Autor: Luís Gomes

  • A consolidação do ocupante: aliança com os Estados Unidos e a guerra do Líbano

    A consolidação do ocupante: aliança com os Estados Unidos e a guerra do Líbano


    A derrota moral do mito do “milagre defensivo” em 1967 abriu espaço a uma nova fase: não mais um Estado inseguro que só se defendia, mas uma potência que precisava de se legitimar e gerir vastos territórios ocupados. Essa transição ficou mais visível na década de 1970.

    Em Outubro de 1973, o Egipto e a Síria lançaram um ataque-surpresa no dia do Yom Kippur – a data mais sagrada do calendário judaico, dedicada ao jejum e à expiação dos pecados; os primeiros dias foram um choque – Israel sofreu perdas e foi pressionado; até que, com a mobilização total e um gigantesco reabastecimento aéreo norte-americano, virou o jogo e impôs um armistício.

    O Yom Kippur mudou tudo: demonstrou que a ocupação tornara a região instável, empurrou Israel a depender militar e diplomaticamente dos EUA (a ponte aérea norte-americana, Operation Nickel Grass, foi decisiva) e reforçou a ideia de que só uma aliança estratégica com Washington garantiria a supremacia militar israelita.

    Politicamente, a década de 70 do século transacto também significara uma mudança interna: a vitória eleitoral do Likud em 1977 pôs fim à hegemonia trabalhista e abriu caminho a políticas mais assertivas de colonização. A partir daí, os assentamentos deixaram de ser apenas pioneirismo ideológico: tornaram-se política de Estado, recebendo financiamento, benefícios fiscais e protecção militar. A ocupação deixava de ser temporária e passava a ser reengenharia demográfica deliberada – estradas, postos militares, incentivos para populações judaicas deslocarem-se para a Cisjordânia e para Jerusalém Oriental.

    Em 1978–79, os Acordos de Camp David criaram uma fissura ainda maior: o Egipto assinou a paz com Israel e recuperou o Sinai, mas o custo foi enorme para a causa árabe e para os palestinianos – a questão palestiniana foi marginalizada, a autoridade egípcia virou um parceiro ocidental, e o espaço político para uma solução palestiniana diminuiu. Washington consolidou o seu papel de patrocinador privilegiado de Tel Aviv: ajuda militar maciça, cobertura diplomática e tecnologia de defesa tornaram-se pilares da relação.

    O ponto de viragem seguinte ocorreu em 1982, com a invasão do Líbano. Oficialmente destinada a “destruir a infra-estrutura terrorista” da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), a operação transformou-se numa ocupação profunda do sul libanês e numa intervenção que ultrapassou largamente os objectivos declarados.

    A queda de Beirute, o cerco longuíssimo e o massacre de Sabra e Shatila – perpetrado por milícias locais sob a responsabilidade indirecta das forças israelitas – marcaram brutalmente a imagem internacional de Israel e criaram um ressentimento duradouro. A ocupação do sul do Líbano e a política de segurança instalada aí deram origem a novos focos de resistência (mais tarde o Hezbollah), mostrando que a lógica ocupante gera sempre mais resistência, mais violência e mais custos humanos e estratégicos.

    No balanço de 1973 a 1982: Israel saiu desta década com maior poder militar e com uma aliança profunda com os Estados Unidos; saiu também com uma ocupação cada vez mais institucionalizada – assentamentos, infra-estrutura militar, leis e práticas que consolidavam uma realidade colonial. Politicamente ganhou aliados poderosos, mas perdeu legitimidade entre os vizinhos árabes e agravou a situação dos palestinianos, que viram o sonho de retorno e de Estado tornar-se cada vez mais remoto.

    A década de 1980 terminou com uma erupção inesperada: em Dezembro de 1987, depois de anos de ocupação, colonização e repressão, os palestinianos da Cisjordânia e de Gaza levantaram-se numa revolta popular conhecida como a Primeira Intifada. Não foi planeada por líderes exilados nem armada até aos dentes – começou com greves, boicotes, pedras contra tanques e a mobilização de uma geração inteira que já nascera sob ocupação.

    A resposta de Israel foi brutal. Ariel Sharon e Yitzhak Rabin usaram uma política que o próprio Rabin resumiu na fórmula: “quebrar os ossos”. As tropas receberam ordens para reprimir manifestações com violência física sistemática, centenas de casas foram demolidas, milhares de jovens presos sem julgamento. A imagem internacional de Israel sofreu um golpe profundo: o mundo viu, em directo, a disparidade entre colonos armados protegidos e crianças palestinianas a enfrentar soldados com pedras.

    Politicamente, a Intifada mudou o equilíbrio: mostrou que os palestinianos não eram apenas refugiados em campos ou figuras em negociações diplomáticas, mas um povo vivo, organizado, capaz de resistir colectivamente. Também empurrou Israel e os EUA a reconhecerem a OLP como um interlocutor legítimo – até então tachada de “terrorista” – e abriu caminho para negociações.

    Esse caminho culminou em 1993, com os Acordos de Oslo. Apresentados ao mundo como um “histórico aperto de mão” entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, prometeram um processo de paz, a criação de uma Autoridade Palestiniana e a perspectiva de um futuro Estado palestiniano – essa organização criminosa que sempre é proposta como solução para toda e qualquer salvação.

    Na prática, porém, Oslo funcionou como uma armadilha: a ocupação militar manteve-se intacta, os colonatos não só não pararam como aceleraram, e a nova Autoridade Palestiniana ficou reduzida a um gestor subcontratado da população sob controlo israelita. A promessa de dois Estados tornou-se retórica diplomática, enquanto no terreno a realidade colonial aprofundava-se. A Intifada tinha nascido de desespero e dignidade. Oslo transformou-a numa vitrina para a diplomacia, mas sem tocar na raiz do problema: a terra, os refugiados e a brutal ocupação.

    A década de 1990 terminava com as promessas de Oslo, que depressa se revelaram um engodo. Os colonatos multiplicavam-se, os checkpoints asfixiavam a mobilidade, a terra palestiniana era retalhada em enclaves desconexos. A chamada “Autoridade Palestiniana” funcionava mais como polícia auxiliar da ocupação do que como embrião de soberania. Era inevitável que a frustração acumulada explodisse.

    A centelha surgiu em Setembro de 2000, quando Ariel Sharon, então líder da oposição, entrou ostentosamente na Esplanada das Mesquitas em Jerusalém Oriental, rodeado de centenas de polícias. Foi visto como uma provocação deliberada, e no dia seguinte eclodiram confrontos em toda a Cisjordânia e em Gaza. Assim começou a Segunda Intifada.

    Ao contrário da primeira, esta revolta depressa escalou em violência: atentados suicidas palestinianos atingiram cidades israelitas, enquanto a resposta militar de Israel foi devastadora – bombardeamentos aéreos, incursões de tanques em zonas densamente povoadas, execuções selectivas.

    A narrativa oficial apresentava Israel como uma vítima de “terrorismo irracional”. Mas a realidade é que o terrorismo é também produto da ocupação, da humilhação diária, da ausência de horizonte político. Quem semeia a violência estrutural da colonização não pode fingir surpresa quando a violência regressa sob formas mais cruas.

    Em 2002, Israel lançou a Operação Escudo Defensivo, voltando a invadir cidades da Cisjordânia sob o pretexto de “erradicar o terrorismo”. Os tanques entraram em Jenin, Nablus, Ramallah; cercos e destruições maciças devastaram campos de refugiados.

    Foi também nesse ano que começou a construção do muro de separação: uma barreira de betão e arame, erguida não na linha de 1967, mas profundamente dentro da Cisjordânia, anexando, de facto, vastas áreas e colonatos. Chamavam-lhe o “muro da segurança”; na prática, era engenharia territorial, criando realidades irreversíveis e transformando aldeias palestinianas em ilhas cercadas.

    O auge desta fase veio em 2005, quando Ariel Sharon – já primeiro-ministro – decidiu retirar unilateralmente os colonos de Gaza. Apresentou-o como um gesto de paz, mas era sobretudo um cálculo estratégico: Gaza tornava-se uma prisão a céu aberto, isolada por terra, mar e ar, enquanto a colonização na Cisjordânia era acelerada. A desconexão de Gaza permitiu a Israel alegar que já não ocupava o território, mas continuou a controlá-lo de fora, em todos os aspectos essenciais.

    O período de 2000 a 2005 expôs de forma ainda mais clara a essência do problema: Oslo tinha sido uma ilusão diplomática; a realidade era a de um Estado que expandia colonatos, erguia muros, consolidava a ocupação e relegava milhões de pessoas para guetos sob vigilância. A Segunda Intifada terminou oficialmente em 2005, mas o que mostrou – a violência como resposta inevitável à ocupação – ficou gravado na memória de uma geração inteira.

    Em conclusão, foi o colapso das ilusões de Oslo. De um lado, um povo sufocado por colonatos, muros e checkpoints, que respondeu com a revolta desesperada de quem não tinha futuro. Do outro, um Estado que usou tanques, bombardeamentos e um muro de betão para consolidar a ocupação e redesenhar as fronteiras pela força.

    A retirada unilateral de Gaza em 2005 foi apresentada como gesto de paz, mas funcionou como uma manobra de cálculo: uma prisão cercada por mar, ar e terra, enquanto a Cisjordânia continuava a ser retalhada e colonizada. No fim deste ciclo, o mapa estava mais fragmentado, a violência mais enraizada e a promessa de dois Estados mais distante do que nunca.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Democracia autárquica: manual de boas aparências

    Democracia autárquica: manual de boas aparências


    No passado dia 12 de Outubro, o país engalanou-se uma vez mais para a grande missa cívica do regime: as eleições autárquicas, pomposamente designadas como “a festa da democracia”. As televisões rejubilavam com a coreografia das urnas, os comentadores fingiam sabedoria enquanto contavam votos como quem conta indulgências, e o povo, esse bom crente da religião republicana, acorreu em romaria a depositar no altar do sufrágio o seu grão de fé.

    Tudo se passou com a serenidade das cerimónias litúrgicas: filas ordeiras, abraços entre adversários, promessas de redenção municipal e, por fim, o hino à maturidade democrática. É nestas alturas que o português se sente súbdito e rei, explorado e soberano, escravo e legislador.

    Foto: CNE

    Em cada concelho reergueram-se os mesmos santos do panteão local, as mesmas estátuas humanas de betão armado, cuja biografia mistura expediente administrativo com génio do compadrio. Voltou, claro, o senhor Isaltino, apóstolo penitente das finanças municipais, a provar que em Portugal a ressurreição é um direito constitucional.

    O povo de Oeiras, magnânimo e distraído, deu-lhe nova unção eleitoral, como se a passagem por Évora fosse um estágio em virtude. Em Loures, Almada, Matosinhos e outros reinos menores da república, sucederam-se idênticos milagres de reeleição, como se a eternidade tivesse assento no orçamento camarário. São os mesmos de sempre, com o mesmo ar de sacristia e o mesmo zelo missionário pelo erário público.

    No tempo do rei absoluto, sabíamos quem roubava. Tinha nome, brasão e barriga. Se abusasse dos tributos, arriscava-se a ser pendurado num poste, espectáculo moral que a modernidade suprimira por indecoroso.

    Com a democracia, porém, o ladrão perdeu corpo e ganhou instituição. Já não há gordos a quem lançar a corda, há departamentos e secretarias. O saque tornou-se anónimo, e a pilhagem, regulada por decreto. A moral fiscal converteu-se em dogma patriótico: quem paga é virtuoso, quem recebe é indispensável, e quem rouba em nome do bem comum é apenas gestor de interesses superiores.

    Foto: DR

    A nação divide-se em dois bandos que fingem não se ver – os que produzem e são espoliados e os que vivem e são sustentados – mas o regime chama-lhes apenas cidadãos, e até lhes concede a mesma cruzinha no boletim, essa hóstia de papel que legitima o festim.

