Ser revisor de textos como principal ocupação profissional é ter uma vida diferente. É ver menos pessoas do que na maior parte dos trabalhos. É estar em casa mais tempo. É não ter horários, mas prazos. (Nota: há revisores internos com horários e que revêem in loco, pese embora a crescente tendência para o teletrabalho.) É gozar do prazer de passar os dias a ler (verdade seja dita: nem sempre se lê aquilo de que se gosta, mas sempre se aprende algo) e ainda ser pago por isso. Um revisor é, por imperativo profissional, um leitor omnívoro. Um especialista das engrenagens da língua, das suas estruturas maiores às suas partículas mais ínfimas, aos seus ossinhos e parafusos.
Quem se aventura na revisão deve estar preparado para conviver com a ingratidão. Porque o revisor sabe quão diferentes são os livros antes de passarem pelas suas mãos. E, contudo, eles reservam-lhe apenas um lugar minúsculo na ficha técnica (quando o reservam). Ao contrário de um tradutor, o nome do revisor não constitui um chamativo da obra, apesar do acréscimo de valor que dá aos livros que cinzela.
O revisor é, no fundo, o escritor da sombra que dá sol às obras, o duplo do actor de cinema que entra em cena quando este não está preparado para o salto. Dependendo da margem que as editoras e os autores lhe concedem, dependendo também do seu perfil — mais ou menos intervencionista —, ele pode ser um mero reparador de erros (deve ser mais do que isso, até porque deve trabalhar a eufonia, a clareza, entre outras dimensões), ou alguém que reescreve frases, embelezando-as. Sim, o bom revisor deve amar as palavras. Não poderá ser apenas um engenheiro ou um contabilista das mesmas. Só amando as palavras, poderá lascá-las, apará-las, envernizá-las, poli-las, perfumá-las.
Seria muito útil publicar-se um livro de um grande escritor no estádio de pré-revisão, de modo que os leitores compreendessem a importância do revisor.
São necessárias três características para o ofício.
Primeira: boa cultura geral. Quanto mais assuntos se dominarem, mais erros de conteúdo se detectarão (muito poucas vezes se contrata um revisor científico, além do revisor linguístico, para obras mais especializadas). A língua é um manto que cobre todas as realidades, pelo que o revisor tem de trabalhar com a palavra certa da toponímia, da medicina, da psicologia, da filosofia, do direito, entre uma caterva de outros exemplos: «alugar» para bens imóveis é um erro da língua, porque é um erro à luz do direito.
Acresce que o revisor deve desconfiar de tudo-o-que-os-outros-tomam-por-garantido-porque-toda-a-gente-diz-assim, dado que há ziliões de situações destas, como a citação da liberdade de expressão permanentemente atribuída a Voltaire (mas que não é de Voltaire), ou o poema atribuído a Brecht que reza que «primeiro levaram os comunistas» (mas que não é de Brecht), ou o parque em Coimbra amiúde referido como Portugal dos Pequeninos (mas que se chama: Portugal dos Pequenitos).
Segunda: elevada capacidade de concentração. Ao rever, é preciso ler simultaneamente com um duplo olhar: o olhar da forma, atento à vírgula que falta ou está a mais, aos particípios passados, ao clítico, ao infinitivo, a tanta coisa, e o olhar do conteúdo, que exclama «eureca!» quando a personagem que era coxa, em dado momento da narrativa, desata a correr mais do que as outras, ou quando o vocalista e o conjunto musical não combinam, estando um dos dois por corrigir. (Em cima disso, ainda deverá ler com o ouvido. E ler com o ouvido é menos familiar do que ler com o cérebro, ou seja, mais difícil.) Um revisor assemelha-se, neste sentido, a um trabalhador numa torre de controlo — a sua concentração tem de ser total e ininterrupta, porque a mínima distracção será fatal. Terceira: conhecerem-se as leis e os processos da língua, os seus erros mais frequentes, e, ainda assim, manter-se sempre a humildade de consultar todos os livros e todas as doutas opiniões.
Há um corolário nocivo a que dificilmente qualquer revisor escapará: o seu olhar de leitor será contaminado pelo seu olhar de revisor. A fruição da leitura ressentir-se-á do seu sempre atento olho de lince, e, não raro, o revisor terá vontade de emendar o que lê. Mais do que isso: muitos revisores têm vontade de corrigir e ensinar os outros durante as conversas, a troca de mensagens, e até quando ouvem rádio ou vêem televisão ou cartazes na rua.
Por vezes, penso que a profissão que mais se aparenta com a do revisor é a do árbitro de futebol. Estranha comparação, dir-se-á em primeira análise. A verdade é que o único aspecto visível do trabalho de ambos é o erro. Dá-se pela existência de tais ofícios apenas quando falham. Pior: ao contrário do árbitro, no caso do revisor, o público nem sequer poderá dizer que ajuizou bem, pois não poderá analisar as situações que o revisor teve de resolver. Na cabeça de quem lê, as escolhas foram do escritor ou tradutor.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Feminista e LGBTQIA+ (mas só para o Ocidente, porque é multiculturalista)
Adora a Netflix, a Big Tech e a Big Pharma, mas odeia de morte o capitalismo
É contra a especulação financeira (excepto a do filantropo Soros)
Versões prováveis do Fábio Fausto
Valoriza muito o sentido de humor nas pessoas (mas somente o humor inclusivo)
Assim como há quem se benza com Pai, Filho e Espírito Santo, Fábio Fausto, sendo laico, benze-se com «Igualdade», «de» e «Género», mantra que repete cinquenta vezes por dia
Gosta de pronomes inclusivos e só vai a Manhattan quando se chamar Womanhattan
Está numa relação aberta (ainda não informou a parceira, mas apenas porque não tem nenhuma)
Pacifista
Progressista
Globalista
Decolonial
Pró-Ucrânia, mas anti-OTAN
Pró-Palestina, vai a manifestações com a bandeira do arco-íris e a bandeira da Palestina
Gosta de mulheres, mas afirma-se queer
Sente as trepidações dos ventos do tempo e está sempre do lado do vento que sopra, não por oportunismo, mas apenas por querer estar sempre do lado do progresso
Já viajou muito pelo mundo, pelas principais cidades cosmopolitas, vive na Lapa, gosta de viajar em executiva, de ir aos lugares mais finos do Príncipe Real e a hotéis de cinco estrelas, mas o seu coração está na Cova da Moura e no Bairro da Serafina, que são os seus destinos de sonho para uma viagem que ainda não realizou
Não foi a muitas manifestações pelo Bem (com excepção das mais mediáticas), mas põe gosto em todas
Sonha em linguagem inclusiva
Adora gatos e livros, especialmente livros escritos por pessoas racializadas, mulheres e trans
Apesar de não dispensar um bom bitoque na Portugália, sonha ser vegano
Obcecado com questões de género e ecologia (ainda que troque de iPhone todos os anos e viaje muito de avião)
Nunca faz generalizações nem tem preconceitos, excepto sobre a escumalha dos fogareiros (vulgo taxistas) e da bófia
Nunca discriminou ninguém com base na classe, na etnia, no género ou na orientação sexual, porque não paga estágios remunerados a todes por igual
Adora pessoas trans e a cultura africana, sobretudo nas redes sociais
Nunca fez uma rasteira a um cego
Gosta de ser fotografado com pessoas com perturbação do espectro do autismo e com trissomia 21, desde que haja legendas
Quando era pequeno, foi o primeiro a reciclar lixo no seu bairro
Nunca, ao contrário dos colegas, apalpou uma menina quando era pequeno e está muito arrependido de ter contado uma anedota sexista aos doze anos
Não é apologista da violência, mas já deu uns sopapos a uns fachos
Hiperconsciente do seu privilégio de homem branco hétero e cis
Principal qualidade: empatia (mas detesta e lincha pessoas tóxicas, tem de ser… não podemos ser tolerante com os intolerantes, já explicou Popper)
Defeitos: só tem dois — detesta a hipocrisia e é muito teimoso na defesa dos seus ideais!
