Autor: Luís Gomes

  • Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros

    Lisboa de luto: 15 mortos e um sistema que nunca paga pelos seus erros


    Quinze mortos, dezenas de feridos, turistas em pânico, comércio local paralisado. Lisboa está de luto, e por mais do que um dia. O descarrilamento do Elevador da Glória não foi um acidente no sentido puro da palavra. Foi uma tragédia anunciada, consequência directa da irresponsabilidade estatal, do desleixo burocrático e da lógica perversa de um sistema que vive do assalto ao contribuinte e nunca presta contas.

    Desde finais de Agosto que o contrato de manutenção e segurança caducara. Não havia substituto, não houve sequer um ajuste directo para garantir serviços mínimos. O funicular histórico, símbolo da cidade, circulava sem cobertura contratual de manutenção quando o cabo de sustentação partiu. A carnificina não foi uma surpresa: foi a consequência inevitável de um Estado que funciona sem responsabilidade real.

    A história desta tragédia começa em 2017, quando a Carris foi municipalizada e transferida do Estado central para a Câmara de Lisboa. O discurso foi o habitual: proximidade, gestão de proximidade, mais controlo democrático. Na prática, significou apenas que a Câmara passou a usar a empresa como um instrumento político e como sorvedouro de fundos.

    Em 2022, o globalista Carlos Moedas nomeou Pedro Bogas presidente da Carris. Nesse mesmo ano, a manutenção dos elevadores históricos foi externalizada para a empresa MAIN – Maintenance Engineering, através de concurso público. O trabalho passou a ser feito por subcontratação, afastando os trabalhadores internos que conheciam as máquinas e que sempre tinham garantido a sua manutenção.

    Dois anos depois, em 2024, realizou–se a última grande intervenção. Os trabalhadores continuaram a alertar para falhas, denunciaram problemas nos cabos de sustentação, pediram que a manutenção regressasse a casa. Foram ignorados. A 31 de Agosto de 2025 caducou o contrato. Não havia manutenção, não havia segurança. Três dias depois, o Elevador da Glória despenhou–se.

    Contudo, nada mudará. A Carris não é uma empresa privada sujeita ao veredicto do mercado. É uma vaca sagrada do poder político. Desde 2017 é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Em termos claros, o “dono” político da tragédia chama–se Carlos Moedas. Mas esse não sofrerá consequência alguma. Nenhum gestor público verá a sua carreira destruída, nenhum administrador perderá a casa para pagar indemnizações, nenhum político responderá em tribunal até ao fim da sua vida. O contribuinte, o assaltado, sempre ele, pagará a conta.

    Os números não deixam margem para dúvidas. A Carris recebe todos os anos cerca de trinta milhões de euros em subsídios à exploração. Entre 2020 e 2024, só para tapar o buraco estrutural da operação, foram quase cento e cinquenta milhões extorquidos aos residentes em Lisboa. A isto somam–se cento e quarenta e três milhões em subsídios ao investimento para frota e infra–estruturas, canalizados por fundos europeus e pelo Orçamento de Estado. Ao todo, quase trezentos milhões de euros em cinco anos. Dinheiro em catadupa, mas que não chegou para garantir a manutenção mínima de um funicular centenário.

    Aqui reside a diferença fundamental entre um accionista privado e um “accionista público” como a Câmara Municipal de Lisboa. O privado vive sob a disciplina férrea do mercado. Se um operador privado permitisse a morte de quinze pessoas por negligência, seria imediatamente arrasado pelo risco reputacional.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    Os turistas e residentes deixariam de usar os seus serviços. As indemnizações civis seriam devastadoras, as seguradoras rescindiriam contratos, a falência seria inevitável. O accionista privado veria a sua fortuna arruinada, passaria os próximos anos nos tribunais, perseguido até ao fim da vida por processos judiciais e execuções patrimoniais. É essa a lógica saudável do mercado: quem falha paga, e paga caro.

    O “accionista público”, pelo contrário, é imune. A Câmara Municipal de Lisboa não enfrenta risco reputacional: não há concorrência, não há alternativa. O “cliente” é obrigado a usar o serviço subsidiado, e a conta é paga por todos através dos impostos – um eufemismo para designar um assalto.

    As indemnizações não saem do bolso dos administradores nem dos políticos: saem do bolso do contribuinte. O desastre não significa falência, significa mais impostos, mais subsídios, mais inquéritos que nunca dão em nada.

    Conselho de Administração da Carris.

    O presidente da Câmara aparece agora nas televisões com ar compungido, mas são lágrimas de crocodilo. Hoje chora frente às câmaras, amanhã já estará a procurar a próxima inauguração, a próxima fotografia, o próximo vídeo nas redes sociais, para se promover. Trabalhar, resolver, assumir responsabilidades não é com ele.

    É um indivíduo que vive do saque e precisa de garantir os próximos quatro anos de carreira. Pedro Bogas continuará a dormir como um bebé de um ano, os administradores da Carris prosseguirão as suas carreiras douradas, e o ciclo recomeçará. A irresponsabilidade não tem preço para quem manda, porque o preço é sempre empurrado para os bolsos dos contribuintes – os eternos assaltados.

    O cinismo é total. Depois da tragédia, alguém teve a ousadia de declarar que “os protocolos foram cumpridos”, quando na prática não havia protocolos em vigor desde o primeiro de Setembro. Eis a lógica degenerada da gestão pública: proteger-se com burocracia enquanto corpos jazem no chão.

    Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

    Os trabalhadores tinham avisado que a manutenção externalizada em 2022 não tinha o rigor da realizada internamente. Tinham alertado para os cabos de sustentação. Tinham exigido que a Carris reassumisse o controlo técnico. Foram ignorados; no fim, a narrativa oficial é a de que “tudo estava em ordem”.

    Não nos iludamos também quanto aos sindicatos, que se apresentam agora como voz da moralidade. Os sindicatos não são santos: são cartéis de trabalhadores com poder legal, capazes de impor condições de exclusividade salarial ou de protecção profissional, mesmo a quem não está sindicalizado. Ao contrário do empresário privado, que só sobrevive se alguém comprar voluntariamente o seu produto ou serviço, o sindicato usa a arma da lei para forçar terceiros. É a perversão legal transformada em regra.

    people riding yellow tram on road near building during daytime

    Este desastre é a metáfora perfeita do funcionamento do Estado. O Estado não presta contas. O Estado não assume riscos. O Estado não responde às vítimas. No privado, o erro significa falência. No público, o erro traduz-se em mais impostos. Cada tragédia é convertida em argumento para reforçar orçamentos, pedir mais dinheiro, alargar a eterna roubalheira. A disciplina do mercado castiga o erro; o regime estatal recompensa-o.