    Chamam a este ritual a “festa da democracia”, expressão que cheira a mofo parlamentar e vinho verde institucional. Dizem-nos que é o menos mau dos regimes, fórmula que só um povo resignado poderia aceitar como elogio. É o mesmo que preferir a febre à peste. Todavia, o que é, no fundo, esta democracia que veneramos?

    Uns dizem que é o governo do povo, outros que é o povo a escolher quem governa. Uns crêem que decide o destino, outros que escolhe apenas o carrasco. No primeiro caso, dispensaríamos o parlamento; no segundo, bastaria um sorteio. Assim se constrói o paradoxo: o povo é soberano, mas a soberania não lhe pertence; manda por delegação, e obedece por costume.

    Como se não bastasse essa ambiguidade, a vontade popular depende ainda da geometria dos mapas. Uma linha mais a norte ou mais a sul, um círculo maior ou menor, e a maioria muda de dono. A soberania, afinal, é uma questão de régua e compasso. Um governo eleito pela perícia do cartógrafo. A vontade do povo é como a água: toma a forma do recipiente.

    Foto: DR

    Os democratas entusiastas costumam dizer que a maioria tem o direito de se separar da minoria, como a Catalunha de Espanha, mas calam-se quando a minoria dentro da maioria quer separar-se dessa maioria maior. É a velha contradição que conduz, por degraus lógicos, ou à tirania universal ou à liberdade individual.

    Ou admitimos que o indivíduo possa separar-se da comuna e esta do Estado, ou acabamos todos numa prisão planetária de sufrágios perpétuos. A democracia moderna sonha com um governo mundial, isto é, com um cárcere cosmopolita onde todos votam e ninguém escapa.

    Também nos dizem que o sistema proporcional é mais justo, mais representativo, mais científico. Pura charlatanice. A justiça das urnas é tão arbitrária como a dos deuses antigos: depende da fórmula usada no templo. Com os mesmos votos se fazem maiorias ou coligações, vitórias ou derrotas, regimes estáveis ou pandemónios ministeriais. O sufrágio é um oráculo de conveniência.

    Depois há a apoteose tecnológica. Com o milagre das aplicações, o povo poderia hoje votar em tudo – no IRS, na imigração de terceiro mundo, na saúde, no número de feriados. Mas ai de quem o proponha: logo surge a objecção de que o povo é ignorante, incapaz de compreender assuntos complexos.

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    A mesma multidão que é sábia para escolher governantes é estúpida para escolher políticas. Eis o raciocínio circular que sustenta a república moderna: o eleitor é competente no Domingo, quando elege, e imbecil no Sexta-Feira, quando seria chamado a decidir.

    Quanto à independência dos juízes, outro dogma do catecismo democrático, bastaria lembrar que quem nomeia os tribunais é quem governa, e quem governa é quem legisla. A toga, outrora símbolo de severidade, é hoje capa de funcionário. A justiça vive do orçamento e o orçamento vive de voto; logo, a independência é uma ficção orçamental.

    O eleitor comum, esse santo anónimo do regime, não conhece quem elege. Vota em rostos, em sorrisos, em que promete “casas grátis”, em que promete um futuro radiante, cheio de coisas “grátis”. Julga mérito por simpatia, competência por fotogenia. Um médico não escolheria o seu cirurgião por cartaz, mas o povo escolhe assim o seu primeiro-ministro. A democracia é o único regime onde a ignorância é virtude e a frivolidade, método.

    Quando tudo o mais falha, invoca-se o argumento da paz. Dizem que a democracia evita o sangue porque substitui a bala pelo boletim de voto. É meia-verdade que soa a piedade. A história mostra que os regimes de sufrágio universal produziram tantas ou mais guerras que as monarquias, mais brutais, com muito mais carnificina. A diferença é que agora os exércitos partem com mandato popular. O voto não aboliu a violência, apenas a terceirizou.

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    A democracia não é um valor moral, apenas um instrumento. Serve tanto ao socialista que sonha com a igualdade como ao libertário que sonha em ver-se livre do bandido estacionário. É um martelo: tanto prega o prego como estilhaça a cabeça. No entanto, há quem veja nela uma divindade capaz de criar o bem do nada.

    Mas eis o escândalo que o democrata não suporta ouvir: se o povo, por esmagadora maioria, elege um tirano que decide abolir as eleições, então tal tirania é, segundo o próprio princípio democrático, legítima. A vontade do povo abole a própria vontade do povo – e o regime morre aplaudido. É a serpente a devorar o próprio rabo, entre vivas à liberdade.

    E o que dizer da contradição entre a democracia e o socialismo, esse casamento impossível de uma multidão com uma forca. Pois num regime socialista, o partido no poder – detendo os empregos, a imprensa, os tribunais e os subsídios – destruiria economicamente os seus opositores antes que estes pudessem disputar o voto. A igualdade seria mantida pela fome.

    Se isto parece uma hipótese teórica, basta visitar certas autarquias portuguesas, esses laboratórios domésticos de planificação: o presidente distribui cargos, o vereador adjudica contratos, o primo recebe avenças e o opositor político descobre que o concurso público tinha critérios retroactivos. A democracia municipal é a caricatura perfeita do socialismo: um partido, todos os cofres, e um boletim de voto a legitimar o saque.

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    O “povo”, essa entidade metafísica que o regime invoca em cada frase, não existe senão como ficção. Existem indivíduos, cada qual com a sua vontade, o seu suor e o seu bolso. A vontade do povo é apenas a soma algébrica de obediências, uma criação estatística que confere majestade ao saque. Quando um governo expropria, fá-lo em nome dessa entidade invisível; quando mente, diz que foi mal interpretado por ela; quando falha, declara que o povo não compreendeu o seu génio.

    Assim se cumpre o ciclo. O eleitor, submisso, acredita que manda; o eleito, hipócrita, finge que obedece; o Estado, voraz, come os dois. A democracia é o sistema que transforma o roubo em virtude, o suborno em política e a servidão em dever patriótico.

    No tempo dos reis, sabíamos onde morava o ladrão. Hoje mora em nós, disfarçado de consciência cívica e orgulho nacional. O voto, essa moeda de fé, é o selo da nossa obediência. O povo deposita o boletim como quem confessa o pecado, e sai da urna absolvido. Mas ao contrário da confissão, aqui o perdão é para o ladrão, não para o penitente.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A criação do Estado de Israel

    A criação do Estado de Israel


    Em 1947, a Palestina encontrava-se em plena tensão. Depois de três décadas de Mandato Britânico, de imigração sionista acelerada e de revoltas árabes esmagadas com brutalidade, Londres já não tinha fôlego para segurar o território.

    O império britânico, falido e desgastado pela Segunda Guerra Mundial, entregou a questão à recém-criada Organização das Nações Unidas. Foi neste palco que os Estados Unidos assumiram o papel central. Sob uma pressão diplomática quase sem precedentes, Washington impôs ao plenário da ONU a aprovação de um plano de partilha que atribuía aos judeus, que eram apenas um terço da população e detinham menos de 7% das terras, quase metade do território da Palestina.

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    Foto: D.R.

    A Assembleia Geral não reflectia um consenso espontâneo; foi o produto de intensa pressão norte-americana, de promessas, chantagens económicas e jogos de bastidores. A União Soviética, ironicamente, alinhou com os Estados Unidos nesta votação, acreditando que um Estado judeu socialista poderia nascer em ruptura com o Ocidente. O resultado foi a Resolução 181, aprovada em Novembro de 1947: uma Palestina partida em dois Estados, um judeu e outro árabe, e uma Jerusalém internacionalizada sob a tutela das Nações Unidas.

    Mas esta resolução, já de si profundamente desequilibrada, trazia duas condições básicas que são sistematicamente esquecidas. Primeiro, Jerusalém devia ser uma cidade internacional, fora da soberania de qualquer das partes. Segundo, os dois Estados deveriam formar uma união económica, assegurando a livre circulação de bens, serviços e pessoas.

    Foram precisamente estas duas cláusulas que Israel ignorou de imediato, lançando-se numa política de ocupação e exclusão. A criação de Israel foi, assim, desde o primeiro dia, não um simples “acto de independência”, mas uma operação de engenharia política global, sustentada pelo poder norte-americano e violando as próprias condições mínimas do plano da ONU.

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    Foto: D.R.

    A resolução da ONU, aprovada em Novembro de 1947, não trouxe paz mas guerra. Para os árabes da Palestina, que representavam dois terços da população e detinham a esmagadora maioria da terra, a partilha foi sentida como um assalto legalizado.

    Logo a seguir à votação, começaram os confrontos entre as comunidades. Milícias sionistas – Haganah, Irgun e Lehi – lançaram ofensivas contra aldeias árabes, não apenas em defesa das áreas atribuídas pelo plano, mas com o objectivo deliberado de expandir o território do futuro Estado judeu.

    O que se seguiu ficou para a história como Nakba, a catástrofe palestiniana. Entre 1947 e 1949, cerca de 750 mil árabes foram expulsos das suas casas, mais de 400 aldeias foram destruídas e a geografia da Palestina alterou-se de forma irreversível.

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    Foto: D.R.

    As expulsões não foram um “acidente da guerra”: documentos revelados décadas depois, mostram planos militares claros para “limpar” áreas inteiras de população árabe. Massacres como o de Deir Yassin espalharam o pânico, levando milhares de famílias a fugir.

    Quando, em Maio de 1948, Ben-Gurion declarou unilateralmente o nascimento do Estado de Israel, os exércitos árabes vizinhos entraram em território palestiniano. A versão oficial, repetida até hoje, descreve essa guerra como uma “invasão árabe” contra um jovem Estado que apenas se defendia.

    Mas a realidade é outra: todos os combates ocorreram em território árabe, e Israel aproveitou a guerra para conquistar áreas que a ONU tinha destinado ao futuro Estado palestiniano – partes da Galileia, Jaffa, Beersheba, e um corredor até Jerusalém ocidental.

    A couple of people that are hugging each other
    Foto: D.R.

    No final, o saldo era brutal: um Estado judeu consolidado sobre as ruínas de centenas de aldeias árabes, três quartos de milhão de refugiados expulsos ou impedidos de regressar, e uma minoria árabe que permaneceu dentro de Israel submetida a um regime militar durante quase duas décadas. Casas, terras, bancos e bens dos que fugiram foram imediatamente confiscados e entregues a novos colonos judeus. A limpeza étnica, negada durante anos, é hoje amplamente reconhecida até por historiadores israelitas.

    A história de Israel pós-1948 não foi de consolidação pacífica, mas de expansão permanente. O jovem Estado nunca se contentou com as fronteiras arrancadas pela guerra; via-se como uma potência regional em crescimento. Esse ímpeto encontrou uma oportunidade perfeita em 1956, quando o Reino Unido e a França procuravam derrubar Nasser, que acabara de nacionalizar o Canal de Suez. Para as velhas potências imperiais, a nacionalização era um insulto intolerável. Para Israel, era a ocasião para quebrar o Egipto e mostrar a sua utilidade como aliado do Ocidente.

    Foi assim que se formou uma aliança tripla: Israel invadiu o Sinai, enquanto britânicos e franceses simulavam intervir como “força de paz” para proteger o canal. Tudo foi preparado em segredo e lançado com a lógica do exército nazi: ataques de surpresa, avanço rápido, terror militar. Os mesmos governos ocidentais que durante a Segunda Guerra Mundial denunciaram as tácticas nazis de guerra-relâmpago agora aplaudiam a sua repetição, desde que praticada por Israel e seus aliados.

    aerial view of trees during daytime
    Foto: D.R.

    O resultado militar foi claro: Israel ocupou a Faixa de Gaza e o Sinai em poucos dias, provando a sua capacidade de agir como braço armado das velhas potências coloniais. Politicamente, porém, a aventura ruiu quando os Estados Unidos e a União Soviética se opuseram à agressão e forçaram a retirada. Mas a mensagem já estava dada: Israel tinha demonstrado que podia ser útil como parceiro militar de primeira linha contra regimes árabes nacionalistas. O “Estado jovem e frágil” de 1948 mostrava-se afinal como uma potência agressiva, plenamente inserida no jogo imperialista.