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O povo era quem mais ordenava, o povo era sábio, mas as coisas mudaram, e não poucos saíram da toca: afinal, o povo é medíocre, provinciano, boçal e estúpido. Em certas cabeças bem-pensantes, dizer mal do povo já não parece mal. Pelo contrário: parece bem. É chique. É cosmopolita. Mostra superioridade moral, intelectual e civilizacional. Há até nesses bem-pensantes quem veja os novos pobres como entes diferentes dos pobres de outrora: eles são, dizem-nos, a expressão máxima da mediocridade. Raras vezes, a aporofobia terá ido tão longe.
Valerá a pena dizer que esse discurso só reforça o que alegadamente querem combater?
Bem, estou aqui para falar de Fábio Fausto.
Fábio Fausto começou a carreira a fazer piadas sobre gajas, mamas ou falta delas, louras (que eram sempre burras), homossexuais, pobres e racializados (na época, a nomenclatura era outra). Havia quem o considerasse engraçado, havia quem o considerasse vulgar, mas Fábio Fausto tinha êxito comercial.
Com os ventos do tempo a mudar, Fábio Fausto metamorfoseou-se num racista e machista em desconstrução. Hoje, dá prédicas que recebem muitos gostos e aplausos sobre os pensamentos malsãos dos homens e da sociedade, sobre as categorias mentais dos homens (que dividem as mulheres entre «putas» e «santas», afirma), e — aspecto mais irritante — gosta de policiar e moralizar os outros por coisas menos graves do que ele repetidamente fazia. A sua redenção de faceto boçal machizóide fez, qual Hulk rasgando a camisola, emergir um pregador feminista. A essa conversão, juntou-se outra: depois de muito descolonizar o pensamento, renasceu como anti-racista com a cartilha hodierna.
Com a pletora de informação que tomba a toda a hora, se o que aconteceu há duas semanas aconteceu «há muito tempo», o que aconteceu há bastantes anos… não aconteceu, de modo que o Fábio Fausto actual não é confrontado com o Fábio Fausto pretérito quando faz o papel de inquisidor.
A propósito de Fábio Fausto, alguém se lembra das declarações do Anjo Torquemada quando discutia o aborto com Paulo Portas? (O escriba destas linhas é insuspeito de ter simpatia por Paulo Portas e votou «sim» no referendo do aborto.)
«Não me fale de vida, não tem direito a falar de vida. O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Não tem a mínima ideia sobre o que isso é. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança.»
Além de uma insinuação desprezível sobre a vida sexual de Paulo Portas, o Anjo Torquemada usou o mais estapafúrdio argumento: só quem tinha pelo menos uma filha (e gerada pelo próprio) poderia invocar o argumento do direito à vida.
Quando a máscara dos Anjos Torquemadas cai, o rosto visível costuma assustar.
Voltemos a Fábio Fausto.
O Fábio Fausto de outros tempos ainda mora, porém, na cabeça de alguns (muito poucos, é certo). Dentro dessa minoria que se lembra do pretérito Fábio Fausto, há quem acredite que o pecador viu a luz; há quem veja mero oportunismo e gestão da carreira; e há até quem julgue ter Fábio Fausto mudado por acreditar ser assim que «saca umas gajas» (há quem garanta que, num contexto privado, ele fale assim, mas seja-lhe dado o benefício da dúvida, coisa que ele não dá aos outros).
Talvez, quem sabe?, a resposta esteja em Freud: não odiamos nos outros aquilo que nos é distante, mas o que nos é interiormente próximo. Para o Pai da Psicanálise, o ódio não era o oposto do amor — a indiferença era o oposto do amor, pois ela, ao contrário do ódio e do amor, não tinha associada o vínculo ao objecto amado/odiado. Talvez, quem sabe?, a resposta esteja na síntese de Hermann Hesse: «Se odeia uma pessoa, odeia nela algo que faz parte de si.»
Regressemos a Fábio Fausto, ainda que dele não tenhamos saído. A sua cronologia nas redes sociais é fascinante: na era dos confinamentos, andava muito indignado com a falta de civismo e humanidade, vituperando ajuntamentos e aqueles que não usavam máscara ou não praticavam o devido distanciamento social. Era uma questão de cidadania, dizia, ainda que frequentasse ajuntamentos lúdicos sem máscara. Quando se deu a invasão da Ucrânia, Fábio Fausto pôs a bandeira da Ucrânia. Mais recentemente, pôs a bandeira da Palestina e a bandeira do arco-íris (outra conversão), ainda que na primeira não haja possibilidade de bandeiras da segunda. Para que não restasse um grânulo de dúvida, inscreveu também nas redes sociais que era «antifascista». Pelo meio, tornou-se ainda num grande activista da habitação, dos transgénero e do clima.
Versões prováveis do Fábio Fausto
O que mais impressiona em Fábio Fausto, que não se distingue pela cultura geral, é conseguir apresentar-se como especialista instantâneo de todos os assuntos: epidemiologia, História da Ucrânia, conflito israelo-palestiniano, alterações climáticas, todas as ramificações das questões de género, todas as especificidades do mercado da habitação.
Da minha parte, faço o enorme esforço de dar o benefício da dúvida a Fábio Fausto, mas, com novos ventos a soprar pela Europa (havia quem estranhamente entendesse haver uma singularidade lusa que nos tornaria imunes a tais ventos), se as coisas virarem muito (da minha parte, confesso que a AfD é, desses partidos, o que mais me infunde terror, vejam o que é esse partido e o que propõe para crianças com deficiência), suspeito de que Fábio Fausto não sacrificará tudo para lutar pelos seus mutantes ideais. Não estou a ver Fábio Fausto no Tarrafal. Não, ele não é desses. Se/quando o paradigma mudar, não me admiraria de o ver com a bandeira de Portugal nas redes sociais, a cantar o hino nacional e a exaltar os Descobrimentos, com a inscrição «Deus, Pátria e Família». Dirá então ser um antifascista em desconstrução.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
1 – Comecemos pelo que deveria ser uma obviedade: defender a liberdade de expressão para as ideias A, B e C não é concordar com as ideias A, B e C. Não compreender isto é não compreender a essência da democracia. Ou defendemos a liberdade de expressão para exprimir ideias que consideramos abjectas, ou não defendemos a liberdade de expressão.
2 – O artigo «Why Do Citizens Think They Cannot Speak Freely?», de Jan Menzner e Richard Traunmüller, publicado em 11 de Agosto de 2022 na revista Politische Vierteljahresschrift, refere que as restrições à liberdade de expressão têm assolado o mundo dito democrático, e que, na Alemanha, enquanto, em 1971, 83 % dos Alemães se sentiam livres para expressar a sua opinião política, volvidos 50 anos, em 2021, apenas 45 % sentiam tal liberdade. Muito mais dados destes poderiam ser trazidos à colação, designadamente no Reino Unido, em que o direito a não ser ofendido se tem sobreposto à liberdade de expressão, bastando um indivíduo sentir que foi vítima de uma ofensa criminal com base numa determinada característica identitária para isso engrossar as estatísticas dos crimes de ódio.
3 – Entre todas as dissemelhanças das ditaduras, há, pelo menos, uma característica comum a todas: a ausência de liberdade de expressão.
4 – Se o critério para erigir restrição de discurso for a existência de pessoas que se sintam ofendidas ou melindradas, e se quisermos abranger todos os potencialmente ofendidos ou melindrados, concluiremos que não poderemos falar de nada, porquanto haverá sempre tantas sensibilidades diferentes quantas pessoas houver no mundo. Acresce que vivemos num ambiente cultural em que tudo hoje encerra algo potencialmente ofensivo para alguém. Citando a humorista Joana Marques: «Lembro-me de uma senhora que se ofendeu muito quando falei de comida servida em tábuas. Achei que era dos temas mais inócuos de sempre. Serviu-me de lição.» Vejamos outro exemplo: em lugar de se discutir se Will Smith deveria ter sido expulso da cerimónia dos Óscares na sequência da agressão física a Chris Rock, por causa de uma piada sobre alopecia, o jornalismo centrou-se nos «limites do humor», numa época em que tantos são cancelados e perdem o emprego (por vezes, a carreira, veja-se o que aconteceu a Tim Hunt) devido a uma piada — o que foi cristalinamente sintomático da atmosfera cultural hodierna.