    Lisboa está de luto, mas devia estar furiosa. Furiosa com um presidente da Câmara que é o responsável político máximo e que continuará intocável. Furiosa com uma empresa que em cinco anos devorou trezentos milhões de euros e não assegurou a manutenção mínima de um símbolo da cidade. Furiosa com um sistema que rapina os contribuintes e devolve cadáveres. Furiosa com a mentira de que “o público é de todos”, quando na realidade não é de ninguém.

    Há ainda as externalidades negativas que ninguém contabiliza. O turismo em Lisboa sofrerá inevitavelmente com este desastre. Quem confiará a vida a uma cidade que deixa descarrilar um funicular? Os negócios em redor do Elevador da Glória verão menos clientes, menos movimento, menos receitas.

    houses near sea

    Em qualquer mercado livre, esses negócios processariam a empresa responsável por negligência, reclamando indemnizações pelos danos sofridos. Aqui, não. Aqui o prejuízo espalha-se, os danos diluem-se, e a factura regressa sempre ao contribuinte.

    A tragédia do Elevador da Glória não foi apenas um acidente. Foi o Estado em funcionamento puro: rios de dinheiro, incentivos perversos, sindicatos cartelizados, manutenção cancelada, protocolos inexistentes e responsabilidades nulas. A máquina política já trabalha para transformar a morte de quinze pessoas em mais um álibi para reforçar o orçamento. Os contribuintes, os eternos confiscados, lá estarão outra vez a pagar tudo. Mas tenhamos esperança: o governo já declarou um dia de luto nacional.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Anti-comuns? A verdadeira tragédia da floresta é o Estado

    Anti-comuns? A verdadeira tragédia da floresta é o Estado


    Há textos que, pela sua soberba tecnocrática e pelo desprezo da liberdade e pela propriedade alheia, exigem resposta imediata. O artigo do meu amigo Pedro Almeida Vieira (PAV), publicado há dias no PÁGINA UM, é um desses casos: um compêndio de delírios estatistas mascarados de ciência, que não pode ficar sem contraditório.

    Desta feita, à boleia dos incêndios devastadores do Verão, PAV veio introduzir ao leitor o conceito de “tragédia dos anti-comuns”. Como quem descobre a solução para os males do mundo rural, PAV sustenta que a culpa é da propriedade demasiado fragmentada, do excesso de donos, da falta de uma entidade central que coordene e ordene. Tudo isto é uma meia-verdade. Como toda a meia-verdade, é mais perigosa do que a mentira.

    silhouette of trees during sunset
    Foto: D.R.

    A floresta portuguesa vive, de facto, prisioneira. Mas não da multipropriedade: vive presa num emaranhado legal, fiscal e administrativo imposto pelo Estado. Imaginemos um terreno no interior, herdado por uma família numerosa. Ao fim de três ou quatro gerações, tem 48 herdeiros espalhados pelo mundo. Uns morreram, outros emigraram, muitos nem sabem que herdaram. Cada decisão exige consenso, cada gesto implica certidões, registos, deslocações, escrituras, impostos.

    Resultado: ninguém limpa, ninguém investe, o terreno arde; e porquê? Porque o Estado impossibilita a privatização efectiva, dificulta a unificação da posse, penaliza a transmissão e mata o incentivo. Depois aponta o dedo: vejam, os privados não cuidam do que é seu!

    O problema é exactamente o inverso do que PAV sugere. Não é a ausência de Estado que paralisa a floresta, é a sua presença excessiva, desordenada e coerciva. O Estado impede que o mercado funcione. Impede que o proprietário adapte a terra às preferências do consumidor. Impede que um terreno rústico se transforme num parque de autocaravanas ou num projecto de turismo rural.

    photography of tall trees at daytime
    Foto: D.R.

    O uso do solo está congelado nos PDMs, nos pareceres vinculativos de trinta organismos, nas áreas de REN e RAN, nos artigos obscuros dos regulamentos municipais. Cada tentativa de mudança é um calvário de requerimentos, estudos, pareceres, taxas, impostos e indefinições. Mesmo o uso agrícola é entravado: uma cultura nova, uma vedação, um furo, exigem mais licenças, mais papel, mais tempo perdido.

    Comecemos por onde tudo deveria começar: no registo da propriedade. Em Portugal, uma parte substancial do território rural permanece por regularizar no Registo Predial. Muitos terrenos continuam em nome de pessoas falecidas há décadas. Para formalizar a transmissão, os herdeiros precisam de certidões de óbito, habilitações de herdeiros, reconhecimento notarial, pagamento de imposto do selo (a 10% para familiares fora da linha directa), deslocações a várias conservatórias e um sem-número de registos.

    Quando são dezenas os herdeiros, muitos emigrados ou desconhecidos, o processo torna-se inválido de facto: o terreno fica num limbo legal. Nenhum dos herdeiros pode vender, investir, limpar ou explorar sem consenso. Nem sequer podem receber fundos europeus para limpeza ou reflorestamento. O Estado, com a sua estrutura medieval, impede a regularização mais elementar da propriedade.

    brown wooden fence on green grass field during daytime
    Foto: D.R.

    E se, por milagre ou teimosia, o proprietário conseguir regularizar a situação, entra na segunda fase do jogo: a luta contra o PDM. O Plano Director Municipal é o Livro Sagrado do urbanismo centralizado. Nele, cada centímetro tem o seu destino gravado em pedra: rústico, florestal, urbano, urbanizável, protegido, condicionado, interdito.

    Se o proprietário quiser transformar um terreno em algo diferente do que consta no plano – por exemplo, numa pequena casa em madeira, num armazém agrícola ou num miradouro – tem de pedir uma alteração. Mas não se entusiasme: vai precisar de um arquitecto, um topógrafo, um advogado, dezenas de pareceres de entidades públicas, paciência infinita e uma fé inabalável na santidade do papel timbrado. No final, pode sempre receber uma resposta negativa por “incompatibilidade com a paisagem”.

    Na prática, o Estado bloqueia tudo. Quer construir uma pequena estufa de cogumelos? Precisa de licença. Quer abrir um caminho no seu terreno? Precisa de autorização. Quer colocar painéis solares? Cuidado, pode alterar o “carácter do solo”. Quer vedar a propriedade? Tenha atenção à fauna silvestre. Cada passo é vigiado por burocratas. Depois, claro, vem o diagnóstico solene: os privados não cuidam da floresta!

    stack of books on table
    Foto: D.R.