    Foi assim que em Junho de 1967, Israel lançou uma ofensiva fulminante contra o Egipto, a Jordânia e a Síria, conhecida como a Guerra dos Seis Dias. A narrativa oficial fala de uma guerra defensiva, quase milagrosa, em que o pequeno Estado sobreviveu a uma ameaça existencial. Mas os documentos e as próprias declarações de líderes israelitas da época revelam outra realidade: uma guerra premeditada, preparada durante meses e conduzida como ataque surpresa, com o objectivo de expandir fronteiras.

    Em apenas seis dias, Israel destruiu a aviação egípcia ainda no solo, avançou sobre o Sinai até ao Canal de Suez, ocupou Gaza, conquistou a Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e tomou os Montes Golã à Síria. Foi uma vitória militar esmagadora, mas também o início de uma ocupação que se prolonga até hoje. A partir daí, a “questão palestiniana” deixou de ser apenas a tragédia dos refugiados de 1948: passou a incluir milhões de pessoas a viver sob administração militar directa de Israel, sem direitos políticos, sem soberania e sob colonização acelerada.

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    Foto: D.R.

    O Ocidente aplaudiu a guerra como acto de autodefesa, quando todos os factos indicavam o contrário. Foi Israel quem disparou primeiro, foi Israel quem ocupou territórios alheios, foi Israel quem consolidou a sua posição como potência regional com a bênção implícita dos EUA. O resultado político foi a transformação do conflito num impasse permanente: refugiados que não regressam, territórios ocupados que não são devolvidos, uma população submetida a regras militares que se arrastam há mais de meio século.

    A Guerra dos Seis Dias marcou, assim, a transição de Israel de Estado nascido da limpeza étnica de 1948 para uma potência ocupante em sentido pleno, com o peso de uma ocupação colonial que não cessou. É também aqui que se começa a desenhar a aliança estratégica com os Estados Unidos: Washington descobre em Israel não apenas um parceiro ideológico, mas um activo militar indispensável no Médio Oriente.

    Se em 1948 a expulsão em massa criara centenas de milhares de refugiados, ainda existia a expectativa – reforçada por resoluções da ONU, como a Resolução 194 – de que os palestinianos pudessem regressar às suas casas. Mas, depois de 1967, essa porta fechou-se de forma quase absoluta. Israel consolidou-se como potência ocupante e, em vez de permitir o regresso dos expulsos, lançou uma política activa de colonização nos territórios conquistados.

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    Foto: D.R.

    As terras que pertenciam a palestinianos ausentes, já confiscadas desde Nakba, foram reafectadas para novos imigrantes judeus. Leis como a Absentees’ Property Law foram usadas para declarar as propriedades abandonadas “património do Estado”.

    Ao mesmo tempo, programas de colonização incentivaram famílias judias, muitas delas recém-chegadas da Europa ou dos Estados Unidos, a instalar-se em colonatos fortificados nos territórios ocupados. A ironia é cruel: o camponês palestiniano expulso de uma aldeia em 1948, e depois impedido de regressar em 1967, via as suas terras entregues a quem nunca tinha vivido nelas.

    O mesmo Estado que impedia o regresso de centenas de milhares de refugiados palestinianos oferecia incentivos fiscais, terrenos baratos e segurança militar a colonos judeus europeus. Era uma política deliberada, não de segurança, mas de engenharia demográfica, destinada a garantir uma maioria judaica irreversível e a fragmentar qualquer possibilidade de um Estado palestiniano viável.

    Detail of the Israeli national flag highlighting the Star of David, emphasizing its cultural significance.
    Foto: D.R.

    A consequência foi a criação de um duplo sistema jurídico: um para os colonos, cidadãos israelitas com todos os direitos políticos; outro para os palestinianos, submetidos a administração militar, sem direito de voto, sem acesso livre à terra, e frequentemente sujeitos a demolições e expropriações adicionais.

    A ocupação de 1967 não foi apenas uma questão militar: foi a transformação de milhões de pessoas em população subjugada, enquanto a sua terra ancestral era oferecida a estrangeiros em nome de um projecto colonial.

    A criação de Israel não foi o mito idílico de um povo que regressa pacificamente à sua terra ancestral. Foi, desde o primeiro instante, um acto político forçado pela pressão norte-americana na ONU, legitimado por promessas contraditórias das potências imperiais, e executado com armas na mão.

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    Foto: D.R.

    Entre 1947 e 1949, um terço da população transformou-se em dois terços, centenas de aldeias foram riscadas do mapa e três quartos de milhão de pessoas viraram refugiados permanentes. As casas, as terras e até as contas bancárias dos que fugiram foram confiscadas e entregues a recém-chegados.

    Israel nasceu não como um Estado partilhado, mas como um Estado exclusivo, erguido sobre a expulsão e o silenciamento do outro. Foi este o verdadeiro parto: uma operação de engenharia demográfica, baptizada na retórica de independência, mas sustentada pela violência e pela limpeza étnica.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • As outras vias judaicas esquecidas

    As outras vias judaicas esquecidas


    No final do século XIX, a Palestina fazia parte do Império Otomano. O quadro era simples: uma terra rural, com aldeias agrícolas espalhadas, onde viviam camponeses árabes que cultivavam a terra geração após geração. Nessas aldeias coexistiam comunidades muçulmanas, cristãs e também pequenas comunidades judaicas locais, com tradições próprias, enraizadas no mesmo espaço há séculos.

    Não havia “nação” no sentido moderno europeu. A ideia de Estado-nação, com bandeira, hino e fronteiras rígidas, era alheia àquela realidade. A identidade era outra: tribal, religiosa, comunitária.

    blue and white flag on pole

    As pessoas reconheciam-se pela aldeia, pela família alargada, pela pertença a uma comunidade de fé. O campesinato árabe, em particular, via-se antes de mais como parte de uma aldeia e de uma família, e não de um projecto político chamado “Palestina”. Era esse o mundo que existia antes da chegada das ideologias nacionalistas modernas – tanto o nacionalismo árabe como o sionismo europeu.

    Na Europa, o mundo judaico encontrava-se em convulsão. O anti-semitismo institucional, as perseguições violentas contra judeus no Império Russo e a exclusão social em praticamente toda a Europa central e oriental empurraram milhares de judeus para a mesma questão vital: como sobreviver colectivamente, como garantir a segurança, a dignidade e o futuro.

    Deste dilema nasceram várias respostas. O sionismo, hoje dominante na memória popular, foi apenas uma delas. A sua força esteve em oferecer uma ideia simples, quase redentora: a solução era criar um lar nacional na Palestina, a antiga Terra de Israel; no entanto, esta não foi a única proposta, nem sequer a mais evidente para muitos judeus da época. Havia alternativas concretas, mobilizando milhares de pessoas, que o discurso oficial tratou de apagar.

    a man with dreadlocks standing in front of an audience

    Um desses caminhos foi o Bund. Fundado em 1897 no Império Russo, no mesmo ano em que Theodor Herzl convocava o primeiro congresso sionista em Basileia, Suíça, o Bund partia de uma lógica totalmente distinta. Para os seus membros, não fazia qualquer sentido emigrar para a Palestina nem fundar um Estado separado. O essencial era lutar onde os judeus já estavam, como parte da classe trabalhadora.

    Reivindicava-se uma identidade judaica secular, cultural, enraizada na língua iídiche, e exigia-se autonomia cultural e direitos políticos nos países de residência. A estratégia não passava por fugir do anti-semitismo, mas enfrentá-lo com sindicatos, mobilização social e luta política. Aliás, o movimento Bund era profundamente anti-sionista: considerava o sionismo um projecto burguês, ilusório e até perigoso, porque desviava energias da verdadeira batalha no terreno.

    Outra corrente foi o Territorialismo. O raciocínio era pragmático: se o problema era a insegurança física, o que importava era encontrar um território suficiente para assentar judeus, fosse na Palestina ou noutro ponto do globo. Por essa razão, apareceram propostas como o Plano Uganda, em 1903, quando Theodor Herzl ainda aceitou a oferta britânica de uma área no Quénia, antes de ser rejeitado pelos seus próprios seguidores.

    Theodor Herzl (1860-1904), fundador do moderno sionismo político.

    Outros territorialistas exploraram hipóteses em África, na América Latina e até na Austrália. A ideia central era clara: a sobrevivência colectiva estava acima da geografia bíblica. Esta corrente perdeu espaço com o avanço do sionismo, mas, no início, teve um peso significativo e não era marginal.

    O sionismo, tal como Theodor Herzl o concebeu, era basicamente uma adaptação judaica do nacionalismo europeu moderno – promessa de um Estado com um governo institucionalizado, bandeira, sistema de leis, exército – tudo isso ancorado numa geografia que conferia legitimidade histórica e religiosa.

    Era um projecto secular e moderno, mais ligado à lógica de Estado-nação europeu do que ao modelo tradicional das comunidades religiosas judaicas. Faz parte da essência do Estado moderno deter o monopólio da força (polícia e exército) e o controlo exclusivo dos tribunais – é isso que Herzl antecipou quando propôs que o futuro Estado judaico tivesse instituições como tribunais, sistema legal próprio e instrumentos de poder político.

    silhouette photography of national flag

    Importa realçar o carácter colonizador da visão sionista: não se tratava de regressar a uma terra ancestral em comunhão com os seus habitantes, mas de fazê-lo como um povo europeu, com capital europeu, instituições europeias e, inevitavelmente, em confronto com as populações árabes que já ali viviam há séculos.

    Tudo isto prova que não havia consenso judaico em torno do sionismo. Muitos viam a ideia de um Estado nacional como uma aberração moderna ou até como uma heresia religiosa – só o Messias poderia restaurar Israel, diziam correntes ortodoxas.

    Outros acreditavam que o sionismo seria um desvio perigoso, uma aventura colonial condenada ao conflito. O que a história oficial simplificou como inevitável – a marcha linear até 1948 – foi, na verdade, um processo disputado, cheio de alternativas que foram derrotadas, abafadas ou esquecidas.

    Com o início da Grande Guerra, a Palestina ainda era otomana, mas o seu destino ia mudar radicalmente com este desastre. Para derrotar os turcos, Londres multiplicou promessas contraditórias.

    brown and green trees under blue sky during daytime

    Aos árabes, prometeu independência e unidade em troca da revolta contra os turcos. À França, prometeu dividir o Médio Oriente sob o Acordo Sykes–Picot. Em 1917, com a Declaração de Balfour, prometeu aos sionistas um “lar nacional” judeu na Palestina. Três compromissos incompatíveis, assumidos pela mesma potência, com a mesma ligeireza colonial de quem via povos inteiros como peças num tabuleiro imperial.

    Com a vitória dos aliados em 1918, com Londres do lado dos vencedores, o jogo fez–se sentir no terreno. A Palestina foi entregue à Grã–Bretanha como Mandato pela Liga das Nações. Não se tratava de governar temporariamente em benefício dos locais, como proclamava a retórica do presidente norte–americano Woodrow Wilson; tratava-se de legalizar a colonização judaica e manter controlo estratégico sobre a região.

    No Mandato Britânico, a administração não era neutra: criou as condições legais para que organizações sionistas comprassem grandes extensões de terra, frequentemente a proprietários ausentes – residiam em Istambul, Beirute, Damasco – ou latifundiários, usando títulos passados do domínio otomano.

    Tumultos palestinos em Jerusalém em 1929 causaram a fuga de judeus. Foto: DR

    Esses títulos muitas vezes não registavam os camponeses árabes que cultivavam aquela terra há séculosgente que nunca tivera um título formal, mas que vivia nela de geração em geração. Quando as organizações compradoras assumiam o título, muitos desses camponeses eram expulsos – não pelos antigos donos, mas pelo novo regime legal, com ordens oficiais ou com o apoio de polícias do Mandato.

    Em casos como o da família Sursock, dezenas de aldeias inteiras foram desapropriadas e despejos foram aplicados contra agricultores árabes, que em muitos casos receberam pouca ou nenhuma compensação.

