Autor: Luís Gomes

  • Fernando Pessoa, sim, esse mesmo: o economista!

    Fernando Pessoa, sim, esse mesmo: o economista!


    Durante a minha juventude, e sobretudo no período universitário, sempre me intrigou o ostracismo a que foi votada uma grande parte da obra de Fernando Pessoa. Ele escreveu sobre tudo. Escreveu praticamente em todos os estilos literários – prosa, poesia, contos –, sendo aí considerado, por muitos, o maior escritor em língua portuguesa.

    No entanto, o Fernando Pessoa economista é, entre nós, praticamente desconhecido. E não devia.

    Compreendo, em parte, esse banimento: o actual regime dedica-se há mais de 48 anos a extorquir o bolso dos portugueses, restringindo crescentemente a liberdade destes, em especial a liberdade económica.

    Hoje, assistimos à tentativa de destruição do Estado-Nação, com a transferência de soberania para entidades supranacionais, e o objectivo básico é restringir liberdades essenciais, em particular a liberdade de empreender. Tal política, irá acelerar a concentração de poder num reduzido número de empresas globais.

    Por essa razão, julgo que nunca foi tão importante, como agora, revisitar Fernando Pessoa, o Economista.

    Que ensinamentos nos legou? Afinal, o que escreveu assim tão relevante em matéria económica?

    Vejamos então.

    Sobre as empresas na mão do Estado

    O que pensava Fernando Pessoa sobre a administração estatal dos negócios?

    Considerada em si mesma, a administração de Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis para qualquer das três entidades com que essa administração implica. De todas as coisas organizadas, é o Estado, em qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas… É pois evidente que quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando.”

    A nota de 100 escudos com a efígie de Fernando Pessoa esteve em circulação entre 26 de Agosto de 1987 e 31 de Janeiro de 1992

    Esta foi a desgraça que se abateu sobre a bancarroteira nacional: a TAP. A administração de uma empresa, através de comparsas e comissários políticos, abriu caminho a milhões e milhões de Euros dos contribuintes, com um único propósito: proporcionar sinecuras de luxo à clientela política do regime.

    Em relação aos funcionários públicos, burocratas e comissários políticos metidos na administração de negócios – indivíduos que nunca arriscaram um cêntimo do seu bolso em qualquer aventura –, Fernando Pessoa reservava-lhes as seguintes palavras: “… a administração de Estado sofre ainda a viciação proveniente de ser exercida por e através do tipo de indivíduo que em geral forma o funcionário público. Salvo para as carreiras militares — em que há abertas especiais para a ambição e para a energia —, nenhum homem de verdadeira energia e ambição entra para o serviço fixo do Estado. Não entra porque não há ali caminho para a energia, e muito menos para a ambição.”

    E quando vemos políticos, através de palavras grandiloquentes – “TAP é tão fundamental para o país como foram as caravelas”,“…é absolutamente estratégica” –, a manifestar a necessidade de nacionalizar empresas, escutemos Fernando Pessoa a respeito: “Seria ridículo e indesculpável que, depois destas considerações essenciais, gastássemos a paciência do leitor com o exame da mitologia de argumentos que se têm apresentado em defesa da “nacionalização”, ou administração de Estado. Nenhum desses argumentos, próprios em geral só para contos humorísticos ou discursos políticos, pode prevalecer contra as considerações orgânicas que apresentámos.”

    As empresas têm como propósito servir o consumidor e obter lucro

    Depois de uns recentes lancinantes apelos ao assalto de supermercados, em que roubar para comer passou, supostamente, a não ser crime – ou, pelo menos, houve apelos desse jaez –, o respeito por um dos pilares mais importantes do mundo ocidental, o respeito pela propriedade privada, parece estar a desaparecer.

    Recentemente, até a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ameaçou mudar as leis para confiscar cidadãos russos. Hoje, os russos; amanhã, poderá ser você.

    Fernando Pessoa tinha ideias claras sobre o trabalho de um empreendedor e dos seus objectivos, definindo marketing muito antes do que muitos autores norte-americanos, respeitando sempre os lucros privados e a propriedade privada.

    Para demonstrar a importância do consumidor, utilizou o caso de uma empresa inglesa que exportava para a Índia, sem ter dado atenção ao tamanho dos ovos que aí se consumiam. Contava-nos assim:

    Sucedeu, porém, que, alguns anos antes da Guerra, as firmas inglesas exportadoras deste artigo notaram que a procura dele na Índia decrescera quase até zero. Estranharam o facto, buscaram saber a causa, e não tardou que descobrissem que estavam sendo batidas por casas exportadoras alemãs, que vendiam idêntico artigo ao mesmo preço.

    Fernando Pessoa e a Economia foi publicado em 2012 pela Ulmeiro.

    Feita a averiguação ansiosa da causa deste mistério, não tardou que se descobrisse. Os ovos das galinhas indianas eram — e naturalmente ainda são — ligeiramente maiores que os das galinhas da Europa, ou, pelo menos, das da Grã-Bretanha. Os fabricantes ingleses exportavam as taças de tipo único que produziam para o consumo doméstico. Essas taças, evidentemente, serviam de um modo imperfeito aos ovos das galinhas da Índia. Os Alemães notaram isto, e fizeram taças ligeiramente maiores, próprias para receber esses ovos. Não tinham que alterar qualidade (podiam até baixá-la), nem que diminuir o preço; tinham certa a vitória por o que em linguagem científica se chama a adaptação ao meio. Tinham resolvido, na Índia e para si, o problema de comer o ovo de Colombo.”

    O consumidor tem sempre razão. O capitalismo é servir um consumidor, e tendo lucro. Concluía assim Fernando Pessoa: “Um comerciante, qualquer que seja, não é mais que um servidor do público, ou de um público; e recebe uma paga, a que chama o seu ‘lucro’, pela prestação desse serviço. Ora toda a gente que serve deve, parece-nos, buscar agradar a quem serve.”

    Muito antes dos gurus de gestão e marketing, contratados há mais de 25 anos pelo Estado português a peso de Ouro – seu nome, Michael Porter –, já Fernando Pessoa explicava que era necessário analisar e estudar vários dimensões, sem preconceitos nem antecipações, para abordar um mercado com sucesso:

    “Para isso é preciso estudar a quem se serve – mas estudá-lo sem preconceitos nem antecipações; partindo, não do princípio de que os outros pensam como nós, ou devem pensar como nós —porque em geral não pensam como nós –, mas do princípio de que, se queremos servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como eles: o que temos que ver é como é que eles efectivamente pensam, e não como é que nos seria agradável ou conveniente que eles pensassem.

    O estudo do público, isto é, dos mercados, é de três ordens — económico, psicológico e propriamente social. Isto é, para entrar num mercado, seja doméstico ou estranho, é preciso: 1) saber as condições de aceitação económica do artigo, e aquelas em que trabalha, e em que oferece, a concorrência; 2) conhecer a índole dos compradores, para, à parte questões de preço, saber qual a melhor forma de apresentar, de distribuir e de reclamar o artigo; 3) averiguar quais as circunstâncias especiais, se as houver, que, de ordem profunda e social ou política, ou superficial e de moda ou de momento, obrigam a determinadas correcções no resultado dos dois estudos anteriores.

    A maneira de fabricar, de apresentar, de distribuir e de reclamar um artigo varia conforme a índole geral dos indivíduos que compõem o mercado onde se pretende vendê-lo. Num meio de gente educada as condições são diferentes, para todos estes casos, do que num meio de analfabetos. Um meio provinciano — educado ou não — tem uma psicologia distinta da de um meio de cidade.

    Em resumo: o comerciante é um servidor do público, tem que estudar esse público, e as diferenças de público para público se o artigo que vende ou explora não é limitado a um mercado só. O comerciante não pode ter opiniões como comerciante nem deve fazer comercialmente qualquer coisa que leve a crer que as tem. Um comerciante português que faça um rótulo encarnado e verde, ou azul e branco, comete um erro comercial: quem segue a política das cores do rótulo não lhe compra o produto por isso, e quem segue a política oposta deixa muitas vezes de o comprar. Por um lado, não ganha, por outro perde.

    A Economia em Pessoa, publicado no Brasil em 2007, teve organizaçõ e notas de Gustavo Franco, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e ex-presidente do Banco Central daquele país..

    Mais incisivamente ainda: o comerciante não tem personalidade, tem comércio; a sua personalidade deve estar subordinada, como comerciante, ao seu comércio; e o seu comércio está fatalmente subordinado ao seu mercado, isto é, ao público que o fará comércio e não brincadeira de crianças com escritório e escrita.”

    A liberdade de empreender; a defesa da liberdade individual

    Fernando Pessoa reduzia o Estado às suas funções de soberania – tribunais, defesa, segurança -, não devendo em caso algum interferir no mercado. Na verdade, o Estado apenas existia para o indivíduo, deixando muito claro os problemas que advinham do intervencionismo estatal.

    Enaltecia igualmente o século XIX, um século de liberdade e do padrão-ouro, de enorme prosperidade para a humanidade:

    A legislação restritiva do comércio e do consumo, a regulamentação pelo Estado da vida puramente individual, era corrente na civilização monárquica da Idade Média, e no que dela permaneceu na subsequente. O século XIX considerou sempre seu título de glória o ter libertado, ou o ir libertando, progressivamente o indivíduo, social e economicamente, das peias do Estado. No fundo, a doutrina do século XIX — representada em seu relevo máximo nas teorias sociais de Spencer — é uma reversão à política da Grécia Antiga, expressa ainda para nós na Política de Aristóteles — que o Estado existe para o indivíduo, e não o indivíduo para o Estado, excepto quando um manifesto interesse colectivo, como na guerra, compele o indivíduo a abdicar da sua liberdade em proveito da defesa da sociedade, cuja existência, aliás, é a garantia do exercício dessa sua mesma liberdade.

    Seguidamente, analisava os vários tipos de intervencionismo:

    • “Há, (l) a legislação restritiva que pretende beneficiar a colectividade, o país: é a que proíbe a importação de determinados artigos, em geral os chamados “de luxo”, com o fito de evitar um desequilíbrio cambial;
    • Há, (2) a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor colectivo: é a que proíbe a exportação de determinados artigos, em geral os chamados “de primeira necessidade”, para que não escasseiem no mercado;
    • Há, (3) a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor individual: é a que proíbe ou cerceia a venda de determinados artigos — desde a cocaína às bebidas alcoólicas — por o seu uso, ou fácil abuso, ser nocivo ao indivíduo; e aquela legislação corrente que proíbe, por exemplo, o jogo de azar é exactamente da mesma natureza;
    • Há, (4) a legislação restritiva que pretende beneficiar o operário e o empregado: é a que restringe as horas de trabalho, e as de abertura de estabelecimentos, e põe limites e condições ao exercício de determinados comércios e de determinadas indústrias;
    • Há, (5) a legislação restritiva que pretende beneficiar o industrial: é a legislação pautal na sua generalidade proteccionista.”
    grayscale photo of man with shop bags walking past beggar siting on sidewalk

    Com a sua pena, Fernando Pessoa destruía de uma assentada toda a espécie de intervencionismo.

    Fixemos, desde já, o primeiro ponto; tiremos, desde já, a primeira conclusão, que é inevitável. Todos estes tipos de legislação restritiva — beneficiem ou não a quem pretendem beneficiar —prejudicam aquela desgraçada entidade chamada o comerciante. A 1.ª espécie de legislação restritiva limita-lhe as importações; a 2.ª limita-lhe as exportações; a 3.ª limita-lhe as vendas; a 4.ª limita-lhe as condições de produção, se é também industrial, e as horas de venda, se é simples comerciante; a 5.ª restringe-lhe a liberdade de concorrer.

    Arrasava igualmente a repressão e/ou a promoção de determinados comportamentos por parte do Estado. O Estado moralista, que enunciava o bem-comum era perigoso. O ataque aos fumadores, aos não vacinados, aos obesos, era inaceitável. O Estado não deve legislar nem se meter no comportamento dos indivíduos. Para o clarificar, usava o exemplo da lei seca nos Estados Unidos no século transacto:

    Chegámos ao ponto cómico desta travessia legislativa. Chegámos ao exame daquela legislação restritiva que visa a beneficiar o indivíduo, impedindo que ele faça mal à sua preciosa saúde moral e física. É este o caso de legislação restritiva que se acha tipicamente exemplificado no diploma que é o exemplo de toda a legislação restritiva, quer quanto à sua natureza quer quanto aos seus efeitos — a famosa Lei Seca dos Estados Unidos da América. Vejamos em que deu a operação dessa lei.

    Não olhemos ao caso social; tratá-lo não está na índole desta Revista, nem, portanto, na deste artigo. Não consideremos o que há de deprimente e de ignóbil na circunstância de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há-de beber e o que não há-de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou um colete de forças, como a um doido. Nem consideremos que, indo por esse caminho, não há lugar certo onde logicamente se deva parar: e se o Estado nos indica o que havemos de beber, por que não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? Por que não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas estas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, por que razão se não disporá a sê-lo para todas?

    Fernando Pessoa também dissecava as virtudes e defeitos dos tais burocratas que decretam comportamentos virtuosos. Quem não viu as duas baratas-tontas durante a putativa pandemia, tentando estabelecer a forma como nos devíamos comportar?

    Não olhemos, também, a que este interesse paternal é exercido pelo Estado, e que o Estado não é uma entidade abstracta, mas se manifesta através de ministros, burocratas e fiscais — homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto, do ponto de vista moral, se não de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilância ou tutela em que sintamos uma autoridade plausível.

    Sobre a estupidez da lei seca, falava-nos da corruptibilidade dos funcionários públicos, os mesmos que deveriam vigiar os comportamentos, quase sempre actuando a desfavor dos mais débeis da sociedade.

    Também nos alertava para o perigo das empresas “afectadas” pela legislação “virtuosa”, como é caso hoje dos bancos, onde a regulação é tão pesada – “é tudo para proteger o consumidor” – , que na verdade elimina o aparecimento de qualquer concorrência; ou seja, os regulados de grande dimensão são precisamente aqueles que defendem mais intervencionismo. Até têm os políticos a clamar sempre por mais!

