqueação, por jactância («oh!, eu tenho muitos amigos, eu sou encantador»), por pudor em usar «um conhecido meu» (como se isso escondesse atritos e má vontade), por contaminação do mundo digital, em que aqueles que até podemos nunca ter visto na vida são «amigos» (repare-se que há tantas pessoas que têm milhares de «amigos» nas redes sociais e repare-se ainda na quantidade de vezes que ouvimos: «é meu amigo [nas redes sociais]», «não tenho a certeza, mas acho que somos amigos [nas redes sociais]»); por tudo isso, a palavra perde peso e solenidade — perde importância.

    Se tudo é especial, nada é especial.

    Se amamos tudo, não amamos nada.

    Se tudo está sublinhado, nada está sublinhado, porque o efeito diferenciador se perdeu.

    Se Fulano tem 50 mil «amigos», muito provavelmente não terá nenhum.

    Porque é o diamante um bem tão valioso?

    Porque é raro.

    a black and white photo of a wall

    Arrasar

    É impressionante o número de ocorrências, na linguagem publicada, na oralidade (seja num contexto público ou privado), deste verbo. No jornalismo, no mundo digital (notadamente nos títulos dos vídeos), o verbo superabunda. Se a equipa ganhou confortavelmente a outra, a equipa arrasou. Se Fulano esteve melhor numa discussão do que Sicrano, Fulano arrasou. Se Fulano criticou outro ou alguma coisa, Fulano arrasou outro ou alguma coisa. Se uma pessoa publicou fotografias sensuais ou se escolheu uma boa indumentária, essa pessoa, claro está, arrasou.

    Evento

    Saberão os jornalistas que, antes do moderninho anglicismo «evento» (saco em que cabe tudo), não se sentia falta de vocábulos para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? (Revisitem jornais «antigos».) Que a diversidade vocabular e a consequente precisão informativa eram outras?

    A lógica é esta:

    — Ó pá, não sei bem do que se trata…

    — Se não sabes bem o que é, põe aí que é um evento.

    Dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, palestras, festivais da marmota, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos.

    Quando não sabemos bem o que dizer, como definir, vamos ao saco das palavras e expressões que dão para tudo.

    green ceramic statue of a man

    Parafraseando Miguel Esteves Cardoso a propósito de outra expressão, quando dizemos «dentro do género», encerramos o assunto e o nosso interlocutor fica na mesma. O filme é bom? Dentro do género. Gostaste do professor? Dentro do género. Come-se bem lá? Dentro do género. Ele é giro? Dentro do género.

    Pecado mortal das traduções: passar sempre event para evento. Sim, é só acrescentar uma letrinha.

    Que dizer quando já temos os Grandes Eventos da Antiguidade e da Idade Média (colecção de DVD)? Que dizer quando lemos «eventos traumáticos», em lugar de «experiências traumáticas»? Etc., etc., etc.

    Expectativas e seus parentes

    «Anseio», «vontade», «desejo», «esperança», «previsão», «era o esperado»… alto lá! Tudo isso para quê? Hoje, bastam as «expectativas», que ainda têm os familiares «expectante», «expectável» e «expectar» a acompanhá-las diariamente.

    «O que nós expectámos aconteceu. Era o expectável.»

    three small figurines sitting in a row

    O horror, o horror.

    Repare ainda no seguinte: ora se usam as palavras «expectativas» e «expectável» com o sentido de aquilo que se desejava, ora com o sentido de aquilo que se previa. Amalgama-se tudo, é mais fácil. O que se transmite não vai ao encontro do que se pensa? Oh, purismos e preciosismos da treta.

    Impacto

    É oficial: já não há efeitos, consequências ou repercussões. Já não há choques ou embates. Só há impactos. Impactos que impactam. Impactos que são impactantes.

    Experimente passar um dia sem ler e ouvir esta praga. Um dia? Uma hora.


    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.