    O resultado foi previsível: revoltas árabes, primeiro em 1920 e 1921, depois em 1929, e finalmente a grande insurreição de 1936–1939. Todas esmagadas com brutalidade pelo exército britânico, frequentemente em coordenação com as milícias judaicas como a Haganah.

    Os árabes, a quem fora prometida independência, viam-se agora governados por uma potência estrangeira que abria as portas à colonização europeia e reprimia violentamente qualquer contestação.

    Mulher judia e o filho chegam ao porto de Haifa, Palestina, 1947 — um dos muitos desembarques de refugiados após a Segunda Guerra Mundial, sob o bloqueio britânico à imigração judaica. Foto: National Army Museum (Londres).

    Enquanto isso, dentro do sionismo, surgiam correntes cada vez mais radicais. Vladimir Jabotinsky defendia um Estado judeu em ambos os lados do Jordão e apelava ao uso da força militar sem subterfúgios. O “revisionismo sionista” plantava as sementes do Irgun e do Lehi, grupos que recorreriam a terrorismo aberto, não só contra árabes mas também contra os próprios britânicos. Ao mesmo tempo, vozes judaicas que defendiam uma convivência binacional – como Martin Buber ou Judah Magnes, no movimento Ihud – eram marginalizadas, acusadas de traição, apagadas da narrativa dominante.

    Este era o cenário à beira da Segunda Guerra Mundial: uma Palestina já em ebulição, uma colonização em ritmo acelerado, uma potência imperial a usar o território como moeda de troca, e uma liderança sionista cada vez mais preparada para a via militar.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Estado da União das Repúblicas Socialistas Europeias (URSE)

    Estado da União das Repúblicas Socialistas Europeias (URSE)


    No ano passado, no Porto, a não eleita Ursula von der Leyen, a actual presidente da Comissão Europeia, discursava perante uma plateia obediente. O ambiente era cuidadosamente coreografado, como em todos os eventos do poder europeu; de repente, um manifestante a favor da Palestina ousou interromper. O que fez a senhora? Com a arrogância típica de quem nunca teve de responder a votos, atirou-lhe: “Se estivessem em Moscovo, estavam agora na prisão”.

    A frase saiu-lhe com a naturalidade de quem confunde liberdade com obediência e democracia com espectáculo. O mais irónico é que, nesse mesmo instante, quem estava a ser esmagado pela polícia portuguesa era o manifestante, não na Rússia, mas na cidade do Porto, sob as ordens de uma União Europeia que se autoproclama campeã da liberdade!

    O momento em que um manifestante é detido após interrupção do discurso de Von der Leyen no Porto. (6 de Junho de 2024) / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo da TVI / D.R.

    Na mesma altura, na Finlândia, repetia-se o mesmo número. Armando Mema, um político local de Nurmijärvi, interpelou von der Leyen durante a campanha para as eleições europeias. O tema era simples: questionar a dirigente não eleita sobre as suas políticas.

    O mesmo número: enquanto lhe dizia que tinha a sorte de viver na União Europeia, em que a liberdade de expressão é protegida, Mema era detido no local, multado e advertido de que seria preso novamente caso ousasse repetir o atrevimento de falar em público. Hoje, enfrenta julgamento em Helsínquia, acusado do crime de “desobediência a um funcionário público”.

    Estas duas cenas – Porto e Helsínquia – são perfeitas para compreender a União Europeia em que a nossa classe política nos meteu ao longo de 50 anos. Trocaram soberania por sinecuras, autonomia por subsídios, liberdade por regulação, tudo embrulhado na linguagem piedosa do “projecto europeu”.

    Von der Leyen ao lado de Luís Montenegro numa acção de campanha, no Porto. / Foto: D.R.

    O resultado é hoje inescapável: a União Europeia tornou-se uma organização directamente descendente da extinta União Soviética. Um corpo burocrático sem escrutínio, governado por dirigentes não eleitos, que multiplica reguladores como coelhos e legisla sobre tudo o que mexe. O seu objectivo é claro: destruir liberdades individuais e reduzir-nos a vassalos.

    Comecemos pela legislação já em vigor: o chamado Regulamento Europeu relativo à Liberdade dos Meios de Comunicação Social. O nome é, por si só, uma fraude. Sempre que o poder fala em “liberdade”, trata-se de um eufemismo para controlo. Tal como os partidos comunistas invocavam o “bem-comum” para justificar os campos de concentração, hoje, Bruxelas invoca a “liberdade” para erguer uma rede de vigilância e censura.

    O artigo 4.º, apesar de aparentar proteger as fontes jornalísticas, proibindo buscas e detenções, abre a porta a excepções, em nome de “razões imperiosas de interesse público”. Ninguém sabe o que isto significa; é precisamente por isso que serve para tudo. O mesmo artigo autoriza a instalação de spyware em telemóveis, desde que haja crimes puníveis até cinco anos de prisão. O que impede que amanhã um jornalista crítico seja vigiado em nome da “segurança pública”? Nada. É o método clássico: proclama-se a liberdade na regra e destrói-se a liberdade na excepção.

    Cctv camera is mounted on a red wall.

    O artigo 7.º concede aos reguladores o poder de exigir informações não apenas às empresas visadas, mas a “qualquer outra pessoa” que possua dados relevantes. Traduzido: um profissional liberal, um fornecedor de vídeos, ou uma agência de publicidade podem ser coagidos a entregar ficheiros internos para alimentar investigações políticas. É a infiltração difusa do Estado em todo o ecossistema mediático.

    O artigo 14.º introduz a “cooperação acelerada” entre reguladores de diferentes países. Em 14 dias, uma página web acusada de “prejudicar a segurança pública” num determinado Estado pode ser silenciado em toda a União. Conceitos vagos como “risco grave” bastam para justificar reacções em cadeia. Num exemplo prático: um jornal cobre protestos públicos e é acusado de instigar a violência. Em duas semanas, as autoridades de vários países podem coordenar a sua limitação. Tudo legal, tudo em nome da “liberdade”.

    O artigo 17.º cria um mecanismo para restringir os meios de comunicação social “provenientes de fora da União”. Basta dois Estados-Membros considerarem que um serviço “prejudica a segurança pública”. Desta forma, abre-se a porta para banir canais estrangeiros incómodos, rotulando-os de propaganda – não é novidade, já o fizeram com vários canais informativos russos. Em suma: a União Europeia acusa outros de censura enquanto ergue os seus próprios muros informativos.

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    Foto: D.R.

    O artigo 18.º institucionaliza o rótulo de “imprensa reconhecida” para redes sociais. Quem não aderir a códigos aprovados pelo poder político ficará sem prioridade nas plataformas. É um sistema de castas: propaganda oficial com privilégios, imprensa independente condenada à invisibilidade.

    Os artigos 22.º e 23.º vão ainda mais longe: permitem travar fusões de jornais e rádios não apenas com base em critérios económicos, mas na “influência sobre a opinião pública”. Imaginemos dois jornais regionais a tentarem sobreviver fundindo-se. O regulador pode bloquear a operação por considerar que “influenciam demasiado” os leitores locais. Eis a arrogância: decidir até que ponto os cidadãos podem ou não ser expostos a determinadas opiniões!

    Tudo isto, reparem, é vendido sob o rótulo de “pluralismo e liberdade”! Mas a realidade é o exacto oposto: centralização, vigilância e censura. A União Europeia comporta-se como uma União Soviética digital, mas com legislação “bem desenhada”, repleta de palavras pomposas e bonitas!

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    Foto: D.R.

    Como se não bastasse, prepara-se agora uma legislação ainda mais intrusiva: o Regulamento para prevenir e combater o abuso sexual de crianças. Ninguém ousará levantar-se contra, porque, quem o fizer, será acusado de não querer proteger crianças inocentes. É precisamente esta chantagem moral que dá força ao projecto.

    Os artigos 7.º a 10.º obrigam as plataformas de mensagens a detectar automaticamente conteúdos suspeitos em comunicações privadas. Não interessa se a conversa decorre no WhatsApp, no Signal ou no Telegram. Mesmo que esteja encriptada de ponta a ponta, será digitalizada no dispositivo do utilizador, antes da encriptação. Chamam a isto “client-side scanning”.

    Traduzido: cada telemóvel e computador terão dentro de si um agente invisível, a vigiar todas as mensagens. É o equivalente digital a colocar um polícia sentado à mesa de cada jantar entre dois amigos.

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    Foto: D.R.

    As plataformas, por sua vez, ficam obrigadas a informar automaticamente as autoridades de tudo o que o algoritmo possa assinalar como suspeito. O risco de falsos positivos é gigantesco. Uma fotografia de família, uma piada privada ou um ficheiro mal interpretado podem cair numa base de dados. Imaginemos um pai a enviar ao pediatra uma foto do filho nu na banheira para avaliar uma erupção cutânea. No dia seguinte, pode ter a polícia à porta.

    O artigo 11.º dá poderes extraordinários às autoridades nacionais: ordens directas às plataformas para aceder a comunicações privadas, sob pena de banimento do mercado europeu! A presunção de inocência desaparece. Todos somos suspeitos até prova em contrário!

    O artigo 34.º prevê sanções “eficazes e dissuasivas” para empresas que não cumprirem. Isto significa que qualquer aplicação de mensagens terá de instalar portas traseiras ou desaparecer da Europa. O Signal já anunciou que preferirá abandonar o continente a trair os seus utilizadores. Se esta lei avançar, a União Europeia será pioneira na destruição da encriptação global.

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    As consequências vão muito além da Europa. Como a União é um dos maiores mercados digitais, a sua legislação exporta-se por osmose. Regimes autoritários poderão apontar para Bruxelas e dizer: “Se a Europa o faz, porque não nós?” A desculpa será sempre a mesma: “é para proteger as crianças”.

    A técnica é sempre a mesma. Fala-se de liberdade para retirar liberdade. Fala-se de segurança para justificar vigilância. Fala-se de proteger as crianças para vigiar os adultos. É a linguagem dupla do totalitarismo. As palavras significam o contrário do que dizem.

    Von der Leyen proclama liberdade de expressão enquanto manda prender quem a questiona. A Comissão Europeia fala em “pluralismo” enquanto cria mecanismos para banir vozes incómodas. Agora invoca a infância para obrigar todos os cidadãos a aceitarem espiões digitais nos seus telefones.

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    A Europa tornou-se um laboratório do autoritarismo. O seu escol fala de democracia, mas nunca se submete a votos. Criam reguladores independentes, mas todos dependem do poder central. Redigem relatórios cheios de boas intenções, mas todos escondem a mesma obsessão: controlar, vigiar, domesticar.

    A pessoa comum é hoje tratada como um inimigo em potência. Cada correio electrónico pode esconder terrorismo. Cada fotografia pode esconder abuso. Cada opinião pode ameaçar a segurança pública. A lógica é clara: todos são culpados até prova em contrário. O Estado, que deveria ser limitado e vigiado, transforma-se no vigilante absoluto, e o indivíduo, que deveria ser soberano, reduz-se a um ficheiro na polícia.

    Eis o futuro que nos impõem: jornalistas perseguidos em nome do “interesse público”; manifestantes presos em nome da “segurança”; cidadãos vigiados em nome da “protecção das crianças”. Tudo legal, tudo regulamentado, tudo aprovado por parlamentos onde quase ninguém lê as leis que vota.

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    Foto: D.R.

    A União Europeia não é hoje uma união de povos e estados livres, mas uma máquina burocrática a caminho do totalitarismo digital. Tal como a União Soviética, que se desmoronou pelo peso da sua mentira, também esta “união” irá afundar-se. Mas, até lá, quantas liberdades serão esmagadas? Quantas vidas serão destruídas por acusações algorítmicas? Quantos cidadãos verão a sua intimidade devassada por regulamentos redigidos em Bruxelas?