    PAV tem razão numa coisa: há abandono. Mas esse abandono é filho directo do estatismo. Os proprietários não abandonaram porque são incultos ou preguiçosos, abandonaram porque o Estado tornou a propriedade impraticável.

    Para justificar essa asfixia, PAV recorre ao segundo dogma da madraça estatal: os bens públicos. O ar limpo, a água e a biodiversidade são “externalidades” que justificam, segundo ele, que a propriedade florestal passe a ser tratada como coisa pública. Falácia.

    O conceito de bem público tem definição precisa: não-rivalidade e não-exclusão. O facto de haver efeitos positivos para terceiros não transforma um bem privado em público. Um pomar que atrai abelhas ou uma estância turística que atrai visitantes também geram externalidades; nem por isso são nacionalizados. Convém dizê-lo sem rodeios: mesmo esta definição académica de bem público serve, quase sempre, para legitimar a existência do bandido estacionário, isto é, do Estado que se apropria da riqueza alheia sob pretexto de ciência económica. A teoria dos bens públicos, tão repetida em manuais e cátedras, é apenas mais uma falácia disfarçada de rigor científico para justificar a expansão da máquina estatal e o confisco permanente da propriedade privada.

    a bird is sitting on the roof of a house
    Foto: D.R.

    A confusão entre externalidade e bem público é ideológica, não conceptual. Serve apenas para legitimar a usurpação da propriedade privada. Se o Estado quer que os proprietários produzam ar limpo e biodiversidade, que pague. Ou melhor: que saia do caminho. Que permita o livre uso, que devolva a liberdade de iniciativa, que torne possível o investimento e a adaptação ao mercado. A floresta não precisa de mais planos, precisa de menos Estado.

    Mas PAV quer um plano. Que plano! Um Sistema de Gestão de Espaços Florestais, com equipas públicas, mandatos, vigilantes, limpeza forçada, actuação em propriedade privada, tudo “grátis” para o proprietário, claro. Porque há sempre um “interesse colectivo” que justifica tudo.

    Tal como nas distopias planificadas, PAV propõe um modelo “simples”, “total”, “perfeito”, que só falha porque a população do interior insiste em existir. Tudo com um preço: 1,1 mil milhões de euros por ano. PAV, não contente com os 133 mil milhões que já nos extorquem anualmente, deseja mais um assalto, desta vez para contratar sapadores e vigilantes que vão limpar mato e vigiar o que não lhes pertence!

    green plant in clear glass vase
    Foto: D.R.

    Como todo o bom planeador central, PAV até já sabe o que os consumidores querem, o que os proprietários pensam e quanto todos estariam dispostos a pagar. Na sua cabeça iluminada não há incerteza, não há preferências subjectivas diversas, não há mercado.

    PAV decide que projectos fariam sentido – turismo rural, parques, segundas residências, talvez centros de interpretação da paisagem, ou mesma nada, na prática, tudo verde para PAV passear e contemplar a paisagem todos os anos – e define de antemão receitas e custos, como se a vida económica fosse um quadro de uma folha de cálculo do seu computador.

    A pretensão de conhecimento é tamanha que faria corar qualquer burocrata soviético. É esse delírio planificador, arrogante e ignorante da realidade, que se apresenta como a solução milagrosa para a floresta portuguesa. Como ninguém viu isso até hoje! Bastaria seguir o plano miraculoso de PAV.

    macro shot photography of tree during daytime
    Foto: D.R.

    Na sua lógica estatista, os proprietários são vistos como empecilhos, incapazes, sujeitos a tutela. Não têm liberdade de usar, mas têm deveres de limpar. Não podem construir, mas podem ser expropriados na prática. Tudo isto porque PAV imagina que sabe o que é melhor para todos: que culturas plantar, que caminhos abrir, que rendimentos gerar. Nesse plano, uma vez mais, dá um papel de liderança ao bandido estacionário, o mesmo que não consegue sequer gerir o SNS, o sistema educativo ou os tribunais é, segundo PAV, agora capaz de gerir 6 milhões de hectares de floresta.

    PAV aparece como o perfeito exemplar do urbano iluminado, sentado diante do seu computador em Lisboa, a desenhar planos para a propriedade alheia. Os “outros”, aqueles a quem se refere, não são académicos abonados nem jornalistas: são pobres, gente envelhecida, que muitas vezes mal têm dinheiro para medicamentos ou para reparar o telhado.

    A esses, PAV exige que aceitem o confisco tácito da sua terra, que suportem a colectivização dos custos de vigiar e combater incêndios, tudo em nome de um “interesse colectivo” convenientemente definido por quem vive longe do problema. O objectivo oculto é simples: garantir que, quando visita o interior uma vez por ano, possa contemplar a paisagem idílica que exige que os pobres mantenham para seu deleite estético. Os pobres sacrificam-se, o Estado assalta a favor dos plutocratas da economia do fogo, os iluminados aplaudem – e tudo em nome da ciência e do “bem público”.

    A floresta portuguesa não precisa de mais Estado, precisa de mais liberdade. Precisa de proprietários com poder de decidir, investir, inovar e colher os frutos ou os prejuízos das suas decisões. Precisa de mercado, preços, responsabilidade e propriedade plena.

    green plant on persons hand
    Foto: D.R.

    Precisa de um Estado que registe rapidamente, que permita mudar o uso da terra conforme as preferências e necessidades dos indivíduos, e que depois se limite a garantir que os direitos de propriedade sejam respeitados e protegidos.

    O resto, deixem para quem sabe: os que vivem da terra, e não os que vivem de planear sobre a propriedade que não lhes pertence. Qualquer solução que não passe por aqui é apenas mais uma cortina de fumo a esconder o verdadeiro incendiário: o Estado.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As falhas de mercado: outra mentira do nosso tempo

    As falhas de mercado: outra mentira do nosso tempo


    Há décadas que as chamadas “falhas de mercado” são o álibi técnico e académico para justificar toda a sorte de intromissões do Estado na vida económica. A sua repetição exaustiva nos manuais universitários serve para gerar a ilusão de que o mercado livre é instável, injusto, desequilibrado e, acima de tudo, incapaz de funcionar sem o amparo das estruturas regulatórias. Uma mentira repetida até parecer ciência.

    Mas, sob o escrutínio lógico, esta teoria desaba. As “falhas de mercado” não resultam de qualquer cálculo, unidade ou medida real. São artefactos normativos, formulações morais disfarçadas de análises económicas. São, na melhor das hipóteses, juízos subjectivos; na pior, engenharia social.

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    Foto: D.R.

