Autor: Manuel Matos Monteiro

  • Lugares-comuns

    Lugares-comuns


    A banalização dos adjectivos banais tornou-se uma praga ‘devastadora’ que matam qualquer representação mental.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • Palavras ubíquas

    Palavras ubíquas


    Como se macaqueia a língua usando palavras ubíquas sem sentido e com desmazelo.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • Escravismo ou esclavagismo?

    Escravismo ou esclavagismo?


    Há quem prefira ser escravo dos neologismos, ficando preso aos disparates.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • Bucal ou bocal, eis a questão

    Bucal ou bocal, eis a questão


    Ouça o Manuel Monteiro para saber que não se faz higiene bucal com o bocal da mangueira.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • As dores da concordância

    As dores da concordância


    Se só lhe ‘dói’ as costas, é porque a outra metade ainda está bem, apesar do seu português andar mal…

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • A praga do ‘auto’

    A praga do ‘auto’


    O abuso despropositado do prefixo ‘auto’ chegou a tal ponto que, se não houver travão, ainda havemos de ouvir alguém dizer: “fulano auto-suicidou-se”, dobrando o suicídio e triplicando a redundância.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • Frequências

    Frequências


    Nem sempre quem promete visitas bimensais aparece quinzenalmente.

    Nem sempre quem promete visitas bimestrais aparece quinzenalmente. Esta e outras particularidade sobre frequências temporais no programa de hoje de ‘Língua na Cama’.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • Hífen

    Hífen


    O hífen (do grego hyphen, “em conjunto”) é um sinal gráfico (–) usado para ligar palavras ou elementos de palavras. No português, tem funções bem definidas, e as regras são… digamos, um pouco traiçoeiras.

    Subscreva gratuitamente o novo canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

    Na nova rubrica do PÁGINA UM ‘Língua na Cama’, Manuel (Matos) Monteiro – escritor e um dos melhores cultores da Língua Portuguesa, além de formador da Escola da Língua – escalpeliza, de forma caseira e descontraída, erros frequentes do nosso idioma, curiosidades linguísticas, maravilhas idiomáticas. Aprenda e divirta-se.

    ‘Língua na Cama’ é serviço público de qualidade para os leitores do PÁGINA UM.

  • O ocaso de Fábio Fausto

    O ocaso de Fábio Fausto


    Fábio Fausto não criava nada havia anos. Durante bastante tempo, para não ficar ancorado no vácuo, dedicou-se à contemplação do êxito pretérito, e isso funcionara como uma poderosíssima droga — passara dois terços do tempo a escutar a sua voz e a examinar-se em vídeos, e o outro terço a esquadrinhar o que haviam dito sobre Fábio Fausto e a sua obra: quilómetros e quilómetros e quilómetros de elogios que não conseguira ler e ouvir no pináculo da fama. Talvez tivesse ouvido mil e quinhentas vezes (mil?, duas mil?) os segundos em que um excelso crítico estrangeiro declarara ter Fábio Fausto «expandido e redefinido os limites da arte como ninguém», e lido cerca de quatrocentas vezes o influenciador que sentenciara: «A sua persona reinventou a própria ideia de carisma.» 

    Triturado sob a pletora de novos artistas de pechisbeque, sentia-se, dia após dia, crescentemente apartado do mundo. A revolta e a solidão ardiam dentro de si — o paladar amestrado pela tirania do oco evanescente perdera a capacidade de distinguir a futilidade mais óbvia da genialidade que ocorria duas ou três vezes num século.

                                               

    Procurava acreditar que o tempo depuraria tudo, mas a glória póstuma não o sossegava, e nem dela estava seguro. A própria ideia de o tempo ser o grande juiz da arte assentava no dogma de que, no futuro longínquo, continuaria sempre a haver respeitáveis criaturas que fossem escutadas por outras em número suficiente — algo de que já tinha muitas dúvidas.

    Fábio Fausto não queria apenas cravar uma faca no futuro longínquo. Almejava a eternidade. Sabia, sem grânulo de dúvida, que a merecia.

    O tempo movia-se, e a obra de Fábio Fausto crescia em esquecimento e indiferença. A ansiedade deslizava para a angústia: estaria o Sol eternamente condenado a viver escondido nas trevas?

    As suas últimas criações, que tinha a certeza de serem as melhores, não haviam comovido o público nem a crítica.