5 – Para quem entende que as «más ideias» devem ser proibidas, de modo que não se propaguem, sublinhe-se que Hitler e Estaline (muitos outros exemplos podem ser invocados, refiro apenas estes dois por serem muito fortes e muito conhecidos) subscreviam tal crença e que aplicaram tal tese com denodo — e com as consequências que conhecemos.
6 – Tal como Christopher Hitchens não conhecia um período da História dos Estados Unidos em que «um cerceamento da linguagem» correspondesse a «um alargamento dos direitos», também eu não conheço tal período histórico (nem sequer conheço quem conheça): nem nos Estados Unidos nem fora deles.
7 – A liberdade de expressão é o corolário democrático de cada cabeça poder pensar diferentemente, e, por conseguinte, o direito de cada um a não ser garrotado quanto à possibilidade de expressão do seu pensamento.
8 – O direito de liberdade de expressão não é apenas o direito de falar expresso no ponto 7 — é também o (muito menos falado) direito de ouvir e conhecer o que cada um pensa. Quanto maior a autocensura (a censura efectuada pelo próprio) e a heterocensura (a censura do Outro), menos ficamos a saber o que o Outro pensa, ou seja, mais facilmente somos enganados e manipulados. Vejamos um exemplo muito concreto: quem leu e ouviu os comentários feitos no dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, concluirá, se acreditar, que, no Ocidente, são quase, quase, quase todos feministas encartados.
9 – Ao longo da História, a ortodoxia dominante foi, não raro, quebrada por vozes de quem era encarado como louco, perigoso, diabólico. Todas as vozes dissonantes têm razão só por serem contra a ortodoxia dominante de determinado tempo e determinado lugar? Evidentemente, não. Assinale-se apenas que, dentro dessas vozes dissonantes, pode haver uma ideia que, ultraminoritária e herética à época, constituirá o embrião das «boas ideias» do futuro. A História está pejada de exemplos e mártires destes.
10 – Convirá sempre lembrar que erigir tabus não apaga essas ideias impronunciáveis de todas as mentes, mas que apenas esconde a dimensão da sua existência, podendo, com uma probabilidade que não deve ser subestimada, pavimentar a estrada para o surgimento de maiorias silenciosas, que um dia poderão explodir de forma descontrolada. Mais: no dia em que aparece Fulano a quebrar tais tabus, as pessoas poderão vingar-se nas urnas do longo silêncio acumulado.
11 – A persuasão é um método mais eficaz de mudar mentalidades do que a proibição por decreto ou do que a «proibição» pela via de um ambiente cultural muito opressivo. Para convencer o Outro de que X é melhor do que Y, costuma ser preferível propor e conquistar mentalidades a impor sem ter um número considerável de mentalidades conquistadas. Enquanto a persuasão, os argumentos, as estatísticas, os números, a lógica (e a dose certa de pathos, consoante os auditórios) podem incrustar uma ideia na cabeça do Outro, a proibição incute apenas o medo de se defender uma ideia, desistindo de a inculcar nas mentes alheias pela força das palavras e dos argumentos. Em suma: a proibição é, perdoe-se-me a rima, uma rendição. Quanto ao mais, a proibição vem acompanhada da fragrância sedutora da transgressão, permite a vitimização («Não me deixam falar! Fui censurado! Não posso dizer o que penso! É isto uma democracia?») e cria a dúvida («Se não podemos defender esta ideia, deve haver interesses muito fortes que a querem proibir», «Têm medo de que esta ideia se discuta, estão assim tão seguros dela? Têm medo de quê, afinal?»).
12 – Se é verdade que a violência verbal pode, em certos casos, concitar a violência física, não é menos verdade que deixar os outros aliviar a tralha que os enraivece pode funcionar como um saco de pugilismo que lhes esvazia o ódio, a raiva e o ressentimento. Daqui se segue que tirar-lhes tal saco de pancada pode desaguar na solidificação do ódio, da raiva, do ressentimento e na expressão de uma maior violência física.
13 – Quando a censura é desocultada, a ideia proibida e a pessoa amordaçada crescem em simpatizantes. Mais: a solidificação de ódios é garantida, e tanto maior quanto maior a pena para o que disse o que não deveria ter dito.
14 – Há dois tipos de censura: não podes falar sobre x de certa forma (censura negativa) e tens de falar sobre y desta forma (vejam-se os critérios anunciados para os Óscares).
15 – Muitos terão ouvido a frase atribuída a Voltaire (mas de Evelyn Beatrice): «Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.» Seria tão saudável que os habitantes do espaço público a repetissem diariamente e, acima de tudo, a aplicassem. Não deixa de ser curioso que tantos invoquem a liberdade de expressão, mas que tão poucos a invoquem para a defesa das ideias que não são as da sua tribo. Em matéria de confinamentos, da guerra na Ucrânia, de Israel versus Palestina, encontramos tantas pessoas que procuraram garrotar a opinião dos outros e que um dia descobriram o princípio sacrossanto da liberdade de expressão: o dia em que sentiram a expressão das suas ideias cerceada. É forçoso dizer-lhes, de modo que aprendam a duras penas: «Desculpe-me, mas não defendeu a liberdade de expressão para a ideia X. Como pode agora reclamar o sacrossanto direito da liberdade de expressão para a ideia Y?»
Termino com uma sugestão: faça-se um inquérito, totalmente anónimo, que pergunte a cada jornalista, opinador e comentador: Sente total liberdade por parte da sua entidade patronal para dizer o que pensa? Quando escreve ou fala, o medo da reacção das redes sociais e da ortodoxia dominante leva-o/a a não dizer o que pensa?
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Antes de me aventurar por assuntos mais densos, começo com uma história ligeira.
Jantava com um amigo numa mesa de duas pessoas. Passado pouco tempo, uma vintena de indivíduos ocupou uma mesa próxima de nós. Não falavam, gritavam, enchendo o restaurante de ruído. Expeliam boçalidades de dois em dois grunhidos. Os seus rostos cintilavam de estupidez. O barulho era tanto, que mal conseguíamos ouvir‑nos. Até o som do seu riso era alarve e boçal, assim como as suas frases, piadas, penteados e roupa. Perguntei ao empregado se podíamos mudar de mesa, mas estavam todas ocupadas.
Quando saímos do restaurante, comentei irritado com o meu amigo:
— Mas que bimbos do caralho, porra!
— Eu vi um bimbo.
— Só um?!
— Sim. Aquele que, quando tocou o telemóvel, nem sabia o botão para tirar o som. Ganda bimbo!
Fiquei com a boca em ó. O meu amigo (décimo dan de tecnofilia) ainda me conseguia surpreender. De toda aquela selvajaria, o meu amigo só retivera que um não sabia tirar o som do telemóvel: eis o único critério na sua cabeça que permitia detectar um energúmeno.
Outro episódio: falava com um amigo num café, e, em dado momento, fiquei em silêncio. Acto contínuo, ele começou a dizer: «Ꞌtou? Ꞌtou? Ꞌtou?»
O meu amigo, de tanto falar ao telemóvel, pensou que eu, ali ao lado dele, me tinha transformado num telemóvel e ficado sem rede ou sem bateria…
Já passei o jornal a uma amiga para ler uma notícia e reparei que ela mexia com os dedos no papel para ampliar a letra, como faz no telemóvel. Contou-me outra, acredite quem quiser, que já deu por si a clicar no canto superior de uma página de papel, como se estivesse a fechar uma página da Internet.
Disse-me um amigo que, quando foi obrigado a usar uma singela esferográfica para preencher uns papéis, ficou assustado com a sua irreconhecível caligrafia, dado que não escrevia fora do computador e do telemóvel fazia decénios.
Já vi uma pessoa a tentar entrar no meu prédio carregando no comando que abre a garagem. Cruzámos olhares, e o indivíduo deu um pequeno salto quando teve o clarão.