    Diz-se que há externalidades sempre que uma acção afecta terceiros que não participaram na decisão — como a poluição de uma fábrica que atravessa a propriedade alheia, ou o perfume de um jardim que embeleza a rua. Se o efeito for negativo, alega-se que há “falha de mercado” que exige intervenção.

    Mas o que está aqui em causa não é uma falha de mercado: é uma questão jurídica de direitos de propriedade. Se alguém emite poluentes sobre a casa de alguém sem consentimento, isso é uma agressão, e deve ser tratado como tal. Não precisamos de um comité de peritos para avaliar “efeitos colaterais” — precisamos de tribunais que protejam a propriedade e responsabilizem os agressores.

    Já as chamadas externalidades positivas — como uma linha de metro construída pelo Estado, que alegadamente valoriza os prédios adjacentes — são irrelevantes do ponto de vista económico: se os beneficiários não estão dispostos a pagar voluntariamente por esse benefício, então não há transacção, nem preço, nem escassez. Impor-lhes uma “compensação” via imposto é declarar que qualquer valor subjectivo sentido por um terceiro já constitui título legítimo sobre a carteira alheia.

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    Foto: D.R.

    Mais grave ainda: quando se alega que o benefício é menor que o prejuízo, ou vice-versa, surge a pergunta inevitável — medido em quê? Quilogramas de bem-estar? Litros de prejuízo social? É uma acrobacia sem rede: querem intervir num processo voluntário, invocando desequilíbrios que não sabem medir, sobre preferências que não conhecem, com base em valores que não partilham. Não há aqui “falha” alguma.

    O segundo cavalo de batalha é o dos “bens públicos” definidos como não-excludentes e não-rivais — como o farol, a segurança ou a iluminação da rua. Como ninguém pode ser impedido de beneficiar deles, dizem, ninguém quer pagá-los voluntariamente. Logo, conclui-se que o Estado deve fornecê-los compulsivamente.

    Mas este raciocínio é duplamente falacioso. Primeiro, porque parte do pressuposto de que não pagar é igual a não valorizar. Segundo, porque ignora que a possibilidade de não-exclusão é uma decisão jurídica e tecnológica, e não uma propriedade ontológica do bem.

    Historicamente, faróis foram financiados por portos privados. Segurança pode ser contratada por condomínios, bairros, empresas e indivíduos. A iluminação pode ser ligada a quotas, consumo ou subscrição. A categoria de “bem público” serve apenas para legitimar a colectivização coerciva daquilo que o mercado livre não fornece — e que, justamente por isso, não deveria ser fornecido à força.

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    Foto: D.R.

    O conceito de “monopólio” transformou-se numa arma ideológica. Sempre que uma empresa domina um mercado, ou cobra um preço considerado “excessivo”, ou tem uma marca forte, é imediatamente acusada de prática monopolista.

    Exige-se então a intervenção do Estado para “restaurar a concorrência”. Mas esta é uma inversão completa da lógica económica. O verdadeiro monopólio é imposto pelo Estado, pela força, através de barreiras legais à entrada. No mercado livre, qualquer posição dominante está sempre vulnerável à concorrência potencial — que, por si só, é um freio poderoso.

    Quanto ao “preço abusivo”? Para quem? Medido segundo que critério? Um preço é abusivo apenas aos olhos de quem não quer pagar por ele — o que é uma preferência, não uma norma universal. O mercado não cria monopólios. O Estado é o único fabricante legítimo desse artefacto jurídico.

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    Foto: D.R.

    Alegam os economistas defensores da intervenção pública que o mercado falha quando uma das partes sabe mais do que a outra — como o vendedor de um carro usado que conhece defeitos ocultos. Mas isto é precisamente o que torna o mercado possível. Toda acção humana envolve informação assimétrica. É porque os actores valorizam os bens de modo diferente, e conhecem realidades distintas, que ocorre a troca.

    Além disso, o mercado já desenvolveu os seus próprios mecanismos para lidar com esse fenómeno: reputação, garantias, certificações, avaliações por terceiros, sistemas de classificação, concorrência. Nenhuma comissão estatal pode replicar, com semelhante eficiência dinâmica, o sistema espontâneo criado por milhões de trocas livres.

    Alguns académicos defendem que os indivíduos são “míopes”: preferem consumir hoje e poupar menos do que deveriam. Com base nisso, o Estado deveria corrigir a “irracionalidade” dos agentes, forçando-lhes hábitos virtuosos — seja em pensões, seguros ou saúde.

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    Foto: D.R.

    Este argumento não é económico. É moral e paternalista. A economia não tem meios para declarar que uma preferência é inferior a outra. Se alguém prefere fumar a poupar, comer a investir, isso não é irracional — é simplesmente a sua escala de valores subjectiva. O planeador que impõe a “racionalidade” por decreto está apenas a substituir os fins dos indivíduos pelos seus próprios. É a imposição da razão iluminada sobre os instintos naturais. Uma tentativa de estatizar a alma.

    Afirmam os teóricos da redistribuição que o mercado, ao permitir a acumulação, gera desigualdade; que essa desigualdade é socialmente nociva, injusta e indesejável. Concluem, como sempre, que cabe ao Estado redistribuir rendimentos para restaurar o equilíbrio.

    Mas a teoria do valor económico nada tem a dizer sobre a “justiça distributiva”. O mercado não distribui: remunera conforme a avaliação dos consumidores, em trocas voluntárias. A única justiça aplicável é a da propriedade legítima e da ausência de coacção. Querer redistribuir a riqueza sem redistribuir o mérito é confundir matemática com moral. A inveja não é base para a política económica. É apenas a degradação da justiça pelo ressentimento.

    man in black jacket walking on pedestrian lane during daytime
    Foto: D.R.

    Outra acusação é que o mercado fornece pouco daquilo que “as pessoas deveriam consumir mais” — como livros, museus ou teatros — e demasiado daquilo que “deveriam evitar” — como álcool ou comida rápida. O remédio? Subsidiar os bens virtuosos e taxar os vícios. Esta é, de novo, uma imposição moral mascarada de ciência. Se o indivíduo não quer consumir determinado bem, isso é sinal de que não o valoriza. Obrigar a consumi-lo, ou a financiá-lo, é tratar o cidadão como uma criança estúpida — ou pior, como um animal a ser treinado.

    A teoria do “bem meritório” é a mais perigosa de todas: é a base para a censura, a propaganda, a escola obrigatória, a saúde compulsória, a virtude estatal. É a estatização da consciência.

    Alguns defendem que o mercado não consegue coordenar sectores complexos, como transportes, energia ou comunicações, e que, por isso, o planeamento estatal é indispensável. Mas a história revela o oposto: os sistemas mais complexos — como o abastecimento alimentar ou a Internet — são fruto da acção descentralizada.