    Fábio Fausto temia ainda que não sobreviesse nenhum resplendor ao que já apresentara ao mundo — muito provavelmente, nunca faria nada tão bom como outrora, pelo que preferia não fazer nada. Os concertos e pedidos de entrevistas eram cada vez mais esparsos. A crítica de «servir sempre o mesmo prato requentado» era um pedregulho no esófago quando estava no palco.

    Não tinha luxos nem singulares ambições materiais — o dinheiro que acumulara chegava para muito mais vidas. O seu maior lucro era a vaidade. O terror de o seu génio não ter por onde se manifestar, o horrífico medo de que não se lembrassem dele com a intensidade exclusiva que desejava e merecia, o vazio de não ter espelhos que lhe mostrassem a glória reflectida… tudo isso era algo que não conseguia suportar.

    Precisava de ter uma razão para acordar, tomar banho e calçar os sapatos. Num período de noites insones, descobriu um canal no mundo digital e começou a retrabalhar a sua persona de outrora, ainda que já não produzisse quase nada no domínio da música.

    Ao fim de pouco tempo, publicava algo todos os dias. Não tardou a que publicasse uma dúzia de vezes por dia. Sentindo a temperatura, foi-se moldando em busca do maior número de seguidores. Antes, na música, dava o melhor de si sem contorcionismos mercantis (pelo menos, acreditava nisso), sem pensar nos outros, e conseguira reunir qualidade e êxito comercial apenas com base no seu estro. Agora, na persona digital, não dava um passo sem calcular o que colheria maior aceitação. Talvez não fosse tão sincero, mas não era certamente um exercício menos fechado ao Outro, pensava: era preciso farejar bem o Outro e pressentir as tendências no éter.

    Certas práticas provocavam amolgadelas e fissuras dentro de Fábio Fausto, mas a busca do cintilante número um era mais forte. O vício foi aumentando, até que todo o tempo de que dispunha era para acompanhar o canal. Era um espaço malsão, pensava nos interstícios. E daí? Que espaço concorrencial não produzia aberrações?

    Havia um urso imobilizado em que pugilistas davam socos, numa competição com muitos adeptos, havia um homem muito rico que dava gorjetas no valor de muitos salários e que testava os empregados atirando a comida para o chão e obrigando-os a apanhá-la — «Se queres a gorjeta, apanha!», «Agora, rebola no chão… Não rebolas, não tens gorjeta», «Faz o som de um porco a guinchar», tudo acompanhado das mais fortes gargalhadas e da mensagem final: «E mais uma vez… VENCEU O DINHEIRO!»

    E quando, volvidos poucos meses, era o número um do canal, todas as suas reflexões se extinguiram. Voltara a ser grande, e o labor da manutenção do número um não dava espaço para interrogações de espécie alguma.

    Deixara de sair de casa, estando sempre a alimentar o seu canto concorrido. Ia emagrecendo por não comer, alargando as olheiras, afogando-se no álcool. O Fábio Fausto exibido era, contudo, cada vez mais belo, cada vez mais viajado, cada vez mais dotado de vida singularmente colorida — uma vida que era em si uma obra de arte. O hiato era cada vez maior, exigindo-lhe um esforço sobre-humano para extrair do seu ser mortiço algo vivificante.

    Um dia, caiu inesperadamente para número dois, o mais enervante de todos os números, ultrapassado pelas Tropelias da Girafa Que Lava os Dentes. Estudou bem o inimigo. Pensou em inúmeras tácticas. Fez todo o tipo de concessões. Desatou a criar cenários fictícios, a fazer montagens, a exibir viagens que não realizava.

    Numa noite de álcool e desespero, deixou escapar um desabafo «NA MERDA, FINGINDO ESTAR NO PARAÍSO», que depressa apagou, mas que alguns não deixaram escapar.

    Lutando desesperadamente por ganhar lugares na competição, divulgou pretensos encontros com celebridades de prestígio — ou popularidade, era-lhe indiferente, tão-pouco enxergava diferença entre ambas — mundial. Uma denunciou a fraude. Outras seguiram-lhe os passos. Começou a ser alvo de campanhas de ódio. O seu telefone tocava com pedidos de entrevistas, que recusava. Ao ver a primeira página de um conhecido jornal, viu o seu nome e encharcou-se de álcool e calmantes, o que o convidou a uma estada num hospital. Uma criatura fotografara-o na cama de hospital e vendera a relíquia. Por mais que se tentasse isolar, as notícias entravam-lhe pelas paredes de casa. A conspurcada reputação de Fábio Fausto propagava-se por cada vez mais países, e ninguém, nas esferas privada ou pública, lhe concedia um átomo de solidariedade.

