Autor: Luís Gomes

  • O Mundo Ocidental: um império das mentiras?

    O Mundo Ocidental: um império das mentiras?


    Em Março de 2022, Vladimir Putin, o presidente da Federação Russa, afirmou que o “Ocidente é o Império das Mentiras”.

    Certamente, o homem não terá razão. Mas, mesmo assim, por mera análise académica, vamos proceder a uma breve mas necessária cronologia dos factos.

    A expansão da NATO

    Em 1990, vários líderes ocidentais, como James Baker, Helmut Kohl, Margaret Thatcher, asseguravam aos soviéticos que a NATO nunca se iria expandir para o Leste; as palavras de James Baker, o então secretário de Estado norte-americano: “…não apenas para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que…nem uma polegada da actual jurisdição militar da NATO se espalhará para leste”.

    Desde a queda o Muro de Berlim, apesar de todas as promessas em sentido contrário, a NATO expandiu-se para a Polónia, a República Checa e a Hungria em 1999; para a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Eslovénia, a Eslováquia, a Bulgária e a Roménia em 2004; para a Albânia e Croácia em 2009; para o Montenegro em 2017; para a Macedónia do Norte em 2020.

    Hoje, a Rússia tem bases de mísseis apontados ao seu território a poucos quilómetros das suas fronteiras, não existindo algo semelhante, em termos de proximidade, em relação aos Estados Unidos.

    Em 1997, em contradição com as promessas ocidentais, a NATO assina um acordo de cooperação de longo prazo com a Ucrânia, tendo como objectivo final a sua adesão.

    Em 2002, é assinado um plano de acção entre a NATO e a Ucrânia, reafirmando o compromisso do estabelecimento de “laços mais estreitos” e delineando um plano de longo prazo para a implementação de “reformas” que tornariam aquele país adequado para a sua plena integração nesta organização.

    Em 2008, a secretária de Estado norte-americana, Condoleeza Rice, e o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Volodymyr Ohryzko, assinam uma Carta de Parceria Estratégica Estados Unidos-Ucrânia, onde se “enfatiza o compromisso contínuo dos Estados Unidos de relação estreita entre a NATO e a Ucrânia”.

    Em Fevereiro de 2008, Viktor Yanukovych, natural de Donetsk, venceu as eleições presidenciais e tornou-se o quarto presidente da Ucrânia eleito democraticamente, obtendo a maioria da sua votação na região leste do país, etnicamente russa; até a imprensa ocidental reconhecia a justeza do acto eleitoral: “Observadores internacionais elogiaram calorosamente a eleição…”.

    Em Abril de 2008, na cimeira da NATO em Bucareste, assegurava-se que a Ucrânia e a Geórgia seriam membros da NATO. Em Junho de 2008, o parlamento ucraniano aprovou uma lei que impossibilitava a adesão da Ucrânia a qualquer bloco militar. A BBC lamentava o fim da caminhada da Ucrânia em direcção à NATO.

    Em Agosto de 2008, o então presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, interessado na adesão à NATO do seu país, decidiu reincorporar duas regiões separatistas, a Abkhazia e a Ossétia do Sul. A Rússia, através de uma rápida intervenção militar, colocou um fim a esta aspiração, deixando claro que se opunha veementemente a uma eventual adesão da Ucrânia e Geórgia à NATO. 

    Golpe de Estado: A deposição de um líder democraticamente eleito

    Em Março de 2012 surge a primeira versão do acordo de associação entre a União Europeia e a Ucrânia, prevendo-se a assinatura por Viktor Yanukovych no final de Novembro de 2013, na cimeira europeia na cidade de Vilnius, na Lituânia.

    Em Outubro de 2012, o partido de Viktor Yanukovych venceu novamente as eleições, reforçando a sua maioria no parlamente ucraniano, onde, pela primeira vez, a extrema-direita marcava a sua presença, através do partido Svoboda, liderado por Oleh Tyahnybok, que obteve mais de 10% dos votos e elegeu 37 deputados.

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    A 21 de Novembro de 2013, o Governo ucraniano emitiu um decreto a suspender o acordo de associação com a União Europeia; o então primeiro-ministro, Yuriy Boyko, alertava para o prejuízo que representaria para a Economia ucraniana. A alternativa seria a União Aduaneira Euro-Ásia, onde a Economia russa tem um papel preponderante; as sondagens de então indicavam um país dividido 50/50. Dias depois do decreto, ocorreram as primeiras manifestações na Praça Maidan.

    A 28 de Novembro de 2013, numa cimeira da União Europeia, Viktor Yanukovych não assinou qualquer acordo de associação, sugerindo um acordo trilateral, envolvendo a Ucrânia, a Rússia e a União Europeia. Esta proposta foi rejeitada liminarmente pela União Europeia. Anunciaram-se milhares de manifestantes na Praça Maidan; outros ocuparam a prefeitura de Kiev. Os políticos da oposição começaram a acusar Viktor Yanukovych de “traição”; alguns pediram a repetição da eleição presidencial, apesar de apenas 18 meses de distância da última.

    A 29 de Novembro, os manifestantes apresentaram as suas exigências, uma delas a renúncia imediata de Viktor Yanukovych.

    A 1 de Dezembro, os manifestantes iniciaram acções violentas, derrubando barreiras policiais. A polícia retirou-se da Praça Maidan; cerca de 200 pessoas ficaram feridas, incluindo uma centena de polícias.

    A 2 de Dezembro, os manifestantes erigiram barreiras em redor da Praça Maidan, bloquearam o acesso a edifícios governamentais e tentaram assaltar o edifício onde se encontrava a equipa do presidente Viktor Yanukovych. Até o insuspeito Guardian dava conta do desaparecimento de cena da polícia! Ao mesmo tempo, o líder da extrema-direita, Oleh Tyahnybok, pedia aos polícias e militares que desertassem e se juntassem à oposição.

    A 8 de Dezembro, os manifestantes derrubaram uma estátua de Lenine, onde pintaram uma grafite “Viktor Yanukovych: tu és o seguinte”. O Kyiv Post noticiava que os manifestantes vestiam máscaras, carregavam consigo latas de gás, bastões e cocktais molotov.

    A 11 de Dezembro, a vice-secretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland, e o seu embaixador Geoffrey Pyatt, juntaram-se aos protestantes na Praça Maidan e conversaram com os líderes da oposição. Os dois foram fotografados a cumprimentar pessoas e a distribuir comida. A importante revista norte-americana Foreign Affairs publicava um artigo com o título: “Viktor Yanukovych tem de sair.”

    A 13 de Dezembro, o então senador norte-americano John McCain também se juntou aos manifestantes da Praça Maidan, realizando um discurso em que afirmou: “Estamos aqui para apoiar a vossa justa causa”. Até foi fotografado com o líder da extrema-direita Oleh Tyahnybok!

    Depois de uma “trégua natalícia”, as manifestações prosseguiram a 14 de Janeiro de 2014; no dia seguinte, numa reunião do Comité das Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, o vice-secretário de Estado-Adjunto, Thomas Melia, admitiu que o Departamento de Estado gastou cinco mil milhões de dólares americanos a “ajudar a Ucrânia”, incluindo 180 milhões em “programas de desenvolvimento” para “juízes, deputados e partidos políticos”.

    A 16 de Janeiro, o parlamento ucraniano aprovou dez novos projectos-lei que permitiam uma repressão estrita à actividade de protesto, incluindo a remoção da imunidade dos parlamentares que promovessem a violência e a anulação da carta de condução a quem obstruísse as vias públicas.

    A 19 de Janeiro ocorreram confrontos entre a polícia de choque e os manifestantes na rua Hrushevskoho; muitos dos manifestantes pertenciam a grupos de extrema-direita, como o partido Svoboda e Sector Direita, e foram vistos a usar símbolos nazis.

    A 25 de Janeiro, o presidente Viktor Yanukovych estendeu a mão aos líderes da oposição, oferecendo-lhes um acordo de partilha de poder, propondo Yatseniyuk como primeiro-ministro e Vitaliy Klitschko como vice. A oposição recusou a oferta.