    Vejamos, em concreto, como Fernando Pessoa analisou a lei seca:

    Não olhemos a isto tudo, que indigna e repugna; olhemos só às consequências rigorosamente materiais da Lei Seca. Quais foram elas? Foram três.

    1. Dada a criação necessária, para o “cumprimento” da Lei, de vastas legiões de fiscais — mal pagos, como quase sempre são os funcionários do Estado, relativamente ao meio em que vivem —, a fácil corruptibilidade desses elementos, neste caso tão solicitados, tornou a Lei nula e inexistente para as pessoas de dinheiro, ou para as dispostas a gastá-lo. Assim esta lei dum país democrático é, na verdade, restritiva apenas para as classes menos abastadas e, particularmente, para os mais poupados e mais sóbrios dentro delas. Não há lei socialmente mais imoral que uma que produz estes resultados. Temos, pois, como primeira consequência da Lei Seca, o acréscimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado, e, ao mesmo tempo, o dos privilégios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam;
    • Paralelamente a esta larga corrupção dos fiscais do Estado, pagos, quando não para directamente fornecer bebidas alcoólicas pelo menos para as não ver fornecer, estabeleceu-se, adentro do Estado propriamente dito, um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização extensíssima, coordenada e disciplinada, com serviços complexos perfeitamente distribuídos, destinada à técnica variada da violação da Lei. Ficou definitivamente criado e organizado o comércio ilegal de bebidas alcoólicas. E dá-se o caso, maravilhoso de ironia, de serem estes elementos contrabandistas que energicamente se opõem à revogação da Lei Seca, pois que é dela que vivem. Afirma-se, mesmo que, dada a poderosa influência, eleitoral e social, do Estado dos Contrabandistas, não poderá ser revogada com facilidade essa lei. Temos, pois, como segunda consequência da Lei Seca, a substituição do comércio normal e honesto por um comércio anormal e desonesto, com a agravante de este, por ter que assumir uma organização poderosa para poder exercer-se, se tornar um segundo Estado, anti-social, dentro do próprio Estado. E, como derivante desta segunda consequência, temos, é claro, o prejuízo do Estado, pois não é de supor que ele cobre impostos aos contrabandistas;
    • Quais, foram, porém, as consequências da Lei Seca quanto aos fins que directamente visava? Já vimos que quem tem dinheiro, seja ou não alcoólico, continua a beber o que quiser. É igualmente evidente que quem tem pouco dinheiro, e é alcoólico, bebe da mesma maneira e gasta mais — isto é, prejudica-se fisicamente do mesmo modo, e financeiramente mais. Há ainda os casos, tragicamente numerosos, dos alcoólicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoólicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedâneos — loções de cabelo, por exemplo —, com resultados pouco moralizadores para a própria saúde. Surgiram também no mercado americano várias drogas não alcoólicas, mas ainda mais prejudiciais que o álcool; essas livremente vendidas, pois, se é certo que arruínam a saúde, arruínam contudo adentro da lei, e sem álcool. E o facto é que, segundo informação recente de fonte boa e autorizada, se bebe mais nos Estados Unidos depois da Lei Seca do que anteriormente se bebia.
    brown brick building with black and white signage

    O intervencionismo acabava sempre por ter resultados contrários ao inicialmente pensado e a criar novos problemas, segundo defendeu:

    Conceda-se, porém, aos que votaram e defendem este magno diploma que numa secção do público ele produziu resultados benéficos — aqueles resultados que eles apontam no acréscimo de depósitos nos bancos populares e caixas económicas. Essa secção do público, composta de indivíduos trabalhadores, poupados e pouco alcoólicos, não podendo com efeito, beber qualquer coisa alcoólica sem correr vários riscos e pagar muito dinheiro, passou, visto não ser dada freneticamente ao álcool, a abster-se dele, poupando assim dinheiro. Isto, sim, conseguiram os legisladores americanos — “moralizar” quem não precisava ser moralizado. Temos, pois, como última consequência da Lei Seca, um efeito escusado e inútil sobre uma parte da população, um efeito nulo sobre outra, e um efeito daninho e prejudicial sobre uma terceira.

    A liberdade individual acima de tudo: “Nenhuma lei é benéfica se ataca qualquer classe social ou restringe a sua liberdade. As classes sociais não vivem separadas, em compartimentos estanques. Vivem em perpétua interdependência, em constante entrepenetração. O que lesa uma, lesa todas. A lei que ataca uma, é a todas que ataca. Todo este artigo é uma demonstração desse facto.”

    Sobre os “tachos” dos políticos nas grandes empresas

    Depois de termos “enterrado” 3,5 mil milhões de Euros na bancarroteira TAP, algo como 350 Euros por cada português, incluindo crianças, pergunta-se para que serviu? Nada mais nada menos para manter os tachos da clientela do regime.

    Fernando Pessoa também deixava a sua posição clara a este respeito.

    “Escândalos ainda recentes, que se tornaram conhecidos do público através dos relatórios publicados no Diário do Governo, vieram pôr mais uma vez em evidência a inutilidade prática dos Conselhos Fiscais e dos Comissários do Governo — inutilidade reconhecida no estrangeiro pela substituição a essas entidades, realmente fictícias, de outras mais susceptíveis de se desempenhar do mister que a nossa legislação impõe àquelas. Os Conselhos Fiscais e os Comissários do Governo — aqueles mais do que estes — são pontos de apoio da confiança do accionista, que julga que neles encontra o controle da aplicação e a salvaguarda dos capitais que confiou ao Banco ou à Sociedade Anónima adentro, ou junto, da qual eles funcionam.

    Reconhecendo as Sociedades Anónimas que a melhor forma de chamar o capital é a distribuição ruidosa de grandes dividendos, procuram frequentemente, por meio de lançamentos artificiais, encobrir um estado verdadeiro de pouco desafogo; publicam, para dar uma aparência de prosperidade, relatórios de prosa literária no fim dos quais os accionistas são definitivamente ludibriados pela confiança que lhe traz o inevitável “parecer” do Conselho Fiscal, com o costumado voto de louvor à Direcção, e a indicação aos accionistas que aprovem o Relatório de contas e a distribuição de dividendos que ele consigna.

    Os accionistas aprovam tudo — umas vezes porque o dividendo é magnífico, outras porque simplesmente confiam na indicação que lhes é dada. E a Direcção e o Conselho Fiscal recebem os respectivos louvores. São homens hábeis, uns; são homens sérios, outros. Tudo está, pois, necessariamente certo.

    Quando se cai na suspensão de pagamentos, os accionistas acordam. Mas, como esperavam que o Conselho Fiscal os acordasse, e o Conselho Fiscal dorme por natureza, acordam sempre tarde e perdem… não o comboio, mas o dinheiro. Há Sociedades Anónimas em que não acontece isto. Mas há porventura alguma Sociedade Anónima em que, tanto quanto o sabe o accionista, não possa acontecer isto? Que elementos tem o accionista para poder saber ao certo que isso lhe não pode acontecer? A prosperidade do Banco ou da Companhia? Mas a prosperidade é a que lhe é dada pelos dividendos, e que sabe ele se esses dividendos não são o seu próprio capital e o dos credores da Sociedade Anónima, em vez do lucro autêntico da prosperidade verdadeira de uma sociedade progressiva? Sabe o accionista ao certo se não é assim? Não sabe, porque aqueles elementos em quem delega a fiscalização, 1.º não fiscalizam, 2.º mesmo que fiscalizem, não sabem fiscalizar. Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que examinam a valer as contas da Sociedade Anónima? Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que têm as habilitações precisas, de contabilistas, para esse exame? Salvo casos excepcionais, os membros dos Conselhos Fiscais são escolhidos por serem homens sérios e de boa posição social. Não consta, porém, que a seriedade seja a contabilidade, nem que a boa posição social seja um curso intuitivo de guarda-livros.

    Tudo isto, no fundo, é uma comédia sem graça. A Direcção de uma Sociedade Anónima é, por natureza, um conselho técnico de gerência; o Conselho Fiscal de uma Sociedade Anónima é, e por natureza, um conselho técnico de fiscalização. A Direcção produz resultados; o Conselho Fiscal verifica esses resultados. E como os resultados se traduzem por números, isto é, por contas, parece que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente especializada no exame e conferência de contas. E parece também que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente suficientemente independente da Gerência para poder fiscalizar essas contas com independência. O que se faz entre nós? Elege-se um Conselho Fiscal de pessoas de probidade e incompetência e, é claro, de pessoas em magníficas relações de amizade com a Gerência, e, portanto, com toda a confiança nela. Em resumo: o melhor fiscal dos actos de alguém é um amigo incompetente. É ou não uma comédia?

    brown and white concrete buildings near sea during daytime

    Dos Comissários do Governo nem é bom falar. Dos membros do Conselho Fiscal ainda se pode presumir, visto que são accionistas, um certo interesse pela Sociedade Anónima a que pertencem, se bem que o interesse não crie competência, nem pese mais, na maioria dos casos, que o desleixo natural de quem é incompetente e confiado. Mas dos Comissários do Governo nem esse presumível interesse se pode presumir. São funcionários do Estado, que é, como toda a gente sabe, o mais mal servido de todos os patrões. São nomeados por obscuros lances do xadrez partidário, em prémio de serviços políticos e para que veraneiem todo o ano no seu comissariado; são nomeados para não fazer nada, e é efectivamente o que fazem. Deles, pois, é o Reino dos Céus… Deixemo-los e volvamos à terra.

    E assim é que deve ser. De todas as formas das sociedades comerciais as Sociedades Anónimas são as que mais se prestam ao abuso e ao desleixo da Gerência, pois que nelas há uma intervenção já teoricamente periódica, mas, em geral, praticamente nula dos sócios (isto é, dos accionistas) na gerência. Há mister, pois, que deleguem em alguém a fiscalização que nem podem, nem em geral sabem, exercer. Delegá-la em Conselhos Fiscais equivale a delegá-la em ninguém, ou a delegá-la na própria gerência a fiscalizar.”

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Querem saber o que são os impostos? Um assalto!

    Querem saber o que são os impostos? Um assalto!


    Perguntam-me, o que são os impostos?

    Eu digo-vos já: trata-se de um assalto de tais proporções que nem mesmo o mais arguto criminoso seria capaz de conceber tal coisa. A violência estatal sobre o cidadão – ameaçando e coagindo com prisão, multas, penhoras, congelamento de activos… – é infinitamente superior à exercida por um assaltante de pistola em punho. O assalto é permanente, até à morte, uma agressão à propriedade privada sem fim.

    Façamos o seguinte exercício: no final de Agosto de 2022, a receita fiscal e as contribuições para a Segurança Social – sim, são impostos, trata-se de um confisco dos trabalhadores activos a favor dos pensionistas – cifravam-se em 54,3 mil milhões de euros; com o mesmo ritmo mensal até ao final do ano, estima-se que 2022 terminará em 81,4 mil milhões de euros, o que representa 7.900 euros aproximadamente por cada um dos 10,3 milhões de portugueses.

    Imaginemos então que em lugar de pagarmos IRS, IVA, Segurança Social, seja do empregador ou do trabalhador, ISP e mais uma centena de outros impostos, o Estado apenas apresentava uma conta única. No final do ano, com tudo. E assim, no final do ano, uma família de quatro pessoas recebia uma conta 31.600 euros (7.900 × 4)!

    Alguém no seu perfeito juízo imaginaria tal coisa possível? Seguramente uma revolução teria lugar no momento seguinte à apresentação da conta.

    Por isso, tudo é cobrado de forma sub-reptícia.

    As empresas substituem-se aos cobradores fiscais, retendo a colaboradores e clientes uma panóplia de impostos, com os seus representantes legais a serem responsabilizados pela correcta retenção, guarda e entrega ao Estado. Caso não actuem desta forma, correm o risco de calabouço, penhora e o pagamento de pesadas multas, pois, com o ladrão-mor ninguém se mete!

    Quem inventou tal método, em lugar de se aplicar um único pagamento anual num dado mês?  Nada mais nada menos que esse grande “liberal” da Escola de Chicago, Milton Friedman, nos idos anos 40 do século transacto. Aliás, agora compreendemos bem porque tantos políticos o bajulavam: foi o “cozinheiro” para um grande banquete que ainda hoje dura.

    O “contribuinte” – um eufemismo para designar uma vaca cheia de leite – é confundido e enganado da forma mais inventiva possível. Através de um exemplo, vejamos de que forma um assalariado é depenado sem quaisquer contemplações. Na figura seguinte podemos observar que para um salário bruto de 1.500 euros – um milionário nos dias que correm –, o empregador paga 1.856 euros e o colaborador recebe apenas 60% desse valor, ou seja, 1.116 euros, ficando o restante, 40%, para o salteador Estado.

    Incidência de contribuições e IRS num salário de 1.500 euros brutos (casado, com dois dependentes; taxas de retenção de 2022). Análise: Luís Gomes.

    Tudo embrulhado em vários conceitos, tipo “onde está a bolinha”, em que se dá entender que a Segurança Social do empregador é paga por este, enquanto o IRS e a Segurança Social são pagas por este último, quando na prática saem sim 1.856 euros do bolso do empregador, em que 40% é para o bandido e 60% para o trabalhador.

    Tomemos atenção ao seguinte, que é importante: mesmo antes de o trabalhador começar a consumir, terá ainda de pagar IVA, ISP, IMT, IMI. Nada na vida do cidadão escapa a este gigantesco esquema de extorsão: rendimento, consumo, poupança, património, em alguns casos, até a morte.

    Em lugar de uma conversa com um padre, todos os cidadãos no segundo trimestre de cada ano fazem a sua confissão junto do bandido: “Excelência, ganhei tanto, está aqui, envie-me a conta”.

    Em muitos casos, existem tansos que ficam felizes com as “devoluções”, esquecendo-se de que foram assaltados sem apelo nem agravo ao longo do ano. Emprestaram dinheiro ao Estado sem juros. É uma agressão sem fim da privacidade, onde todos os segredos da vida financeira devem ser revelados a burocratas sem rosto.