    Ano passado, no Porto e em Helsínquia, foi possível conhecer melhor a verdadeira Europa: arrogância, hipocrisia e repressão. As novas leis mostram para onde está a caminhar: vigilância total, suspeição permanente e censura institucionalizada. É hora de dizer sem medo: não, isto não é liberdade. É a mais perigosa forma de tirania — aquela que se apresenta como virtude.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros

    Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros


    Quinze mortos, dezenas de feridos, turistas em pânico, comércio local paralisado. Lisboa está de luto, e por mais do que um dia. O descarrilamento do Elevador da Glória não foi um acidente no sentido puro da palavra. Foi uma tragédia anunciada, consequência directa da irresponsabilidade estatal, do desleixo burocrático e da lógica perversa de um sistema que vive do assalto ao contribuinte e nunca presta contas.

    Desde finais de Agosto que o contrato de manutenção e segurança caducara. Não havia substituto, não houve sequer um ajuste directo para garantir serviços mínimos. O funicular histórico, símbolo da cidade, circulava sem cobertura contratual de manutenção quando o cabo de sustentação partiu. A carnificina não foi uma surpresa: foi a consequência inevitável de um Estado que funciona sem responsabilidade real.

    A história desta tragédia começa em 2017, quando a Carris foi municipalizada e transferida do Estado central para a Câmara de Lisboa. O discurso foi o habitual: proximidade, gestão de proximidade, mais controlo democrático. Na prática, significou apenas que a Câmara passou a usar a empresa como um instrumento político e como sorvedouro de fundos.

    Em 2022, o globalista Carlos Moedas nomeou Pedro Bogas presidente da Carris. Nesse mesmo ano, a manutenção dos elevadores históricos foi externalizada para a empresa MAIN – Maintenance Engineering, através de concurso público. O trabalho passou a ser feito por subcontratação, afastando os trabalhadores internos que conheciam as máquinas e que sempre tinham garantido a sua manutenção.

    Dois anos depois, em 2024, realizou–se a última grande intervenção. Os trabalhadores continuaram a alertar para falhas, denunciaram problemas nos cabos de sustentação, pediram que a manutenção regressasse a casa. Foram ignorados. A 31 de Agosto de 2025 caducou o contrato. Não havia manutenção, não havia segurança. Três dias depois, o Elevador da Glória despenhou–se.

    Contudo, nada mudará. A Carris não é uma empresa privada sujeita ao veredicto do mercado. É uma vaca sagrada do poder político. Desde 2017 é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Em termos claros, o “dono” político da tragédia chama–se Carlos Moedas. Mas esse não sofrerá consequência alguma. Nenhum gestor público verá a sua carreira destruída, nenhum administrador perderá a casa para pagar indemnizações, nenhum político responderá em tribunal até ao fim da sua vida. O contribuinte, o assaltado, sempre ele, pagará a conta.

    Os números não deixam margem para dúvidas. A Carris recebe todos os anos cerca de trinta milhões de euros em subsídios à exploração. Entre 2020 e 2024, só para tapar o buraco estrutural da operação, foram quase cento e cinquenta milhões extorquidos aos residentes em Lisboa. A isto somam–se cento e quarenta e três milhões em subsídios ao investimento para frota e infra–estruturas, canalizados por fundos europeus e pelo Orçamento de Estado. Ao todo, quase trezentos milhões de euros em cinco anos. Dinheiro em catadupa, mas que não chegou para garantir a manutenção mínima de um funicular centenário.

    Aqui reside a diferença fundamental entre um accionista privado e um “accionista público” como a Câmara Municipal de Lisboa. O privado vive sob a disciplina férrea do mercado. Se um operador privado permitisse a morte de quinze pessoas por negligência, seria imediatamente arrasado pelo risco reputacional.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    Os turistas e residentes deixariam de usar os seus serviços. As indemnizações civis seriam devastadoras, as seguradoras rescindiriam contratos, a falência seria inevitável. O accionista privado veria a sua fortuna arruinada, passaria os próximos anos nos tribunais, perseguido até ao fim da vida por processos judiciais e execuções patrimoniais. É essa a lógica saudável do mercado: quem falha paga, e paga caro.

    O “accionista público”, pelo contrário, é imune. A Câmara Municipal de Lisboa não enfrenta risco reputacional: não há concorrência, não há alternativa. O “cliente” é obrigado a usar o serviço subsidiado, e a conta é paga por todos através dos impostos – um eufemismo para designar um assalto.

    As indemnizações não saem do bolso dos administradores nem dos políticos: saem do bolso do contribuinte. O desastre não significa falência, significa mais impostos, mais subsídios, mais inquéritos que nunca dão em nada.

    Conselho de Administração da Carris.

    O presidente da Câmara aparece agora nas televisões com ar compungido, mas são lágrimas de crocodilo. Hoje chora frente às câmaras, amanhã já estará a procurar a próxima inauguração, a próxima fotografia, o próximo vídeo nas redes sociais, para se promover. Trabalhar, resolver, assumir responsabilidades não é com ele.

    É um indivíduo que vive do saque e precisa de garantir os próximos quatro anos de carreira. Pedro Bogas continuará a dormir como um bebé de um ano, os administradores da Carris prosseguirão as suas carreiras douradas, e o ciclo recomeçará. A irresponsabilidade não tem preço para quem manda, porque o preço é sempre empurrado para os bolsos dos contribuintes – os eternos assaltados.

    O cinismo é total. Depois da tragédia, alguém teve a ousadia de declarar que “os protocolos foram cumpridos”, quando na prática não havia protocolos em vigor desde o primeiro de Setembro. Eis a lógica degenerada da gestão pública: proteger-se com burocracia enquanto corpos jazem no chão.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

    Os trabalhadores tinham avisado que a manutenção externalizada em 2022 não tinha o rigor da realizada internamente. Tinham alertado para os cabos de sustentação. Tinham exigido que a Carris reassumisse o controlo técnico. Foram ignorados; no fim, a narrativa oficial é a de que “tudo estava em ordem”.

    Não nos iludamos também quanto aos sindicatos, que se apresentam agora como voz da moralidade. Os sindicatos não são santos: são cartéis de trabalhadores com poder legal, capazes de impor condições de exclusividade salarial ou de protecção profissional, mesmo a quem não está sindicalizado. Ao contrário do empresário privado, que só sobrevive se alguém comprar voluntariamente o seu produto ou serviço, o sindicato usa a arma da lei para forçar terceiros. É a perversão legal transformada em regra.

    people riding yellow tram on road near building during daytime

    Este desastre é a metáfora perfeita do funcionamento do Estado. O Estado não presta contas. O Estado não assume riscos. O Estado não responde às vítimas. No privado, o erro significa falência. No público, o erro traduz-se em mais impostos. Cada tragédia é convertida em argumento para reforçar orçamentos, pedir mais dinheiro, alargar a eterna roubalheira. A disciplina do mercado castiga o erro; o regime estatal recompensa-o.

    Lisboa está de luto, mas devia estar furiosa. Furiosa com um presidente da Câmara que é o responsável político máximo e que continuará intocável. Furiosa com uma empresa que em cinco anos devorou trezentos milhões de euros e não assegurou a manutenção mínima de um símbolo da cidade. Furiosa com um sistema que rapina os contribuintes e devolve cadáveres. Furiosa com a mentira de que “o público é de todos”, quando na realidade não é de ninguém.

    Há ainda as externalidades negativas que ninguém contabiliza. O turismo em Lisboa sofrerá inevitavelmente com este desastre. Quem confiará a vida a uma cidade que deixa descarrilar um funicular? Os negócios em redor do Elevador da Glória verão menos clientes, menos movimento, menos receitas.

    houses near sea

    Em qualquer mercado livre, esses negócios processariam a empresa responsável por negligência, reclamando indemnizações pelos danos sofridos. Aqui, não. Aqui o prejuízo espalha-se, os danos diluem-se, e a factura regressa sempre ao contribuinte.

    A tragédia do Elevador da Glória não foi apenas um acidente. Foi o Estado em funcionamento puro: rios de dinheiro, incentivos perversos, sindicatos cartelizados, manutenção cancelada, protocolos inexistentes e responsabilidades nulas. A máquina política já trabalha para transformar a morte de quinze pessoas em mais um álibi para reforçar o orçamento. Os contribuintes, os eternos confiscados, lá estarão outra vez a pagar tudo. Mas tenhamos esperança: o governo já declarou um dia de luto nacional.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Anti-comuns? A verdadeira tragédia da floresta é o Estado

    Anti-comuns? A verdadeira tragédia da floresta é o Estado


    Há textos que, pela sua soberba tecnocrática e pelo desprezo da liberdade e pela propriedade alheia, exigem resposta imediata. O artigo do meu amigo Pedro Almeida Vieira (PAV), publicado há dias no PÁGINA UM, é um desses casos: um compêndio de delírios estatistas mascarados de ciência, que não pode ficar sem contraditório.

    Desta feita, à boleia dos incêndios devastadores do Verão, PAV veio introduzir ao leitor o conceito de “tragédia dos anti-comuns”. Como quem descobre a solução para os males do mundo rural, PAV sustenta que a culpa é da propriedade demasiado fragmentada, do excesso de donos, da falta de uma entidade central que coordene e ordene. Tudo isto é uma meia-verdade. Como toda a meia-verdade, é mais perigosa do que a mentira.

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    Foto: D.R.

    A floresta portuguesa vive, de facto, prisioneira. Mas não da multipropriedade: vive presa num emaranhado legal, fiscal e administrativo imposto pelo Estado. Imaginemos um terreno no interior, herdado por uma família numerosa. Ao fim de três ou quatro gerações, tem 48 herdeiros espalhados pelo mundo. Uns morreram, outros emigraram, muitos nem sabem que herdaram. Cada decisão exige consenso, cada gesto implica certidões, registos, deslocações, escrituras, impostos.

    Resultado: ninguém limpa, ninguém investe, o terreno arde; e porquê? Porque o Estado impossibilita a privatização efectiva, dificulta a unificação da posse, penaliza a transmissão e mata o incentivo. Depois aponta o dedo: vejam, os privados não cuidam do que é seu!

    O problema é exactamente o inverso do que PAV sugere. Não é a ausência de Estado que paralisa a floresta, é a sua presença excessiva, desordenada e coerciva. O Estado impede que o mercado funcione. Impede que o proprietário adapte a terra às preferências do consumidor. Impede que um terreno rústico se transforme num parque de autocaravanas ou num projecto de turismo rural.

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    Foto: D.R.

    O uso do solo está congelado nos PDMs, nos pareceres vinculativos de trinta organismos, nas áreas de REN e RAN, nos artigos obscuros dos regulamentos municipais. Cada tentativa de mudança é um calvário de requerimentos, estudos, pareceres, taxas, impostos e indefinições. Mesmo o uso agrícola é entravado: uma cultura nova, uma vedação, um furo, exigem mais licenças, mais papel, mais tempo perdido.

    Comecemos por onde tudo deveria começar: no registo da propriedade. Em Portugal, uma parte substancial do território rural permanece por regularizar no Registo Predial. Muitos terrenos continuam em nome de pessoas falecidas há décadas. Para formalizar a transmissão, os herdeiros precisam de certidões de óbito, habilitações de herdeiros, reconhecimento notarial, pagamento de imposto do selo (a 10% para familiares fora da linha directa), deslocações a várias conservatórias e um sem-número de registos.

    Quando são dezenas os herdeiros, muitos emigrados ou desconhecidos, o processo torna-se inválido de facto: o terreno fica num limbo legal. Nenhum dos herdeiros pode vender, investir, limpar ou explorar sem consenso. Nem sequer podem receber fundos europeus para limpeza ou reflorestamento. O Estado, com a sua estrutura medieval, impede a regularização mais elementar da propriedade.

    brown wooden fence on green grass field during daytime
    Foto: D.R.

    E se, por milagre ou teimosia, o proprietário conseguir regularizar a situação, entra na segunda fase do jogo: a luta contra o PDM. O Plano Director Municipal é o Livro Sagrado do urbanismo centralizado. Nele, cada centímetro tem o seu destino gravado em pedra: rústico, florestal, urbano, urbanizável, protegido, condicionado, interdito.

    Se o proprietário quiser transformar um terreno em algo diferente do que consta no plano – por exemplo, numa pequena casa em madeira, num armazém agrícola ou num miradouro – tem de pedir uma alteração. Mas não se entusiasme: vai precisar de um arquitecto, um topógrafo, um advogado, dezenas de pareceres de entidades públicas, paciência infinita e uma fé inabalável na santidade do papel timbrado. No final, pode sempre receber uma resposta negativa por “incompatibilidade com a paisagem”.