Jacques Ellul, um visionário que deve ser lido, avisou-nos: o caminho da sociedade tecnológica é o caminho de uma sociedade que privilegia crescentemente o reflexo em detrimento da reflexão. Ellul dava o exemplo do homem que conduzia a alta velocidade na auto-estrada. Só lhe era exigido que tivesse reflexos, pois uma reflexão a cento e cinquenta quilómetros por hora poderia ser fatal.
Mas tudo isto é nada quando lemos notícias atrás de notícias de jovens que se suicidaram por não conseguirem a selfie («autofoto» em português) perfeita, que morreram ao tirar uma selfie com armas ou em cima de rochas, de influenciadores que morreram durante ou depois de vídeos ao vivo no TikTok a fazer proezas como ver quem bebe mais, de criaturas que mataram e tiraram selfies com os assassinados. É possível fazer uma enciclopédia com estas notícias.
Por que razão quase toda a gente tem cara de parva quando tira uma autofoto? (Perdão, uma selfie.)
A propósito: chegará o dia em que os portugueses que não têm uma selfie com o Presidente Marcelo serão uma minoria?
«Três em cada quatro jovens afirma [afirmam] já ter pensado em mudar a sua aparência por causa das redes sociais», revela-nos Teresa Amaro Ribeiro, em 9 de Junho de 2023, no Expresso.
A tecnologia é uma força poderosíssima e avança sem referendos ou eleições. Invadindo todos os cantos e recantos, não poderia deixar de fora o modo como comunicamos. Sem sequer dissecar a substituição das palavras pelos emojis e outros quejandos, deixo uma observação sobre os efeitos da tecnofilia na linguagem, pública e privada, algo comprovável e comprovado dia após dia após dia após dia: há um uso constante de conceitos da informática e da tecnologia para tudo e mais alguma coisa — o programa do partido XYZ precisa de um upgrade; esta é a altura de fazer um reset ao metabolismo, de fazer um reset ao sedentarismo e aos maus hábitos, o Governo precisa de fazer um reset; o seu discurso, Senhor Deputado, é, em matéria de imigração, um copy-paste do discurso de Le Pen; lemos até que Liz Truss é uma versão 2.0 de Margaret Thatcher. Há, diga-se, versões 2.0 de tudo. E, claro, aconselhamos os outros a mudar o chip, lemos que a equipa ou o dirigente político mudaram o chip, que Fulano mudou o chip no discurso ou num dado comportamento.
O transumanismo em curso reflecte-se na linguagem.
Já reparou como, hoje em dia, as pessoas são tal qual os computadores: a toda a hora, elas dizem que estão a «processar»? «Espera, ainda estou a processar», ouço, no mínimo dos mínimos, uma vez por semana.
O próprio conceito de lar é transferido para a tecnologia: entramos em salas de conversação, em que temos inúmeros amigos, com cem aspas de cada lado, abrimos janelas. No período dos confinamentos, tivemos a aplicação (perdão, a app) designada Confession: A Roman Catholic App para os católicos confessarem os seus pecados.
Alguém nas obscuras hierarquias nos pergunta como nos sentimos, de modo que, partilhando publicamente um átomo da nossa interioridade, atenuemos a solidão, afaguemos a vaidade, aliviemos a tralha que acumulamos e alimentemos a bisbilhotice. Já tive um telemóvel que me perguntava assim que o ligava: «Como está hoje?»
Parafraseando George Orwell, o que está diante do nosso nariz é precisamente aquilo em que é mais difícil reparar. As ressonâncias religiosas na linguagem tecnológica não são poucas — estamos «ligados», estamos na «Rede», «salvamos» e «convertemos» documentos. Uma conhecidíssima marca tecnológica tem até o símbolo que associamos ao pecado original.
Se, noutro século, Hegel entendeu ser a leitura do jornal a oração matinal do homem moderno, hoje, especialmente para as novas gerações, as «novidades» das redes sociais, o acto de consulta das inúmeras mensagens e notificações de toda a espécie são a nova oração matinal, ou… a prece de todas as horas. Por que razão toda a gente se sobressalta quando verifica o tempo que passou na Internet ou nas redes sociais? Porque o vício mascara o tempo cronológico. Khrónos, ensinaram-nos os Gregos, étimo em que assentam a «cronometragem», o «cronómetro», a «cronologia», a «cronobiografia», o «cronograma» (entre outros), é a ditadura da medição do tempo pelo relógio, conceito diferente de kairós, outra forma de tempo.
No mundo laboral, sublinhe-se, o direito a desligar deveria ser um direito constitucionalmente consagrado.
E a vida eterna, perguntarão alguns?
Um excerto da imprensa (entre outros de semelhante jaez): «Elon Musk, por exemplo, está a trabalhar num projecto para ligar o cérebro humano a um computador. A ideia é “libertar” o cérebro do corpo, quando este estiver envelhecido, e abrir a porta para uma vida digital… eterna.»
Mais um paradoxo hodierno: nunca houve tantos canais de comunicação, enquanto os dados da saúde mental (cá e lá fora) são crescentemente tenebrosos, mormente entre os mais jovens, assim como dificilmente encontramos um período em que as pessoas se digam sentir tão sozinhas, pese embora a pletora de canais de comunicação que habitam. No Expresso, em 30 de Maio de 2023, lemos: «Estudo revela que 86% dos jovens portugueses estão viciados nas redes sociais […] 80% dos jovens prefere[m] comunicar pelas redes sociais, em vez de pessoalmente. Dois em cada cinco jovens reconhecem que as redes sociais têm impacto negativo na sua saúde mental.» Em 12 de Junho de 2023, o mesmo jornal revela-nos os dados de um estudo da OMS: «Segundo um estudo da Organização Mundial da Saúde, divulgado no ano passado, 28% dos adolescentes portugueses sentem-se infelizes e 9% dizem-se “tão tristes que não aguentam mais”.»
Uma notícia do The Guardian merece a nossa máxima atenção. Conseguimos estar sozinhos com os nossos pensamentos? Parece que não. A experiência relatada pelo The Guardian consistia em estar sentado, sozinho, numa cadeira, sem distracções sensoriais. A única possibilidade de distracção era um botão que dava um choque eléctrico.
Dois terços dos homens carregaram no botão que dava um choque eléctrico, descrito como doloroso, durante os quinze minutos em que permaneciam sentados consigo mesmos.
Um deles deu o choque eléctrico a si mesmo cento e noventa vezes.
Fala-se muito da necessidade de conviver (ou de socializar, como se diz hoje, ainda que este último conceito no sentido de «conviver» seja uma total invenção recente) e de saber interagir com os outros. Fala-se menos da sobredosagem de estímulos, da velocidade e instantaneidade como inimigas da memória (e temos hoje estudos que demonstram que o consumo de redes sociais e da Internet deterioram a memória e a qualidade do sono, enquanto diminuem drasticamente a capacidade e o tempo de atenção a um assunto), da reflexão e da decisão acertada, e sobretudo da incapacidade hodierna de sabermos estar sozinhos. Tinha razão Pascal ao entender que os problemas do Homem nasciam da incapacidade de estar sozinho num quarto.
O Inferno nem sempre são os outros. O Inferno também somos nós.
Pós-escrito: propus ao Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa (ILLLP) a inclusão dos verbetes «tecnofilia», «tecnófilo» e «tecnodeslumbrado» (esta última da minha alta recreação) no Dicionário da Língua Portuguesa (DLP).
Citações do Unabomber por mim traduzidas
«Quando uma nova tecnologia é introduzida como uma opção que um indivíduo pode ou não aceitar, isso não quer dizer necessariamente que PERMANEÇA [maiúsculas do autor] opcional. Em muitos casos, a nova tecnologia muda a sociedade de tal maneira, que as pessoas acabam por se ver forçadas a usá-la.»
Theodore Kaczynski à saída do tribunal/ 4 de Abril de 1997. (Foto: D.R.)
Technological Slavery: The Collected Writings of Theodore J. Kaczynski, a.k.a. “The Unabomber” (Feral House, 2010)
«A sociedade de hoje tenta socializar-nos num grau maior do que qualquer sociedade anterior. Os especialistas dizem-nos até como devemos comer, fazer exercício físico, fazer amor, criar os nossos filhos e assim por diante.»