    10 and 20 euro banknotes

    Para incrementar a confusão, até dizem que os colaboradores do trabuqueiro – vulgo funcionários públicos e políticos – pagam impostos! No nosso exemplo, ao Estado custa-lhe apenas 1.116 euros, enquanto o empregador paga 1.856 euros (mais 66%) por cada funcionário, actuando com uma clara vantagem – para ele é tudo mais barato!

    A manipulação é tal que até nos fazem crer que há uma luta sem tréguas entre “ricos” e “pobres”, em que o sistema tudo faz para “espremer” os primeiros e dar aos segundos, quando, na verdade, o que existe são duas classes: (i) os beneficiários do saque, receptores líquidos de impostos (políticos, funcionários, empresas com licenças do Estado, monopólios públicos, clientela política, reguladores, burocratas…); e (ii) os assaltados, os otários da história. O opróbrio sobre os segundos é total quando tentam evitar o roubo – não pagou impostos!

    A propaganda paga com o fruto do saque até tem o despudor de afirmar que o assalto representa a Civilização! A doutrinação até começa cedo na escola, um dos exemplos é este livro infame, com o título:  A Joaninha e os Impostos!

    woman in white long sleeve shirt kissing girl in white long sleeve shirt

    Aquilo que se deveria explicar às crianças seriam os valores que tornaram a Civilização Ocidental especial: respeito pela propriedade privada, moeda séria e poupança; o que não é consumido da produção do período é dedicado à poupança, servindo para ser aplicada em bens de capital. É isto que torna uma sociedade próspera. Ninguém vai poupar e investir se é assaltado em todas as esquinas. Não é uma casualidade que Cuba, Coreia do Norte e Venezuela sejam uma sociedade de miseráveis; tudo reverte para o assaltante.

    Imaginemos um indivíduo analfabeto numa ilha deserta, sem bens de capital, qual a diferença de produtividade em relação a um engenheiro nessa mesma ilha deserta? Nenhuma. Para produzir bens de capital, como uma cana, uma vara ou instrumentos de caça, o indivíduo tem de recolher alimentos numa quantidade superior ao seu consumo por forma a sustentar-se nos dias em que se dedica à produção de bens de capital. Sem poupança não há civilização. A tributação é a destruição da poupança, impedindo a prosperidade das sociedades e gerando uma montanha de pobres.

    Em relação a Portugal, desde 1973 que a tributação não pára de crescer em percentagem do PIB, enquanto as taxas de crescimento da nossa carteira não cessam de diminuir. Em 1973, o crescimento anual do PIB per capita foi de 11% e o peso das receitas fiscais (não inclui contribuições) no PIB era inferior a 10%; em 2020, em percentagem do PIB, as receitas fiscais eram superiores a 22%, enquanto o PIB per capita decrescia quase 9% em resultado de um confinamento criminoso da população.

    Evolução desde 1973 do crescimento das receitas fiscais (em percentagem) do PIB e do crescimento anual per capita do PIB. Fonte: Banco Mundial. Análise: Luís Gomes.

    Quanto mais pobres, maior a justificação para mais impostos: “temos que redistribuir”, diz-nos o ladrão. “Não se preocupem, pois irei devolver parte do saque pelos famélicos e desfavorecidos, através de serviços ‘gratuitos’ à população”, acrescenta. E muitos, mesmo muitos, acreditam. Estamos na presença de uma população com o Síndrome de Estocolmo: “eles, afinal, até são bonzinhos, vão ajudar os pobres e dar-lhes serviços gratuitos”!

    Esquecem-se é de explicar que a tributação diminui a poupança e a acumulação de capital, impedindo a subida de salários, lucros, oportunidades de investimento e emprego, essenciais à melhoria das condições de vida dos mais desfavorecidos…

    Mas atiram-nos: e então os países escandinavos, onde é tudo uma espécie de “Alice no País das Maravilhas”?

    Como podemos constatar na figura seguinte, até aos anos 50 do século transacto, a Suécia era um país de reduzida tributação, com um capitalismo pujante, tornando-se num dos países mais ricos do Mundo, graças a mercados livres, reduzida regulação e tributação.

    Evolução das receitas fiscais e contribuições para a segurança social em percentagem do PIB na Suécia entre 1860 e 2010. Fonte: Magnus Henrekson e Mikael Stenkula

    Brincar ao socialismo desde então teve consequências nefastas para a Suécia, que desde 1970 apresenta taxas de crescimento ridículas, em que em muitos anos são expressivamente negativas, como em 1977, 1991-1993, 2009 e 2020. Ainda hoje, a Suécia está a viver da prosperidade obtida durante a maior parte do século XX, em particular na sua primeira metade.

    Vamos agora ao “Estado Social”, onde nos prometem a “redistribuição” – apesar de ninguém lhes ter pedido nada –, através de serviços “gratuitos”, como a Educação, a Saúde e as pensões, que são um esquema em pirâmide ao melhor estilo Madoff. Se há coisa que ficou provada com o colapso da União Soviética foi a ineficácia do planeamento central.

    Vamos supor que aplicávamos o actual modelo estalinista da Saúde no sector da alimentação, igualmente “essencial” à população – felizmente, o capitalismo conseguiu praticamente eliminar a fome nas sociedades ocidentais. Teríamos então cantinas públicas, com um único menu, com uma contratação e recrutamento centralizados.

    Evolução (%) entre 1961 e 2020 do crescimento anual per capita do PIB da Suécia. Fonte: Banco Mundial. Análise: Luís Gomes.

    Os cozinheiros, os empregados de mesa, os administrativos, tudo seria contratado por um burocrata sentado num ministério. Estão a ver o desastre que isto seria, certo? Corrupção – não lhes custou a ganhar o dinheiro, as receitas são fruto de um assalto – a rodos, ineficiência e desperdício sem fim. Por que razão vamos achar que isto irá funcionar na Educação e na Saúde? Aliás, durante a putativa pandemia, foi notório o desnorte das baratas tontas que estavam à frente da coisa.

    Para além do “Estado Social”, também temos a “justiça social”, onde se utilizam taxas progressivas nos impostos directos. Onde prefere um assaltante praticar um assalto? A um bairro de ricos ou de pobres? Claro está, a um bairro de ricos.

    Como dizia um membro de um partido trotskista do regime: “Temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”. Há muito que perderam a vergonha, não é de agora.

    Ainda temos aquela expressão altissonante, em particular vindo daqueles que se propõem a “reformar” ou a modificar as leis tributárias: “os impostos têm de ser justos”. Como é que um assalto, uma agressão à propriedade privada, alguma vez pode ser justo?

    close-up photo of assorted coins

    Pergunta-me agora o leitor? Mas está contra qualquer tributação?

    Não, na minha opinião deve existir alguma taxa, paga por todos os cidadãos, que permita garantir que o Estado proteja a propriedade privada (polícia, defesa, notários…) e assegure o cumprimento dos contratos (tribunais). Nada mais.

    Por fim, a assistência àqueles que ficaram para trás, incapazes de se alimentarem e terem um tecto. Numa sociedade livre, sem estar refém de uma classe parasitária, essas pessoas serão uma pequena franja, devendo a comunidade organizar-se para as ajudar. Não é difícil, numa sociedade de mentalidade católica como a nossa, seguramente funcionará.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • O fascismo está onde menos se espera

    O fascismo está onde menos se espera


    Nos dias que correm, o epiteto “extremista de direita” tornou-se um supremo anátema – é mais do que suficiente para desqualificar por completo um adversário. Por exemplo, para a nossa imprensa mainstream, um “extremista de direita” é alguém boçal, inculto, e mesmo troglodita, que defende valores tradicionais como Deus, Pátria e Família.

    Com a vitória em Itália do partido Irmãos de Itália, liderado por Giorgia Meloni, lá tivemos nós que apanhar com o inenarrável jornal Público a anunciar que essa vitória estava a gerar “medos muito reais” sobre a comunidade LGB. Aparentemente, uma vitória democrática nas urnas estava a deixá-la sem dormir e com medo de sair à rua.

    Giorgia Meloni

    Outro terrível epiteto muito em voga é o “neoliberalismo”. Quem não se recorda das “muitas perversões neoliberais contaminaram o PS”, detectadas por Ana Gomes, que é, aliás, militante do PS há não sei quantos anos, mas muitos serão. Ninguém sabe definir tal “monstro”, que, tal como o gigante Adamastor, teima em impedir as glórias económicas do actual regime, apesar do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa expressar o desejo de se “abrir caminho para uma sociedade socialista”.

    Em paralelo, a imprensa mainstream e os líderes políticos tentam convencer-nos de que existe uma luta sem tréguas entre a esquerda e a direita, com ideias muito diferentes e antagónicas. Temos as sondagens a preverem possíveis maiorias de esquerda ou de direita; ou a dizerem-nos que a direita sobe e a esquerda desce.

    Também temos as linhas vermelhas impostas a um partido “fascista”. Segundo os principais fazedores de opinião, isolá-lo e ostracizá-lo é a única política pública aceitável. Fica sempre uma pergunta no ar: por que não fizeram o mesmo com os partidos que defendem ideologias totalitárias e regimes sanguinários?

    If you repeat a lie often enough it becomes truth printed wall taken at daytime

    Nas recentes eleições no Brasil foi-nos servido o mesmo prato: de um lado, um ex-presidiário corrupto tratado como um homem de amor e diálogo, capaz de liderar e com um enorme coração; do outro, um genocida boçal e perigoso.

    Enquanto este circo anima a populaça, o regime continua a saquear a população. Fá-lo bem e sem cessar há mais de 48 anos. Agora, até tem várias armas ao seu dispor: inflação elevada, impostos brutais – sobre o consumo, o trabalho, a poupança, o património… – e uma regulação sobre todos os aspectos da vida económica dos cidadãos.

    Para garantir que todos os dissidentes são severamente multados, dispõe de um exército de reguladores, polícias e fiscais que vigiam, inspeccionam e garantem que nenhum desgraçado incumpre a legislação kafkiana em vigor. Apesar de nada produzirem de útil à sociedade, os tecnocratas e colaboradores dos principais órgãos de regulação auferem salários principescos, inalcançáveis para qualquer empresário a trabalhar de sol-a-sol.

    yellow flowers

    Esta máquina de extorsão trabalha para um dono que já não mora em Portugal. A casta que nos governa limita-se a seguir as suas ordens. Durante a putativa pandemia foi evidente esta voz.

    É agora evidente que vivemos há muito tempo num regime fascista, que piora todos os dias, apesar das eleições de quatro em quatro anos, que já não servem qualquer propósito. Se servissem, ninguém poderia votar.

    Por que vivemos tão obnubilados? Na minha opinião, julgamos que o fascismo é algo do passado, associado aos anos 20 e 30 do século passado, onde vigorou a par com o socialismo.

    Em relação ao primeiro, vem-nos de imediato à memória o regime fascista italiano de Benito Mussolini e o regime nazi de Adolfo Hitler. Em relação ao segundo, a União Soviética de Stalin e a China comunista de Mao Tsé-Tung. São exemplos paradigmáticos de regimes totalitários. 

    grayscale photo of concrete bridge

    Como podemos caracterizar as principais diferenças entre Fascismo e Socialismo? No primeiro, permaneceu a existência da propriedade privada dos meios de produção; ou seja, existiam donos de fábricas, lojas e escritórios. No segundo, nada disso, atendendo que todos os meios de produção foram colectivizados; o Estado tornou-se o único proprietário e, por essa razão, a iniciativa privada e o livre mercado eram inexistentes.

    Mas será que a diferença era assim tão expressiva?

    Efectivamente, nos regimes fascistas existia propriedade privada, mas apenas no papel. Na verdade, o Estado determinava o que se produzia, em que quantidade, os métodos de trabalho, como era distribuído o resultado da produção, os salários, os preços, bem como, os dividendos que os proprietários podiam receber.

    Na prática, um planeador central do regime condenava o proprietário a assumir um papel de mero “pensionista”, ou mesmo um fiel depositário dos títulos de propriedade, em lugar de um empreendedor movido pelo lucro. 

    grayscale photo of ceramic mugs with coffee

    Segundo os fascistas, o bem comum estaria sempre acima dos interesses mesquinhos e egoístas de cada indivíduo que constitui a sociedade. Os planeadores centrais sabiam o que era melhor para cada membro. Nada melhor que a frase definidora do fascismo de Mussolini: “Tudo dentro do Estado; Nada fora do Estado; Nada contra o Estado”. A negação do capitalismo e do livre sistema de preços era uma característica comum a estes regimes.

    O controlo de preços e salários foi algo inevitável para este tipo de regimes; como é sabido, promoveram grandiosas obras públicas – a rede de auto-estradas da Alemanha nazi era notável –, subsídios a vastas camadas da população, garantido, desta forma, um povo obnóxio, e vastos programas de rearmamento. Tal escalada bélica terminou no desastre que todos conhecemos: a Segunda Guerra Mundial.

    Para pagar esta orgia de gastos públicos sem fim, estes regimes totalitários recorreram largamente ao imposto silencioso: a inflação. Tal política, como sempre, obrigou os comerciantes e retalhistas de todo o tipo a reflectir o aumento da massa monetária, obrigando-os a subir preços, caso contrário, os seus negócios deixariam de ser rentáveis. Efectivamente, em 1936 o partido Nazi, que então governava a Alemanha, impôs o controlo de preços e salários.

    Quando um regime tenta controlar preços – rendas, salários, preços de bens e serviços –, inevitavelmente irá criar distorções. Veja-se o regime de arrendamento português, em particular depois de 1974; com uma inflação elevadíssima. Durante as décadas de 70 e 80 do século passado, os proprietários não puderam subir as rendas, criando cidades com prédios decrépitos e em ruínas, em particular em Lisboa e Porto, fazendo desaparecer a oferta de casas para arrendamento.

    Quando isto acontece, os particulares e comerciantes tentam realizar transacções “ilegais”, criando um mercado negro, não oficial. Na Venezuela, por exemplo, a taxa de câmbio Bolívar/USD é completamente distinta quando ocorre na rede bancária – que pratica o preço oficial – e quando tem lugar no mercado negro. A compra de dólares norte-americanos e de Bitcoin, ou de outras criptomoedas, é a única forma dos venezuelanos protegerem o seu património da desvalorização imposta pelas rotativas do banco central venezuelano.