    Na prática, o Estado bloqueia tudo. Quer construir uma pequena estufa de cogumelos? Precisa de licença. Quer abrir um caminho no seu terreno? Precisa de autorização. Quer colocar painéis solares? Cuidado, pode alterar o “carácter do solo”. Quer vedar a propriedade? Tenha atenção à fauna silvestre. Cada passo é vigiado por burocratas. Depois, claro, vem o diagnóstico solene: os privados não cuidam da floresta!

    stack of books on table
    Foto: D.R.

    PAV tem razão numa coisa: há abandono. Mas esse abandono é filho directo do estatismo. Os proprietários não abandonaram porque são incultos ou preguiçosos, abandonaram porque o Estado tornou a propriedade impraticável.

    Para justificar essa asfixia, PAV recorre ao segundo dogma da madraça estatal: os bens públicos. O ar limpo, a água e a biodiversidade são “externalidades” que justificam, segundo ele, que a propriedade florestal passe a ser tratada como coisa pública. Falácia.

    O conceito de bem público tem definição precisa: não-rivalidade e não-exclusão. O facto de haver efeitos positivos para terceiros não transforma um bem privado em público. Um pomar que atrai abelhas ou uma estância turística que atrai visitantes também geram externalidades; nem por isso são nacionalizados. Convém dizê-lo sem rodeios: mesmo esta definição académica de bem público serve, quase sempre, para legitimar a existência do bandido estacionário, isto é, do Estado que se apropria da riqueza alheia sob pretexto de ciência económica. A teoria dos bens públicos, tão repetida em manuais e cátedras, é apenas mais uma falácia disfarçada de rigor científico para justificar a expansão da máquina estatal e o confisco permanente da propriedade privada.

    a bird is sitting on the roof of a house
    Foto: D.R.

    A confusão entre externalidade e bem público é ideológica, não conceptual. Serve apenas para legitimar a usurpação da propriedade privada. Se o Estado quer que os proprietários produzam ar limpo e biodiversidade, que pague. Ou melhor: que saia do caminho. Que permita o livre uso, que devolva a liberdade de iniciativa, que torne possível o investimento e a adaptação ao mercado. A floresta não precisa de mais planos, precisa de menos Estado.

    Mas PAV quer um plano. Que plano! Um Sistema de Gestão de Espaços Florestais, com equipas públicas, mandatos, vigilantes, limpeza forçada, actuação em propriedade privada, tudo “grátis” para o proprietário, claro. Porque há sempre um “interesse colectivo” que justifica tudo.

    Tal como nas distopias planificadas, PAV propõe um modelo “simples”, “total”, “perfeito”, que só falha porque a população do interior insiste em existir. Tudo com um preço: 1,1 mil milhões de euros por ano. PAV, não contente com os 133 mil milhões que já nos extorquem anualmente, deseja mais um assalto, desta vez para contratar sapadores e vigilantes que vão limpar mato e vigiar o que não lhes pertence!

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    Foto: D.R.

    Como todo o bom planeador central, PAV até já sabe o que os consumidores querem, o que os proprietários pensam e quanto todos estariam dispostos a pagar. Na sua cabeça iluminada não há incerteza, não há preferências subjectivas diversas, não há mercado.

    PAV decide que projectos fariam sentido – turismo rural, parques, segundas residências, talvez centros de interpretação da paisagem, ou mesma nada, na prática, tudo verde para PAV passear e contemplar a paisagem todos os anos – e define de antemão receitas e custos, como se a vida económica fosse um quadro de uma folha de cálculo do seu computador.

    A pretensão de conhecimento é tamanha que faria corar qualquer burocrata soviético. É esse delírio planificador, arrogante e ignorante da realidade, que se apresenta como a solução milagrosa para a floresta portuguesa. Como ninguém viu isso até hoje! Bastaria seguir o plano miraculoso de PAV.

    macro shot photography of tree during daytime
    Foto: D.R.

    Na sua lógica estatista, os proprietários são vistos como empecilhos, incapazes, sujeitos a tutela. Não têm liberdade de usar, mas têm deveres de limpar. Não podem construir, mas podem ser expropriados na prática. Tudo isto porque PAV imagina que sabe o que é melhor para todos: que culturas plantar, que caminhos abrir, que rendimentos gerar. Nesse plano, uma vez mais, dá um papel de liderança ao bandido estacionário, o mesmo que não consegue sequer gerir o SNS, o sistema educativo ou os tribunais é, segundo PAV, agora capaz de gerir 6 milhões de hectares de floresta.

    PAV aparece como o perfeito exemplar do urbano iluminado, sentado diante do seu computador em Lisboa, a desenhar planos para a propriedade alheia. Os “outros”, aqueles a quem se refere, não são académicos abonados nem jornalistas: são pobres, gente envelhecida, que muitas vezes mal têm dinheiro para medicamentos ou para reparar o telhado.

    A esses, PAV exige que aceitem o confisco tácito da sua terra, que suportem a colectivização dos custos de vigiar e combater incêndios, tudo em nome de um “interesse colectivo” convenientemente definido por quem vive longe do problema. O objectivo oculto é simples: garantir que, quando visita o interior uma vez por ano, possa contemplar a paisagem idílica que exige que os pobres mantenham para seu deleite estético. Os pobres sacrificam-se, o Estado assalta a favor dos plutocratas da economia do fogo, os iluminados aplaudem – e tudo em nome da ciência e do “bem público”.

    A floresta portuguesa não precisa de mais Estado, precisa de mais liberdade. Precisa de proprietários com poder de decidir, investir, inovar e colher os frutos ou os prejuízos das suas decisões. Precisa de mercado, preços, responsabilidade e propriedade plena.

    green plant on persons hand
    Foto: D.R.

    Precisa de um Estado que registe rapidamente, que permita mudar o uso da terra conforme as preferências e necessidades dos indivíduos, e que depois se limite a garantir que os direitos de propriedade sejam respeitados e protegidos.

    O resto, deixem para quem sabe: os que vivem da terra, e não os que vivem de planear sobre a propriedade que não lhes pertence. Qualquer solução que não passe por aqui é apenas mais uma cortina de fumo a esconder o verdadeiro incendiário: o Estado.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As falhas de mercado: outra mentira do nosso tempo

    As falhas de mercado: outra mentira do nosso tempo


    Há décadas que as chamadas “falhas de mercado” são o álibi técnico e académico para justificar toda a sorte de intromissões do Estado na vida económica. A sua repetição exaustiva nos manuais universitários serve para gerar a ilusão de que o mercado livre é instável, injusto, desequilibrado e, acima de tudo, incapaz de funcionar sem o amparo das estruturas regulatórias. Uma mentira repetida até parecer ciência.

    Mas, sob o escrutínio lógico, esta teoria desaba. As “falhas de mercado” não resultam de qualquer cálculo, unidade ou medida real. São artefactos normativos, formulações morais disfarçadas de análises económicas. São, na melhor das hipóteses, juízos subjectivos; na pior, engenharia social.

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    Foto: D.R.

    Diz-se que há externalidades sempre que uma acção afecta terceiros que não participaram na decisão — como a poluição de uma fábrica que atravessa a propriedade alheia, ou o perfume de um jardim que embeleza a rua. Se o efeito for negativo, alega-se que há “falha de mercado” que exige intervenção.

    Mas o que está aqui em causa não é uma falha de mercado: é uma questão jurídica de direitos de propriedade. Se alguém emite poluentes sobre a casa de alguém sem consentimento, isso é uma agressão, e deve ser tratado como tal. Não precisamos de um comité de peritos para avaliar “efeitos colaterais” — precisamos de tribunais que protejam a propriedade e responsabilizem os agressores.

    Já as chamadas externalidades positivas — como uma linha de metro construída pelo Estado, que alegadamente valoriza os prédios adjacentes — são irrelevantes do ponto de vista económico: se os beneficiários não estão dispostos a pagar voluntariamente por esse benefício, então não há transacção, nem preço, nem escassez. Impor-lhes uma “compensação” via imposto é declarar que qualquer valor subjectivo sentido por um terceiro já constitui título legítimo sobre a carteira alheia.

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    Foto: D.R.

    Mais grave ainda: quando se alega que o benefício é menor que o prejuízo, ou vice-versa, surge a pergunta inevitável — medido em quê? Quilogramas de bem-estar? Litros de prejuízo social? É uma acrobacia sem rede: querem intervir num processo voluntário, invocando desequilíbrios que não sabem medir, sobre preferências que não conhecem, com base em valores que não partilham. Não há aqui “falha” alguma.

    O segundo cavalo de batalha é o dos “bens públicos” definidos como não-excludentes e não-rivais — como o farol, a segurança ou a iluminação da rua. Como ninguém pode ser impedido de beneficiar deles, dizem, ninguém quer pagá-los voluntariamente. Logo, conclui-se que o Estado deve fornecê-los compulsivamente.

    Mas este raciocínio é duplamente falacioso. Primeiro, porque parte do pressuposto de que não pagar é igual a não valorizar. Segundo, porque ignora que a possibilidade de não-exclusão é uma decisão jurídica e tecnológica, e não uma propriedade ontológica do bem.

    Historicamente, faróis foram financiados por portos privados. Segurança pode ser contratada por condomínios, bairros, empresas e indivíduos. A iluminação pode ser ligada a quotas, consumo ou subscrição. A categoria de “bem público” serve apenas para legitimar a colectivização coerciva daquilo que o mercado livre não fornece — e que, justamente por isso, não deveria ser fornecido à força.

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    Foto: D.R.

    O conceito de “monopólio” transformou-se numa arma ideológica. Sempre que uma empresa domina um mercado, ou cobra um preço considerado “excessivo”, ou tem uma marca forte, é imediatamente acusada de prática monopolista.

    Exige-se então a intervenção do Estado para “restaurar a concorrência”. Mas esta é uma inversão completa da lógica económica. O verdadeiro monopólio é imposto pelo Estado, pela força, através de barreiras legais à entrada. No mercado livre, qualquer posição dominante está sempre vulnerável à concorrência potencial — que, por si só, é um freio poderoso.

    Quanto ao “preço abusivo”? Para quem? Medido segundo que critério? Um preço é abusivo apenas aos olhos de quem não quer pagar por ele — o que é uma preferência, não uma norma universal. O mercado não cria monopólios. O Estado é o único fabricante legítimo desse artefacto jurídico.

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    Foto: D.R.

    Alegam os economistas defensores da intervenção pública que o mercado falha quando uma das partes sabe mais do que a outra — como o vendedor de um carro usado que conhece defeitos ocultos. Mas isto é precisamente o que torna o mercado possível. Toda acção humana envolve informação assimétrica. É porque os actores valorizam os bens de modo diferente, e conhecem realidades distintas, que ocorre a troca.

    Além disso, o mercado já desenvolveu os seus próprios mecanismos para lidar com esse fenómeno: reputação, garantias, certificações, avaliações por terceiros, sistemas de classificação, concorrência. Nenhuma comissão estatal pode replicar, com semelhante eficiência dinâmica, o sistema espontâneo criado por milhões de trocas livres.

    Alguns académicos defendem que os indivíduos são “míopes”: preferem consumir hoje e poupar menos do que deveriam. Com base nisso, o Estado deveria corrigir a “irracionalidade” dos agentes, forçando-lhes hábitos virtuosos — seja em pensões, seguros ou saúde.

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    Foto: D.R.

    Este argumento não é económico. É moral e paternalista. A economia não tem meios para declarar que uma preferência é inferior a outra. Se alguém prefere fumar a poupar, comer a investir, isso não é irracional — é simplesmente a sua escala de valores subjectiva. O planeador que impõe a “racionalidade” por decreto está apenas a substituir os fins dos indivíduos pelos seus próprios. É a imposição da razão iluminada sobre os instintos naturais. Uma tentativa de estatizar a alma.