    Fábio Fausto dedicou-se a fazer listas: listas de todos aqueles que lhe deviam fama, dinheiro, contactos e que nunca lhe haviam sequer agradecido, listas de todos os que dera a conhecer ao mundo e que promovera tenazmente a troco de nada senão a crença no seu talento, listas de todos os que entravam em contacto com o celebérrimo artista quando este ganhava um prémio.

    Aqueles que haviam trabalhado com ele, aqueles que o haviam bajulado, aqueles que lhe deviam inúmeros favores: todos se calavam. E os que não se calavam faziam-no para transformar uma nanoagressão numa macroagressão, havendo quem inventasse histórias cruéis que deixavam Fábio Fausto atónito, enquanto os pedidos de cancelamento do seu espaço digital cresciam numa proporção geométrica.      

    Fábio Fausto lembrou-se do único amigo que considerava amigo, mas a chamada desaguou no correio de voz. Levou o carro para muito, muito longe e gaseou-se. Antes disso, activou e programou um mecanismo que continuaria a gerar publicações ad aeternum. No dia a seguir à sua morte, ainda desconhecida do público, subiu dez lugares com a primeira publicação criada pelo programa que comprara pouco antes de morrer. Os Gatinhos Mais Bonitinhos do Mundo caíam de primeiro para quinto, e as recém-chegadas Primeiras Fraldas do Bebé Felipe ocupavam agora o primeiro lugar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Num futuro perto de si

    Num futuro perto de si


    Um homem jazia no centro da sala prateada com eléctrodos na cabeça que comunicavam com um computador. A tela exibia o cérebro com várias cores.

    — Com um simples toque no botão, conseguimos eliminar as memórias traumáticas, as maiores tristezas, os maiores medos. Sairá daqui um ser renovado. Esta criatura apegou-se à religião, a psicólogos, a psiquiatras. Em segundos, sairá liberto de todos os seus problemas.

    Os dois continuaram a caminhar.           

    — Está a ver esta mulher?               

    — Sim.

    — A mãe repudiou-a, o pai abusou dela sexualmente… Viveu na pobreza material e emocional, o seu companheiro batia-lhe, foi prostituta, drogada, alcoólica. Está a ver o grau de dor que esta senhora transportou nos últimos anos? Veja bem — o seu dedo indicava uns gráficos numa tela. — Uma dor intolerável. Mutilava-se para deslocar a dor. Acha isso agradável? Só não recorreu ao suicídio por causa da ideia bacoca da fé. Converteu-se ao veneno da religião, porque nada mais lhe restava. Com esta máquina, vamos inocular no seu cérebro cargas de fx47 até que se recomponha. Ela pediu que não removêssemos memória…

    — Pessoas de palavra.

    — Deixe lá a palavra e o valor da palavra… Por higiene, dispenso ouvir a tralha dos «valores». O importante é maximizar a utilidade. Os valores cegam a capacidade de ver o real, enquanto os resultados são objectivos e verificáveis. Este método tem uma eficiência menor do que o primeiro. Se isto não funcionar, se isto não funcionasse, quero eu dizer, teríamos de remover memória. 

    — Já têm casos de êxito?

    — Meu Bom Deus da Tecnologia! Quantos!

    — Mas li um estudo há duas semanas…

    — Duas semanas! Homem, na sociedade tecnológica, duas semanas são uma eternidade! Isso já não tem validade nenhuma. Isso é para arqueólogos!

    — Que lhe garante então que as verdades provisórias de hoje não sejam as mentiras de amanhã?

    — Você é um homem de museus, já percebi. Não quer ou não consegue acompanhar a velocidade do progresso. Os próximos milagres a que irá assistir talvez lhe dêem a dimensão…

    Uma porta abriu-se.

    — Viu? A porta respondeu ao meu desejo. Nesta sala, estamos a trabalhar no sentido de que os objectos respondam automaticamente a apetites do cérebro. A fé move montanhas aqui! Desejo, logo tenho.

    — Se tiver o dinheiro para isso.

    — Isto é apenas o princípio do princípio. Já imaginou o que será quando cada humano tiver o que deseja mal o desejo nasça?