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    Foto: D.R.

    O mercado coordena não por decreto, mas por sinal: o preço e o lucro. É o preço e os lucros que transmitem informação dispersa, agregada e actualizada sobre escassez, procura, oportunidade e preferência. Os planeadores centrais, por sua vez, navegam às cegas, alheios à preferência individual e à realidade do tempo. O mercado é ordem espontânea. O Estado é caos planificado.

    Argumenta-se que, por não conseguir capturar os benefícios futuros, o mercado não investe o suficiente em investigação e desenvolvimento. Como solução, propõe-se o financiamento público da inovação. Mas o mercado já resolve este desafio com contratos, capital de risco e, sobretudo, com o empreendedorismo visionário.

    Cada nova empresa, cada investidor de risco, cada fundo privado está precisamente a tentar antecipar o valor futuro de uma ideia. É verdade que a inovação é incerta — mas é exactamente aí que o mercado brilha. O Estado, ao financiar a investigação e o desenvolvimento, apenas substitui o risco voluntário pelo desperdício garantido. O resultado? Barcos eléctricos sem baterias, auto-estradas sem carros, aeroportos sem passageiros ou universidades que produzem artigos académicos para o vazio. O mercado selecciona pelos lucros e vendas; o Estado, pela ligação partidária.

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    Foto: D.R.

    Por fim, o argumento mais querido aos Bancos Centrais: o mercado é instável, cíclico, sujeito a crises. Logo, é preciso intervir com “políticas monetárias”, fiscais e “anticíclicas”. Mas esta é a inversão mais perversa de todas. As crises não são falhas do mercado — são consequências directas da intervenção estatal no crédito e na moeda. São fruto da inflação monetária, dos juros artificialmente baixos, da expansão de crédito sem lastro. É o bombeiro que chega para apagar o fogo que ele próprio ateou.

    As chamadas “falhas de mercado” não são realidades observáveis. Não têm unidade de medida, não têm consequência quantificável, não têm base económica. São juízos morais, argumentos ideológicos, fantasias tecnocráticas. Não denunciam falhas no mercado, mas sim a inveja dos resultados que o mercado livre gera. O que incomoda não é a ineficiência — é a liberdade. Porque onde o mercado acerta, o planeador perde poder. Isso, para o estatismo, é intolerável.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • USD1: A ‘stablecoin’ que estabiliza… os lucros da família Trump

    USD1: A ‘stablecoin’ que estabiliza… os lucros da família Trump


    No passado dia 18 de Julho, consumou-se um monumental golpe do baú — talvez o mais engenhoso desde a criação da Reserva Federal em 1913, quiçá rivalizando com a proeza do maior ilusionista financeiro da história: John Law. Foi ele quem, em 1716, fundou em Paris o Banque Générale, que dois anos depois se tornaria no Banque Royale, com autorização para emitir papel-moeda garantido pelo Estado francês — a grande “inovação” do seu tempo, que acabaria em ruína.

    Agora, nos Estados Unidos, repete-se a façanha, mas, desta vez, com uma roupagem digital: o Congresso aprovou o chamado Genius Act, uma lei que, sob o pretexto de “modernizar o sistema financeiro”, legaliza a emissão de moedas digitais privadas — autorizadas pelo Estado, mas imunes a qualquer escrutínio.

    Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, na assinatura da nova lei ‘Genius Act’. / Foto: Casa Branca | D.R.

    A mais célebre — ou infame — dá pelo nome de USD1, uma stablecoin emitida por uma entidade ligada à família Trump, que passa, assim, a poder fabricar dinheiro digital com lastro em dívida pública dos EUA…sem repartir um cêntimo de juros com os detentores dos tokens.

    Em rigor: os cidadãos financiam, sem saber, a máquina de endividamento estatal — enquanto Trump e os seus parceiros lucram com os juros pagos pelo Tesouro. Tudo legal. Tudo “genial”. Tudo, claro está, aprovado com o aplauso de republicanos e democratas.

    A semelhança com o papel-moeda de John Law não é apenas a história a repetir-se — é a sua mutação digital. Tal como no século XVIII se multiplicaram os meios de pagamento em circulação sem qualquer criação real de riqueza, também agora estas stablecoins privadas operam como duplicadores digitais da base monetária, alimentando o mesmo monstro de sempre: a inflação. Num sistema já fundado sobre uma fraude monumental, junta-se agora mais uma camada de ilusão.

    silver and black round emblem
    Foto: D.R.

    O esquema é triplo, em cascata: primeiro, o Banco Central inventa dinheiro do nada; depois, os bancos comerciais multiplicam esse dinheiro com base em reservas fraccionárias; agora, os emissores de stablecoins privadas quase duplicam os meios de pagamento — também a partir do nada. Uma cascata inflacionária sem precedentes, orquestrada com o selo da legalidade e o silêncio cúmplice de toda a imprensa financeira.

    Estas novas moedas digitais não pagam um cêntimo aos seus detentores — mas rendem juros bem reais aos seus emissores, à custa da dívida pública norte-americana que serve de colateral. O cidadão julga possuir uma moeda estável, mas está afinal a financiar os juros da dívida com os seus impostos futuros. Sem o saber, tornou-se simultaneamente utilizador, financiador e vítima. A quadratura do círculo fiscal está consumada: os plebeus pagam impostos, os privados lucram com os juros — e ninguém reparte um tostão com os detentores do token.

    Ao contrário de John Law, que terminou falido e exilado, ou de Richard Cantillon, assassinado após ter arruinado os seus clientes com manobras de crédito e manipulação bolsista, os novos feiticeiros digitais da dívida pública gozarão os seus milhões, protegidos por exércitos de advogados, grupos de influência e legislação feita à medida. O crime compensa — sobretudo quando é mascarado de inovação e liberdade financeira.

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    Foto: D.R.

    Para compreender esta arquitectura fraudulenta, convém antes perceber o que é, afinal, uma “stablecoin”? O nome diz tudo: uma moeda “estável” — pelo menos na aparência. Trata-se de um activo digital que procura replicar o valor de uma moeda fiduciária, como o dólar norte-americano, através de diferentes mecanismos de “lastro”.

    Para os seus defensores é o melhor dos dois mundos: a estabilidade da moeda tradicional com a eficiência das transacções digitais. Na prática, é uma nova forma de moeda fiduciária — com ainda menos transparência e menos garantias.

    Existem três grandes modelos de stablecoins. O mais comum é o das moedas lastreadas por reservas fiduciárias, como dólares ou títulos do Tesouro norte-americano, supostamente mantidos numa conta bancária ou num fundo segregado.