    O surgimento do mercado negro teve lugar nos regimes totalitários que aqui citámos. Se o Governo não me permite cobrar o preço que eu desejo, tentarei encontrar um cliente que esteja disposto a realizar uma transacção comigo na “ilegalidade”. Por outro lado, quando não se permite a subida de preços, ocorrem falhas no fornecimento de bens e serviços, atendendo que os empresários deixam de ter incentivos a produzir, pois irão certamente arruinar-se aos preços oficiais.

    people in green and black uniform standing on road during daytime

    Por outro lado, ao ser eliminado o sistema de preços, os empresários passam a estar “cegos”, deixam de conhecer os negócios que apresentam a maior probabilidade de lucro – os preços são sinais dados pelos consumidores -, atendendo que os preços deixaram de reflectir as preferências dos consumidores e a oferta disponível, para passarem a ser decididos por um burocrata, arvorado em planeador central. São conhecidas as rupturas de fornecimento de bens essenciais que ocorrem diariamente em países como Cuba ou Venezuela.

    Quando tal acontece, os Estados endurecem a sua resposta. Por um lado, começam a aplicar pesadas multas a quem realiza transacções no mercado negro; se insuficiente, se não tem o necessário efeito dissuasor, como reprimiam mais? Através de uma rede de espiões, informadores e delatores, visando criar uma atmosfera de terror sobre as pessoas.

    Mesmo familiares próximos podiam ser os informadores do Governo – um bufo pode estar em cada esquina. Em tais regimes, aquele que fosse apanhado a cometer uma ilegalidade, podia receber um bilhete para o céu ou para uma instância de férias, algures na Sibéria ou em Birkenau, para, no fim, provavelmente cavoucar a sua própria sepultura.

    person wearing silver ring and silver ring

    Muitos dos perseguidos políticos eram também eliminados da vida pública através de internamentos compulsivos. Como? Eram declarados insanos pelas autoridades. E as razões para tal? Eram muito perigosos para a sociedade. Passavam a ser uns maluquinhos, necessariamente fechados num hospício, que necessitavam de uma reabilitação psiquiátrica. Uma purificação das ideias.

    Por outro lado, o racionamento de bens e serviços tornava-se uma realidade, atendendo que a produção deixava de ser suficiente para as necessidades. Para tal política, lá aparecem as senhas de racionamento e os salvo-condutos.

    Na União Soviética existiam determinados bairros, apenas reservados ao escol – existem sempre animais mais iguais que outros –, que obrigavam à posse de um salvo-conduto, não vá a plebe dar-se conta de tal luxo reservado apenas para alguns. As pessoas passavam a ter de obter documentos governamentais para aceder a uma vida “normal”: comer, vestir, entrar na habitação…Irá agora acontecer o mesmo, agora, com o acesso à energia.

    Ora, a escassez de bens e serviços essenciais nos ditos regimes, como é óbvio, gerou fortes hostilidades ao Governo. Qual foi o seguinte passo? Culpar a população; evitar qualquer assuada. O sistema era perfeito: o problema eram as más pessoas que boicotavam o sistema – na versão moderna, não são pessoas de bem.

    mans face carved on round mirror

    Infelizmente, existiam cidadãos sem as necessárias virtudes públicas que era necessário denunciar; regra geral, uma infeliz minoria, que exigia o desinçar das suas impurezas. Para manipular as massas e culpar determinadas minorias de todos os males – como foi o caso dos judeus na Alemanha nazi –, os Estados recorreram à propaganda e à perseguição.

    O partido nazi era exímio em tal exercício: ainda hoje o documentário “Triunfo da Vontade”, da cineasta preferida de Hitler, Leni Riefenstahl, é considerado um dos melhores documentários da História da propaganda política.

    Em paralelo, criava-se um clima de terror sobre uma minoria, culpando-a de todas as desgraças, como foi o caso dos judeus da Alemanha nazi, através de restrições, regras e leis absurdas, que destaco apenas algumas:

    • 3 de Outubro de 1938: decreto da confiscação de propriedade judaica, regula a transferência de valores por judeus para não-judeus;
    • 5 de Outubro de 1938: todos os passaportes emitidos para judeus são invalidados. Judeus têm que entregar passaporte anterior que se tornará válido novamente após carimbo da letra J;
    • 15 de Novembro de 1938: todas as crianças judias são expulsas das escolas públicas;
    • 28 de Novembro de 1938: a liberdade de movimento de judeus passa a ser limitada.

    Face a este histórico, é fácil concluirmos que qualquer regime totalitário tem características muito semelhantes, independentemente da ideologia subjacente:

    • A propriedade privada apenas existe no papel, ou simplesmente não existe;
    • O livre mercado e a livre iniciativa estão fortemente condicionados; as liberdades, os direitos e as garantias são inexistentes;
    • Enorme despesa pública, com recurso à inflação para a pagar, visando “comprar” a população, seja através de obras públicas faraónicas, seja através de subsídios ou emprego público. Atendendo a esta política, invariavelmente são obrigados a controlar preços, que provoca a distorção da estrutura produtiva, destruindo todos os incentivos à produção e diminuindo o rendimento e a poupança das populações;
    • A tentativa de “saltar” as restrições, que condicionam a liberdade e a livre iniciativa dos cidadãos, gera uma forte repressão por parte do Estado. Multas, prisão, campos de concentração ou mesmo a pena de morte, são os pratos servidos, dependendo do grau de protérvia do regime;
    • Os indivíduos perigosos, aqueles que defendem ideias diferentes do poder, são eliminados por internamentos compulsivos, campos de reabilitação, podendo ser considerada a eliminação física;
    • A propaganda é inevitável, para manipular as massas, caso contrário, as pessoas iriam compreender a origem do problema; regra geral, utiliza-se a culpabilização de uma minoria por tudo o que corra mal – a culpa é sempre das pessoas impuras;
    • Para manter a situação controlada, a vigilância das pessoas torna-se permanente, utilizando-se toda a espécie de métodos: rede de informadores, espiões ou, como agora acontece, modernas tecnologias de vigilância (câmaras, controlos biométricos, moedas digitais…).

    Nas décadas recentes, em particular a partir de 2020, as sociedades ocidentais parecem estar a caminhar neste sentido: para o crescente totalitarismo.

    Em primeiro lugar, algo que já ocorre há décadas: a nacionalização do sistema monetário. Com o fim da convertibilidade do Ouro em 1971, a capacidade de manipulação de taxas de juro – o preço do dinheiro –, e da quantidade do dinheiro em circulação, tem-se tornado crescente. Em particular com a cartelização de grandes bancos centrais.

    Agora, os Estados podem impunemente aumentar os défices públicos, atendendo que se podem financiar a taxas de juro próximas de zero, ou mesmo negativas, pois os bancos centrais aparecem e compram todas as obrigações por si emitidas – dinheiro de monopólio não é um problema para estas entidades.

    Mesmo com recurso a uma enorme inflação, emissão de moeda para adquirir obrigações e financiar défices e despesa pública, a receita nunca é suficiente: o saque fiscal será, seguramente, crescente e imparável. A vigilância de todos os nossos movimentos financeiros é uma necessidade. Nos últimos anos, as empresas e os particulares tornaram-se delatores do sistema, todos nos denunciamos, pois foram obrigados e incentivados a enviar enormes quantidades de informação às autoridades.

    Com o advento das moedas digitais dos bancos centrais, o big brother fiscal será absoluto. Todos os nossos movimentos financeiros passam a ser conhecidos pelo poder, obliterando a privacidade do dinheiro físico que a escol certamente pretende abolir nos próximos anos, apesar das “juras” à complementaridade de tal forma de dinheiro – as conspirações tornam-se sempre realidade.

    gray concrete statue of man riding horse

    Tolhida pelo medo e o pânico, a sociedade passou a aceitar a segregação como algo normal; mais fácil de implementar numa sociedade como a portuguesa, habituada ao azorrague há séculos. Através de um salvo-conduto, os puros passaram a ter acesso exclusivo aos locais de lazer e divertimento; um dia destes, até para bens e serviços essenciais, como a saúde. O certificado digital foi o primeiro passo.

    Aos impuros está reservado o recolhimento, a ostracização e a vergonha pública, tal como os acusados do Santo Ofício, obrigados a usar um barrete, enquanto caminhavam na via pública para deleite das multidões.

    Os direitos humanos que julgávamos adquiridos, após o que se passou nos campos de concentração nazis, onde o Dr. Josef Mengele fazia experiências médicas sem o consentimento das vítimas, passaram a ser colocados em questão.

    printing machine

    Em paralelo, em uníssono, a imprensa apenas apresenta uma narrativa, não sendo agora pouco mais do que propaganda, uns autênticos áulicos do poder e fornecedores de cisco informativo. Mas não se fica por aqui: lançam encómios à discriminação, à ridicularização de quem pensa diferente e fomentam o discurso de ódio, que muitas vezes criticam noutras situações.

    Dá vontade de perguntar, está tudo doido? Nada disso, o escol sabe muito bem que esta é a oportunidade de ouro para obter mais poder e acelerar em direcção a um regime ainda mais totalitário e saqueador.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • “Vai ficar tudo bem”, ou a “lotaria” do Estado será a nossa “terminação”

    “Vai ficar tudo bem”, ou a “lotaria” do Estado será a nossa “terminação”


    Ontem, durante a manhã foi publicada a evolução dos preços ao produtor na Alemanha para o mês de Agosto: os preços subiram 45,8% em relação ao mesmo mês do ano passado! A inflação criada durante os últimos dois anos pelo Banco Central Europeu (BCE) está assim de boa saúde… e não se deveria recomendar.

    Resta-nos o consolo de ter servido para pagar a funcionários públicos e apaniguados do Estado durante os dois anos da “pandemia”, para que estes pudessem estar em casa sem fazer nada e a ver séries Netflix. Vai ficar tudo bem! Lembram-se?

    assorted bunch of fruit lot

    Nos últimos dias, não parámos de escutar sobre a necessidade de tributar os “lucros excessivos” das grandes empresas. Pessoalmente, parece-me que a única entidade com lucros excessivos até à data tem sido o Estado português. Aliás: saiu-lhe a lotaria!

    Apenas à boleia da inflação, e em relação a 2021, no primeiro semestre de 2022, o Estado português logrou obter mais 5,7 mil milhões de Euros de receita fiscal e mais mil milhões de Euros de contribuições para a Segurança Social. Não é um total, é um acréscimo em relação a 2021 – e apenas para a primeira metade do ano. A este ritmo, no final de 2022, poderá resultar numa receita adicional de 13,4 mil milhões de Euros, algo como 1.325 Euros a cada português.

    Para uma família de quatro pessoas (pai, mãe e dois filhos), o Estado português irá obter uma receita adicional no valor de 5.306 Euros. Os 350 Euros que serão devolvidos em Outubro (125 × 2 + 50 × 2) representam apenas 6,5% do “assalto”. Depois de despojar, de forma pungente, o ladrão, qual samaritano salaz, devolve uma migalha do butim. Aparentemente, reina a felicidade entre todos. Vai ficar tudo bem! Não é?

    10 and 20 euro banknotes

    Entretanto, sabemos que a Grande Líder Europeia, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista, apresentou um grandiloquente plano de redução do consumo de energia, em que constam medidas do tipo: “use menos”. Depois de ter proibido os europeus de adquirir energia ao maior produtor mundial, temos agora medidas absolutamente inovadoras e geniais, que a nenhuma cabeça se lhe tinha ocorrido: “use menos”.

    Podemos estar descansados: os Estados Unidos sofreram, certamente, o mesmo boicote comercial quando bombardearam e invadiram nações soberanas como o Vietname, o Camboja, a Sérvia, o Iraque, a Somália, o Afeganistão, a Síria – sim, a Síria, precisamente, a área rica em Petróleo, está a ter lugar nos nossos dias –, Granada; enfim, a lista é infindável. Além disso, as sanções à Rússia estão a resultar: quando o frio apertar, iremos usar lenha. Vai ficar tudo bem! Não é?

    Entretanto, o Estado português voltou a confiscar os proprietários, num novo ataque aos “ricos e fascistas”, visando proteger os “fracos e os oprimidos”, os inquilinos. O criminoso quer ser o único a gozar da inflação criada pelo seu Banco Central, mais ninguém pode beneficiar do saque.

    Durante a década de 70 e 80 do século passado, em particular durante o período “revolucionário”, o parque habitacional português ficou em ruínas devido ao congelamento de rendas, que não acompanharam a evolução da inflação, mas parece que a insanidade nunca tem fim. Aplicar a receita que não resultou é o lema. Vai ficar tudo bem! Não é?

    person walking near The Great Sphinx

    Entretanto, depois do discurso da esmola, parece que alguns demoraram a compreender que o maior esquema em pirâmide da História da Humanidade, denominado Segurança Social, está próximo da falência. Aparentemente, só agora começam a compreender que o confisco dos jovens a favor de um exército de idosos não irá terminar bem. 

    Todos os esquemas em pirâmide têm um fim: ele anuncia-se quando os novos idiotas que entram no esquema são insuficientes para pagar as saídas. Para perpetuar a fraude, o poder não quer assustar os idiotas, mas apenas diminuir o confisco dos que desejam sair. Vai ficar tudo bem! Não é?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?

    Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?


    Há umas semanas, Vítor Constâncio deu uma entrevista à RTP a respeito da inflação, com aquele ar doutoral que o caracteriza (cansado até), a viver o “produto” de muitos anos de milionárias sinecuras oferecidas pelo partido em que sempre militou. Com um semblante que parecia reflectir um certo enfado, lá respondeu às perguntas do jornalista José Rodrigues dos Santos, que parecia, sem ironia, vir bem preparado.

    Este último iniciou a entrevista com a seguinte questão:

    – Não terá o Banco Central Europeu (BCE) actuado demasiado tarde em relação à inflação?

    blue and yellow star decor

    Em resposta, Vítor Constâncio utilizou mais ou menos estas palavras: – A inflação, até Agosto do ano passado (2021), esteve sempre abaixo de 3%, ou seja, enquadrada no objectivo de 2%. Só no final de 2021 a coisa piorou, passando os 3% e por aí fora, até ter ficado evidente que teria de existir um ciclo de subida de taxas de juro, iniciando-se mais cedo nos Estados Unidos. Qualquer variação das taxas de juro leva tempo a produzir efeitos.