Idem, ibidem
«Quando se introduz uma inovação técnica, as pessoas normalmente tornam-se dependentes, de modo que deixam de conseguir passar sem ela, a não ser que seja substituída por alguma inovação ainda mais avançada. Não se trata apenas de os indivíduos se tornarem dependentes de um novo produto tecnológico, trata-se também, e em maior grau, de o sistema, no seu conjunto, se tornar dependente dele. (Imaginem o que ocorreria ao sistema actual se os computadores, por exemplo, fossem eliminados).»
Idem, ibidem
«Imaginem uma sociedade que sujeita as pessoas a condições que as fazem sentir-se terrivelmente infelizes, e que depois lhes dá as drogas para remover a infelicidade. Ficção científica? Já acontece de certo modo na nossa sociedade. [O autor instiga-nos longamente a pensar quantas pessoas conseguiriam aguentar a vida numa sociedade tecnológica hodierna sem recurso, por exemplo, à indústria do entretenimento ou a antidepressivos, e como uma sociedade tecnológica hodierna conseguiria domar o comportamento humano, garantindo a coesão social, sem recurso a antidepressivos, técnicas de videovigilância, propaganda de larga escala, indústria do entretenimento, etc.]»
Kaczynski estudou em Harvard.
Idem, ibidem
«A selecção natural favorece sistemas de autopropagação que procuram a sua vantagem de curto prazo, com pouca ou nenhuma consideração pelas consequências de longo prazo.»
Anti-Tech Revolution: Why and How (Soregra Editores, 2016)
«Estudantes de acidentes industriais sabem que o sistema tem maior probabilidade de sofrer uma desagregação catastrófica quando (i) o sistema é altamente complexo (pequenas disrupções podem produzir consequências imprevisíveis) e (ii) inextricavelmente ligado (o desmoronamento de uma parte do sistema propaga-se rapidamente a outras partes). O sistema mundial tem sido altamente complexo por um longo tempo. O novo elemento introduzido é o sistema mundial ser agora inextricavelmente ligado. Isto é o corolário da existência de rápidas e mundializadas redes de transporte e comunicação, que tornam possível que o desmoronamento de uma parte do sistema mundial se propague rapidamente a outras partes. À medida que a tecnologia avança e a globalização galopa dominante, o sistema mundial torna-se ainda mais complexo e inextricavelmente ligado, de modo que uma desagregação catastrófica do mesmo deve ser esperada mais tarde ou mais cedo.»
Idem, ibidem
«Na minha vida nos bosques, encontrei certas satisfações que esperava, como liberdade individual, independência, um certo ingrediente de aventura e uma vida de baixo stresse. Também obtive algumas satisfações que não tinha compreendido profundamente ou previsto, ou até que chegaram a mim como surpresas completas. Quanto mais íntimo te tornas com a Natureza, mais aprecias a sua beleza. É uma beleza que não consiste apenas em imagens e sons, mas na apreciação do todo. Significativo é que, quando vives nos bosques, em vez de apenas os visitares, a beleza se torna parte da tua vida, em lugar de algo que apenas observas de fora. Relacionado com isto, parte da intimidade com a Natureza que adquires é a nitidez dos teus sentidos. Na vida da cidade, tendes, de certa forma, a virar-te para o interior. O ambiente que te circunda está inundado de imagens e sons irrelevantes, e ficas condicionado a bloquear a maior parte deles. Nos bosques, a tua percepção das coisas vira-se para o exterior, para o ambiente circundante, já que ficas muito mais consciente do que se passa em teu redor. Por exemplo, repararás em coisas inconspícuas no terreno, como plantas comestíveis e rastos de animais. Se um ser humano passou e deixou apenas uma pequena parte de uma pegada, provavelmente darás conta. Sabes os sons que chegam aos teus ouvidos: isto é o canto de pássaro, isto é o zumbido de moscardo, isto é o início da corrida de veado, isto é uma pinha arrancada por um esquilo e que aterrou num tronco. Se ouves um som que não consegues identificar, isso prende imediatamente a tua atenção, mesmo sendo tão débil, que seja dificilmente audível. Este alerta, esta abertura dos sentidos é dos maiores luxos de viver próximo da Natureza. Não consegues entender isto, a não ser que o tenhas experimentado. Outra coisa que aprendi é a importância de ter trabalho com propósito relevante. Ou seja, trabalho com propósito realmente importante – assuntos de vida e de morte. Não descobri verdadeiramente o que era a vida nos bosques até que a minha situação económica era tal, que tinha de caçar, colher plantas e cultivar um jardim para comer. Durante parte do tempo em Lincoln, especialmente entre 1975 e 1978, se não tivesse êxito a caçar, não tinha carne para comer. Do mesmo modo, não tinha vegetais se não os tivesse colhido ou cultivado. Não há nada mais prazeroso do que o preenchimento e a autoconfiança que esta auto-suficiência traz. Vivendo próximo da Natureza, descobre-se que a felicidade não é maximizar o prazer. É tranquilidade. Quando desfrutaste longamente da tranquilidade, adquires aversão à ideia de um prazer muito forte – um prazer excessivo cria uma disrupção na tua tranquilidade. Aprende-se ainda que o tédio é uma doença da civilização. Penso ser fundamentalmente tédio as pessoas terem constantemente de estar entretidas ou ocupadas, porque se não o estão, algumas ansiedades, frustrações, descontentamentos e outros quejandos começam a vir à superfície, e isso fá-las sentir-se desconfortáveis. O tédio é quase inexistente quando te adaptas à vida nos bosques. Se não tens trabalho que precisa de ser feito, podes sentar-te por horas não fazendo nada, apenas ouvindo os pássaros ou o som do vento ou o silêncio, observando as sombras a mover-se enquanto o Sol viaja, ou simplesmente observando objectos familiares. E não te aborreces, estás simplesmente em paz. Uma coisa que descobri quando vivia nos bosques é que ficas de tal modo, que não te preocupas quanto ao futuro, não te ralas com a morte, se as coisas estão bem agora, tu pensas “bem, se eu morrer na próxima semana, que importa?, as coisas estão bem agora”. Julgo ter sido Jane Austen quem escreveu num dos seus romances que a felicidade é sempre algo por que esperas, não algo que possuas em determinado momento. Isto não é sempre verdade. Talvez seja verdade na civilização, mas quando saltas fora do sistema e te readaptas a uma diferente forma de viver, a felicidade é algo que tens aqui e agora.»
Entrevistas do autor às publicações periódicas Blackfoot Valley Dispatch e Earth First!
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Se copiasse todos os exemplos, só do último mês, do jornalismo e dos habitantes do espaço público que usaram «empatia», «empático», «empatizar» para este jornal, esse acervo teria muito mais caracteres do que todos os artigos do PÁGINA UM. (Não, não é ironia. É matemática.)
Comecemos com exemplos respigados da linguagem publicada.
«Duas palavras: empatia e humildade», disse o então recém-empossado secretário-geral do Partido Socialista, em 13 de Janeiro de 2024, palavra que repetiria, assim como outros dirigentes políticos, na campanha eleitoral, designadamente nos debates das legislativas. Para muitos problemas de Portugal, não poucos políticos apresentam-nos a solução em sete letras: empatia. Muito recentemente, houve até quem apresentasse a solução para os protestos da polícia e demais sectores profissionais da seguinte forma: «É preciso empatia.»
Outro exemplo, desta vez do jornalismo: «A empatia, de uma forma geral, é enganosa, mas, na área artística, sofre do eterno défice: não chega a 1 %.»
Neste fim-de-semana, no programa televisivo A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, falavam das grandes duplas futebolísticas e, em dada altura, disseram que dois futebolistas… jogavam com… grande… empatia. Zeus!
É impossível passar um só dia sem ser inundado dos vocábulos «empatia», «empático», «inclusão», «inclusivo» e seus familiares.
Quer insultar alguém? Diga que lhe falta empatia.
Como se resolvem todos os problemas do mundo? Com empatia.