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    Foto: D.R.

    É neste modelo que se insere a USD1 de Trump, bem como outras como a USDT (Tether) ou a USDC (Circle). Dizem-se “estáveis” porque cada token emitido corresponde, alegadamente, a um dólar custodiado — seja numa conta bancária ou numa conta valores, com títulos de dívida pública, quase sempre obrigações do tesouro norte-americano.

    O segundo modelo baseia-se no lastro em criptoactivos voláteis, como o Bitcoin ou o Ethereum. O exemplo mais conhecido é a DAI, uma stablecoin parcialmente descentralizada. Neste sistema, cada novo token só pode ser emitido com um colateral mínimo de, por exemplo, 140% em activos digitais.

    Ou seja, para criar 100 DAI, é necessário “imobilizar” 140 dólares em Ethereum ou Bitcoin. Se o valor do colateral cair até, digamos, aos 110%, o sistema liquida automaticamente a posição e queima o token — ou exige mais colateral. É um mecanismo que tenta garantir a estabilidade, mas que pode ruir em momentos de forte volatilidade ou corrida aos activos.

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    Por fim, temos as stablecoins algorítmicas, como a falida Luna do protocolo Terra, que tentavam manter a paridade com o dólar através de incentivos automáticos de mercado: se o valor da moeda caía, queimavam-se tokens para induzir escassez; se subia, criavam-se novos para diluir o preço.

    Apesar dos riscos, as stablecoins oferecem vantagens práticas inegáveis — sobretudo quando comparadas com o sistema bancário tradicional, moroso e obsoleto. Ao contrário das transferências internacionais convencionais, que dependem da rede SWIFT, repleta de intermediários e sujeita a sanções políticas — como se viu no caso dos bancos russos —, uma stablecoin pode ser adquirida, enviada e recebida por qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, com custos reduzidos e em poucos segundos.

    Enquanto uma transferência bancária pode demorar dias, envolver taxas ocultas e depender do humor de burocratas ou reguladores, uma transacção em blockchain faz-se sem passaportes, sem fronteiras e sem autorização prévia. Sobretudo: sem o olhar inquisidor de um funcionário bancário a pedir justificações pela movimentação do dinheiro.

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    O principal risco destas novas moedas digitais não é tecnológico — é político e institucional: o desconhecimento do público quanto ao verdadeiro lastro. É o velho problema do ouro e do papel-moeda, apenas agora reeditado com roupagem digital. No tempo do padrão-ouro, nunca ninguém sabia se as notas em circulação correspondiam, de facto, ao metal guardado nos cofres dos bancos.

    A lógica era simples: os banqueiros, ao perceberem que os depositantes só resgatavam uma pequena parte dos seus depósitos, começaram a emprestá-los a terceiros, cobrando juros, mas sem informar os depositantes, que julgavam ter o dinheiro sempre disponível. Quando muitos tentavam resgatar simultaneamente os seus fundos, a farsa ruía — porque o dinheiro já não estava lá: tinha sido emprestado a prazo, sem liquidez imediata para ser devolvido. Esse modelo, que durante séculos alimentou colapsos bancários e crises financeiras, agora ressurge sob uma nova pele.

    Com esta nova legislação, a situação não desaparece. Embora a nova lei obrigue à existência de reservas 100% líquidas e auditadas, bem como à publicação mensal da composição do lastro, o cidadão comum continua sem meios técnicos para verificar, em tempo real, a correspondência entre tokens emitidos e activos efectivamente detidos.

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    Foto: D.R.

    A confiança permanece cega, baseada em relatórios e fé institucional. Mesmo que exista transparência formal, nada impede que o sistema seja subvertido por criatividade contabilística ou capturado por interesses políticos. A ilusão mantém-se: uma moeda “estável” apoiada por papéis do Tesouro, que por sua vez dependem da confiança no Estado mais endividado da História.

    No fundo, o que o blockchain prometia — transparência radical, rastreabilidade permanente, eliminação de intermediários — acaba diluído num modelo onde a auditoria depende de terceiros, os activos estão sob custódia bancária, e a estabilidade é uma promessa política. O cidadão continua sem saber, com verdadeira certeza, se o token que segura vale aquilo que diz valer.

    Estas stablecoins — apesar de apresentadas como uma grande novidade tecnológica — continuam sujeitas à mesma lógica de censura e controlo que define o sistema financeiro tradicional. A qualquer momento, os “donos” do sistema podem congelar as contas bancárias onde se encontra depositado o lastro, bloquear os pagamentos dos juros das obrigações do Tesouro que servem de colateral, ou simplesmente apagar e congelar endereços no blockchain.

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    Foto: D.R.

    Nada impede que os emissores, sujeitos a supervisores estatais, obedeçam a ordens de bloqueio político, como já sucedeu com a USDC e a USDT — que possuem mecanismos internos para colocar endereços de blockchain em listas negras, ou mesmo a reversão de transacções.

    Os detentores destes tokens, ao contrário do que supõem, não estão protegidos. Continuam presos ao mesmo sistema de sempre — um sistema de repressão das liberdades, vigilância total e controlo arbitrário, tal como acontece com os depósitos bancários.

    A diferença é que agora o poder de censura é instantâneo: basta um clique para congelar, bloquear ou eliminar os fundos — sem explicação, sem aviso, sem recurso. Na essência, estas stablecoins não passam de versões privadas das Moedas Digitais dos Bancos Centrais — como o Euro Digital — com o mesmo nível de submissão, mas publicitadas com a retórica da inovação e da liberdade financeira.

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    Foto: D.R.

    Ao contrário dos bancos tradicionais — que, mesmo a contragosto, ainda remuneram os depósitos para manter os clientes —, os emissores destas stablecoins estão expressamente proibidos de pagar um cêntimo aos seus detentores.

    O dinheiro está sempre “disponível”, mas na prática é imediatamente aplicado em dívida pública norte-americana. Os juros? Revertidos a 100% para os donos da stablecoin — como acontece com o USD1, ligada à família Trump.

    O adquirente do token julga ter um activo estável…mas está, na verdade, a financiar indirectamente o Estado federal norte-americano, sem saber, sem votar, sem o seu consentimento. Foi uma jogada de mestre: o Tesouro substitui os Bancos Centrais — e são agora os privados, em todo o mundo, que financiam a máquina de endividamento dos EUA.

    O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na Casa Branca. / Foto: Casa Branca | D.R.