    — Parece-me que a estrada natural é interrompida: definição do objectivo, esforço, concretização do objectivo, satisfação. Levando ao limite: conseguir tudo o que se quer sem fazer nada por isso pode ser quase tão desmotivador no longo prazo como não conseguir quase nada do que se quer fazendo tudo por isso. Ponderaram as consequências disto e de como o cérebro dos humanos deixará de ser um músculo exercitado?

    — Lá vem a cantilena das cavernas… Para já, humano é um conceito em transição. Nós não ponderamos, homem, nós andamos a reboque da tecnologia… Mas ouça: se preferir ir a pé para outro continente a usar tecnologia… vá! Entendeu?

    Andaram mais uns passos.

    — Conhece esta cara, certamente…

    — Este é o sujeito que anda a ser procurado…

    — Exactamente! Os robopolícias apanharam-no. Este indivíduo é… ou era… extremamente violento. Um agressor. Teve de ser internado aqui. Veja ali — apontava para um gráfico. — Os nossos aparelhos já diminuíram 873 tmy do seu índice de agressividade. Está um doce. Mas ainda queremos fazer mais. Muito mais. Bem, deixe-me mostrar-lhe uma coisa.

    Com o comando, desligou uma máquina.

    — Levanta-te.

    O homem levantou-se e sorriu.

    — Tu és um cabrão de merda! Vai para o caralho! A tua mãezinha chupa a minha pila como ninguém.

    O homem continuou sorrindo.

    — Toma, seu filho de puta! — disse, enquanto lhe dava uma vigorosa chapada na cara.

    O sorriso permanecia.

    — E agora só para ti…

    Um grande escarro acertou na cara do outro.

    O homem limpou-se, balbuciando palavras de repreensão.

    — Senta-te! Imediatamente!

    O sujeito obedeceu.

    — Temos de continuar a trabalhar nele. Ainda mostra sinais de rebeldia. Se tivesse vindo para cá mais cedo, não teria matado ninguém.

    — Se isto é um homem…

    — Já não era um homem antes! Era um monstro! Agora… é um monstrinho inócuo.

    — Mas…

    — Você é o homem do «mas»! Já sei, já sei! O discurso do Homem Fossilizado… Os velhos preconceitos: contra naturam, a identidade, a autonomia, o livre-arbítrio, o domínio da mente por forças exógenas, blá-blá-blá. Isso é uma visão de fora. Uma abstracção típica de quem está preso à canga dos filósofos, dos poetas. Mas vou adaptar-me ao seu linguajar. Deve gostar de conceitos arcaicos como liberdade e justiça. À luz dessas obsolescências, tente entender que a tecnologia também é boa. Somos todos escravos: do sítio em que nascemos, da família, da idade, dos genes. Pois bem, é dessa escravatura que nos estamos a libertar. Da dupla escravatura do Homem e da sua circunstância. Repare na idade: a degenerescência, a falência dos órgãos. Essa escravatura está a ser contrariada. Estamos a transplantar cérebros para corpos autónomos. Poderemos chegar muito longe. Acha a lotaria dos genes algo justo e libertador? Pois também essa escravatura está a ser corrigida. Bem, vamos para a próxima sala.

    Entraram na sala com maior número de imagens e sons.

    — Sala das Evasões… Esta sala sozinha tem aguentado o sistema… enquanto as outras não avançam significativamente… Estamos a trabalhar em filmes, músicas, vídeos, jogos, produtos de consumo, publicidade de produtos e ideias. Isto é uma parafernália. Estamos a trabalhar nos bastidores do entretenimento, do cozinhado perfeito das emoções induzidas… Num estádio mais avançado, esses próprios instrumentos serão desnecessários. Passo a explicar: se uma pessoa sente uma ou duas emoções fortes com um filme ou um livro, porque não tocar directamente na corda dessas emoções num instante, em vez de se perder tempo com poemas, enredo, personagens, essa treta toda? Queremos conhecer o cérebro até o dominar completamente.

    — Se esse poder cair em mãos…

    — O seu preconceito pessimista crónico… Coitado de si! Que infeliz!

    — Quem legitimou esse poder? Quem vos deu esse direito de enganar e manipular as pessoas?

    — Largue a posição de provocador e ponha-se na de aprendiz. Talvez lhe entre algo na massa encefálica… O senhor não mentiria para salvar a sua filha de ser morta? Temos mais informações sobre a sua filha do que o ela tem sobre si própria, fique sabendo. Cale-se e não ponha a verdade acima da felicidade. A coisa passa-se assim… Quer sentir calma? Sentirá. Quer sentir excitação? Sentirá. Não quer, mas precisa de sentir para não pôr em perigo outros nem alimentar ideias anti-sistema? Sentirá também. Melhor ainda: quer sentir-se anti-sistema? Nós damos-lhes mecanismos para alimentar essa ilusão.