O uso descomedido do vocábulo «empático» e da expressão «com empatia» redundou no inevitável: qualquer palavra que seja utilizada imoderadamente acaba por perder precisão semântica. Hodiernamente, em muitas situações, encontramo-las («empático», «com empatia», «empatizar») para exprimir conceitos distintos (e alguns distantes dos dicionarizados), como «compassivo», «compreensivo», «carismático», «simpático», «com inteligência interpessoal (acima da média)» (diferente de «inteligência intrapessoal»). Quando alguém adjectivar outro como sendo «empático», pergunte-se-lhe a definição.
Temos de ser «empáticos», temos de ser «inclusivos», temos de cultivar e promover a «empatia» e a «inclusão» (a «diversidade» — ora explícita, ora implicitamente — é parceira da «inclusão»). Por paradoxal que possa parecer, a toda a hora, dizem-nos concomitantemente que devemos evitar pessoas «tóxicas» e relações «tóxicas». E temos, claro está, a crescentemente falada e escrutinada «masculinidade tóxica» (não deixa de ser curioso que se empreguem tantas vezes os vocábulos «misoginia»/«misógino», sem nunca se nomear sequer a misandria — certamente, a primeira superabunda, enquanto a segunda é inexistente), temos os «activos tóxicos», temos ambientes de trabalho «tóxicos», entre uma pletora de exemplos.
Ficamos, por conseguinte, sem saber se quem é «tóxico» será digno de «empatia», e se a tão proclamada «inclusão» deverá abranger as pessoas «tóxicas».
O historiador dos primeiros decénios da linguagem publicada do nosso século há-de interrogar-se atónito sobre dois paradoxos: aqueles que mais clamavam pela criminalização do discurso de ódio atiravam, do alto da torre da superlativa moralidade, frases prenhes de ódio, enquanto esbracejavam com as fácies carregadas de ressentimento e ódio, e inúmeras criaturas que tinham a empatia e a inclusão na boca a toda a hora estavam constantemente a sinalizar os outros como entes tóxicos de quem nos deveríamos afastar e, se possível, ostracizar e linchar.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A Velha Esquerda queria habitação e saúde para todos. A Nova Esquerda quer habitação e saúde para todes.
A Velha Esquerda considerava a Disney um instrumento do imperialismo que promovia os valores do capitalismo e das classes dominantes. A Nova Esquerda acha a Disney fofinha e inclusiva, vendo nela uma aliada (ou aliade) dos grupos discriminados (ou grupes discriminades).
A Velha Esquerda defendia as fábricas e quem nelas trabalhava. Para a Nova Esquerda, as fábricas são um grave problema quanto às alterações climáticas e constituem antros de repulsivos homens brancos heterossexuais cis que são racistas, misóginos, xenófobos, homofóbicos, transfóbicos, islamofóbicos e gordofóbicos.
A Velha Esquerda falava de operários e proletários. A Nova Esquerda fala em nome de conglomerados de minorias como se fossem monolíticas e como se lhe houvessem outorgado mandatos para as representar, excepto quando se trata da Palestina, porque nesse território não há mulheres nem homossexuais nem não-binários — há até os Queers for Palestine (não é piada), pelo que qualquer dia ainda veremos os Toureiros Veganos.
Antes do apedrejamento: o autor destas linhas foi sempre favorável ao casamento homossexual e até é vegetariano.
A Velha Esquerda queria que os trabalhadores tomassem conta dos meios de produção. A Nova Esquerda quer que haja diversidade de toda a espécie, mas apenas nos cargos mais remunerados, poderosos e mediáticos, porque os demais cargos estão cheios de «deploráveis», parafraseando a expressão («cesto de deploráveis») de Hillary Clinton.
A Velha Esquerda era soberanista, antiglobalização e anti-EUA. A Nova Esquerda é anti-EUA, mas importa, sem traduzir para as realidades de cada país, todas as lutas e todos os conceitos do país que alegadamente detesta. Acresce que a Nova Esquerda é globalista.
A Velha Esquerda lutava contra a existência de escravos no presente. A Nova Esquerda está mais preocupada com os escravos do passado, tendo até trocado o vocábulo «escravos» por «escravizados», e luta pela censura de palavras ofensivas em livros de autores mortos, por reparações históricas e pelo derrube de estátuas dos que pactuaram há séculos (na imaginação ou na realidade) com a escravatura, enquanto se aproveita dos escravizados dos TVDE para viagens de curta distância em que esses escravizados ganham cêntimos.
A Velha Esquerda falava de exploração. A Nova Esquerda fala de inclusão, empatia e discriminação.
A Velha Esquerda chegou a ser acusada de homofobia em 2015 (concretamente: de agressões verbais e físicas por pura homofobia) na sua maior festa anual. A Velha Esquerda afirmou ser a homossexualidade uma «coisa mesmo muito triste» (aspas de citação, ouça-se a entrevista de Carlos Cruz, de 1991, ao então secretário-geral Álvaro Cunhal). A Nova Esquerda, felizmente! (zero ironia), não fala assim (fala até em «orgulho gay» e em «género atribuído à nascença», algo bem diferente da orientação sexual, e que muitos insistem em confundir) nem agride ninguém LGBTQIA+ — excepto quando estão em causa Israel e a Palestina, como se viu no Finalmente, em que houve conflitos entre membros LGBTQIA+ e activistas pró-Palestina.
A Velha Esquerda via um homem de unhas pintadas e chamava-lhe depreciativamente «burguês» (entre outros impropérios hoje impronunciáveis num texto jornalístico), preferindo representar os homens de unhas sujas do trabalho. A Nova Esquerda não aprecia unhas sujas e, quando vê um homem de unhas pintadas, chama-lhe «minoria discriminada», «grupo oprimido». Algumas franjas da Nova Esquerda vêem até nisto o motor do progresso, como a Velha Esquerda via na luta de classes o progresso da humanidade.
Antes do linchamento: quem escreve estas linhas já foi, bastas vezes, com a cara e os lábios pintados a concertos dos The Cure, entre outros exemplos que poderia invocar (a vida privada não tem de ser transportada para os jornais), pelo que é inútil acusarem este escriba de perpetuar «papéis de género». Sim, os «papéis de género» podem ser castradores para muitos, designadamente para os homens, que foram mais limitados na sua socialização quanto à expressão de afectos e emoções (as mulheres são menos julgadas socialmente se se abraçarem, beijarem, chorarem na rua, se disserem que outra mulher é bonita, ainda que isto esteja a mudar), na indumentária, na maquilhagem, no que estupidamente se considera «roupa e coisas de mulher» (as mulheres usam calças e saias, pintam-se, e não são olhadas de lado por isso), no vasto rol de «profissões de mulher» (sim, também há quem entenda haver profissões de homem), etc., etc.
É precisamente sobre a desconstrução de «comportamentos e emoções de mulher», ironicamente anunciada no título, que os supracitados The Cure se ocupam na música com que terminam muitos concertos: Boys don´t cry, canção que pretendia desmanchar a abstrusa ideia de que os homens a sério não deveriam chorar nem ter uma série de pensamentos e comportamentos considerados femininos.
A Velha Esquerda queria agregar todos os que via como explorados. A Nova Esquerda quer segmentá-los e encontrar novas categorias identitárias até ao infinito, ou seja, até ao superlativo individualismo.
A Velha Esquerda falava de luta de classes, acidentes laborais e salários em atraso. A Nova Esquerda fala de escolher os espaços públicos em função do género com que cada um/e se identifica, de masculinidade tóxica, de descolonizar o pensamento (ela diz: «decolonizar», porque é colonizada pelo inglês, que suprema ironia) e da necessidade de novos pronomes para acomodar novos géneros.
De quando em quando, a Nova Esquerda, tal como a Velha Esquerda, gosta de usar métodos fascistas para combater aqueles a quem chama «fascistas», seja queimar cartazes ou livros. Haja alguma similitude em tanta diferença.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Experimente ouvir uma pessoa na televisão, na rádio, num contexto público ou privado, a falar durante quinze minutos. Quantas vezes disse «agora»? Com o sentido de quê? De «mas», de «por outro lado», de elemento de ligação de raciocínios quando tacteia em busca das palavras, de coisíssima nenhuma.