    A 28 de Janeiro, num gesto de compromisso, o parlamento revogou nove das 10 leis, aprovando um diploma que concedia amnistia a todos os envolvidos nos protestos, desde que deixassem de ocupar edifícios governamentais. A oposição, uma vez mais, recusou a oferta.

    A 7 de Fevereiro, conversas mantidas entre Victoria Nuland e Geoffrey Pyatt foram publicadas, onde se escutava a expressão: “Que se f…a União Europeia”. Numa das conversas, datada de 28 de Janeiro de 2014, discutia-se a composição do futuro Governo, após a eventual saída de Viktor Yanukovych. Numa sondagem publicada pelo Kyiv Post a maioria dos ucranianos opunha-se às manifestações na praça Maidan.

    A 16 de Fevereiro, em mais uma tentativa de compromisso, o governo libertou todos os detidos durante os protestos; desta vez a oposição respondeu positivamente, suspendendo a ocupação da Prefeitura de Kiev que já durava três meses.

    A 19 de Fevereiro, Viktor Yanukovych declarou uma “trégua”, numa declaração conjunta assinada pelos três principais líderes da oposição, comprometendo-os à negociação de uma paz duradoura.

    A 20 de Fevereiro, snipers abriram fogo contra a multidão na Praça Maidan, resultando em pelo menos sessenta mortes. Manifestantes e polícias acabam mortos no tiroteio. A EuroNews relatou que a “trégua tinha sido quebrada” poucas horas depois de ter sido assinada.

    A 21 de Fevereiro, apesar do derramamento de sangue, as negociações continuaram, resultando no “Acordo sobre a resolução da crise política na Ucrânia”, assinado por todas as partes, mais os ministros das Relações Exteriores da Alemanha e da Polónia. O acordo exigia a criação de um “Governo de Unidade Nacional” temporário, a ser substituído após novas eleições presidenciais até ao final de 2014. Também se exigia uma investigação completa aos disparos que ocorreram na Praça Maidan no dia anterior.

    Viktor Yanukovych prometeu que o Governo não declararia o Estado de Emergência, não chamaria os militares e iria retirar a polícia do local dos protestos: em troca, os manifestantes deveriam entregar todos os edifícios públicos ocupados e armas ilegais.

    Os líderes dos manifestantes – incluindo Dmitryo Yarosh, do Sector de Direita Neonazi – rejeitaram o acordo e ameaçaram invadir o Parlamento e a Residência Presidencial se Viktor Yanukovych não renunciasse imediatamente.

    A 22 de Fevereiro, em lugar de respeitarem os termos do acordo, assim que a polícia recuou, os manifestantes invadiram os prédios do Governo e tomaram o controle de Kiev. Yanukovych fugiu para a cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia. Uma notícia da Time relatava os eventos assim: “Quando a polícia abandonou os seus postos em toda a capital, a oposição estabeleceu o controle sobre todos os principais cruzamentos e capturou o palácio presidencial, estabelecendo um perímetro em torno da antiga residência de Yanukovych”.

    Poucas horas após a tomada da cidade de Kiev, o parlamento ucraniano votou a destituição de Viktor Yanukovych com 328 votos a favor e 0 contra, com mais de 120 deputados ausentes da votação. Obviamente, a votação foi inconstitucional, e não vinculativa – onde já vimos isto?

    A 24 de Fevereiro, o parlamento demitiu um terço dos membros do Tribunal Constitucional da Ucrânia e emitiu um mandado de prisão para o presidente Viktor Yanukovych. No dia seguinte, traído pelo próprio partido, Viktor Yanukovych exilou-se na Rússia, afirmando que a sua vida se encontrava em perigo.

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    A 27 de Fevereiro, Arseniy Yatsenyuk tomou posse como primeiro-ministro interino da Ucrânia, cargo que ocuparia em pleno após as eleições de Maio de 2014. Vitaly Klitschko, o campeão de boxe, foi relegado para presidente da câmara de Kiev. Oleh Tyahnybok retomou seu cargo de simples deputado. A composição do Governo correspondeu exactamente à descrita na conversação de 28 de Janeiro de 2014 entre Victoria Nuland e Geoffrey Pyatt! Nesse mesmo dia, Anders Fogh Rasmussen, secretário-geral da NATO, disse à imprensa que “a porta ainda está aberta” para a adesão da Ucrânia!

    No início de Março de 2014, surgem evidências de que os snipers que atiraram sobre as multidões na Praça Maidan não estavam às ordens do Governo ucraniano e que dispararam para ambos os lados, polícia e manifestantes, visando simplesmente gerar o caos.

    Tal evidência foi apresentada à representante da política externa da União Europeia, Catherine Ashton, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia, Urmas Paet, num telefonema que mais tarde vazou para a imprensa, e foi confirmado como genuíno pelo Governo da Estónia. Nem a União Europeia nem o novo Governo da Ucrânia fizeram qualquer esforço para investigar essas evidências ou levar os assassinos à justiça.

    A 21 de Março de 2014, o Governo interino da Ucrânia assinou o controverso acordo de associação com a União Europeia, através da aprovação de uma lei.

    Em Outubro de 2014, o Governo que saiu das eleições, suportado por uma aliança de 5 partidos, considera a adesão à NATO uma prioridade nacional da Ucrânia!

    A “invasão” da Crimeia

    Em 1954, o líder soviético Nikita Kruschev, natural da Ucrânia, assinou um decreto a transferir a Crimeia da República Socialista Soviética (RSS) da Rússia para a RSS da Ucrânia. A Crimeia fazia parte da Rússia desde 1783, após a derrota do Império Otomano pelo exército de Catarina, a Grande, em 1774.

    Em 1965, a cidade de Sebastopol, o maior porto da Crimeia, juntamente com outras nove cidades, recebeu o título de “Cidade Herói da União Soviética”, por ter resistido heroicamente aos ataques nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

    Em 1990, com a queda da União Soviética, a Ucrânia tornou-se independente e levou consigo o território da Crimeia.

    Em Janeiro de 1991, a Crimeia realizou um referendo, perguntando à população se queriam regressar ao estatuto de República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia, abolido em 1945. A votação foi de 94% a favor e a Crimeia declarou-se independente.

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    Em Fevereiro de 1991, o parlamento da Ucrânia reconheceu a independência da Crimeia, fazendo aprovar uma lei sobre a restauração da República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia.

    Em Setembro de 1991, o parlamento da Crimeia reverteu esta decisão, declarando o território como parte constituinte da Ucrânia.

    Em 1992, o parlamento da Crimeia declarou novamente a independência da Ucrânia, constituindo-se como “República da Crimeia”. Elaboram a sua própria Constituição e decidiram agendar um referendo em relação à secessão da Ucrânia.

    O parlamento ucraniano recusou-se a reconhecer a declaração e forçou o cancelamento do referendo. Como solução de compromisso, a Ucrânia propôs à Crimeia um estatuto especial de autonomia, desde que adicionassem uma linha à sua Constituição designando a Crimeia como parte da Ucrânia.

    Em 1994, o recém-eleito presidente da Crimeia, Yuriy Meshkov, realizou um referendo, colocando três perguntas à população, com destaque para estas duas: (i) Apoia um regresso à Constituição de Maio de 1992 que não garante que a Crimeia faça parte da Ucrânia? (ii) Apoia que todos os cidadãos da Crimeia tenham direito à dupla cidadania com a Rússia? As três perguntas são aprovadas com pelo menos 77% dos votos. O presidente Meshkov restaurou então a antiga Constituição. O Governo ucraniano declarou o referendo ilegal e recusou-se a reconhecer os resultados ou a nova Constituição.

    Em 1995, o Governo ucraniano extinguiu o cargo de presidente da Crimeia e reduziu os poderes do parlamento ucraniano, passando a governar o território por decreto.

    Em 2001, num Censo realizado à população da Crimeia, 60% declarou-se etnicamente russa, e 77% considerou o russo como sua língua nativa.

    Em 2004, na sequência da vitória eleitoral de Viktor Yanukovych, um aliado do Ocidente, políticos de diversas regiões da Ucrânia, nomeadamente da região do Donbass e da Crimeia, solicitaram um referendo para transformar a Ucrânia numa federação, mas foram completamente ignorados por Kiev.