    — Nem lhe pergunto se quem toca na corda de pôr o outro feliz, artificialmente feliz na minha estreita e obsoleta cabecinha, não poderá igualmente tocar na corda do sofrimento e provocar os maiores horrores. Tirando este senão de pessimista…

    — Homem, isso será útil para a tortura mais apurada. Você é amigo de algum terrorista? Se não é, não percebo a sua reserva. Mas o caminho que trilhamos, ou que queremos trilhar, não é o da repressão, é o da diversão.

    — Permita-me apenas fazer-lhe notar que essa bela ilha, não lhe chamarei de estupidificação para não lhe causar melindre, essa bela ilha de diversão ou de alienação que me apresenta, essa fuga sem a qual os humanos não suportariam viver na sociedade hodierna, afasta o ser humano da sabedoria, da procura interior, das coisas que o elevam… Isto não tem uma base técnica e, por isso, não percebe.

    — Não pessoalize. Não é de mim ou de si que se trata. É de algo colossal, do qual assumo orgulhosamente a minha condição de servo.

    — Nem é perceber… é sentir. Há coisas verdadeiramente importantes que não têm necessariamente justificação ou base técnica, como os direitos humanos, a liberdade, a poesia lato sensu.

    — Homem, as pessoas não querem ser sábias nem comem abstracções; querem ser felizes. Temos aí uma caterva de arruinados cerebralmente que estamos a recuperar por causa da «procura interior». E, além disso, você nem enxerga o paradoxo criado pelo seu caos mental quando fala da «sabedoria»: nós aqui laboramos no sentido do conhecimento do cérebro!

    — Para que as pessoas sejam plasticina nas vossas mãos.

    — Liberte-se do poder das palavras dos Fossilizados… Faça esse favor a si próprio! Não fique no triste papel do último resistente. As intenções não contam, contam os resultados. Se discorda, responda a si próprio: preferiria que um bem-intencionado ajudasse a atravessar a velhinha sua mãe na estrada e isso tivesse como corolário o atropelamento da sua progenitora ou que alguém que a tentasse matar não conseguisse sequer arranhá-la? Aquele jogo ali, homem — apontava com o olhar e o dedo indicador —, vai ser a maior droga que já existiu! Irá, aliás, benemeritamente substituir muitas drogas que matam e arruínam lares. Veja os olhos esbugalhados daquele indivíduo. Não pensa em mais nada! Só no jogo! Mas ainda estamos a aprimorar a necessidade de dependência e a capacidade de alheamento que o produto provoca.

    — Mas o vício não é prazer, requer obediência e mata a liberdade.

    — Veja se percebe… Se não há uma fracção de segundo para o desprazer durante o jogo e se o jogador consegue estar sempre imerso no jogo, um mínimo de lógica dir-lhe-á que ele é feliz a tempo inteiro.

    — No próprio jogo, suponho que tenha de haver desprazer para depois haver prazer. Ganhar sempre tornaria o jogo bocejante mais dia, menos dia. Mas vejo que temos conceitos diferentes de felicidade… Felicidade, no meu pobre espírito, não é maximizar o prazer, é o tom de fundo, a paz, a satisfação interior para lá dos bons e maus momentos. O que me mostra são apenas poderosas drogas que criam um mundo virtual, mas, ainda assim, nos interstícios, quando o indivíduo volta ao real, quando se olha ao espelho…

    — Está tudo pensado. O jogo é tão viciante, que quase não haverá interstícios. Até porque não os queremos a causar distúrbios. Quanto ao mais, temos comprimidos para os interstícios. Homem, veja o que está à sua volta e deixe a realidade destruir os pedregulhos do seu cérebro. Eles estão deliciados, não se queixam, mas você quer que eles se queixem de coisas etéreas, de conceitos que o aprisionam a si, educado, rigidamente educado que foi na velha escola caduca dos líricos. O seu ódio da teologia do lirismo cega-o! Isto é útil para o jogador e, não menos importante do que isso, mais seguro para todos.

    — A vossa utopia reside em o Homem, ou um arremedo dele, passar a adaptar-se totalmente às necessidades do sistema tecnológico. Apesar de ser beato da tecnologia, sendo a sua condição a de humano, pergunto-lhe se considera a hipótese de um dia os próprios humanos serem dispensáveis em certo estádio tecnológico?