Exemplos deste (ab)uso que devemos evitar:
«Concordo consigo… Agora… em relação à crise, eu não penso que haja crise alguma.»
«Nada tenho contra a Paula… Agora… não me casava com ela.»
«Os extremismos têm crescido. Agora… a melhoria da qualidade das instituições e da percepção que os Portugueses têm delas é importantíssima neste combate aos extremismos e populismos.
Amigo
Por preguiça, por macaqueação, por jactância («oh!, eu tenho muitos amigos, eu sou encantador»), por pudor em usar «um conhecido meu» (como se isso escondesse atritos e má vontade), por contaminação do mundo digital, em que aqueles que até podemos nunca ter visto na vida são «amigos» (repare-se que há tantas pessoas que têm milhares de «amigos» nas redes sociais e repare-se ainda na quantidade de vezes que ouvimos: «é meu amigo [nas redes sociais]», «não tenho a certeza, mas acho que somos amigos [nas redes sociais]»); por tudo isso, a palavra perde peso e solenidade — perde importância.
Se tudo é especial, nada é especial.
Se amamos tudo, não amamos nada.
Se tudo está sublinhado, nada está sublinhado, porque o efeito diferenciador se perdeu.
Se Fulano tem 50 mil «amigos», muito provavelmente não terá nenhum.
Porque é o diamante um bem tão valioso?
Porque é raro.
Arrasar
É impressionante o número de ocorrências, na linguagem publicada, na oralidade (seja num contexto público ou privado), deste verbo. No jornalismo, no mundo digital (notadamente nos títulos dos vídeos), o verbo superabunda. Se a equipa ganhou confortavelmente a outra, a equipa arrasou. Se Fulano esteve melhor numa discussão do que Sicrano, Fulano arrasou. Se Fulano criticou outro ou alguma coisa, Fulano arrasou outro ou alguma coisa. Se uma pessoa publicou fotografias sensuais ou se escolheu uma boa indumentária, essa pessoa, claro está, arrasou.
Evento
Saberão os jornalistas que, antes do moderninho anglicismo «evento» (saco em que cabe tudo), não se sentia falta de vocábulos para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? (Revisitem jornais «antigos».) Que a diversidade vocabular e a consequente precisão informativa eram outras?
A lógica é esta:
— Ó pá, não sei bem do que se trata…
— Se não sabes bem o que é, põe aí que é um evento.
Dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, palestras, festivais da marmota, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos.
Quando não sabemos bem o que dizer, como definir, vamos ao saco das palavras e expressões que dão para tudo.
Parafraseando Miguel Esteves Cardoso a propósito de outra expressão, quando dizemos «dentro do género», encerramos o assunto e o nosso interlocutor fica na mesma. O filme é bom? Dentro do género. Gostaste do professor? Dentro do género. Come-se bem lá? Dentro do género. Ele é giro? Dentro do género.
Pecado mortal das traduções: passar sempre event para evento. Sim, é só acrescentar uma letrinha.
Que dizer quando já temos os Grandes Eventos da Antiguidade e da Idade Média (colecção de DVD)? Que dizer quando lemos «eventos traumáticos», em lugar de «experiências traumáticas»? Etc., etc., etc.
Expectativas e seus parentes
«Anseio», «vontade», «desejo», «esperança», «previsão», «era o esperado»… alto lá! Tudo isso para quê? Hoje, bastam as «expectativas», que ainda têm os familiares «expectante», «expectável» e «expectar» a acompanhá-las diariamente.
«O que nós expectámos aconteceu. Era o expectável.»
O horror, o horror.
Repare ainda no seguinte: ora se usam as palavras «expectativas» e «expectável» com o sentido de aquilo que se desejava, ora com o sentido de aquilo que se previa. Amalgama-se tudo, é mais fácil. O que se transmite não vai ao encontro do que se pensa? Oh, purismos e preciosismos da treta.
Impacto
É oficial: já não há efeitos, consequências ou repercussões. Já não há choques ou embates. Só há impactos. Impactos que impactam. Impactos que são impactantes.
Experimente passar um dia sem ler e ouvir esta praga. Um dia? Uma hora.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A tolerância enxameia o discurso dos habitantes do espaço público. Quase ninguém se insurge contra o conceito insidiosamente servido a toda a hora. Se perguntarem aos habitantes e frequentadores do espaço público se tolerar é algo inerentemente bom, ouvirão um enfático «SIM» de quase, quase, quase todos eles. Fora da esfera pública, também empregamos o substantivo/nome «tolerância» (e o verbo «tolerar») como algo que devemos, a todo o custo, promover.
Que preferia ouvir sobre si: «respeito-o/a» ou «tolero-o/a»?
Acaso gostaria de ser «respeitado/a», «aceite» ou «tolerado/a»?
Ninguém dirá: «Gosto dele, mas tolero-o.» Mas muitos dizem: «Não gosto de X, mas tolero-o.» O lugar da adversativa deveria dizer-nos tudo sobre o conceito insidioso.
Ninguém terá garantido ouvido outrem dizer: «Ah, como gosto de ser tolerado!»
Gostamos e precisamos de tolerar e ser tolerados, ou de amar e ser amados?
Que será mais elogioso: dizer que amamos, respeitamos ou admiramos X, ou que toleramos X?
Reflicta sobre os exemplos anteriores e convide outros a reflectir sobre eles: andaremos a difundir um desiderato que não desejamos?
Etimologicamente, diz-nos o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, «tolerar» vem do latim com os significados «levar, suportar um peso, um fardo; aguentar, suportar, sofrer; aguentar-se; ficar, persistir; suster, manter, sustentar; resistir a, combater».
Sucede que tolerar é mesmo suportar um peso ou fardo. Assim como há pessoas com graus de tolerância maiores ou menores, há também pesos e fardos maiores ou menores.
Agostinho da Silva, no programa televisivo Conversas Vadias, com a entrevistadora Alice Cruz: «Tolerar é já marcar uma superioridade. […] Tolerar é dar licença, com desprezo, que o outro seja assim. Coitado, oxalá se modifique.»
Vai, pensamento crítico sobre a tão elogiada e proclamada tolerância, faz o teu caminho.
Filosofia
Quanto mais vezes usamos expressões como «a filosofia da empresa», «a filosofia de jogo da equipa», «a filosofia de jogo do treinador», «a equipa soube interpretar a filosofia do contra-ataque e da contenção de bola», «a filosofia de vendas», «a filosofia de atendimento ao cliente», mais trivializamos e abandalhamos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, entre tantos outros, ou seja, a filosofia e os filósofos (pretéritos, actuais e futuros).
Privilégio
Como se abusa desta palavra!
Uma coisa é saber que há pessoas sem emprego, sem tecto, que há quem morra à espera de cuidados médicos por falta de dinheiro, que há crianças que passam fome, que há quem não tire (nem possa tirar) férias, que há muitos escravos pelo mundo fora (sim, ainda há muitos, muitos, muitos, incluindo escravas sexuais), que há velhos que sofrem violência nos lares, que há pessoas que sofrem violência na sua própria casa.
Relativizarmos a nossa sorte, a nossa condição pode ser um refrigério para muitos e pode levar alguns a concluir que chega a ser indigno tanto sofrimento fútil, tanta amargura, quando há tanta gente com razões tão mais fundas para sofrer. Camões, num soneto, promete contar-nos a história dos seus longos males, porque, assevera, «grandes mágoas podem curar mágoas». Quatro séculos depois, Scott Fitzgerald, no confessional The Crack-Up, lembra a cura habitual para o desânimo e a melancolia: considerar aqueles que vivem em verdadeira pobreza material ou em sofrimento físico.
Outra coisa, bem diferente do que explanei até aqui, são as moderníssimas e ubíquas proclamações de que se teve, por exemplo, o «privilégio» de passar férias, entre uma caterva de «privilégios» que o discurso bem-pensante vai acumulando. Direitos elementares, muitos deles conseguidos à custa de lutas de séculos, são hoje apresentados como «privilégios».