    Em 2006, no seguimento do conflito entre a Geórgia e a Rússia, a BBC enviou um repórter para a Crimeia. Este escreveu um artigo que detalha o forte sentimento pró-russo na península, o papel fundamental que a cidade portuária Sebastopol desempenhou na História da Rússia, e os avisos de muitos habitantes da Crimeia de que “os nacionalistas em Kiev” estavam a tentar “expulsar os russos”.

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    Entre 2009 e 2011, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento realizou uma série de pesquisas na Crimeia sobre a questão da reunificação com a Rússia. Cada pesquisa retornou 65-70% de respostas positivas, entre 16 a 25% de indecisos e apenas 9 a 14% a favor da permanência na Ucrânia.

    Em 28 Janeiro de 2014, com as manifestações a decorrerem na Praça Maidan, o presidente do conselho da cidade de Sebastopol, numa carta aberta, pediu ao presidente Viktor Yanukovych que proibisse o “grupo extremista” Svoboda e convidou os munícipes da cidade a formarem “Esquadrões do Povo”, conforme descrito na lei ucraniana, visando defender a fronteira da Crimeia: “É impossível permitir que militantes especialmente treinados e armados do “Sector Direito” e outras organizações pró-fascistas e extremistas penetrem na nossa cidade e ditem seus termos. Forneceremos uma defesa confiável de Sebastopol. Extremismo, ilegalidade e banditismo não passarão na cidade dos heróis”.

    A 14 de Fevereiro, o Yahoo News informou: “A região autónoma da Crimeia da Ucrânia inclina-se para Moscovo”. O artigo dava conta que o parlamento da Crimeia emendou a sua constituição, incluindo a descrição de que a Rússia era o “garante da segurança da Crimeia”, e que as autoridades eleitas tinham pedido ajuda à Rússia no caso dos manifestantes da Praça Maidan tentarem mudar-se para a Crimeia.

    A 20 de Fevereiro, o deputado e Presidente do Parlamento da Crimeia, numa reunião internacional em Moscovo, afirmou que a Crimeia “pode separar-se da Ucrânia, se o país se dividir”.

    A 22 de Fevereiro, no dia em que Viktor Yanukovych perdeu o poder, em consequência das manifestações na Praça Maidan, o insigne jornal norte-americano The Washington Post perguntava: “A batalha por Kiev acabou, a batalha pela Crimeia está prestes a começar?

    A 23 de Fevereiro, numa das primeiras leis do regime que resultou da “revolução Maidan”, foi revogada a lei que atribuía ao russo o estatuto de língua oficial do Estado ucraniano. Os líderes da extrema-direita, Oleh Tyanobohk e Dimitri Yarosh, propuseram a ir-se mais além: banir tanto o Partido das Regiões, que suportava Viktor Yanukovych, como o Partido Comunista Ucraniano, ambos com forte implementação popular no leste da Ucrânia e na península da Crimeia.

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    Com o novo regime a implementar-se em Kiev, a 26 de Fevereiro de 2014, o parlamento da Crimeia reuniu-se numa sessão especial para discutir os eventos em Kiev. O líder do parlamento discursou a uma multidão que se encontrava fora do edifício: “Partilho o vosso alarme e preocupação com o destino da Crimeia…Lutaremos pela nossa república autnoma até o fim…Hoje, Kiev não quer resolver nossos problemas, portanto devemos unir-nos e agir de forma decisiva. O povo da Crimeia tem força suficiente. O neonazismo não funcionará na Crimeia. Não vamos trair a Crimeia.”

    Na madrugada de 28 de Fevereiro, homens em uniformes, mas sem qualquer insígnia, assumiram o controlo de todos os aeroportos, portos marítimos, estações de comboio e passagens de fronteira na península da Crimeia; protegeram igualmente todos os prédios do Governo em Simferopol. Esses homens são mais tarde revelados como tropas russas das bases de Sebastopol.

    Kiev e os principais dirigentes da NATO chamaram a presença destas tropas de invasão, mas a Rússia defendeu a sua presença, alegando que as tropas estavam lá a convite das autoridades locais da Crimeia e de Viktor Yanukovych, a quem eles ainda reconheciam como o legítimo presidente da Ucrânia. Além disso, os russos afirmaram que o contrato assinado entre a Rússia e a Ucrânia permitia uma presença militar de até 25 mil efectivos estacionados na Crimeia; em nenhum momento esse número tinha sido excedido.

    A 11 de Março de 2014, o parlamento da Crimeia declarou-se independente da Ucrânia e anunciou a realização de um referendo para 16 de Março; em lugar de colocar a pergunta, independente ou não, propôs: (i) a manutenção da Crimeia na Ucrânia; (ii) o regresso à Rússia. Dois dias mais tarde, o parlamento da Crimeia convidou formalmente observadores internacionais da OSCE para assegurar que o referendo fosse justo. A OSCE descreveu a votação como “ilegal” e recusou-se a comparecer.

    A 16 de Março, o resultado do referendo deu uma votação de 97% a favor da reunificação com a Rússia. A 21 de Março, a Rússia reconheceu o resultado do referendo.

    Em Abril, o Governo da Ucrânia, alegando a cobrança de uma dívida da Crimeia, fechou a barragem no Canal da Crimeia do Norte, reduzindo o fluxo de água doce para a península. O acesso à água é protegido pelo artigo 29 da Convenção de Genebra; cortar o acesso para punir uma população civil pode ser classificado como crime de guerra.

    A guerra civil na Ucrânia

    Após a reunificação da Crimeia com a Rússia, de imediato surgiram manifestações anti-Kiev na região do Donbass, hoje as repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk.

    A 25 de Fevereiro de 2014, o recém-empossado ministro do Interior da Ucrânia dissolveu a tropa de choque Berkut da Crimeia que voltava para Sebastopol, depois desta reprimir protestos em Kiev. Ao retornarem a Sebastopol, essas unidades foram recebidas como heróis e foram-lhes emitidos passaportes russos; alguns, juntaram-se a unidades paramilitares para combater na região do Donbass.

    A 18 de Março, manifestantes pró-russos ocuparam o edifício da câmara municipal de Mariupol.

    A 6 de Abril, vários manifestantes pró-russos ocuparam os edifícios dos serviços de inteligência da Ucrânia nas cidades de Donetsk e Luhansk.

    A 16 de Abril, protestantes pró-russos e contrários ao novo regime pós Maidan, atacaram uma coluna militar do exército ucraniano a caminho da cidade portuária de Mariupol (Donetsk).

    A 6 de Maio, deu-se o massacre de Odessa (a ocidente da Crimeia), depois de enfrentamentos iniciados no decurso de uma partida de futebol. Grupos extremistas e favoráveis ao Governo ucraniano, resultante da “revolução Maidan”, cercaram dezenas de manifestantes contrários, que se tinham refugiado num prédio de uma Central Sindical, e provocaram um incêndio criminoso, usando cocktais molotov.

    Os extremistas impediram a saída das pessoas – espancando as que tentaram fugir –, enquanto incendiavam as dependências do edifício do sindicato. O resultado foram 46 pessoas assassinadas, muitas das quais morreram sufocadas pelo fumo, outras queimadas, e ainda houve as que se atiraram da janela, tentando fugir das chamas. Os vídeos deste massacre são eloquentes.

    A 9 de Maio de 2014, o recém-nomeado chefe do departamento de polícia da cidade de Mariupol, Valery Androschuk, convocou uma reunião da polícia local, acompanhado do chefe do batalhão especial “Denpr” – um grupo paramilitar de extrema-direita. Durante a reunião, o chefe de polícia deu ordem para dispersar a manifestação do “Dia da Vitória” sobre o fascismo – derrota de Hitler em 9 de Maio de 1945 -, bem como prender os “cidadãos mais activos”.

    Alguns dos polícias recusaram-se a cumprir a ordem; de seguida, Valery Androschuk disparou um tiro sobre um dos polícias revoltosos. De imediato houve resposta, com Androschuk a ser ferido e o chefe do esquadrão “Dnepr” a ser morto. Os polícias revoltosos recusaram-se a obedecer a quaisquer ordens e declararam que não fariam guerra ao seu próprio povo. Androschuk barricou-se num dos escritórios do prédio e chamou a Guarda Nacional para ajudá-lo a reprimir os polícias revoltosos.