    — Dormi a meio da sua prédica… Você insiste em querer suscitar problemas… Que dizer? Um asno é mais inteligente do que você. Vejamos, então, à luz do Homem, como é que as coisas se passam, meu caríssimo poeta. Olhe para eles, olhe para eles… Eles não nos ouvem. Os jogadores conseguem esquecer-se dos problemas individuais, dos problemas da sociedade, e os outros deixam de ser prejudicados por eles. É difícil para si entender que todos ganham?

    — Uma maravilha, ainda que isto talvez não seja atacar o problema pela raiz. Nem me atreverei a aventar que o sistema estará a ter cada vez mais casos de inadaptados, de pessoas que não conseguem sobreviver mentalmente nele e que aquilo que me mostra são apenas as formas que o sistema tem de garantir a sua preservação e expansão. Observo apenas que o sábado deixa de ser feito para o Homem; o Homem volta a ser feito para o sábado. Digo-lhe ainda que, por incapacidade minha certamente, tenho alguma dificuldade até, imagine!, em aderir a propostas que resolvam todos os problemas de toda a gente.

    — Ora aí está o lastro da pequenez mental… São milénios de provincianismo a falar na sua cabeça. Tente não pensar e observe. Areje os neurónios… Veja a cara de entusiasmo dos jogadores, estão possessos pelos deuses! Veja, veja, veja — gesticulava num frenesi — e deixe-se de uma vez por todas de observações idiotas. Venha agora conhecer os nossos geneticistas…

    — Sim…

    — Está a ver? O gene do crime, de uma série de doenças físicas e mentais, da própria fealdade… Caminharemos para erradicar tudo isso com o corrector dos genes!

    — O crime, por exemplo. Se alguns pais que saibam precocemente não quiserem…

    — Você tem um problema mental estrutural! — interrompeu-o. — Só se concentra no acessório em detrimento do miraculoso. Tenho outra visita a seguir. Não tenho muito mais tempo para si. Queria só mostrar-lhe a Sala Eros. A textura e o olfacto são finalmente equiparáveis à audição e à visão. As pessoas podem tocar-se e cheirar-se a qualquer distância. Iremos dar um salto quântico. Todas as fantasias poderão ser realizadas. Ainda não temos autómatas e autómatos perfeitamente confundíveis com os humanos, mas as similitudes são cada vez maiores. O humano já conversa com o autómato, já se excita. Acha justo um homem ou uma mulher ou qualquer outro género não poder ter uma vida sexualmente cheia por ser menos atraente, seja por que motivos for? E as parafilias? Não acha mais saudável para todas as partes as parafilias poderem ser vividas sem causar dor a outro? As criaturas que vê não sentem. Esta sala tem diminuído as neuroses. E de que maneira!

    — Muito bem, então. Estou convertido. Está na hora…

    — Pois está… Ninguém é infinitamente estúpido, não é verdade? — disse, fazendo que os seus olhares se cruzassem. — Que achou disto tudo?, diga lá.

    — Não sei se é um inferno paradisíaco ou um paraíso infernal. Estava a pensar no seguinte: um homem tirano tem uma propriedade em que trabalham quinhentos trabalhadores de manhã à noite. Com as vossas drogas, eléctrodos, implantes, comprimidos, eles são totalmente obedientes, produtivos e, note bem, felizes. Mas pergunto-lhe: deixam de ser escravos?

    — Não precisava de dizer nada. Ah, ah, ah. A sua actividade cerebral foi captada. Esteve sempre em tensão, sempre dominado pela raiva e pela repulsa. Provavelmente, quereria sair daqui e pôr uma bomba nisto tudo. Deve julgar que andamos a dormir.

    Umas correntes nasceram do chão e imobilizaram o homem.

    — Não sairá daqui… Tem duas hipóteses: ou morre, ou é lavado e enxaguado cerebralmente, passando a integrar esta casa como funcionário exemplar.

    — Escolho a primeira hipótese.

    — Seja feita a sua vontade.

    Passados uns segundos, atirou:

    — Nunca houve senão segunda hipótese. Ah, ah, ah. Sossegue, a sua memória não guardará um átomo das suas obtusas convicções.

    O chão cindiu-se e o futuro funcionário exemplar foi arrastado para uma sala de maquinaria.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.