    Seguidamente, Rodrigues dos Santos ripostou: – Não deveria ter ocorrido uma actuação mais cedo, dado que agora temos a inflação a destruir os salários?

    Vítor Constâncio voltou a responder com um ar professoral: – As taxas de juro demoram tempo a fazer efeito e, por conseguinte, mesmo que tivesse ocorrido uma actuação mais atempada, não teria havido grande diferença na taxa de inflação que hoje temos…”porque… repare… os grandes pulos na inflação deveram-se a grandes choques internacionais de preços; primeiro o Petróleo, depois a alimentação, o trigo e outros produtos alimentares intermédios… que deram origem ao aumento dos preços”.

    Vítor Constâncio, antigo vice-presidente do Banco Central Europeu

    Interrompendo, Rodrigues dos Santos retrucou direito à “ferida”, com estas palavras: – Mas não houve uma enorme impressão de moeda pelo BCE por alturas da pandemia?

    Eis que o “professor” contesta com enorme protérvia: – A impressão de moeda não é a causa da inflação que se atribuiu durante muito tempo, na chamada visão monetarista das coisas. Veja que, entre 2008 e 2015, 2016 e mesmo 2017, ocorreu impressão de moeda, ou seja, um aumento espectacular do balanço dos Bancos Centrais e não houve inflação durante todos esses anos! Portanto, essa teoria da emissão monetária não tem aqui grande justificação. O ponto aqui é que a inflação começou com choques externos, primeiro na energia, depois na alimentação e, claro, começou a partir de certa altura, mas só este ano, nos preços internos. A política monetária tem de tentar mitigar precisamente isso.

    Resumamos então as palavras de Vítor Constâncio:

    1 – A impressão de dinheiro não tem qualquer relação com a inflação;

    2 – A inflação, que estamos presentemente a viver, é fruto de um truque de prestidigitação: o resultado de choques internacionais nos preços, gerando “pulos”.

    Mas esta propaganda estatal não se ficava por aqui. Na semana passada, no inacreditável discurso da esmola, o nosso primeiro-ministro atirava: “… consequência da pandemia e, sobretudo, da guerra da Rússia contra a Ucrânia, temos vindo a sofrer um brutal aumento da inflação que atinge duramente o poder de compra das famílias…”. Aqui a inflação não apareceu por magia, digamos por choque, mas já foi consequência da pandemia e da guerra na Ucrânia.

    stack of books on table

    Importa deixar algo claro a estes senhores que o único responsável pela inflação é o Governo, pois tem o monopólio da emissão de moeda, através do seu Banco Central, juntamente com o sistema bancário – que apenas pode operar caso possua uma licença bancária – , que igualmente emite moeda quando concede créditos por contrapartida da emissão de moeda.

    Mais ninguém gera inflação. Não é o Putin, não é a “pandemia”, nem tão pouco são os “choques ou os pulos” dos preços.

    Quem gera inflação é o Banco Central e o sistema bancário por si licenciado e supervisionado – mais ninguém!

    Como expliquei neste vídeo, quando há emissão de dinheiro não ocorre qualquer produção de bens ou serviços, não há aumento de riqueza, apenas a sua redistribuição. É como uma pirâmide de flutes de champanhe: os copos mais próximos do topo (neste caso, os mais favorecidos e os apaniguados do Estado) são os primeiros a receber o champanhe; enquanto os que estão abaixo (os pobres) recebem apenas gotas, mas já a saberem mal, em resultado de preços inflacionados.

    A inflação é, na verdade, um roubo dos ricos e poderosos aos pobres, nada mais. Os ricos vêem os seus activos e propriedades a valorizar, o Governo vê as suas receitas a disparar e a dívida pública a diminuir, tanto em termos reais como em peso do Produto Interno Bruto (PIB).

    Vítor Constâncio diz-nos que, entre 2008 e 2017, houve uma impressão massiva de moeda, mas não houve inflação. Diríamos mesmo que, desde o final de 2008, não aconteceu outra coisa que não seja a impressão massiva de moeda e inflação. Vejamos o balanço do principal Banco Central do Mundo: a Reserva Federal norte-americana (FED).

    Evolução do balanço da Reserva Federal norte-americana entre 2009 e Agosto de 2022, em biliões de dólares. Fonte: St. Louis Fed; Análise do autor

    Entre o início de 2009 e o final de 2017, o balanço duplicou, ou seja, subiu 110%, a um ritmo anual de 8,6%. Esta emissão é amplificada 10 ou 20 vezes pelo sistema bancário, pois esta nova moeda é creditada a seu favor, podendo assim conceder crédito com uma pequeníssima fracção destas reservas.

    Isto foi o que precisamente sucedeu durante aquele período até ao início da “pandemia”: os bancos norte-americanos concediam crédito com juros de 0% às grandes empresas, como a Apple ou a Tesla, por contrapartida da criação de moeda – ou seja, inflação. Com esta liquidez compravam as suas próprias acções nas bolsas de valores e faziam subir as cotações. Uma redistribuição a favor dos accionistas destas empresas, algo que o Dr. Vítor Constâncio não se deve ter apercebido seguramente.

    Vamos utilizar um momento-chave dos Bancos Centrais, quando a administração do Banco Central Europeu (BCE) – na altura presidido por Mario Draghi, e com Vítor Constâncio a ocupar a vice-presidência – anunciava a 26 de Julho de 2012: “… está pronto para fazer o que for necessário para preservar o euro; e acreditem que isso será suficiente…”.

    O que é que aconteceu com as cotações das principais acções norte-americanas e os principais índices bolsistas no período entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, no final de Fevereiro de 2020: a Tesla subiu 2 521%, ao ritmo anual de 54% ao ano, a Amazon 845%, ao ritmo anual de 34%, e por aí a fora. Para os multimilionários norte-americanos, este período foi de enorme bonança. A inflação seguia inteiramente a seu favor.

    Retorno do preço da acção ou pontos do índice entre 26 de Julho de 2012 e 28 de Fevereiro de 2020
    (Unidade: %; medido em Euros). Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    O que é que aconteceu com o imobiliário para o mesmo período: o índice “S&P/ Case-Shiller U.S. National Home Price Index”, que mede os preços do imobiliário para as principais cidades norte-americanas, subiu 50% entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, a um ritmo anual de 5,4%, muito longe da suposta inexistente inflação que nos anunciava Vítor Constâncio na entrevista.

    Mas podiam dizer-nos que os lucros da Tesla foram excepcionais e subiram vertiginosamente durante este período, justificando tal subida meteórica. Não, nada disso. Entre 2012 e 2019, a Tesla nunca apresentou lucros para nenhum exercício. Em 2017 até apresentou perdas colossais de 1,9 mil milhões de dólares (fonte: Macrotrends).

    Mas agora vamos ver o que aconteceu com as obrigações que foram objecto de ajuda por parte do BCE de Vítor Constâncio, após anúncio salvífico do euro em Julho de 2012.

    Na figura seguinte podemos ver que inflação foi coisa que “nunca existiu”, em particular para as obrigações gregas que subiram 644%, ao um ritmo anual de 22%, desde o épico anúncio de Mario Draghi até aos nossos dias. Tratou-se de um verdadeiro milagre para um Estado falido, que tem hoje uma dívida pública superior a 220% do PIB e que, antes da ajuda de Mario Draghi, se financiava nos mercados acima de 35%!

    Evolução mensal do preço e da taxa de juro implícita das obrigações emitidas pelo Estado grego com maturidade a 10 anos (Unidade: índice e %). Fonte: Investing (Thomson Reuters Greece 10 Years Government Benchmark). Análise do autor

    Para o mesmo período, as obrigações portuguesas subiram 146%, as espanholas 86% e as italianas 61%, uma verdadeira festa para bancos e multimilionários, que à boleia da inflação dos Bancos Centrais viram uma importante fracção da riqueza mundial ser canalizada directamente para os seus bolsos.

    Mas eis que chegou um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%: era necessário imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã. Pela primeira vez, os Estados deixaram de se preocupar com quem lhes pagava a conta. O processo foi e é simples: enormes défices financiados com a emissão de obrigações e adquiridas pelos Bancos Centrais por contrapartida da emissão de moeda. Inflação sem limites!

    No caso do Banco Central norte-americano, o FED, desde o início da “pandemia” até hoje, subiu o seu balanço em 4,5 biliões de dólares (12 zeros); o BCE não ficou atrás, imprimindo praticamente a mesma quantia, neste caso em euros.

    Então o que aconteceu entre o início da “pandemia” e o início da guerra da Ucrânia? Como podemos ver na figura seguinte, o petróleo subiu 351%, ao ritmo anual de 121%.

    O petróleo, no final de Março de 2020, valia 20 dólares por barril (cerca de 18 euros) e no dia 23 de Fevereiro de 2022 – um dia anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia – valia 92,1 dólares por barril (81,3 euros).

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 30 de Março de 2020 e 23 de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor

    Para o mesmo período, a madeira subiu 323%, ao ritmo de 113% por ano, o gás natural 169%, ao ritmo anual de 68%, a aveia 155%, ao ritmo anual de 64%, e por aí fora.

    A impressão massiva de dinheiro para as pessoas “ficarem a casa”, enquanto se lhes dizia que iria “ficar tudo bem”, gerou uma enorme inflação. Não foi o resultado de um truque de magia, mas uma inflação deliberadamente criada pelos Governos.

    Será que estas subidas foram mais ou menos acentuadas após o início da guerra da Ucrânia?

    A partir de 22 de Fevereiro até finais de Agosto, de entre 22 matérias-primas, apenas sete subiram a um ritmo anualizado superior – assinaladas a cinzento –, ou seja, 30%, aproximadamente.

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 23 de Fevereiro de 2022 e 29 de Agosto de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Destaque para o gás natural que subiu 131% até ao final de Agosto de 2022, a um ritmo anual de 411%. Esta subida deve-se, não só à inflação criada pelos Bancos Centrais, mas também à “estúpida” política de sanções da União Europeia (UE).

    Em conclusão, a presente inflação que estamos a viver é da exclusiva responsabilidade dos Governos, que têm o monopólio da emissão de moeda, juntamente com o sistema bancário com uma licença governamental, que lhes autoriza a prática de reservas fraccionadas, uma prática altamente inflacionária.

    Numa primeira fase, esta “loucura” foi apenas um fenómeno de ricos: carros antigos, arte, acções, obrigações, imobiliário, passes de jogador de futebol, imobiliário…

    black and silver laptop computer

    Numa segunda fase, a impressora trabalhou com tal intensidade, que a massa monetária criada foi parar essencialmente às mãos dos apaniguados do Governo, a quem lhes foi proporcionada uma procura completamente artificial e desnecessária: testes, máscaras, vacinas, contratação de funcionários públicos de forma massiva, subsídios para o “fique em casa”, etc.

    Esta “liquidez” foi usada para adquirir bens que fazem parte do cabaz de compras utilizado para medir a inflação. Desta vez, não foi possível ocultar, daí a necessidade da propaganda e dos truques de prestidigitação.

    A inflação é o aumento de massa monetária: isto é, um monopólio do Governo e do sistema bancário autorizado pelas autoridades. Nada mais.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Globalismo: a nova tirania

    Globalismo: a nova tirania


    A revolução luterana de há 500 anos não trouxe apenas o Estado Absoluto, também demoliu a visão comum que mantinha a sociedade unida. Cada indivíduo era agora capaz de interpretar as Sagradas Escrituras, em lugar de um intermediário que passava anos a estudar, enquadrada por uma instituição milenar. Cada um tinha agora uma opinião sobre a sociedade: a ideologia.  

    Eu não me adapto à realidade, onde existem fraquezas humanas, como o vício do jogo, a miséria moral ou a assimetria de informação – por exemplo, a relação entre um médico e um paciente, onde nem sempre o segundo questiona sobre os medicamentos receitados pelo primeiro –, a realidade é que tem de adaptar-se à minha visão sobre a sociedade.  

    brown wooden cross on brown wooden wall

    Tudo isto foi ajudado por uma revolução no pensamento. Tivemos Descartes que afirmou: “tudo que vemos, sentimos, tocamos, pode ser fruto de nossa imaginação, não existindo realmente. Apenas o pensamento tem força e prova de verdade”. Aquilo que está dentro da cabeça do homem é de alguma forma mais verdadeiro do que a sua percepção da realidade.  

    Um século depois, Kant reforçou a revolução mental original de Descartes, afirmando que, embora não possamos ter certeza se temos dois braços, ou se é frio ou quente, escuro ou ensolarado fora de nossa mente, a Razão é universal; isto é, se as pessoas pensarem bastante em qualquer coisa, chegarão às mesmas conclusões. As ideias tornaram-se mais verdadeiras do que a vida real. A era das ideologias tinha começado.  

    As ideologias são por natureza projectos universais. Todos os homens devem ter uma igual condição económica (Marx); Os melhores devem governar as massas (tecnocracia). Apenas há lugar na sociedade para determinadas raças (Nacional Socialismo); A sociedade deve abandonar os carros (Globalismo); Não há lugar na nossa sociedade para não vacinados (Covidismo). 

    Todos os homens têm o seu lugar na sociedade e têm que chegar lá para que as coisas funcionem tal como prescrito pela realidade ideológica, mesmo que o “lugar apropriado” de algumas pessoas seja o Gulag, Auschwitz ou mesmo um campo de “concentração para não vacinados na Austrália”.  

    Pode parecer que a revolução individualista foi desfeita pela chegada do pensamento ideológico universalizante; a visão de mundo comum que orientou a nossa civilização foi abalada pelo individualismo da primeira Modernidade, apenas para ser substituída por um novo universalismo ideológico.  

    Para São Tomás de Aquino, a bondade é a verdade, e a verdade significa que o que está dentro das nossas cabeças (ideias, noções, percepções) coincide com o que está fora (a própria realidade). Para qualquer ideólogo é o contrário: a “bondade” é ter a própria realidade de acordo com o que está dentro da cabeça, a ideologia que ele adopta.  