    Afirmam os teóricos da redistribuição que o mercado, ao permitir a acumulação, gera desigualdade; que essa desigualdade é socialmente nociva, injusta e indesejável. Concluem, como sempre, que cabe ao Estado redistribuir rendimentos para restaurar o equilíbrio.

    Mas a teoria do valor económico nada tem a dizer sobre a “justiça distributiva”. O mercado não distribui: remunera conforme a avaliação dos consumidores, em trocas voluntárias. A única justiça aplicável é a da propriedade legítima e da ausência de coacção. Querer redistribuir a riqueza sem redistribuir o mérito é confundir matemática com moral. A inveja não é base para a política económica. É apenas a degradação da justiça pelo ressentimento.

    man in black jacket walking on pedestrian lane during daytime
    Foto: D.R.

    Outra acusação é que o mercado fornece pouco daquilo que “as pessoas deveriam consumir mais” — como livros, museus ou teatros — e demasiado daquilo que “deveriam evitar” — como álcool ou comida rápida. O remédio? Subsidiar os bens virtuosos e taxar os vícios. Esta é, de novo, uma imposição moral mascarada de ciência. Se o indivíduo não quer consumir determinado bem, isso é sinal de que não o valoriza. Obrigar a consumi-lo, ou a financiá-lo, é tratar o cidadão como uma criança estúpida — ou pior, como um animal a ser treinado.

    A teoria do “bem meritório” é a mais perigosa de todas: é a base para a censura, a propaganda, a escola obrigatória, a saúde compulsória, a virtude estatal. É a estatização da consciência.

    Alguns defendem que o mercado não consegue coordenar sectores complexos, como transportes, energia ou comunicações, e que, por isso, o planeamento estatal é indispensável. Mas a história revela o oposto: os sistemas mais complexos — como o abastecimento alimentar ou a Internet — são fruto da acção descentralizada.

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    Foto: D.R.

    O mercado coordena não por decreto, mas por sinal: o preço e o lucro. É o preço e os lucros que transmitem informação dispersa, agregada e actualizada sobre escassez, procura, oportunidade e preferência. Os planeadores centrais, por sua vez, navegam às cegas, alheios à preferência individual e à realidade do tempo. O mercado é ordem espontânea. O Estado é caos planificado.

    Argumenta-se que, por não conseguir capturar os benefícios futuros, o mercado não investe o suficiente em investigação e desenvolvimento. Como solução, propõe-se o financiamento público da inovação. Mas o mercado já resolve este desafio com contratos, capital de risco e, sobretudo, com o empreendedorismo visionário.

    Cada nova empresa, cada investidor de risco, cada fundo privado está precisamente a tentar antecipar o valor futuro de uma ideia. É verdade que a inovação é incerta — mas é exactamente aí que o mercado brilha. O Estado, ao financiar a investigação e o desenvolvimento, apenas substitui o risco voluntário pelo desperdício garantido. O resultado? Barcos eléctricos sem baterias, auto-estradas sem carros, aeroportos sem passageiros ou universidades que produzem artigos académicos para o vazio. O mercado selecciona pelos lucros e vendas; o Estado, pela ligação partidária.

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    Foto: D.R.

    Por fim, o argumento mais querido aos Bancos Centrais: o mercado é instável, cíclico, sujeito a crises. Logo, é preciso intervir com “políticas monetárias”, fiscais e “anticíclicas”. Mas esta é a inversão mais perversa de todas. As crises não são falhas do mercado — são consequências directas da intervenção estatal no crédito e na moeda. São fruto da inflação monetária, dos juros artificialmente baixos, da expansão de crédito sem lastro. É o bombeiro que chega para apagar o fogo que ele próprio ateou.

    As chamadas “falhas de mercado” não são realidades observáveis. Não têm unidade de medida, não têm consequência quantificável, não têm base económica. São juízos morais, argumentos ideológicos, fantasias tecnocráticas. Não denunciam falhas no mercado, mas sim a inveja dos resultados que o mercado livre gera. O que incomoda não é a ineficiência — é a liberdade. Porque onde o mercado acerta, o planeador perde poder. Isso, para o estatismo, é intolerável.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • USD1: A ‘stablecoin’ que estabiliza… os lucros da família Trump

    USD1: A ‘stablecoin’ que estabiliza… os lucros da família Trump


    No passado dia 18 de Julho, consumou-se um monumental golpe do baú — talvez o mais engenhoso desde a criação da Reserva Federal em 1913, quiçá rivalizando com a proeza do maior ilusionista financeiro da história: John Law. Foi ele quem, em 1716, fundou em Paris o Banque Générale, que dois anos depois se tornaria no Banque Royale, com autorização para emitir papel-moeda garantido pelo Estado francês — a grande “inovação” do seu tempo, que acabaria em ruína.

    Agora, nos Estados Unidos, repete-se a façanha, mas, desta vez, com uma roupagem digital: o Congresso aprovou o chamado Genius Act, uma lei que, sob o pretexto de “modernizar o sistema financeiro”, legaliza a emissão de moedas digitais privadas — autorizadas pelo Estado, mas imunes a qualquer escrutínio.

    Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, na assinatura da nova lei ‘Genius Act’. / Foto: Casa Branca | D.R.

    A mais célebre — ou infame — dá pelo nome de USD1, uma stablecoin emitida por uma entidade ligada à família Trump, que passa, assim, a poder fabricar dinheiro digital com lastro em dívida pública dos EUA…sem repartir um cêntimo de juros com os detentores dos tokens.

    Em rigor: os cidadãos financiam, sem saber, a máquina de endividamento estatal — enquanto Trump e os seus parceiros lucram com os juros pagos pelo Tesouro. Tudo legal. Tudo “genial”. Tudo, claro está, aprovado com o aplauso de republicanos e democratas.

    A semelhança com o papel-moeda de John Law não é apenas a história a repetir-se — é a sua mutação digital. Tal como no século XVIII se multiplicaram os meios de pagamento em circulação sem qualquer criação real de riqueza, também agora estas stablecoins privadas operam como duplicadores digitais da base monetária, alimentando o mesmo monstro de sempre: a inflação. Num sistema já fundado sobre uma fraude monumental, junta-se agora mais uma camada de ilusão.

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    Foto: D.R.

    O esquema é triplo, em cascata: primeiro, o Banco Central inventa dinheiro do nada; depois, os bancos comerciais multiplicam esse dinheiro com base em reservas fraccionárias; agora, os emissores de stablecoins privadas quase duplicam os meios de pagamento — também a partir do nada. Uma cascata inflacionária sem precedentes, orquestrada com o selo da legalidade e o silêncio cúmplice de toda a imprensa financeira.

    Estas novas moedas digitais não pagam um cêntimo aos seus detentores — mas rendem juros bem reais aos seus emissores, à custa da dívida pública norte-americana que serve de colateral. O cidadão julga possuir uma moeda estável, mas está afinal a financiar os juros da dívida com os seus impostos futuros. Sem o saber, tornou-se simultaneamente utilizador, financiador e vítima. A quadratura do círculo fiscal está consumada: os plebeus pagam impostos, os privados lucram com os juros — e ninguém reparte um tostão com os detentores do token.

    Ao contrário de John Law, que terminou falido e exilado, ou de Richard Cantillon, assassinado após ter arruinado os seus clientes com manobras de crédito e manipulação bolsista, os novos feiticeiros digitais da dívida pública gozarão os seus milhões, protegidos por exércitos de advogados, grupos de influência e legislação feita à medida. O crime compensa — sobretudo quando é mascarado de inovação e liberdade financeira.

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    Foto: D.R.

    Para compreender esta arquitectura fraudulenta, convém antes perceber o que é, afinal, uma “stablecoin”? O nome diz tudo: uma moeda “estável” — pelo menos na aparência. Trata-se de um activo digital que procura replicar o valor de uma moeda fiduciária, como o dólar norte-americano, através de diferentes mecanismos de “lastro”.

    Para os seus defensores é o melhor dos dois mundos: a estabilidade da moeda tradicional com a eficiência das transacções digitais. Na prática, é uma nova forma de moeda fiduciária — com ainda menos transparência e menos garantias.

    Existem três grandes modelos de stablecoins. O mais comum é o das moedas lastreadas por reservas fiduciárias, como dólares ou títulos do Tesouro norte-americano, supostamente mantidos numa conta bancária ou num fundo segregado.

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    Foto: D.R.

    É neste modelo que se insere a USD1 de Trump, bem como outras como a USDT (Tether) ou a USDC (Circle). Dizem-se “estáveis” porque cada token emitido corresponde, alegadamente, a um dólar custodiado — seja numa conta bancária ou numa conta valores, com títulos de dívida pública, quase sempre obrigações do tesouro norte-americano.

    O segundo modelo baseia-se no lastro em criptoactivos voláteis, como o Bitcoin ou o Ethereum. O exemplo mais conhecido é a DAI, uma stablecoin parcialmente descentralizada. Neste sistema, cada novo token só pode ser emitido com um colateral mínimo de, por exemplo, 140% em activos digitais.

    Ou seja, para criar 100 DAI, é necessário “imobilizar” 140 dólares em Ethereum ou Bitcoin. Se o valor do colateral cair até, digamos, aos 110%, o sistema liquida automaticamente a posição e queima o token — ou exige mais colateral. É um mecanismo que tenta garantir a estabilidade, mas que pode ruir em momentos de forte volatilidade ou corrida aos activos.

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    Por fim, temos as stablecoins algorítmicas, como a falida Luna do protocolo Terra, que tentavam manter a paridade com o dólar através de incentivos automáticos de mercado: se o valor da moeda caía, queimavam-se tokens para induzir escassez; se subia, criavam-se novos para diluir o preço.

    Apesar dos riscos, as stablecoins oferecem vantagens práticas inegáveis — sobretudo quando comparadas com o sistema bancário tradicional, moroso e obsoleto. Ao contrário das transferências internacionais convencionais, que dependem da rede SWIFT, repleta de intermediários e sujeita a sanções políticas — como se viu no caso dos bancos russos —, uma stablecoin pode ser adquirida, enviada e recebida por qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, com custos reduzidos e em poucos segundos.

    Enquanto uma transferência bancária pode demorar dias, envolver taxas ocultas e depender do humor de burocratas ou reguladores, uma transacção em blockchain faz-se sem passaportes, sem fronteiras e sem autorização prévia. Sobretudo: sem o olhar inquisidor de um funcionário bancário a pedir justificações pela movimentação do dinheiro.

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    O principal risco destas novas moedas digitais não é tecnológico — é político e institucional: o desconhecimento do público quanto ao verdadeiro lastro. É o velho problema do ouro e do papel-moeda, apenas agora reeditado com roupagem digital. No tempo do padrão-ouro, nunca ninguém sabia se as notas em circulação correspondiam, de facto, ao metal guardado nos cofres dos bancos.

    A lógica era simples: os banqueiros, ao perceberem que os depositantes só resgatavam uma pequena parte dos seus depósitos, começaram a emprestá-los a terceiros, cobrando juros, mas sem informar os depositantes, que julgavam ter o dinheiro sempre disponível. Quando muitos tentavam resgatar simultaneamente os seus fundos, a farsa ruía — porque o dinheiro já não estava lá: tinha sido emprestado a prazo, sem liquidez imediata para ser devolvido. Esse modelo, que durante séculos alimentou colapsos bancários e crises financeiras, agora ressurge sob uma nova pele.

    Com esta nova legislação, a situação não desaparece. Embora a nova lei obrigue à existência de reservas 100% líquidas e auditadas, bem como à publicação mensal da composição do lastro, o cidadão comum continua sem meios técnicos para verificar, em tempo real, a correspondência entre tokens emitidos e activos efectivamente detidos.

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    Foto: D.R.

    A confiança permanece cega, baseada em relatórios e fé institucional. Mesmo que exista transparência formal, nada impede que o sistema seja subvertido por criatividade contabilística ou capturado por interesses políticos. A ilusão mantém-se: uma moeda “estável” apoiada por papéis do Tesouro, que por sua vez dependem da confiança no Estado mais endividado da História.