    Imediatamente, foi enviada a Guarda Nacional e militantes do Sector Direita, com a ajuda de tanques, resultando no bombardeamento do edifício da polícia. Estima-se que morreram cerca de 100 pessoas neste incidente. Depois disto, os militares retiraram-se para a periferia da cidade, continuando o controlo da cidade a milícias pró-russas.

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    Após um impasse, a 13 de Junho, o Governo da Ucrânia tomou uma posição de força, enviando o batalhão Azov (constituído por forças extremistas) e o Dnipro-1 para recuperar o controlo da cidade, resultando num sucesso. Petro Poroshenko, o novo presidente da Ucrânia, ordenou a mudança da capital regional de Donetsk para Mariupol.

    Após o prolongamento do conflito, no início de 2015, a 12 de Fevereiro foram assinados os acordos de Minsk (Bielorrússia), com a participação da Rússia, Ucrânia, França e Alemanha. Foi decretado um cessar-fogo entre as forças ucranianas e separatistas, obrigando as partes a retirarem do terreno o equipamento militar pesado. A OSCE foi chamada como observadora para o terreno.

    Os acordos nunca foram respeitados; os combates transformaram-se numa guerra de trincheiras, envolvendo cerca de 75 mil soldados dos dois lados ao longo de uma linha de frente de 420 km de comprimento, cortando áreas densamente povoadas.

    A guerra arruinou a Economia e as indústrias pesadas da região, gerou milhões de refugiados e transformou a zona de conflito em uma das áreas mais contaminadas por minas do mundo. Número de vítimas mortais deste conflito, segundo a OSCE: 14 mil pessoas. Alguém se indignou? Alguém solicitou a intervenção do Tribunal Internacional Penal? Os crimes estão aqui amplamente detalhados – dispensa comentários!

    O menino do papá

    Em Fevereiro de 2014, Hunter Biden, o filho do actual presidente dos Estados Unidos, foi dispensado do Exército em virtude de um teste de drogas – cocaína –, que acusou positivo.

    Em Abril de 2015, um dos executivos da Burisma – uma empresa de gás ucraniana fundada por Mykola Zlochevksy –, de seu nome Vadym Pozharskyi, foi apresentado a Joe Biden, pelo seu filho Hunter Biden.

    Nesse mesmo dia, Hunter Biden foi contratado pela Burisma para integrar o seu Conselho de Administração. Seria uma espécie de relações públicas entre a empresa e a Administração norte-americana. Salário mensal: 50 mil USD (cerca de 45 mil Euros). A partir de Maio de 2017, sofreu um ligeiro corte, dois meses depois de o seu pai abandonar o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos.

    Em Fevereiro de 2016, o procurador-geral da República da Ucrânia, Victor Shokin, iniciou uma investigação à Burisma. Nesse dia, ocorreu uma busca à casa de Mykola Zlochevksy.

    Em Março de 2016, o parlamento ucraniano despediu Victor Shokin. A União Europeia aplaudiu esta decisão.

    Em Janeiro de 2018, Joe Biden numa conferência afirmou: “Olhei para eles e disse: vou-me embora em seis horas. Se o procurador não for demitido, não irá receber o dinheiro”. Referia-se a um empréstimo de mil milhões de dólares americanos à Ucrânia. A cabeça de Shokin foi servida num prato.


    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário

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    Winston Churchill foi assim?

    Volodymyr Zelenskyy fez fortuna no mundo do entretenimento, através da empresa que fundou: Kvartal 95 Studio. Durante anos, esteve ligado ao oligarca Ihor Kolomoisky, uma relação que se desenvolveu em 2012, no mesmo ano em que o actual presidente ucraniano fundou as suas empresas em offshores.

    Os Pandora Papers revelaram o nome de Zelensky. Uma das empresas ligadas à Maltex (uma empresa na qual detinha participações) recebeu 1,2 milhões de dólares americanos em 2013 de outra empresa offshore que estava ligada ao Grupo 1+1 de Kolomoisky. A quantia foi paga em forma de taxas de licenciamento para o show “Make a Comedian Laugh“. Impostos para a Ucrânia não é com ele.

    Em Abril de 2019, Volodymyr Zelenskyy vendeu a sua empresa Kvartal 95 Studio ao seu amigo Serhiy Shefir – mais tarde tornou-se seu conselheiro na presidência.

    Em Maio desse ano, o ex-comediante Volodymyr Zelenskyy foi eleito presidente da Ucrânia.

    Em Agosto de 2019, mandou prender o seu opositor político Viktor Medvedcuk, do partido “Pela Vida”. Motivo: traição à Ucrânia.

    A 2 de Fevereiro de 2021, Volodymyr Zelenskyy anunciou o fecho de três canais de televisão da oposição. Segundo a sua opinião, não eram mais do que propaganda russa no país.

    Em Março de 2021,  Volodymyr Zelenskyy despediu o presidente do Tribunal Constitucional da Ucrânia, Oleksandr Tupytskiy, e outro juiz desse mesmo tribunal, Oleksandr Kasminin, “por representarem uma ameaça à independência e segurança nacional da Ucrânia”.

    Em Agosto de 2021, Volodymyr Zelenskyy considerou o gasoduto Nord Stream 2, que liga directamente a Rússia à Alemanha, “uma arma perigosa, não apenas para a Ucrânia, mas para toda a Europa (…) Encaramos este projecto exclusivamente pelo prisma da segurança e consideramos que é uma arma geopolítica perigosa do Kremlin”. Por sua vez, a subsecretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland – aquela da Praça Maidan – disse: “Se a Rússia invadir a Ucrânia, o Nord Stream 2 não avançará”. E assim aconteceu!

    A 12 de Fevereiro de 2022, Volodymyr Zelenskyy, numa conferência em Munique (Alemanha), anunciou a sua intenção de terminar com o Memorandum de Budapeste (1994), que proíbe a Ucrânia de desenvolver, proliferar e usar armas atómicas.

    Portanto, estamos na presença de um novo Winston Churchill? Ressuscitou ele na Ucrânia?

    O leitor decida!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O sistema financeiro e a confiança em tempos perigosos

    O sistema financeiro e a confiança em tempos perigosos


    A invasão de um estado soberano por parte da Rússia continua. No momento em que escrevo, a maior vítima deste conflito é definitivamente a população civil da Ucrânia: colapso de infra-estruturas, casas destruídas, poupanças evaporadas e risco de vida. Uma enorme crise de refugiados, com a população em fuga para países na fronteira ocidental da Ucrânia, carregando consigo apenas a roupa do corpo e alguns bens.

    Não há palavras para uma ignomínia desta dimensão. A Rússia junta-se a outro estado excepcional, daqueles que se julgam legitimados pelo Divino a desrespeitar as fronteiras de outro país, tal como aconteceu no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, apenas para citar alguns exemplos obliterados por guerras sem sentido.

    Esta guerra está a aprofundar precedentes perigosos, em particular o desrespeito pela propriedade privada e o direito de qualquer cidadão a defender-se de uma acusação.

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    Na Bíblia, apesar de Deus conhecer o assassínio de Abel pelo seu irmão Caim, não quis deixar de interpelar Caim e conhecer as suas razões; ou seja, devemos sempre ouvir alguém expressar a sua versão da história. Parece que agora este valor das sociedades ocidentais desvanece-se todos os dias.

    Há umas semanas, várias pessoas no Canadá viram as suas contas bancárias congeladas e mesmo confiscadas, apenas porque tinham apoiado financeiramente uma manifestação – um direito inscrito na Constituição da maioria dos países ocidentais. Tudo isto, sem qualquer ordem judicial ou defesa.

    Com a guerra, este ataque às liberdades e direitos apenas se acentua: pede-se agora o confisco dos bens de todos os russos residentes no Ocidente; assim, sem mais, sem uma acusação, sem defesa. Apenas por serem russos.