    Em lugar de testar sua percepção contra a realidade, os ideólogos julgam a realidade contra a sua ideologia, “mais verdadeira que a própria realidade”. Ao lidar com qualquer fenómeno social, partem sempre das premissas da sua ideologia.  

    person reaching black heart cutout paper

    Todas as ciências foram tocadas pela ideologia, até a Economia. Tivemos Keynes, um estatístico que inventou a macroeconomia, inaugurando a gestão de agregados – o consumo agregado, a despesa agregada, o investimento agregado – e retirando a acção humana individual da equação. Todas as mentiras e dissonâncias são possíveis, facilitando a propaganda de Estado e abrindo caminho a uma enorme burocracia encarregue de forçar a ideologia sobre a sociedade. 

    Os bancos centrais emitem dinheiro para estimular a economia. Um indivíduo falsifica dinheiro. Os primeiros actuam em nome do bem, da ideologia. O segundo tem como destino o calabouço. 

    Os bancos centrais compram obrigações soberanas para reduzir os encargos com juros dos governos, provocando a redução dos juros e a subida do preço dessas obrigações. Como tem informação privilegiada, um indivíduo compra acções da empresa XYZ, dado que tem conhecimento de uma iminente subida do seu preço em bolsa. Os primeiros estão a ajudar o governo a realizar um estímulo fiscal. O segundo está a manipular preços, devendo ser detido pela prática de “inside trading”. 

    O Estado encerra um restaurante em nome do combate a uma pandemia com uma taxa de sobrevivência de 99%, está a evitar a “morte de milhões”. O segundo deverá ir à ruína e esperar em casa por uma esmola, se alguma vez chegar. 

    person holding brown leather bifold wallet

    O principal problema do pensamento ideológico é que ele é literalmente a adoração de uma fantasia. As fantasias são coisas que não existem no mundo real, apenas existem dentro das nossas mentes; acreditar no que está dentro da cabeça ao invés de sentidos mentirosos é o ponto de partida do pensamento ideológico.  

    O seu segundo problema é que as ideologias não permitem o elemento mais essencial na sociedade humana, a natureza humana. Se lermos uma história escrita há centenas ou milhares de anos, veremos os homens a agir tal como agem hoje, sofrendo pelas mesmas causas, buscando os mesmos prazeres, caindo nas mesmas tentações – o vício do jogo, por exemplo – e assim por diante. O homem não muda e, embora cada homem seja diferente de todos os outros, em certo nível todos os homens são iguais. 

    Aos estarmos cegos para a natureza humana, os ideólogos sempre caem na mesma armadilha universalizante. Eles podem ser ideólogos de visão única, como neoliberais ou comunistas, ou podem acreditar que os não vacinados são seres inferiores, que merecem ser ostracizados pela sociedade; no final, todos eles tratam toda ou pelo menos grandes áreas da Humanidade como se todos os homens fossem clones do que eles vêem no espelho. 

    Eles estão sempre optimistas sobre como as pessoas se vão comportar, eles sempre assumem que todos querem e valorizam exactamente as mesmas coisas que eles.  

    woman in black and white tank top leaning on wall

    Regra geral, estes “loucos” necessitam da violência de Estado para imporem a sua versão da realidade aos demais. Ou detêm poder efectivo sobre o Estado ou conseguem influenciar quem o detém.  

    Estamos agora na etapa final da revolução protestante: uma ideologia global imposta sobre toda a humanidade, imposta através de instituições globais, como a OMS e os Bancos Centrais. Os “loucos” não se importam com a realidade, afinal apenas querem o nosso bem, até dizem: “Não terás nada e serás feliz!” 

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Assim se fez um Estado Tirano

    Assim se fez um Estado Tirano


    Até há cinco séculos, a promulgação de leis pelo Estado era algo pouco comum. Esperava-se que as pessoas fizessem o que era a prática comum numa dada comunidade e se abstivessem de fazer aquilo que as pessoas “pouco decentes fazem”.

    De certa forma, essa noção ainda hoje persiste. Os polícias, por exemplo, tendem a ver os criminosos em geral não exactamente como infractores da lei, mas como pessoas que fazem coisas que pessoas decentes não fazem: “Eu não saio por aí a roubar coisas”.

    man in black jacket walking on bridge near body of water during daytime

    Os sistemas jurídicos anglo-saxónicos ainda preservam essa tradição: a Common-law. Os casos são resolvidos através de um caso anterior semelhante e, em seguida, estendendo a decisão precedente sobre a nova situação aparentemente relacionada.

    Funcionou bem para as pequenas comunidades, muito unidas e com poucas diferenças, mas com sociedades crescentemente complexas, isto é, com grupos sociais com distintas culturas, aquilo que parece óbvio para um grupo social pode ser um absurdo para outro.

    O sistema legal romano foi outra abordagem que existiu no passado, criado com um vasto império, de pessoas e culturas amplamente diferentes. Nele, não havia lugar para o direito comum: tudo o que se proíbe está escrito; tudo o que não é proibido é permitido.

    É assim que os sistemas judiciais funcionam na maior parte do Mundo nos nossos dias. No entanto, com uma diferença importante: os juízes eram bastante livres para interpretar a lei escrita à sua maneira. Desta forma, a lei, no sistema romano, acabava por não ser algo a ser obedecido literalmente, mesmo que tal literalidade fosse possível. As leis eram directrizes e não obrigações morais, onde o costume determinava se uma determinada lei era compreendida e aceite pela sociedade em geral.

    Com o advento do Estado Moderno, onde as burocracias imperam, começou a tratar-se a lei escrita como algo divino, aquilo que denominamos por “positivismo”, pois as leis promulgadas são chamadas de “direito positivo”, em contraste com o direito consuetudinário – construção jurídica baseada em costumes a partir das tradições dos povos de determinado local e que passaram a ser aceites como norma.

    A actual teoria do Estado todo-poderoso surgiu no momento em que um monge martelou um pedaço de papel na porta de uma igreja – na noite das Bruxas, nada menos! –, altura em que se viviam importantes revoltas sociais no norte da Europa.

    A criação de Frei Martinho Lutero de uma religião totalmente nova não foi uma causa, mas uma consequência da sua martelada na porta de uma igreja. Ele desejava desafiar uma pessoa do seu bairro que andava a angariar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma, para debater com ele a legitimidade das suas “técnicas de venda”.

    A véspera de Todos os Santos foi o momento perfeito para pregar as suas propostas na porta daquela igreja em particular, já que no dia seguinte seria realizada a maior exposição de relíquias sagradas de todo o norte da Europa, garantindo a propagação da sua mensagem a milhares de peregrinos.

    Lutero, um professor que conhecia as Sagradas Escrituras, desafiava uma pessoa que provavelmente conhecia as Sagradas Escrituras apenas do que escutava nas suas idas às missas, com as seguintes regras: todo e qualquer argumento deveria ser extraído das Escrituras – algo justo!

    A religião era então, e ainda é – seja o cristianismo, o islamismo, o budismo ou o moderno ateísmo –, a lente através da qual vemos, a lógica com a qual interpretamos, o mundo ao nosso redor.

    Naquela época, na Europa, a religião significava uma coisa, e apenas uma coisa, em todos os lugares. Não apenas os seus princípios morais formavam a estrutura de comportamento aceitável, mas o tempo religioso – o calendário litúrgico – deu às pessoas a própria noção de tempo.

    As práticas religiosas – por exemplo, as peregrinações àquela igreja onde Lutero martelou as suas propostas – eram essencialmente universais e partilhadas por todos; a autoridade religiosa era a base da autoridade civil, e assim por diante.

    A autoridade religiosa não significava que um rei fosse considerado um procurador de Deus. Muito pelo contrário. Na verdade, significava que o trabalho de qualquer governante podia e devia ser comparado com o que era então universalmente aceite como vindo de Deus; governaria como representante do povo. Não de Deus: do povo.

    A voz do povo era a voz de Deus, e, muitas vezes, era a visão do povo sobre o que era certo e o que era errado, dentro do contexto de um consentimento religioso absolutamente unânime, que manteria ou deporia reis e príncipes.

    beaded brown rosary

    A autoridade de um governante, portanto, dependia de como ele usava a sua – bem pequena – autoridade. Ele realmente tinha o poder de aprovar algumas leis positivas, mas a lista de requisitos era bastante vasta. Entre outras coisas, não podia aprovar uma lei que não fosse útil ou que fosse contra o costume estabelecido. O rei era uma espécie de velho patriarca que não diria aos seus filhos e netos como governar as suas próprias casas, mas cuja autoridade seria respeitada para resolver disputas.

    Além disso, toda a sua autoridade vinha de compromissos: ele teria que proteger cada uma das pessoas que viviam nos “seus” territórios, enquanto o povo teria que alimentá-lo, tal como aos seus exércitos privados – ridículos em comparação com os exércitos modernos. Ele era um servo da terra, o mais baixo servo, pois seria o último a abandonar o território.

    Entretanto, uma mosca feia, gorda e peluda presa na pomada da sociedade estava a surgir: o dinheiro. Mais especificamente, o facto de que havia uma presença cada vez maior do dinheiro na sociedade, apesar de não haver então lugar para ele.

    De acordo com a Lei – isto é, com o costume –, alguém que nascesse guerreiro ou agricultor teria para sempre tal estatuto na sua vida terrena. A única escolha real era o ingresso na vida eclesiástica, uma espécie de terceira via.

    O dinheiro não fazia diferença: um guerreiro rico ainda deveria ser um guerreiro, arriscando o seu pescoço pelos outros; um agricultor teria de continuar a lavrar a terra e não podia comprar ou vender terras. Todo o dinheiro do Mundo não podia transformar um guerreiro num agricultor, ou vice-versa.

    gray concrete castle

    O comércio começou a enriquecer algumas pessoas. A maioria vinha de famílias de agricultores. Não havia lugar para os ricos na sociedade, mas eles conseguiram esculpir um lugar para si, usando o seu dinheiro em benefício dos militares. Não é uma novidade, algumas dessas pessoas continuaram a fazê-lo até aos nossos dias. O principal fabricante de armas da Alemanha em ambas guerras mundiais foi a Krupp, um conglomerado familiar que começou naquela época como um negócio familiar.

    Antes que os ricos chegassem à cidade, não havia tal coisa. Havia castelos com fossos, mas, infelizmente, sem dragões, e terras em redor. Quando havia guerra, os civis entravam no castelo e os militares saíam, mas em tempos normais era o contrário.

    Com o dinheiro, surgiu algo novo. Os novos ricos começaram a financiar os muros, cada vez maiores, ao redor das muralhas iniciais do castelo e, por sua vez, construíram casas e lojas dentro das novas muralhas.

    O nome dessas cidades comerciais que se desenvolveram entre as muralhas originais e as novas e maiores do castelo era o Burgo – a fortificação que servia de abrigo às populações situadas fora das muralhas. Os seus habitantes ficaram conhecidos como a “burguesia”.

    Obviamente, os militares e a burguesia “tornaram-se amigos”, em detrimento dos pobres, que continuavam fora das muralhas originais – e do burgo. Na época de Lutero, as revoltas dos camponeses estavam a começar a ser comuns em todos os lugares, mas os militares (os nobres) estavam de mãos atadas, por essa desagradável tradição de obedecer a Deus. A revolução de Lutero forneceu-lhes a escapatória.

    Mais do que isso, instalou-se uma nova autoridade religiosa que diria aos príncipes como lidar com os camponeses revoltados: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos”.

    people gathering on street during nighttime

    “Como se matam cães raivosos” foi estendida a todas as seitas que não se juntavam ao seu novo governo – a Igreja Luterana – aprovado pelo Estado (ou melhor, aprovado pelos governantes locais; os Estados eram muito pequenos e ainda sem importância, e, acima de tudo, o poder era 100% pessoal: o Estado era o seu rei).

    É por isso que todas as denominações protestantes de hoje podem traçar as suas linhagens institucionais e teológicas até uma ou duas das três seitas protestantes aprovadas pelo Estado do século XVI: luterana, calvinista e anglicana. Todas as outras opções que surgiram de diferentes interpretações da Sola Scriptura foram obviamente eliminadas – “como se matam os cães raivosos”.

    De certa forma, algo bastante semelhante já tinha acontecido alguns séculos antes, quando a seita gnóstica dos cátaros surgiu no sul de França e Norte de Itália. Ao tornar-se um cátaro, a pessoa libertava-se de todos os compromissos e obrigações anteriores, a base da então ordem social. As pessoas começaram a persegui-los e a matá-los, nomeando-se ao mesmo tempo juízes e carrascos, algo intolerável para a Igreja Católica. Foi assim que a Inquisição surgiu: para libertar os falsamente acusados.

    O sul da França, na época dos problemas cátaros, era o centro do mundo; o norte da Europa no tempo de Lutero era o deserto, os arredores da civilização. Foi assim que a nova religião conseguiu tempo suficiente para obter massa crítica e, desta forma, sobreviver muito mais tempo do que o catarismo.

    group of people walking on pedestrian lane

    O calvinismo – apoiado diretamente pela burguesia de Genebra – era então um fenómeno local, que sobreviveu tanto pelo caos completo no Norte quanto pela falta de importância da Suíça na época. O facto de os suíços serem tão ferozes, a ponto de todos quererem contratá-los como mercenários, ajudou a protegê-los.

    Assim, começaram as Guerras Religiosas Europeias e, por gerações e gerações, a Europa tornou-se um vasto campo de batalha onde os seguidores da Antiga e da Nova Religião tentavam obter vantagem para libertar os outros do jugo das suas horríveis heresias e superstições. Cem anos de derramamento de sangue.

    Qual foi a solução? O Tratado de Vestfália. Pode ser resumido ao seguinte: a religião de cada pequeno governante seria imposta a todos os seus súbditos. Por outras palavras, enquanto antes da revolução Luterana todos concordavam sobre o que Deus queria que um governo fizesse, e a sua autoridade repousava na conformidade a essa visão comum, depois da Vestfália cada governante local ganhou autoridade para decidir, por conta própria, qual seria a verdade de Deus.