    Até um agricultor brasileiro ou um comerciante indonésio, ao comprar uma stablecoin, está a comprar dívida pública norte-americana. O mais perverso: esse mesmo dólar tokenizado serve simultaneamente como meio de pagamento para o cidadão — e como moeda fiscal para o Tesouro, que com ele paga salários, subsídios e contratos. É a cascata inflacionária perfeita: um mesmo dólar convertido em token circula como meio de troca, enquanto serve, em paralelo, para financiar a dívida perpétua do império. Um milagre monetário — para os emissores. Uma armadilha perfeita — para todos os outros.

    Com este golpe legislado, institucionalizou-se uma nova cascata inflacionária — talvez até uma quarta, jamais imaginada nem pelo próprio John Law. Vejamos: o Banco Central norte-americano emite dinheiro do nada para comprar obrigações aos bancos comerciais, creditando as suas reservas. Estes, por sua vez, multiplicam esse dinheiro por dez ou quinze vezes, concedendo crédito ao sector privado.

    De seguida, os emissores de stablecoins recolhem dinheiro fresco dos seus compradores — cidadãos que trocam dólares reais por tokens — e transferem esses fundos para o Tesouro, adquirindo dívida pública. O Tesouro, por seu turno, gasta esse dinheiro em salários, subsídios ou contratos.

    O ciclo não acaba aqui: o detentor da stablecoin pode usá-la como meio de pagamento na Internet, ou melhor ainda, pode emprestá-la em plataformas de finanças descentralizadas, obtendo juros por isso. Um mesmo dólar — digitalizado e reciclado em múltiplos circuitos — torna-se simultaneamente dívida, reserva, meio de pagamento e activo financeiro!

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    Foto: D.R.

    Resultado? A inflação não irá cessar nos próximos anos. As casas e a comida continuarão a dirigir-se para a estratosfera. A massa monetária expande-se em múltiplos estratos, sem que haja criação de riqueza real.

    O sistema financeiro reinventou-se como uma máquina de multiplicação infinita da ilusão — agora com contratos inteligentes, blockchain, logótipos patrióticos e a bênção do Congresso norte-americano. Se John Law visse isto, coraria de inveja. O seu castelo de cartas era rudimentar. O de hoje é global, digital, impune — e legitimado por decreto.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Javier Milei: mas, afinal, a catástrofe não chegou?

    Javier Milei: mas, afinal, a catástrofe não chegou?


    Aquando da subida ao poder do autoproclamado anarcocapitalista Javier Milei, em Dezembro de 2023, mais de cem economistas — entre os quais o inevitável Thomas Piketty — assinaram uma carta aberta publicada no jornal britânico The Guardian, alertando para os perigos das propostas do argentino. Diziam que Milei levaria a Argentina à “devastação económica”. A propaganda local garantia que o caos era iminente. A Iniciativa Liberal fugia de Milei a sete pés. O horror “ultraliberal” aproximava-se!

    Passados 19 meses, o silêncio é ensurdecedor. Onde está a debandada de argentinos? Onde está a catástrofe social que, juravam, resultaria da eliminação de subsídios, do despedimento massivo de funcionários públicos, da extinção de ministérios e do corte na despesa pública? Onde estão os factos que sustentam a narrativa da “devastação”?

    Vamos aos números. Quando Milei subiu ao poder, a inflação mensal era de 25,5%. Sim, mensal. Isso equivalia a uma inflação anual superior a 1.400% — mais precisamente, 1.427%. Traduzido: um bem que custava 100 pesos no início do ano passaria a custar 1.526 pesos no final. Uma hiperinflação clássica, das que arrasam salários, poupanças e vidas.

    Hoje, a inflação ronda os 1,5% ao mês, ou seja, cerca de 20% ao ano. É ainda alta? Claro que sim. Mas é um corte de mais de 90% em termos anuais — em menos de dois anos. Um feito. Especialmente tendo em conta que não se tratou de um ajuste gradualista à europeia, mas de uma guinada radical contra o mais perverso parasitismo estatal: a inflação.

    A herança? Em Dezembro de 2023, o Estado argentino acumulava um défice fiscal e externo combinado de 17% do PIB — uma aberração económica. O PIB encontrava-se em contracção — com uma queda de 1,6% em termos anualizados no segundo trimestre de 2023e mais de 41% dos argentinos viviam na pobreza, dos quais 12% em pobreza extrema! O país que, no início do século XX, era mais rico do que grande parte da Europa e dos mais ricos do mundo, transformara-se num campo de ruínas socialistas.

    Hoje, a economia cresce. No primeiro trimestre de 2025, o PIB cresceu 5,8% em termos anualizados. Em Abril, a actividade económica subiu 7,7% face ao mesmo mês do ano anterior e 1,9% face ao mês anterior. São números impressionantes, que colocam a Argentina entre os países com maior dinamismo económico do continente — talvez até do mundo.

    Na despesa pública, a mudança foi ainda mais radical: 30% de corte nos gastos estatais. Cerca de 48 mil funcionários públicos foram despedidos, cerca de 9,8% dos assalariados estatais — menos parasitas, mais trabalhadores no sector produtivo. Estes indivíduos, outrora sustentados pelo saque legalizado do Estado, foram obrigados a procurar valor no mercado — ou seja, a oferecer bens e serviços voluntariamente adquiridos por quem os quer ou a trabalhar para quem os faz.

    Em 2024, o Estado argentino registou um superavit fiscal de 0,3% do PIB. Relembremos: em apenas um ano, saiu-se de um défice de 17% para um saldo positivo! Um corte de 17 pontos percentuais aproximadamente. Quase sem paralelo na história recente de qualquer país dito “democrático”.

    Quanto à pobreza? Também aí houve melhorias. A taxa caiu de 41,7% para 38% no final de 2024, e estimativas recentes sugerem nova redução para cerca de 31,7% no início de 2025. Em números absolutos: milhões de argentinos saíram da pobreza em menos de dois anos — não por programas estatais ou esmolas públicas, mas por redução da inflação, brutal corte na despesa pública e redução de legislação e regulação que asfixiava a economia.

    Tudo isto foi conseguido sem recorrer à emissão de mais dívida pública, sem recorrer à chantagem moral do “direito à habitação”, do “direito ao subsídio”,  ou do “direito à educação” — e, acima de tudo, sem medo de enfrentar a besta estatal.

    Mas nem tudo é perfeito. Para um libertário, duas instituições são incompatíveis com a liberdade: a despesa pública — que confisca o fruto do trabalho — e o Banco Central, esse cartel criminoso com autorização legal para falsificar moeda.

    Quando o governo emite dívida, o Banco Central compra-a com dinheiro criado do nada. Quem recebe este dinheiro novo primeiro — os bancos, os políticos, os plutocratas — consegue usá-lo antes que os preços subam.