    Os danos não se ficam por aqui: o Tesouro norte-americano decidiu congelar todos os activos do Banco Central da Rússia e de um fundo de investimento soberano – cujo gestor é amigo de Putin –, custodiados nos Estados Unidos.

    É óbvio que os investidores têm memória e tomam nota: se aconteceu com este também pode acontecer comigo. Mas estas medidas são sempre um precedente perigoso, dado que a confiança é um activo que custa a conquistar; demora tempo, implica seriedade e estabilidade da legislação, podendo, no entanto, ruir numa questão de dias, como agora. É bom que os dirigentes ocidentais reflictam sobre isto.

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    Para além do confisco de activos, segundo a agência de notícias Reuters, sete instituições financeiras russas deixaram de ter acesso ao SWIFT, um sistema de mensagens entre bancos que permite realizar compensações e acertar saldos entre bancos. Trata-se da rede em que assenta a maioria das transferências bancárias no Mundo.

    Para um exportador russo de gás receber dinheiro de um importador alemão, ambos têm de recorrer a bancos que comunicam entre si através da rede SWIFT. Desta forma, os movimentos de capitais para e desde a Rússia estão severamente limitados, em particular com países ocidentais.

    Para além das medidas já mencionadas, a guerra do ocidente assenta essencialmente em sanções económicas, que consistem na exclusão da Rússia do comércio internacional. Mas não só a Rússia: a Ucrânia, devido à invasão, deixou também de poder realizar negócios com o exterior.

    A impossibilidade de comprar petróleo e gás à Rússia e cereais à Ucrânia, um dos maiores produtores mundiais, está a provocar uma escalada descontrolada dos preços da maioria das matérias-primas. Este é um agravamento da inflação que já vinha detrás, em virtude da impressão massiva de moeda pela maioria dos bancos centrais do ocidente. Para nossa surpresa, parece que vão usar esta crise para continuar a imprimir.

    Variação (%) de preços de matérias-primas entre 31 de Dezembro de 2021 e 2 de Março de 2022. Fonte: Yahoo Finance.

    Para termos uma ideia do descalabro, podemos observar que o petróleo regista uma subida de 50% em 2022, de 66 €/barril no final de 2021 para 99€/barril no final da sessão do dia 2 de Março.

    O trigo e o milho sobem 40% e 27%, respectivamente. Tudo isto em apenas dois meses! É fácil imaginar o impacto destas subidas de preços na frágil economia europeia, muito dependente da importação de “energia” da Rússia.

    Este movimento é agravado pela desvalorização do Euro: no presente ano regista uma queda superior a 2% em relação ao USD, adicionando-se à desvalorização de cerca de 8% em 2021.

    O Rublo também se afunda frente ao USD, perdendo mais de 35% no presente ano!

    Trata-se de um cataclismo para os aforradores russos, que vêem as suas poupanças arruinadas pela desvalorização da sua moeda. Face ao exterior, são agora profundamente pobres!

    Evolução (%) das principais dividas face ao dólar americano (USD) em 2022, até 2 de Março. Fonte: Yahoo Finance.

    No dia 1 de Março, para evitar o colapso da moeda russa, o presidente Putin proibiu a residentes a realização de empréstimos em moeda estrangeira e/ou a realização de transferências para o exterior, evitando a saída de capitais. Na prática, os russos passaram a estar vedados de vender Rublos e de adquirir Euros ou USD, evitando a erosão das suas poupanças.

    Havia uma alternativa. Qual? As Criptomoedas.

    Não por acaso, o Bitcoin foi a Criptomoeda em maior destaque na última semana, com uma subida de 13%, apenas superada pela Luna – esta por razões que irei analisar no final do artigo.

    O fecho dos mercados de Forex aos russos também pode causar vítimas “deste lado”.

    A pergunta que agora se coloca é a seguinte: estará o mundo ocidental, e em particular a Europa, capaz de suster esta guerra económica, vendo-se obrigado a comprar matérias-primas essenciais à sua indústria a preços exorbitantes e descontrolados, tudo para evitar importá-las da Rússia?

    Variação (%) da cotação das principais criptomoedas entre 26 de Fevereiro e 3 de Março de 2022. Fonte: Yahoo Finance.

    Vamos então ver em que estados se encontram as economias ocidentais.

    No que respeita ao endividamento público, a situação é um autêntico plano inclinado em direcção a um buraco negro. Os Estados Unidos, cuja moeda é a reserva do Mundo, quase superam o endividamento público português, em torno de 130% do PIB. E a Rússia? Apenas 19%.

    E em relação à balança de transacções correntes, ou seja, ao saldo líquido das relações com o exterior?

    A situação do ocidente é igualmente débil. Os Estados Unidos apresentam uma das situações mais negativas da sua balança de transacções correntes em muitos anos. Ou seja, o exterior está constantemente a financiar os Estados Unidos, estando estes dependentes de recursos financeiros externos. Algo que não ocorre com a Rússia, que possui excedentes nos últimos anos.

    A situação russa até é provável que ainda seja melhor, em resultado da subida do preço das matérias-primas, pois vende mais caro!

    Evolução do rácio dívida pública/PIB (%) na Grécia, Itália, Portugal, Estados Unidos e Rússia no triénio 2019-2021. Fonte: Eurostat, FED; Trading Economics.

    A subida inexorável da inflação não parece preocupar a presidente do BCE, Christine Lagarde, que afirmou recentemente que as dificuldades sentidas pela economia europeia, em resultado da invasão da Ucrânia pela Rússia, é motivo para a impressora não abrandar o ritmo.

    Atentemos à sua afirmação: “A presidente do BCE, Christine Lagarde, alertou que o Conselho do BCE poderia prejudicar a recuperação da economia se se apressasse a apertar a política monetária…”.

    Qual a conclusão de tudo isto que estamos a viver?

    Primeiro, o sistema bancário apresenta-se crescentemente perigoso; em qualquer momento, um cidadão pode sofrer o confisco das suas contas; qualquer motivo serve: (i) um imposto para salvar o país de uma bancarrota; (i) um pequeno donativo para ajudar um banco em apuros, que necessita da ajuda dos seus depositantes. As Criptomoedas em endereços controlados apenas pelos investidores são os únicos activos financeiros a salvo deste tipo de contratempos;

    Segundo, a rede SWIFT, utilizada pela maioria dos bancos ocidentais, serve de arma de guerra. Em oposição, atendendo à descentralização do seu funcionamento, as Criptomoedas estão ao abrigo desta guerra. Funcionam sempre, sem olhar a quem;

    Evolução do rácio balança de transacções correntes/PIB (%) na Grécia, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Itália e Rússia no triénio 2019-2021. Fonte: Eurostat, FED; Trading Economics.

    Terceiro, os bancos centrais vão utilizar esta guerra como argumento para continuar a imprimir, agravando, desta forma, a taxa de inflação, já de si altíssima e descontrolada, erodindo ainda mais as poupanças dos aforradores europeus e tornando o seu custo de vida insuportável. Por outro lado, a situação gravíssima de endividamento público da maioria dos países ocidentais impede a subida das taxas de juro, caso contrário, a bancarrota está ao virar da esquina;

    Quarto, a repressão financeira dos aforradores vai acentuar-se. Desta forma, os projectos de finanças descentralizadas (DeFi), como é o caso do Anchor Protocol, do blockchain Terra, que permite rentabilidades anuais em torno de 20%, são uma alternativa óbvia aos depósitos tradicionais. A subida em 500 milhões de USTs das reservas do Anchor Protocol fez com que disparassem os fundos captados, que se situam agora acima de 8 mil milhões de USTs. Esta foi a razão para a subida imparável da Luna, a Criptomoeda do blockchain Terra.

    Termino com a pergunta: afinal, as sanções aplicam-se a quem: a nós ou aos russos?

    Independentemente da resposta, para mim, fica óbvio que as Criptomoedas são a única fuga a esta loucura!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os programas da esquerda

    Os programas da esquerda


    Resolvi realizar um exercício penoso, analisar algumas das medidas dos programas eleitorais dos partidos “ditos de esquerda”. Neste grupo poderíamos perfeitamente incluir o PSD, o CDS, a Iniciativa Liberal e o Chega.