    Os reis foram, de facto, colocados acima de Deus, recebendo o direito de julgar se o que sempre foi considerado por todos, em todos os lugares, como Revelação Divina se era ou não verdade.

    Para implementar a “nova verdade”, iniciou-se a propaganda de estado em grande escala. Iniciou-se pela interpretação das Escrituras Sagradas da seita vencedora, obviamente imposta pelo Estado, através da criação da “educação pública”, uma invenção protestante. Doutrinar a versão correcta era o lema.

    Hoje, a doutrinação das crianças no sistema escolar alcança níveis nunca imaginados, temos como exemplos a “civilização e progresso decorrentes do pagamento de impostos” – até existe um livro, a Joaninha e os impostos –, a “ideologia de um conjunto de letras sem fim” ou mesmo a nova “ciência emanada da DGS”. Um sem-fim de programas escolares destinados a criar um homem-novo – o comunismo também se propunha a tal.

    A revolução Luterana abriu caminho para o direito divino absolutista; por cá, o expoente máximo foi o Rei D. José e o seu “carrasco”, o Marquês de Pombal. Apesar de terem sido “déspotas esclarecidos” não tinham o poder, longe disso, que um Estado moderno hoje possui. Algum cabeleireiro naquele tempo teria que pedir uma licença estatal para abrir ou inscrever-se nas finanças assim que abre actividade?

    white concrete statue of man

    O passo lógico surgiu depois: do rei absoluto passámos ao povo absoluto, surgindo essa entidade metafísica denominada colectivo. O colectivo até passou a escrever constituições – o contrato social. Sempre achei divertidas as entrevistas a dirigentes do Partido Comunista, onde todos invariavelmente afirmavam não serem responsáveis por nada, tudo tinha sido decidido pelo colectivo!

    O Estado, tendo absorvido o poder supostamente cedido “pelo colectivo”, tornou-se ainda mais absoluto do que qualquer monarca absoluto. Afinal, enquanto um rei ou uma rainha absolutista podia ignorar a vida real do “seu” povo, a ponto de acreditar que “dar-lhes brioches” seria a solução para a falta de pão, um Estado moderno tem olhos sem fim.

    Hoje em dia, com toda a tecnologia que um Estado pode colocar a seu serviço, o seu problema não é ignorar o que realmente significa a falta de pão, mas analisar todo o vasto fluxo de dados que lhe chega. Ele ouve cada palavra falada em cada telemóvel, mas necessita descobrir o que vale a pena ouvir. Ele vê em tempo real as pessoas que circulam pelas cidades, mas necessita descobrir quem observar. Ele necessita de nos impor um passaporte sanitário para circular numa fronteira ou entrar num restaurante, mas necessita saber como identificar os dissidentes que não se vacinaram.

    A revolução Luterana não trouxe apenas a tirania absoluta do Estado, que se concentra agora numa tentativa de estabelecer um governo global, através de instituições globais que definem a nova religião, onde um conjunto de sacerdotes pretende governar em nome da Humanidade, do Clima e do Planeta.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Roma ou a nova queda de um império

    Roma ou a nova queda de um império


    Em férias, aproveito para ler o livro The failure of the “New Economics”: an analysis of the Keynesian fallacies, de Henry Hazlitt. Como sabem,Keynes foi o “economista” que mais justificou o estado omnipresente e omnipotente do Estado.

    O Estado Social, com um peso na Economia sem precedentes, teve a sua justificação “académica” com Keynes. Obviamente, para os poderes instalados, as suas “receitas económicas” foram como música celestial. A estrada para um poder estatal sem limites estava aberta.

    Para além de um investidor de bolsa fracassado, Keynes era um estatístico que nunca estudou verdadeiramente Economia; só assim se justifica a quantidade de disparates que escreveu ao longo da vida. Apesar disso, o seu livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, objecto de análise no livro de Henry Hazlitt, foi elevado ao estatuto de fundador da Macroeconomia!

    John Maynard Keynes (1883-1946)

    Para Keynes, o mais importante era o nível de despesa da sociedade: denominado de despesa agregada. Se gasta muito, os produtores são incentivados a produzir mais, empregando, desta forma, mais trabalhadores e promovendo o pleno emprego. Se a despesa total subir demasiado, para além do pleno emprego, ocorre uma subida do nível geral dos preços, i.e., inflação.

    A recessão é o processo ao contrário: a sociedade gasta pouco, os produtores reduzem a produção, gerando desemprego e queda dos preços. Nunca pode haver desemprego com inflação.

    Segundo Keynes, a despesa é uma espécie de acelerador da Economia: se vai a fundo, temos pleno emprego e inflação; se vai a meio gás, fantástico, temos pleno emprego sem inflação; se não se acelera, temos recessão e desemprego. Cabe ao Estado acelerar e desacelerar: é simples!

    As recessões são causadas por quedas abruptas no nível de despesa agregada. Keynes nunca nos explicou as razões por detrás das mesmas, utilizando apenas o esmorecimento dos “animals spirits” como argumento. Ao longo do século XX, e ainda hoje, os seus discípulos continuam a tentar explicar as razões por detrás desse esmorecimento. Até hoje, sem grandes resultados.

    low-angle photography of high rise building

    Sempre que há uma recessão e subida do desemprego, qual a solução? O Governo tem de estimular a despesa agregada. Keynes propôs três soluções: (i) inflação, imprimindo moeda; (ii) subida da despesa pública, com o agravamento do défice orçamental; (iii) e redução de impostos.

    A terceira hipótese nunca foi verdadeiramente considerada por Keynes. A redução de impostos significa mais dinheiro no bolso dos contribuintes; imaginem se decidem poupar esse dinheiro em lugar de o gastar? Sacrilégio, funesto. Poupar é algo terrível, gerador de um cataclismo económico.

    Tais disparates são compreensíveis. Keynes, herdeiro de uma enorme fortuna, nunca trabalhou verdadeiramente na vida; nunca compreendeu, ou não quis, que a poupança é civilização, prosperidade e progresso. Sem poupança, ainda hoje, estaríamos a viver na Idade da Pedra.

    Os factores originais que Deus colocou na terra foram: (i) a força de trabalho dos homens; (ii) e a terra, incluindo os seus recursos naturais, como o petróleo, a água, as árvores de fruto…Nada mais. Um náufrago que tenha conseguido sobreviver a nado para uma ilha deserta encontrar-se-á nesse estado: sem bens de capital. O que são? Não satisfazem directamente uma necessidade humana, mas permitem uma enorme expansão da capacidade produtivas, ou seja, da riqueza.

    Uma cana de pesca não mata a fome, mas ajuda a incrementar a produtividade de quem tenta pescar; com as próprias mãos seria uma tarefa bem mais complicada! Um barco de pesca é igualmente um bem que não satisfaz qualquer necessidade humana, mas incrementa substancialmente a produtividade de um pescador. Ambos são bens de capital.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Para produzir um bem de capital, esse náufrago irá ter de restringir o consumo para se dedicar a construir uma cana de pesca. Se trabalha durante seis horas a recolher frutos para a sua subsistência, tem duas opções para obter um bem de capital: (i) aumenta as horas de trabalho, por exemplo, para oito horas, com o propósito de obter uma maior quantidade de frutos, não consumido uma parte que servirá para o alimentar na construção da cana de pesca; (ii) diminui as horas dedicadas a recolher frutos, aceitando comer menos durante o tempo que demora a construir a cana de pesca.

    Não há milagres. A poupança implica sempre um sacrifício do consumo presente. Não podemos trabalhar mais de 24 horas e os recursos na Natureza são escassos. Para obtermos bens de capital, aquilo que nos irá permitir obter um maior número de bens e serviços por hora de trabalho, necessitamos de poupar.

    A poupança é aplicada a criar bens de capital, aquilo que designamos por investimento, como construir uma cana de pesca. O investimento acarreta riscos, apesar de muitos burocratas terem estabelecido que tal não existia – seguro de depósitos bancários é um bom exemplo.

    Que riscos podem existir no nosso exemplo? A cana de pesca pode não funcionar; alguém que viveu anteriormente na ilha pode ter deixado uma cana de pesca já construída, deitando a perder as horas de trabalho.

    Essa é precisamente a função do empreendedor, utilizar as suas poupanças num negócio, correndo sempre o risco de as perder, mas com a possibilidade de lucros enormes, caso a iniciativa seja um sucesso. Que riscos podem ser? Eis alguns exemplos: a procura que pensava ter pode não aparecer; as preferências do consumidor podem alterar-se, afectando a procura pelos seus produtos.

    person standing near the stairs

    Um trabalhador corre riscos, pois as poupanças do empreendedor são utilizadas para o pagamento do seu salário mensal. Os eventuais lucros ou perdas são sempre imputados ao empreendedor, é assim que deverá funcionar um mercado livre.

    Em conclusão, a teoria keynesiana do “paradoxo da poupança” é, pois, um completo disparate, porque, para esta corrente económica, a poupança agrava uma recessão!

    As outras duas vias para o estímulo da despesa agregada são o aumento da despesa ou a impressão de moeda. Ambas, com um impacto muito negativo a longo prazo, como seguidamente explicarei. Para Keynes tal não importa, pois no “no futuro estaremos todos mortos”.

    Não interessa que a impressão de moeda significa a redistribuição de riqueza a favor de uma casta de privilegiados junto da impressora de notas; isto sem ocorrer a produção adicional de um carro, de um prego, de nada, apenas uma fatia maior do mesmo bolo a favor de uma casta de privilegiados.

    Também não interessa que o aumento da despesa fiscal signifique um agravamento do défice público e, por conseguinte, incremento da dívida pública. No futuro alguém irá pagar a conta com maiores impostos; afinal, estaremos todos mortos!

    Do lado “oposto” a esta corrente económica, temos uma espécie de oposição controlada, fundada por esse paladino do “mercado livre”, Milton Friedman. Esta é designada por escola monetarista ou escola de Chicago.

    Milton Friedman (1912-2006)

    Milton Friedman, esse arauto do “mercado livre”, foi o inventor das retenções na fonte – por exemplo, as retenções de IRS (podemos imaginar a nossa reacção se a conta fosse apresentada de uma única vez!?) – e conselheiro de Richard Nixon, presidente norte-americano que terminou em 1971 com a convertibilidade do Dólar norte-americano em ouro.

    Segundo os monetaristas, o problema do desemprego resolve-se pelo ajuste dos salários. A livre interacção entre a procura e oferta resolve o problema. Desta forma, bastará uma descida dos salários e as empresas voltam a contratar, fazendo desaparecer o desemprego.

    O grande temor dos monetaristas é a descida do nível dos preços: a deflação. Ai Jesus, se tal acontece – tal conclusão, sempre me espanta, dado que beneficia os mais pobres, pois adquirem mais por menos!

    Tal como os Keynesianos, para as monetaristas a despesa agregada não pode cair, dado que provoca deflação. Se tal ocorre, as pessoas irão diferir consumo e acentuar a recessão. Segundo a teoria, o Banco Central tem de aparecer e imprimir dinheiro para que tal não aconteça. O confisco da população, em particular dos mais pobres, é justificado em nome de um benefício colectivo: evitar uma recessão!

    Qual o suporte teórico para tudo isto? No livro Monetary history of the United States, 1867–1960, Milton Friedman e Anna J. Schwartz analisam a História Monetária dos Estados Unidos. Nesse livro de factos estatísticos, com quase 900 páginas, não dedicam uma linha à enorme inflação criada pela Reserva Federal, o Banco Central norte-americano, durante os anos 20 do século transacto.

    U.S. American flags under clear sky

    Depois da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra voltou ao padrão-ouro, tentando regressar ao rácio de conversão pré-guerra, mesma depois de ter impresso Libras Esterlinas sem respaldo por ouro, para financiar a guerra. Desta forma, havia o risco de vários países europeus solicitarem a conversão das Libras Esterlinas em Ouro, nesse momento a moeda reserva do Mundo, colocando a nu a inflação criada pelo Banco de Inglaterra durante a guerra.

    Quem apoiou o Banco Central inglês? O Banco Central norte-americano, imprimindo enormes quantidades de Dólares norte-americanos, para posterior venda por contrapartida de Libras Esterlinas, evitando a sua queda nos mercados internacionais. Apesar do nível geral dos preços nos Estados Unidos não ter subido durante esses anos, a massa monetária criada pela Reserva Federal canalizou-se para o imobiliário e mercado de acções, onde se sentiu a inflação… Onde já vimos isto?

    Milton Friedman nunca nos explicou as razões para a grande depressão que se iniciou em 1929, em particular a impressão massiva de dinheiro e as políticas intervencionistas que agravaram a recessão – impostos sobre o comércio internacional, subsídios, proibição de ajustes salariais e regulação sobre os negócios. Para ele e a co-autora, a Reserva Federal não tinha impresso moeda em quantidades suficientes, deixando esse diabo à solta chamado deflação!

    concrete statues near wall

    No livro também não nos fala da recessão no início da década de 20 do século transacto, que se iniciou com piores indicadores que a Grande Depressão dos anos 30, mas que foi resolvida por redução de despesa e subida de juros (contracção da massa monetária) por parte da Reserva Federal. Nunca as comparou, tornando evidente o erro das políticas económicas – oculta-se quando não interessa.

    Temos agora duas correntes oficiais de teoria económica, ambas suportam intervenções estatais de todo o género, incluindo a impressão massiva de dinheiro em caso de recessão.

    Tais teorias económicas, apesar de serem um falhanço completo, são as únicas hoje ensinadas na maioria das faculdades do Mundo Ocidental. Apenas existem e são possíveis pela existência de dinheiro estatal, que pode ser criado em quantidades infinitas e com custos praticamente nulos – basta o apertar de um botão.

    As intervenções são sempre em nome do interesse colectivo: para “salvar o Euro”, para “evitar uma recessão pandémica”, para evitar a “fragmentação”.