As altas e obscuras hierarquias agradecem este nivelamento por baixo, consubstanciado na troca dos «direitos» pelos «privilégios». As pessoas adoram fustigar-se por fruírem dos direitos mais básicos, enxertando o inevitável «privilégio» na sua sinalização de virtude, com a sombra da expiação da culpa: privilégio de ter casa própria, privilégio de ter emprego, privilégio de ter contrato, privilégio de passar férias alhures, entre uma miríade de exemplos.
Esta autofustigação diz-nos que, no limite, ser homem é ter o privilégio de não ser violado. (Sim, também há homens violados, mas os números são incomparavelmente diferentes. Hoje, explicar tudo é sinal de prudência.)
Olhe, tenho o privilégio de não ser espancado diariamente, tenho o privilégio de não ser escravizado, tenho o privilégio de não trabalhar quinze a dezassete horas por dia como motorista TVDE.[1]
Combatamos a exploração sem chamar «privilegiados» a quem frui dos mais elementares direitos.
Fascista
De tão gasta e puída, a palavra deixou largamente de identificar aquele que perfilha determinada doutrina política. Hodiernamente, converteu-se no insulto fácil que, de tão utilizado e impreciso, já quase só significa: a expressão do Mal, com maiúscula inicial.
Em bom rigor, o fascismo consiste, afinal, em quê? Nem toda a «democracia musculada» (locução utilizada por muita comunicação social amalgamando regimes consideravelmente distintos) é fascista, nem todo o autoritarismo (que não é um sinónimo perfeito de «ditadura») é fascista, e nem sequer toda a ditadura é fascista.
Se queremos que a palavra inquiete o leitor/ ouvinte, devemos usá-la com mais parcimónia — e, acima de tudo, com precisão semântica. Mas, para isso, é mister estudar (no caso, o que foi o fascismo, estudo que implica mergulhar no regime de Mussolini).
Uma palavra que transporta consigo supressão de liberdades, presos políticos, tortura (e conheçam-se, com pormenor, as torturas em causa) e sepulturas (e só estas quatro horrendas características não chegam para definir a especificidade do fascismo, até porque são encontráveis noutros regimes que não se enquadram historicamente no «fascismo») não pode perder capacidade de evocação, de representação mental da lista de horrores. Tal palavra deve ser usada, insista-se, com mais parcimónia — e, por conseguinte, com mais viço, força e acutilância.
Conhece a história de Pedro e o Lobo? É isso mesmo.
[1] Facto noticiado, entre outros órgãos de comunicação social, pela TSF em 17 de Março de 2021: https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/ha-motoristas-tvde-a-trabalharem-15-a-17-horas-por-dia-13466711.html
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Gosto de anotar diálogos para os usar na ficção. Porquê? Porque gosto de que sejam o mais verosímeis possível.
Ultimamente, noto que as pessoas interrompem mais as outras para pôr o seu ego em cima da mesa. Tem a minha amostra significância estatística? Não sei. Pelo que ouço e observo (actividades a que me dedico com suficiente interesse e entrega), mais pessoas sentem o mesmo que eu.
Já ouvi um indivíduo contar, aflito, a experiência que tivera no fim-de-semana, a sensação de ver a morte a abeirar-se enquanto surfava, o medo e a sombra que ainda o acompanhavam, e ser subitamente interrompido a meio da história por outro:
— Isso não é nada. Eu já estive em ondas de oito e dez metros. Uma vez, em África… [E começou uma longa história com decénios, matando a possibilidade de o outro fazer a catarse do seu medo.]
Já ouvi pessoas a interromper outras que contam uma história cheia de mistério e drama a um grupo, para introduzir pormenores de absoluta irrelevância:
— E a senhora estava a esvair-se em sangue na margem da estrada. Saí do carro, fui ver o que podia fazer, liguei para o 112, e saiu um tipo de um descapotável azul para me gritar que eu não podia estar ali parado, e então tive de…
— Não, o carro não era azul, era cinzento. Tenho a certeza, porque tenho muito boa memória visual. Já na escola me elogiavam a memória visual. Com nomes, não sou tão bom.
Já ouvi anedotas que não chegaram ao fim, porque foram interrompidas por aquele que tem de ser sempre o ocupante-mor do palco:
— Eu conheço essa, é muito antiga.
Num ápice, abreviou a anedota e revelou o final. Acrescentou de seguida:
— Muito melhor do que essa é aquela… [E daí em diante, substituiu o orador da anedota, desatando a contar anedotas em que ria mais do que todos os ouvintes e marcando o ritmo com a invariável frase: «Esta é muito boa, não é?»]
Já ouvi pessoas dizer que fazem anos nesse dia, esperando receber, no mínimo, os parabéns, e que, em lugar de receberem umas palavras sobre o seu aniversário, ouviram:
— Curioso, o meu filho também faz anos no dia vinte e seis como tu, mas em Outubro. E a minha filha faz três dias antes, no dia vinte e três, mas também faz noutro mês: faz em Janeiro. E o meu irmão faz no dia vinte e um de Maio. Fazem todos entre vinte e um e vinte e seis com dois, três e cinco dias de intervalo cada um.
Recentemente, tomei nota do seguinte diálogo:
— Estou doente.
— Olha, eu estive doente há dois meses. Não foi bem há dois meses. Foi há um mês e meio. Mês e meio, dois meses. Sim, por aí. Estava com uma dor de cabeça, uma sensação estranha pelo corpo. Quando pensava que estava curado, baixei a guarda e… olha… tive uma recaída. Fiquei com a vida suspensa, ainda hoje tenho coisas atrasadas. Estou para aqui a tratar de coisas que deixei penduradas.
— Eu estou com…
— Pois, agora há uma série de coisas, é só pessoas com vírus, gripes, alergias. Conheço tanta gente que está doente.
— Nem me deixaste dizer com o que é que estou.
— Não te irrites.
— Dizer-te que não me deixaste dizer com o que é estou é a expressão de um facto.
— Que raio de linguagem é essa com um amigo? «É a expressão de um facto»? Parece que estou no tribunal.
— Tu não me deixaste dizer sequer o que tenho. Tu só falas de ti.
— Bem, hoje decidiste sentar-me no banco dos réus. Só falo de mim? Até estava a falar de pessoas que conheço. Isso que disseste é bastante injusto. Olha, estou agora a tratar de uma série de problemas da vida dos outros. Estava a tentar animar-te, tu é que disseste que eu só falava de mim. Porque sentiste necessidade de me atacar? Compreendo, estás doente. Mas não é a atacares quem é teu amigo e te ajuda que vais melhorar. Quando eu estava doente, nunca ataquei ninguém. Antes pelo contrário! É que não adianta mesmo nada atacares quem te ajuda.
— Quem é amigo ouve, especialmente na doença, que ainda nem sabes qual é. Se eu te dissesse que me tinha morrido um ente querido, procurando desabafar contigo, também me dirias a lista de conhecidos teus a quem morreu um ente querido?
— Tenho a paciência de um santo. É o segundo insulto e a segunda mentira. Só falo de mim, primeira mentira. Não sou amigo, segunda mentira. Estás a ser extremamente estúpido e extremamente injusto.
— Isso não é um insulto?
— Não. É a expressão de um facto! Além disso, quem é que começou a insultar? E outra coisa: o que eu disse é verdade, ao contrário do que tu disseste, que é mentira. E eu disse «estás», não disse «és»!
— Não vou discutir mais, porque não adianta e porque estou com trinta e nove de febre.
— Não adianta, não, sabes que tenho razão.
— Mudando de assunto, para a semana, faço anos e vou celebrar o meu aniversário. Se melhorar, claro. Marca já na agenda o dia 10, O. K.?
— Vê lá se queres um não-amigo na tua festa.
Termino com uma nota para todos os escrevinhadores inflados que querem publicar a sua escrita sem nunca ter lido um livro, para os influenciadores de toda a espécie e pinta que usam «eu» em todas as frases, para os teorizadores que pensam que a sua vida permite extrapolar máximas e teorias para todos (que, coitados, não terão vida), para os egomaníacos que escoam a vida para as redes sociais, sejam as fraldas do bebé, os pratos que comem, seja o gato, sejam desabafos diarísticos: não é por ter acontecido a ti que isso é importante para o mundo.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.