    Não necessito de realizar uma leitura exaustiva de cada um dos programas eleitorais. Basta ouvir três ou quatro intervenções dos respectivos líderes para chegar a essa conclusão que, sem excepção, todos os partidos com representação parlamentar querem mais Estado.

    Talvez a única diferença entre estes partidos seja a dose de socialismo que pretendem, mas, infelizmente, comungam de um único ponto: ignoram por completo a pandemia que arruinou a sociedade e a Economia portuguesa nos últimos dois anos.

    Comecemos pelo Bloco de Esquerda (BE), em particular o apartado “vertente social” do seu programa. Somos informados de que seguem este princípio orientador: “Não dar tréguas aos preconceitos e à discriminação”! É singular que o BE durante os últimos dois anos não o tenha seguido, dado que deu a mão ao Governo em todos os Estados de Emergência e a medidas que efectivamente criaram portugueses de primeira e de segunda.

    Até hoje, não se ouviu uma palavra do BE sobre a sociedade que ajudou a criar, ao melhor estilo do deplorável regime do apartheid que em tempos existiu na África do Sul, bastando substituir as cores por não vacinados.

    Na vertente económica, brindam-nos com mais do mesmo: impostos em tudo o que mexa. Mais uma vez, a discriminação dos “ricos”; o BE tem aversão a ricos, excepto quando se trata de um camarada de partido, de seu nome Robles.

    Vamos então ver como o BE pretende tratar os ricos que ainda por aqui circulam. Pretende criar um “imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas” – a palavra solidariedade serve para os membros eleitos do BE que vivem há anos do Orçamento de Estado? –, que incide sobre o património global dos sujeitos passivos, cuja fortuna seja superior a 2.000 salários mínimos nacionais. A taxa varia entre 0,6% (2.000 salários) e 1,2% (8.000 salários), dependendo do escalão do património.

    Nesta proposta, não sabemos se o BE se refere ao salário mínimo anual ou mensal, pelo sentido dos números afigura-se que seja um valor mensal, neste caso o que existe hoje: 665€ por mês. Assim, um “multimilionário”, segundo o BE, é alguém que possui um património global mínimo de 1,33 milhões de euros, passando a pagar todos os anos – não nos esclarecem sobre o período, deduzimos que é anualmente – cerca de 8 mil euros. No escalão acima dos 8.000 salários mínimos, teríamos aproximadamente um imposto de 64 mil euros.

    Ficam as seguintes perguntas na mesa?

    Quem define o valor de mercado de cada elemento do património; por exemplo, acções de empresas não cotadas? Um burocrata do Governo? De que forma irá determinar o seu valor de mercado? Que critérios? É evidente que o contribuinte ficaria sujeito à completa arbitrariedade do avaliador estatal.

    Qual a justiça perante patrimónios constituídos por bens completamente distintos? Vamos imaginar um contribuinte proprietário de casas e outro detentor de jóias e quadros, facilmente dissimuláveis do confisco estatal, os dois seriam tributados de forma completamente distinta. Isto retira todos os incentivos para investimentos em actividades produtivas, em benefício do património que pode ser facilmente ocultado.

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    E o que acontece se o contribuinte pagou, vamos imaginar 50 mil euros num dado ano, por possuir uma empresa com instalações fabris avaliadas em 4,1 milhões de euros (1,2%), mas no ano seguinte entra em dificuldades financeiras e o valor da empresa desaparece. O que acontece? O fisco irá devolver o valor?
    Para além do confisco e desincentivo à produção deste tipo de propostas, as mesmas são sempre lançadas como miraculosas, a favor do eterno estado que tudo nos irá proporcionar: Educação, Saúde, Cultura, Bem-estar; infelizmente, nunca aparece. Para esta gente, o nosso património nunca pode ser nosso, tem sempre de estar ao dispor do BE e das suas clientelas.

    Mas não se ficam por aqui, desejam o englobamento de todo o tipo de rendimentos para efeitos de IRS, por outras palavras, um contribuinte que receba uma renda de imóvel, que hoje paga no máximo 28%, passa a poder pagar mais de 40%, caso o seu rendimento da categoria A o situe nesse escalão de tributação. As poupanças das pessoas que já foram tributadas pelo estado em anos anteriores, voltam a ser tributadas quando são aplicadas.

    Para o BE todos os aspectos da nossa vida, trabalhar, poupar, consumir ou mesmo a morrer, têm um propósito: pagar impostos. Nada escapa à fúria confiscatória do BE, até a morte merece um imposto. Chama-lhe imposto sobre doações e heranças, que também inclui património mobiliário ou outras formas de activos líquidos com valor superior a um milhão de euros. Pretendem aplicar uma taxa de 25% para heranças acima de dois milhões de euros, e 16% para heranças entre um e dois milhões de euros. É sempre a embolsar.

    Também desejam um novo regime de tributação das mais-valias imobiliárias para aumentar a progressividade e a “justiça fiscal” – é sempre nome da justiça e não do bolso da casta que vive à mesa do orçamento. Aqui podiam ser criativos: em lugar o imposto “Mortágua”, podia baptizá-lo de imposto “Robles”. O IMT, o IMI, o imposto de selo não é suficiente para o BE; ainda é preciso confiscar mais-valias geradas pela impressora do Banco Central Europeu.

    A coisa não se fica por aqui. Ainda desejam a introdução de dois novos escalões da tabela de IRS de forma a aumentar a progressividade. É sempre necessário ir mais fundo ao bolso das pessoas.

    Para terminar, a cereja no topo do bolo: propõem a tributação de mais-valias obtidas com criptomoedas. Para além de ser um partido com uma ideologia totalitária, deseja assaltar-nos qualquer vintém que possamos carregar no bolso.

    No que respeita ao PC, temos o programa eleitoral da CDU de 2019; segundo o PC, o mesmo mantém-se actual, e não requer qualquer mudança para as eleições de 2022. Mas importa consultar o programa do PC, é o que vamos fazer.

    O programa diz-nos que o PC ainda não desistiu da Revolução Socialista, e ainda abomina o capitalismo: “A evolução do capitalismo, com as violentas manifestações da sua natureza exploradora, opressora, agressiva e predadora, a agudização das suas contradições, o agravamento da sua crise estrutural, coloca cada vez mais na ordem do dia a exigência da sua superação revolucionária.”.

    Seguidamente, somos informados de que os partidos que seguiram o socialismo são um sucesso sem precedentes: “Partindo em geral de um baixo nível de desenvolvimento, os países socialistas alcançaram êxitos e realizações de grande projecção internacional, que estimularam a luta dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo.” Julgo que os únicos êxitos relevantes da experiência socialista foi a fuga da população para os países capitalistas à primeira oportunidade!

    Continuar a ter um partido destes na Assembleia da República é um sinal do atraso português, que dispensa mais análises.

    Terminando com o PS – o partido que nos governa de forma praticamente ininterrupta há mais de 20 anos, e que levou o país à bancarrota em 2011, em que chegou a haver o risco não haver dinheiro para pagar os salários dos funcionários públicos –, este apresenta-se de novo a eleições com as mesmas caras e “ideias”.

    Informam-nos que têm 10 prioridades para o país, das quais destaco a primeira: “Convergir entre 2021 e 2026. Crescer por ano em média 0,5 pontos percentuais acima da média da UE27 e 1 p.p. acima da média da zona euro”. Para além de nos anunciarem o crescimento por decreto, fica a pergunta? Porquê só agora? E apenas 1 ponto percentual acima da zona euro, por que não 5 ou 6 pontos percentuais? Aqui está uma verdadeira aspiração: crescer mais, mas não explicam como.

    No programa propriamente dito, depois do plano tecnológico, temos agora a Economia Circular. Deduz-se que a linear deve ser má, e a circular fantástica. Segundo o PS, com a sua ajuda, iremos transformar-nos numa economia circular e abandonar a linear. O programa está cheio de lugares-comuns, uma espécie de “agora é que vai ser”, sem nunca nos explicarem como vão fazer algo naquilo que fracassaram.
    Mas a melhor parte surge no capítulo das desigualdades, com o título “Mais e melhores oportunidades para todos, sem discriminações”. É hilariante que o partido que promoveu um apartheid, em particular aos não vacinados, foi o PS. É sempre divertido assistir à pungentes declarações de não à discriminação por parte do PS.