    Quem não se recorda dos falhanços estrondosos destas teorias. Nos anos 70, tínhamos um fenómeno em total contradição com a teoria Keynesiana: inflação e desemprego. Um dos discípulos de Keynes, Paul Samuelson, autor do principal manual de Economia durante décadas desde a Segunda Guerra Mundial, louvava a Economia soviética, mesmo depois do seu colapso no final da década de 80 do século XX.

    close-up photo of assorted coins

    Quem não se recorda do nosso engenheiro das bancarrotas, quando o mandaram gastar sem freio após a crise do subprime em 2008? Sabemos como terminou a experiência Keynesiana: o Estado português esteve em risco de suspender pagamentos caso não aparecesse uma mão salvífica – o empréstimo do FMI e da União Europeia por contrapartida da emissão massiva de dinheiro.

    E a recente inflação, fruto das enormes quantidades impressas de moeda – que irá gerar uma recessão sem precedentes, em nome da necessidade de atingir um objectivo de 2% para a subida do nível geral de preços –, onde já lá vai o objectivo!?

    Em nome de recursos inimagináveis a favor do Estado, por forma a intervir de acordo com as “orientações oficiais” das duas correntes económicas, estamos a destruir a poupança, a fonte da prosperidade e do progresso humano.

    O sistema bancário controlado pelo Estado através do seu Banco Central impõe juros 0% ou mesmo negativos, enquanto a inflação oficial situa-se em torno de 10%. Esta inflação, criada em nome do “bem”, justificada pelas correntes económicas oficiais, apenas é possível porque existe dinheiro estatal, sem quaisquer restrições à sua emissão.

    Temos de voltar a possuir dinheiro sem controlo estatal, onde a taxa de juro seja determinada pela oferta e procura por poupança e que seja escassa, por forma a garantir o seu poder aquisitivo no futuro – uma verdadeira reserva de valor. Para se poupar tem de existir confiança de que essa moeda irá ter um valor estável nos próximos anos, décadas ou mesmo séculos. Caso contrário é uma sociedade que apenas pensa no amanhã e não programa a longo prazo.

    A queda de Roma deveu-se ao deboche dos imperadores – que retiravam o conteúdo de prata ao Denarius ou o ouro ao Áureo criado por Júlio César. Constantinopla sobreviveu mais 1.000 anos, em resultado da reforma monetária do imperador Constantino, que impôs seriedade à cunhagem, não ocorrendo qualquer desvalorização do Soldo durante quase 700 anos. Só assim, as pessoas podem poupar: se confiam na escassez da moeda.

    Com dinheiro estatal tal nunca será possível, por essa razão, o Bitcoin é a alternativa que se irá impor após a crise financeira que se avizinha. É escasso – apenas 21 milhões –, a sua mineração torna-se extremamente cara à medida que nos aproximamos dos 21 milhões, ou seja, não é possível expandir a oferta em resultado da subida do preço, como acontece com outros bens. E, por outro lado, não é controlado pelo Governo, a razão para a desgraça do Ouro, pois quando existem substitutos – notas e depósitos bancários -, torna-se possível a existência de reservas fraccionadas.

    Por fim, outra questão: quase todos os economistas das correntes mainstream detestam o Bitcoin. É um bom sinal!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sardenha: não vi o Ricardo Salgado

    Sardenha: não vi o Ricardo Salgado


    Não podia morrer estúpido: na Sardenha, tinha de conhecer Porto Cervo, o local dos famosos, dos multimilionários e do nosso conhecido ex-banqueiro Ricardo Salgado – há uns anos, como sabemos, foi uma espécie de dono do regime.

    No ano passado, a imprensa lusa fez parangonas sobre as férias de Ricardo Salgado, enquanto decorria o seu julgamento. Beneficiou da lei que permitia aos arguidos com mais de 70 anos não marcarem presença em tribunal devido aos riscos associados à putativa pandemia. Por Porto Cervo, segundo fotografias na imprensa, andava ele descontraído, sem máscara e longe dos tais riscos – o “bicho” por lá não aparecia.

    crystal blue water on white sand beach

    Hospedei-me em Olbia, a cerca de 30 quilómetros de Porto Cervo, onde me foi possível encontrar um local para pernoitar a preços acessíveis. Em Porto Cervo, ou nas redondezas, os preços do alojamento são proibitivos. Acima dos 300 euros por quarto em cada noite.

    As estradas na Sardenha são miseráveis; mais se parecem com as estradas de Portugal nos anos 80, onde para percorrer 30 quilómetros se demora 45 minutos. É o oposto da Madeira – com a população a ganhar na sua maioria menos de 1.000 Euros por mês e governada por um tiranete –, onde existem túneis e estradas de luxo para qualquer lugar.

    O empreendimento de Porto Cervo está impecável, vivendas e apartamentos perfeitamente integrados na paisagem, com lojas de luxo em redor de uma marina, onde cada barco parece disputar a primeira posição em tamanho, esplendor e tripulação. Praticamente não se avistam carros de luxo.

    Não vi Ricardo Salgado. Também não vi o café a 10 Euros anunciado pela imprensa mainstream. Também não ouvi ninguém falar português de Portugal, apenas escutei o sotaque do país irmão: o Brasil. Não espanta, hoje aquele país possui uma das comunidades empresariais mais dinâmicas e numerosas do Mundo.

    Em relação à inexistência de portugueses, não há qualquer assombro: em 48 anos de socialismo, o regime encarregou-se de “abater” os empresários, enquanto elevava o peso do Estado na Economia, de 18% para mais de 50%, levando a dívida pública à estratosfera e destruindo o mercado de capitais. As empresas cotadas chegaram a valer 66% do PIB; valem agora menos de 40%, e o mercado está muito dependente de duas cotadas em mãos chinesas.

    Apesar do pesadelo instituído durante dois anos pelo facínora Mario Draghi, a Itália continua a ser uma das nações mais ricas do Mundo. Em Porto Cervo, as lojas de luxo são, na sua maioria, de marcas italianas. Também se vende iates de luxo por encomenda, igualmente de fabrico italiano. Ou seja, continua a existir um capitalismo vibrante, onde a indústria de luxo tem uma enorme preponderância e há capacidade industrial.

    Olho para a Itália, e à distância recordo Portugal. Fomos em tempos uma das nações mais prósperas do planeta; hoje, estamos a caminho de ser a nação mais pobre da Europa. Talvez esteja relacionado com a forma como nos relacionamos com o capitalismo e a riqueza.

    Continuamos a pensar que é fruto do acaso, da sorte, da vigarice e dos contactos certos, em lugar do esforço, da poupança, do risco, da excelência, do trabalho em equipa e da perseverança. Para nos aliviar a abjecção, não espanta o novo-riquismo com estradas e carros de luxo.

    Aparentemente, o único português que pode aparecer em Porto Cervo de Iate e aí alojar-se é um ex-banqueiro acusado de subornar os próceres do regime. Talvez por lá também apareçam figurões desse mesmo regime, com riqueza obtida à mesa do Orçamento do Estado e fruto do confisco dos demais portugueses.

    Mas, confesso, que não os vi; e também não vi Ricardo Salgado. Estará ele e os outros, por certo, em outras paragens paradisíacas.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As missangas do século XXI

    As missangas do século XXI


    De férias, aproveito para ler. Desde sempre, a História e a Teoria do Dinheiro foram temas que me fascinaram. Revejo o livro que mais me marcou a este respeito: The theory of money and credit, do economista Ludwig von Mises, publicado em 1912 em alemão.

    Hoje, a maioria dos estudantes de Economia não compreende o funcionamento do presente sistema monetário, nem tão pouco estudou ou se debruçou sobre o tema. São coisas esotéricas para muitos. Não podemos atribuir-lhes qualquer culpa, pois o ensino dá pouca importância a estas matérias, talvez porque interessa manter a ignorância generalizada.

    man in red and white plaid shirt wearing white scarf

    Eu próprio fui uma vítima deste sistema de ensino: poucas disciplinas tive sobre estes temas no meu tempo de faculdade; mas salvei-me: apesar de tudo, a experiência profissional e a minha curiosidade ajudaram-me a reconhecer a importância do dinheiro no aparecimento de sociedades prósperas e dinâmicas.

    Dentro desta temática, sempre me fascinou um episódio da nossa História: a troca de missangas por ouro e escravos, que os descobridores portugueses realizavam na costa africana. A pergunta que sempre subsistiu na minha cabeça foi a seguinte: qual a razão para uma troca voluntária aparentemente tão desfavorável para os africanos?

    Não devia ser desfavorável. E passo a explicar. As missangas eram pulseiras, podendo ser adaptadas para colares ou braceletes, construídas com pedaços de vidro. Tornaram-se preciosas na África subsariana, porque a tecnologia do vidro era então cara e pouco comum naquela região. Desta forma, tornaram-se dinheiro, ou seja, um meio de troca e uma reserva de valor.

    Os europeus – detentores de tecnologia capaz de produzir vidro em enormes quantidades – foram assim capazes de produzir missangas em enormes quantidades, utilizando-as como meio de pagamento para obter escravos e ouro. Saiu-lhes barato, e acabou por dar cabo das missangas como reserva de valor em África.

    gold and silver round coins

    O colapso do valor das missangas em África, em resultado das enormes quantidades introduzidas pelos europeus, acabou por ser uma tragédia para os proprietários das missangas originais. Os comerciantes europeus, capazes de as produzir em enorme quantidade e a baixo custo, operaram assim uma enorme transferência da riqueza para si.

    Para ser reserva de valor, o dinheiro tem que ser imune à putrefacção, corrosão, e outras formas de deterioração. Por isso, se alguém pensar em acumular riqueza sob a forma de maçãs, peixes ou laranjas, não se dará bem: no futuro, não será capaz de vender estes bens no mercado porque apodreceram ou perderam qualidades com uma eventual congelação – além de que o congelamento teria um custo que depreciaria o valor. Ou seja, devemos utilizar como reserva de valor algo que possua as mesmas características ao longo de anos, ou mesmo séculos, com baixo ou nenhum custo.

    Deste modo, para além de não se poder deteriorar, a reserva de valor exige também que o “dinheiro” seleccionado se mantenha escasso ao longo do tempo. Para tal, é necessário que a emissão do “dinheiro” não aumente de forma drástica ao longo do tempo; caso contrário, o seu valor de mercado irá diminuir drasticamente.

    Ora, as missangas funcionaram bem durante séculos, pois cumpriam os dois critérios: por um lado não eram deterioráveis e, por outro, a sua escassez estava garantida, atendendo à dificuldade em emitir drasticamente novas missangas. Em conclusão: antes da chegada dos europeus, a emissão drástica não era possível.

    Assim, para medirmos a força monetária do dinheiro devemos atender a dois aspectos: (i) o inventário, que consiste em tudo o que foi produzido no passado e deduzido do que foi consumido, e (ii) a produção que irá ocorrer no período temporal seguinte. O rácio entre a quantidade e a produção define a força monetária do dinheiro.

    O ouro transformou-se assim em dinheiro, durante longo tempo, fundamentalmente por possuir uma elevada força monetária, ou seja, a produção de um dado período tem pouco ou nenhum impacto no inventário existente.

    Praticamente todo o ouro extraído da natureza até à data encontra-se na posse de alguém, seja de um particular ou de um Banco Central. Por outro lado, a produção anual de ouro não supera os 2% do inventário, atendendo que a mineração é cara e difícil.

    Diga-se que outros metais não possuem esta força monetária, como, por exemplo, o ferro. Num dado ano, a produção é praticamente consumida, havendo, por conseguinte, pouco inventário; por outro lado, afectando capital e recursos humanos à sua produção, esta pode ser drasticamente incrementada, algo que não acontece com o ouro.

    O sucesso deste metal levou a que Bancos Centrais, governos e bancos centralizassem a sua propriedade. Hoje, estima-se que apenas os Bancos Centrais possam deter mais de 30% do inventário existente.

    grey concrete building

    Tal concentração de propriedade permite a emissão de substitutos, como notas ou cheques, deixando de existir a necessidade de transportar o ouro para realizar o pagamento, bastando a compensação junto do banco, movendo-se a propriedade do mesmo de um cliente para outro.

    Esta capacidade de emitir substitutos permitiu aos governos manipular o inventário do ouro. Para financiar a guerra do Vietname, os Estados Unidos emitiram uma enorme quantidade de notas de dólar sem qualquer respaldo em ouro. E, deste modo, a manipulação do seu inventário levou ao fim do ouro como dinheiro.

    Actualmente, estamos a viver o mesmo drama dos proprietários das missangas. A produção de nova moeda é quase infinita: Euros e Dólares norte-americanos podem ser produzidos com um simples apertador de um botão de computador, praticamente sem quaisquer custos. Isso gera uma transferência de riqueza a favor dos produtores de dinheiro: Bancos Centrais, governos, bancos e apaniguados, em detrimento dos produtores de bens e serviços.

    A força monetária das actuais moedas é mínima, pelo que a sua viabilidade a longo prazo é inexistente. Por outro lado, a alternativa proposta, a moeda digital dos Bancos Centrais mantém o mesmo problema: a sua produção pode ser aumentada drasticamente e sem custos.

    A razão de afirmar, vezes sem conta, que o Bitcoin é uma excelente reserva de valor deriva das suas características, que resolvem os problemas já anteriormente indicados.

    aerial photography of dump trucks

    Primeiro, a sua produção está limitada a 21 milhões de tokens; a emissão é muito cara, pois consome imensa energia, pelo que a produção está fortemente condicionada. Assim, a sua força monetária está assegurada.

    Segundo, a tecnologia em que assenta – o blockchain – elimina por completo a centralização. Cada node pode operar de forma individual e não é possível controlar mais de 50% dos nodes da rede. Em resumo, dispensa uma autoridade central e funciona de forma descentralizada.

    Por fim, ao contrário do ouro – que pode ser manipulado o seu inventário através de substitutos, i.e., o fenómeno das reservas fraccionadas –, o valor de Bitcoins total, e a quem pertence, pode ser auditado com uma simples ligação à Internet, impossibilitando tal prática.

    Isto para concluir, embora seja suspeito por estar nesta área, e mais ainda de férias, que continuo a pensar que a acumulação de riqueza em Bitcoins será altamente compensadora no futuro. Mais do que a moeda fiduciária dos Bancos Centrais, que se transformou nas “missangas do século XXI”.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.