    No fundo, o que o blockchain prometia — transparência radical, rastreabilidade permanente, eliminação de intermediários — acaba diluído num modelo onde a auditoria depende de terceiros, os activos estão sob custódia bancária, e a estabilidade é uma promessa política. O cidadão continua sem saber, com verdadeira certeza, se o token que segura vale aquilo que diz valer.

    Estas stablecoins — apesar de apresentadas como uma grande novidade tecnológica — continuam sujeitas à mesma lógica de censura e controlo que define o sistema financeiro tradicional. A qualquer momento, os “donos” do sistema podem congelar as contas bancárias onde se encontra depositado o lastro, bloquear os pagamentos dos juros das obrigações do Tesouro que servem de colateral, ou simplesmente apagar e congelar endereços no blockchain.

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    Foto: D.R.

    Nada impede que os emissores, sujeitos a supervisores estatais, obedeçam a ordens de bloqueio político, como já sucedeu com a USDC e a USDT — que possuem mecanismos internos para colocar endereços de blockchain em listas negras, ou mesmo a reversão de transacções.

    Os detentores destes tokens, ao contrário do que supõem, não estão protegidos. Continuam presos ao mesmo sistema de sempre — um sistema de repressão das liberdades, vigilância total e controlo arbitrário, tal como acontece com os depósitos bancários.

    A diferença é que agora o poder de censura é instantâneo: basta um clique para congelar, bloquear ou eliminar os fundos — sem explicação, sem aviso, sem recurso. Na essência, estas stablecoins não passam de versões privadas das Moedas Digitais dos Bancos Centrais — como o Euro Digital — com o mesmo nível de submissão, mas publicitadas com a retórica da inovação e da liberdade financeira.

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    Foto: D.R.

    Ao contrário dos bancos tradicionais — que, mesmo a contragosto, ainda remuneram os depósitos para manter os clientes —, os emissores destas stablecoins estão expressamente proibidos de pagar um cêntimo aos seus detentores.

    O dinheiro está sempre “disponível”, mas na prática é imediatamente aplicado em dívida pública norte-americana. Os juros? Revertidos a 100% para os donos da stablecoin — como acontece com o USD1, ligada à família Trump.

    O adquirente do token julga ter um activo estável…mas está, na verdade, a financiar indirectamente o Estado federal norte-americano, sem saber, sem votar, sem o seu consentimento. Foi uma jogada de mestre: o Tesouro substitui os Bancos Centrais — e são agora os privados, em todo o mundo, que financiam a máquina de endividamento dos EUA.

    O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na Casa Branca. / Foto: Casa Branca | D.R.

    Até um agricultor brasileiro ou um comerciante indonésio, ao comprar uma stablecoin, está a comprar dívida pública norte-americana. O mais perverso: esse mesmo dólar tokenizado serve simultaneamente como meio de pagamento para o cidadão — e como moeda fiscal para o Tesouro, que com ele paga salários, subsídios e contratos. É a cascata inflacionária perfeita: um mesmo dólar convertido em token circula como meio de troca, enquanto serve, em paralelo, para financiar a dívida perpétua do império. Um milagre monetário — para os emissores. Uma armadilha perfeita — para todos os outros.

    Com este golpe legislado, institucionalizou-se uma nova cascata inflacionária — talvez até uma quarta, jamais imaginada nem pelo próprio John Law. Vejamos: o Banco Central norte-americano emite dinheiro do nada para comprar obrigações aos bancos comerciais, creditando as suas reservas. Estes, por sua vez, multiplicam esse dinheiro por dez ou quinze vezes, concedendo crédito ao sector privado.

    De seguida, os emissores de stablecoins recolhem dinheiro fresco dos seus compradores — cidadãos que trocam dólares reais por tokens — e transferem esses fundos para o Tesouro, adquirindo dívida pública. O Tesouro, por seu turno, gasta esse dinheiro em salários, subsídios ou contratos.

    O ciclo não acaba aqui: o detentor da stablecoin pode usá-la como meio de pagamento na Internet, ou melhor ainda, pode emprestá-la em plataformas de finanças descentralizadas, obtendo juros por isso. Um mesmo dólar — digitalizado e reciclado em múltiplos circuitos — torna-se simultaneamente dívida, reserva, meio de pagamento e activo financeiro!

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    Foto: D.R.

    Resultado? A inflação não irá cessar nos próximos anos. As casas e a comida continuarão a dirigir-se para a estratosfera. A massa monetária expande-se em múltiplos estratos, sem que haja criação de riqueza real.

    O sistema financeiro reinventou-se como uma máquina de multiplicação infinita da ilusão — agora com contratos inteligentes, blockchain, logótipos patrióticos e a bênção do Congresso norte-americano. Se John Law visse isto, coraria de inveja. O seu castelo de cartas era rudimentar. O de hoje é global, digital, impune — e legitimado por decreto.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Javier Milei: mas, afinal, a catástrofe não chegou?

    Javier Milei: mas, afinal, a catástrofe não chegou?


    Aquando da subida ao poder do autoproclamado anarcocapitalista Javier Milei, em Dezembro de 2023, mais de cem economistas — entre os quais o inevitável Thomas Piketty — assinaram uma carta aberta publicada no jornal britânico The Guardian, alertando para os perigos das propostas do argentino. Diziam que Milei levaria a Argentina à “devastação económica”. A propaganda local garantia que o caos era iminente. A Iniciativa Liberal fugia de Milei a sete pés. O horror “ultraliberal” aproximava-se!

    Passados 19 meses, o silêncio é ensurdecedor. Onde está a debandada de argentinos? Onde está a catástrofe social que, juravam, resultaria da eliminação de subsídios, do despedimento massivo de funcionários públicos, da extinção de ministérios e do corte na despesa pública? Onde estão os factos que sustentam a narrativa da “devastação”?

    Vamos aos números. Quando Milei subiu ao poder, a inflação mensal era de 25,5%. Sim, mensal. Isso equivalia a uma inflação anual superior a 1.400% — mais precisamente, 1.427%. Traduzido: um bem que custava 100 pesos no início do ano passaria a custar 1.526 pesos no final. Uma hiperinflação clássica, das que arrasam salários, poupanças e vidas.

    Hoje, a inflação ronda os 1,5% ao mês, ou seja, cerca de 20% ao ano. É ainda alta? Claro que sim. Mas é um corte de mais de 90% em termos anuais — em menos de dois anos. Um feito. Especialmente tendo em conta que não se tratou de um ajuste gradualista à europeia, mas de uma guinada radical contra o mais perverso parasitismo estatal: a inflação.

    A herança? Em Dezembro de 2023, o Estado argentino acumulava um défice fiscal e externo combinado de 17% do PIB — uma aberração económica. O PIB encontrava-se em contracção — com uma queda de 1,6% em termos anualizados no segundo trimestre de 2023e mais de 41% dos argentinos viviam na pobreza, dos quais 12% em pobreza extrema! O país que, no início do século XX, era mais rico do que grande parte da Europa e dos mais ricos do mundo, transformara-se num campo de ruínas socialistas.

    Hoje, a economia cresce. No primeiro trimestre de 2025, o PIB cresceu 5,8% em termos anualizados. Em Abril, a actividade económica subiu 7,7% face ao mesmo mês do ano anterior e 1,9% face ao mês anterior. São números impressionantes, que colocam a Argentina entre os países com maior dinamismo económico do continente — talvez até do mundo.

    Na despesa pública, a mudança foi ainda mais radical: 30% de corte nos gastos estatais. Cerca de 48 mil funcionários públicos foram despedidos, cerca de 9,8% dos assalariados estatais — menos parasitas, mais trabalhadores no sector produtivo. Estes indivíduos, outrora sustentados pelo saque legalizado do Estado, foram obrigados a procurar valor no mercado — ou seja, a oferecer bens e serviços voluntariamente adquiridos por quem os quer ou a trabalhar para quem os faz.

    Em 2024, o Estado argentino registou um superavit fiscal de 0,3% do PIB. Relembremos: em apenas um ano, saiu-se de um défice de 17% para um saldo positivo! Um corte de 17 pontos percentuais aproximadamente. Quase sem paralelo na história recente de qualquer país dito “democrático”.

    Quanto à pobreza? Também aí houve melhorias. A taxa caiu de 41,7% para 38% no final de 2024, e estimativas recentes sugerem nova redução para cerca de 31,7% no início de 2025. Em números absolutos: milhões de argentinos saíram da pobreza em menos de dois anos — não por programas estatais ou esmolas públicas, mas por redução da inflação, brutal corte na despesa pública e redução de legislação e regulação que asfixiava a economia.

    Tudo isto foi conseguido sem recorrer à emissão de mais dívida pública, sem recorrer à chantagem moral do “direito à habitação”, do “direito ao subsídio”,  ou do “direito à educação” — e, acima de tudo, sem medo de enfrentar a besta estatal.

    Mas nem tudo é perfeito. Para um libertário, duas instituições são incompatíveis com a liberdade: a despesa pública — que confisca o fruto do trabalho — e o Banco Central, esse cartel criminoso com autorização legal para falsificar moeda.

    Quando o governo emite dívida, o Banco Central compra-a com dinheiro criado do nada. Quem recebe este dinheiro novo primeiro — os bancos, os políticos, os plutocratas — consegue usá-lo antes que os preços subam.

    Os pobres, quando finalmente recebem o novo papel, já nada conseguem comprar com ele. É um roubo legalizado. Foi isso que aconteceu em Portugal durante a putativa pandemia, com a impressão massiva do BCE e a destruição silenciosa do poder de compra dos salários e poupanças.

    Milei atacou a despesa pública — e fê-lo com coragem. Mas não fechou o Banco Central, apesar de o ter prometido, que era inegociável. Enquanto o Banco Central existir, continuará a ser o instrumento por excelência de controlo, confisco e empobrecimento. Permite ao Estado evitar o controlo orçamental e garantir o financiamento das elites próximas do poder. Permite manipular taxas de juro, controlar fluxos de capitais, e condicionar toda a economia com um simples clique.

    Não basta reduzir o Estado: é preciso extirpá-lo pela raiz. Não basta cortar na despesa: é preciso remover o princípio do confisco legal. O Banco Central é a espinha dorsal do sistema estatista moderno. Sem ele, não haveria guerras intermináveis, programas sociais insustentáveis, nem um exército permanente de burocratas a parasitar a população. O Banco Central é a máquina que imprime os meios com que o Estado compra a obediência. A sua existência não é apenas um erro técnico: é uma imoralidade.

    A solução é clara: privatizar a produção de moeda, restabelecer o padrão-ouro (ou a concorrência entre moedas privadas) e abolir o monopólio do Banco Central. Num sistema livre, cada indivíduo escolheria em que moeda confiar, e os bancos que praticassem reservas fraccionárias sem consentimento seriam tratados como falsificadores.

    Milei prometeu fechar o Banco Central. Chamou-o de “o cancro da economia argentina”. Repetiu em debates, entrevistas e comícios que isso era “não negociável”. Mas o cancro continua lá. Domesticado, talvez. Vigiado, sem dúvida. Mas vivo. Enquanto viver, será sempre um instrumento de opressão.

    O verdadeiro teste a Milei será esse. Não basta despedir funcionários ou cortar subsídios. Não basta privatizar empresas ou liberalizar importações. O verdadeiro teste é desmantelar a máquina de falsificação monetária. É devolver ao povo argentino o direito de escolher a sua moeda. De proteger a sua poupança. De viver sem ser espoliado todos os meses por um imposto invisível.

    Se Milei quer realmente ser recordado como o primeiro governante libertário da história moderna, terá de ir até ao fim. Terá de fazer o que nenhum outro fez: abolir o Banco Central e permitir que os argentinos seleccionem a sua moeda livremente, sem imposição estatal — ouro, prata, Bitcoin, ou qualquer outra moeda escolhida livremente pelos indivíduos.

    Só assim terminará a farsa. Só assim haverá verdadeira liberdade económica. Só assim, talvez, os libertários poderão dizer: “Pela primeira vez, um de nós chegou ao poder — e não cedeu.”

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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