    É isto a esquerda portuguesa!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • O plano ausente e a regulação dos mercados à la Iniciativa Liberal

    O plano ausente e a regulação dos mercados à la Iniciativa Liberal


    Uma ausência de peso nos debates foram os grandiosos planos quinquenais do regime. Em todos, como sabemos, sempre está o milagre que nos livrará do subdesenvolvimento e da cauda da Europa.

    Infelizmente, aquilo que mais se tem visto, há décadas, é uma condução em direcção a essa cauda.
    Há mais de um ano, o PS – pela mão de Costa Silva, por forma a preparar o festim da anunciada bazuca – apresentava-nos outro plano, aparentemente escrito em apenas dois dias, que defendia “mais estado na Economia” – o que já temos não parece ser suficiente – e a “capitalização” (um eufemismo para designar o enterro de milhões de euros) da bancarroteira TAP.

    É pena! Tínhamos saudades da discussão de planos durante uma campanha eleitoral. Quem não se lembra do Plano Tecnológico de José Sócrates? Em 2007, foi assim anunciado: “O Plano Tecnológico é uma peça essencial da política económica… para responder de vez aos problemas estruturais que têm afectado o crescimento económico de Portugal”.

    Na prática, tratava-se de um elenco de lugares-comuns, vagas intenções, frustrações, sentimentos e aspirações. Adicionalmente, também apresentava uma enorme lista de compras. Hoje, sabemos porquê: amigos, correligionários e compadres, envolvidos na patranha divertiram-se a desperdiçar e a embolsar o nosso dinheiro e a endividar-nos até ao infinito.

    Uma das listas de compras do plano rezava assim: “Fornecer às escolas com 2.º e 3.º ciclos do ensino básico ou com ensino secundário: 310.000 computadores até 2010; 9.000 quadros interactivos por ano até 2010; 25.000 videoprojectores até 2010”.

    Nestas coisas, fica sempre a pergunta: por que não 330 mil computadores, em lugar de 310 mil? Mas os planeadores centrais nunca nos conseguem responder a estas perguntas. Organizam uma tertúlia e decidem que são 330 mil. É indiferente, o dinheiro não é deles!

    O que fica para a história deste plano tecnológico? O então primeiro-ministro perdeu uma fulgurante carreira como vendedor itinerante de computadores Magalhães, e os problemas estruturais do país foram resolvidos em definitivo… com uma terceira bancarrota! Para nossa sorte, a equipa que o ajudou a conduzir-nos à ruína, não só governou nos últimos seis anos, de mão dada com comunistas e trotskistas, como se apresenta de novo a eleições, desta vez, não com os originais, mas com as filhas, as esposas, as mulheres, os primos…

    Talvez o único partido que apresentou à discussão um “plano” nestas eleições foi a Iniciativa Liberal (IL), dado que tiveram a “coragem” de apresentar, embora com atraso, um calhamaço de 614 páginas! Através deste “plano”, para nossa surpresa, ficámos a saber que a Iniciativa “Liberal” também deseja “mais Estado e mais regulação”. Aliás, parece que não há partido que não o deseje.

    Na página 499 do calhamaço anunciam: “Assegurar que a legislação promove a estabilidade dos activos virtuais, em especial das criptomoedas (moeda digital), enquanto classe de activos, que permita a sua disseminação e transacção de forma adequada, mitigando adequadamente o risco da formação de eventuais fenómenos de bolha”.

    Ficámos a saber que vão existir uns burocratas, eleitos certamente pelos líderes da IL, que nos irão dar a conhecer o nível de preços a partir do qual se designa por “bolha”. Afinal, a livre interacção de compradores e vendedores num mercado não é suficiente, alguém nos vai informar sobre o momento em que a mesma chega. Se chegar, talvez mandem encerrar o mercado, para nossa protecção.

    Na página 502 do calhamaço temos esta pérola: “Os activos virtuais têm vindo a assumir uma importância crescente enquanto classe de activos, com destaque para as criptomoedas. Dada a elevada volatilidade e número elevado de moedas existentes, importa ter um quadro regulatório claro, assim como de tributação adequada, contribuindo assim para uma maior estabilidade para os investidores e/ou aforradores que aqui decidam alocar os seus recursos. Para além dos activos em si, importa também regular o funcionamento de bolsas (exchanges), para mitigar práticas anticoncorrenciais, como o front running”.

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    Aqui ficamos perplexos: os nossos “liberais” desejam mais tributação sobre a Economia, a que existe parece não ser suficiente, mas não só: a tributação sobre as criptomoedas irá assegurar, aparentemente, a estabilidade de preços! Ou seja, onera-se a transacção para que deixe de ter lugar. Nada como matar um mercado para assegurar a “estabilidade” de preços.

    Mas a ambição da IL não fica por aqui. Também desejam regular as bolsas de criptomoedas. Ou seja, bolsas que se encontram disseminadas pela Internet, vão agora ficar debaixo da alçada dos reguladores. Podem seguramente esperar sentados para ver isso acontecer.

    Por fim, demonstram eloquência: querem acabar com o front running, ou seja, com a prática ilegal de obtenção de informações antecipadas. Alguém elucide o escritor deste parágrafo que esta prática é hoje realizada sob os olhos de uma pletora de reguladores. Para tal, basta investigar de que forma obtêm lucros as corretoras de comissões 0%, que vendem informação sobre as instruções dos seus clientes a institucionais – uma espécie de entrega de carneiros para o sacrifício. Dificilmente irá encontrar tal prática nas bolsas de criptomoedas, pois estas não estão centralizadas; bem pelo contrário: é um mercado verdadeiramente atomizado, algo tão ambicionado pelos teóricos da concorrência perfeita que pululam pelas universidades.

    Costuma-se dizer: com amigos destes, quem precisa de inimigos? Dá vontade de afirmar: com liberais destes, quem precisa de socialistas?

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A campanha eleitoral: primeiras reflexões

    A campanha eleitoral: primeiras reflexões


    Falar da presente campanha eleitoral é sempre difícil, em particular para mim que assisti a poucos debates, creio que não foram mais de cinco ou seis. Apesar do esforço e da atenção, pouco retive das ideias dos candidatos, talvez porque não foram abundantes em ideias e propostas.

    Confesso, no entanto, que alguns debates tiveram momentos particularmente hilariantes, nomeadamente quando André Ventura relembrou o passado profissional de Catarina Martins: – “Percebe-se porque é que a Catarina Martins era actriz, é uma excelente actriz…”; – ou quando o líder do CDS acusou André Ventura de não possuir quaisquer ideias, com uma grandiloquente tirada: “um esquadrão de cavalaria em desfilada na sua cabeça não encontra uma ideia”.

    Enfim, parece-me que os debates de 25 minutos foram essencialmente preenchidos com isto: palavras atiradas acintosamente com insolência e desprezo ao outro candidato, pouco mais.

    Aquilo que se estranha desta campanha, e em particular dos debates, foi a total ausência da pandemia – honra seja feita ao candidato do ADN que o denunciou, carregando consigo um elefante de peluche, com o propósito de nos alertar que o elefante da sala da política nacional é a pandemia. Isto depois de dois anos em que se decretou a prisão domiciliária de cidadãos saudáveis, o uso obrigatório de máscaras, incluindo em crianças nas aulas e sem qualquer evidência científica que as justificasse, o encerramento de negócios, a restrição de movimentos, a vacinação “compulsiva”, as falências em catadupa, o desemprego, a dívida pública galopante.

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    Note-se, em 2020 e 2021 a dívida galopante subiu 27 mil milhões de euros, algo em torno de 14% do produto interno bruto (PIB), mas, estranhamente, não é tema. Um estranho silêncio sepulcral a este respeito parece ter sido acordado entre os candidatos do regime.

    O regime é tão pândego que até nos apresenta um partido de ideologia “liberal”, de seu nome Iniciativa Liberal, “acérrimo defensor” das liberdades individuais, mas que, no início da campanha, realizou um congresso exigindo certificados e máscaras, privando vários membros de votar, obviamente segregados e discriminados, e temeroso em não fazer figura de patinho feio da narrativa oficial: esta não se pode questionar ou discutir! Falam apenas de Economia e ideias, esquecendo-se que as pessoas são a Economia. No fundo, já fazem parte do regime.

    É também insólito que nenhum candidato tenha comentado o regresso da inflação, em particular em 2021, onde várias matérias-primas registaram subidas excepcionais, muito longe da “inflação oficial” de 2,8%. Vejam-se os casos da aveia, que subiu mais de 100%; do café, que subiu 100%; do gás natural, que subiu 71%; do petróleo, que subiu 64%. Estas foram as maiores valorizações. No entanto, a maioria das matérias-primas – como o leite, a madeira, o milho e o açúcar – subiu mais de 20%. Os salários e as poupanças estão a ser obliterados pela inflação, mas o regime teima em ignorar o seu impacto nesta campanha.

    Talvez não se queira admitir que esta inflação resulta da impressora do Banco Central Europeu (BCE), que serve um único propósito: comprar toda a dívida pública dos Governos, para que estes continuem o regabofe de dívida e despesa pública sem fim, em particular aquela que ocorreu durante a pandemia.

    Pela primeira vez na História da Humanidade, durante esta pandemia os governos ignoraram por completo a prosperidade dos negócios que lhes pagam a conta, pouco se importando com as falências e o desespero de muitos empreendedores. O dinheiro para a pletora que vive à mesa do Orçamento nunca falta, incluindo para os políticos do regime. Até agora, a torneira do BCE parece que não os abandona.

    É também singular que nenhum candidato tenha denunciado o enorme esquema em pirâmide que constitui a nossa Segurança Social. Lá tivemos a eterna tirada da esquerda: não podemos colocar o dinheiro dos portugueses no casino da bolsa, quando tal há muito ocorre, e que correctamente foi denunciado pelo líder da Iniciativa Liberal no debate com António Costa.

    Apesar de tudo, continua por se explicar às pessoas que o dinheiro que descontamos para a Segurança Social todos os meses apenas serve para pagar as reformas dos pensionistas, ou seja, que se trata de um sistema que depende de entradas superiores às saídas, ao melhor estilo Madoff. Em face disto, nenhum político explica como vai resolver o actual suicídio demográfico, em que jovens a entrar no mercado de trabalho são brutalmente confiscados para pagar um exército crescente de pensionistas.

    Outro dos temas completamente ignorado é a nossa irrelevante soberania; hoje, somos praticamente governados por uma burocracia não eleita em Bruxelas, que legisla sobre todos os aspectos das nossas vidas, tornando o quotidiano da maioria das pequenas e médias empresas um verdadeiro inferno kafkiano.

    Também ninguém comenta que a famosa bazuca da União Europeia não é mais do que um presente envenenado, pois ninguém nos esclarece de onde provém o dinheiro. Da impressora do BCE? Nem mais, da máquina de falsificar dinheiro. Com a pandemia, a União Europeia lá apareceu a emitir dívida pública em nome de todos os Estados. E quem a comprou? A impressora do BCE. A mesma que é responsável pela enorme inflação que estamos a sofrer.

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    Por um lado, oferecem “a fundo perdido” uma enorme quantidade de fundos; por outro, desvalorizam o poder aquisitivo da moeda que carregamos no bolso: uma espécie de Robin dos Bosques ao contrário, que rouba aos fracos e assalariados do sector privado a favor da casta à mesa do Orçamento e dos empresários do regime. Este Robin dos Bosques também parece que anda alheado dos debates.

    Para além dos insultos entre candidatos, o que mais preenche os debates? As intrigas palacianas, muito ao gosto da maioria dos jornalistas da nossa praça. Vai-se aliar ou não? Vai permitir o governo ou não? Tem a certeza que nunca irá conversar com o Chega? Garante-nos? Assegura-nos? Ainda não respondeu à minha pergunta: em que condições se vai aliar, vai exigir ministérios? Passamos horas a discutir estas tricas, em lugar de discutir os temas que interessam às populações.

    Outra ideia que se repete nesta campanha é o eterno anátema sobre a direita: o perigo da “extrema-direita”. De forma insólita, tal tratamento não se aplica à “extrema-esquerda”, defensora de ideologias totalitárias, que, em nome de uma utopia – as ideias acima das pessoas –, foi responsável pelo extermínio de milhões de pessoas, pela fome e miséria de muitos povos. Aliás, nunca citam o modelo económico que lhes serve de referência. Se o fizessem, seriam certamente lugares de onde as populações fogem à primeira oportunidade! Mas ninguém os questiona sobre o que verdadeiramente defendem: são os “fofinhos” do regime. Para além da direita “mariquinhas”, também devíamos ter escutado: “a esquerda fofinha”.

    Outra das vacas sagradas do regime e da campanha é a bancarroteira TAP: há anos acumula prejuízos atrás de prejuízos, milhões e milhões de euros de perdas, com a maioria dos seus colaboradores principescamente pagos – salários brutos médios anuais de 50 mil euros –, enquanto a maioria da população recebe salários mensais de mil euros. Nem mesmo o “querido líder da nossa extrema-direita” a abandona: para ele não tem importância os três ou quatro mil milhões de euros ali enterrados, quase 2% do PIB. Em paralelo, indigna-se de forma pungente com os 15 ou 20 milhões de Euros do RSI dos ciganos, 200 vezes menos!

    white and red passenger plane on airport during daytime

    Honra à Iniciativa Liberal e ao seu líder, a única a denunciar esta autêntica vergonha nacional. Apesar de tudo, muito falta apurar: gostaríamos de conhecer os nomes e apelidos dos fornecedores da TAP que tanto preocupam o regime, nunca revelados nos debates. Uma nota para o jornalismo de investigação neste país.

    Uma das notícias positivas desta campanha: pela primeira vez, a taxa única de IRS é discutida abertamente durante a campanha. A Iniciativa Liberal e o Chega propõem modelos semelhantes. Esperemos que esta reforma fiscal seja rapidamente implementada, pois temos que dar oportunidades aos jovens de ascender na vida através do trabalho, em lugar de os obrigar a emigrar.

    person standing inside cave during daytime

    Apesar das inúmeras vantagens de tal modelo – em particular, tornar-nos mais competitivos –, ambos os partidos não nos explicam as despesas públicas que irão cortar para compensar tal redução de receitas. Para eles, tudo se resolve pelo milagroso crescimento económico, que tudo paga. Tocar no monstro: nem pensar!

    Pela negativa: o eterno o Bloco Central. Empurrados pelas sondagens e pela imprensa, propõe-se mais do mesmo: agora é que vai ser! Ao longo de décadas, estes partidos foram responsáveis por três bancarrotas, estando agora em preparação a quarta. Aquele que não está agora no poder, o PSD, utiliza sempre a mesma estratégia: vamos aplicar a mesma receita, mas, desta vez, com maior “rigor e honestidade”, sem dar emprego a “famílias”, atendendo que o préstito de apaniguados atrás de mim é “mais competente”. Aparentemente, a estratégia resulta: parece que os portugueses continuam a acreditar que agora é que vai ser!

    O político mais perigoso e plangente desta campanha talvez seja Rui Rio. O PSD, a par com o Chega, há cerca de uns meses propôs uma alteração à Constituição, destacando-se a possibilidade de decretar a prisão domiciliária de alguém sem uma decisão judicial, ou seja, um simples funcionário administrativo, em nome da “Saúde Pública”, passaria a ordenar a prisão domiciliária sem passar por um juiz. Podemos imaginar a total arbitrariedade e autoritarismo que tal modificação poderia acarretar para as nossas vidas.

    Rui Rio ainda se destacou com outra pérola: com enorme protérvia, defendeu medidas distintas para não-vacinados. A discriminação de uma minoria parece ser a sua maior aspiração. Talvez um dia, sem rebuço, o vejamos propor a estrela de David no braço dos não-vacinados. Aquilo que nos conforta é que o regime solta sempre uns encómios a seu favor: é um homem de direita!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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