    Os pobres, quando finalmente recebem o novo papel, já nada conseguem comprar com ele. É um roubo legalizado. Foi isso que aconteceu em Portugal durante a putativa pandemia, com a impressão massiva do BCE e a destruição silenciosa do poder de compra dos salários e poupanças.

    Milei atacou a despesa pública — e fê-lo com coragem. Mas não fechou o Banco Central, apesar de o ter prometido, que era inegociável. Enquanto o Banco Central existir, continuará a ser o instrumento por excelência de controlo, confisco e empobrecimento. Permite ao Estado evitar o controlo orçamental e garantir o financiamento das elites próximas do poder. Permite manipular taxas de juro, controlar fluxos de capitais, e condicionar toda a economia com um simples clique.

    Não basta reduzir o Estado: é preciso extirpá-lo pela raiz. Não basta cortar na despesa: é preciso remover o princípio do confisco legal. O Banco Central é a espinha dorsal do sistema estatista moderno. Sem ele, não haveria guerras intermináveis, programas sociais insustentáveis, nem um exército permanente de burocratas a parasitar a população. O Banco Central é a máquina que imprime os meios com que o Estado compra a obediência. A sua existência não é apenas um erro técnico: é uma imoralidade.

    A solução é clara: privatizar a produção de moeda, restabelecer o padrão-ouro (ou a concorrência entre moedas privadas) e abolir o monopólio do Banco Central. Num sistema livre, cada indivíduo escolheria em que moeda confiar, e os bancos que praticassem reservas fraccionárias sem consentimento seriam tratados como falsificadores.

    Milei prometeu fechar o Banco Central. Chamou-o de “o cancro da economia argentina”. Repetiu em debates, entrevistas e comícios que isso era “não negociável”. Mas o cancro continua lá. Domesticado, talvez. Vigiado, sem dúvida. Mas vivo. Enquanto viver, será sempre um instrumento de opressão.

    O verdadeiro teste a Milei será esse. Não basta despedir funcionários ou cortar subsídios. Não basta privatizar empresas ou liberalizar importações. O verdadeiro teste é desmantelar a máquina de falsificação monetária. É devolver ao povo argentino o direito de escolher a sua moeda. De proteger a sua poupança. De viver sem ser espoliado todos os meses por um imposto invisível.

    Se Milei quer realmente ser recordado como o primeiro governante libertário da história moderna, terá de ir até ao fim. Terá de fazer o que nenhum outro fez: abolir o Banco Central e permitir que os argentinos seleccionem a sua moeda livremente, sem imposição estatal — ouro, prata, Bitcoin, ou qualquer outra moeda escolhida livremente pelos indivíduos.

    Só assim terminará a farsa. Só assim haverá verdadeira liberdade económica. Só assim, talvez, os libertários poderão dizer: “Pela primeira vez, um de nós chegou ao poder — e não cedeu.”

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Como sair da pobreza?

    Como sair da pobreza?


    A pobreza extrema foi, durante milénios, a condição natural da humanidade. Não era um acaso, nem uma injustiça histórica, nem o resultado de alguma trama dos ricos contra os pobres.

    Era simplesmente a realidade bruta: escassez de comida, abrigos rudimentares, mortalidade infantil, vidas curtas e sofrimento permanente. A verdadeira pergunta é outra: como é que se saiu dessa pobreza? Por que motivo essa saída ocorreu na Europa, mais precisamente em regiões como a Inglaterra, Bélgica, Alemanha, os países escandinavos, o império Austro-húngaro e os EUA, e só mais tarde no sul da Europa?

    (Imagem 1) Média global do PIB per capita mundial entre o ano 1 e 2023
    (Unidade: Dólares internacionais a preços de 2021) / Fonte: OurWorldinData.org; Dados compilados a partir de várias fontes pelo Banco Mundial (2025); Bolt e van Zanden – Base de Dados do Projecto Maddison 2023; Base de Dados Maddison 2010

    A resposta não está na geografia nem em dádivas naturais. Está na cultura. Mais concretamente, está na adopção de valores que promovem o aforro, o capitalismo, o acesso a energia barata e uma ética de trabalho enraizada.

    Começamos pelo aforro. Poupar é, essencialmente, abdicar de um consumo imediato em favor de um futuro melhor. Imagine-se um homem numa ilha com coqueiros. Se quer aumentar a produção de cocos, terá de construir uma vara. Para isso, precisa de tempo e energia. Para sobreviver durante essa produção, precisa de ter poupado cocos. A vara não o alimenta, mas permite-lhe colher mais no futuro. Isso é um bem de capital. Essa é a essência do desenvolvimento: produzir bens de capital através da poupança.

    Ora, sociedades que não poupam vivem como crianças. Perante a escolha entre um caramelo hoje ou cinco amanhã, preferem o de hoje. Não há planeamento, não há responsabilidade, não há futuro. A sociedade moderna, embriagada de consumismo e subsídios, tornou-se infantil.

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    Mas para que exista poupança é necessário um certo tipo de cultura. O cristianismo e a Igreja Católica desempenharam aqui um papel fundamental. Desde cedo, a moral cristã valorizou a frugalidade, o trabalho, o sacrifício e a preparação para um bem maior. As ordens monásticas, com a sua disciplina, tornaram-se verdadeiras fábricas de capital humano e de bens de capital.

    A Igreja instituiu uma cultura de compromisso, estabilidade familiar e confiança interpessoal: valores essenciais para que o futuro seja previsível e, por isso, digno de ser planeado. O casamento monogâmico e duradouro, a condenação da usura e da fraude, e a sacralização do futuro funcionaram como pilar civilizacional.

    Em Portugal, durante o Estado Novo, essa cultura estava enraizada. A poupança era regra. A família era o centro da vida económica. A comunidade impunha vergonha a quem falhava com as suas obrigações. Havia confiança. O Estado não prometia paraísos. Obrigava cada um a ser responsável.

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    A estabilidade monetária e orçamental favoreceu um crescimento sólido. Havia uma estrutura etária jovem, famílias fortes, e um sentimento de dever intergeracional. E, acima de tudo, ausência de um Estado social parasitário que anestesia a responsabilidade pessoal.

    Outro ponto essencial: sem respeito pela propriedade privada não há incentivos para poupar ou investir. Se o homem da ilha sabe que, ao terminar a vara, virá outro roubá-la, por que motivo haveria de a produzir? Ora, o que o Estado faz hoje é isso mesmo. Através de impostos, inflação e dívida, confisca os frutos do trabalho e da poupança, matando os incentivos à responsabilidade.

    A dívida pública é o equivalente a armar um grupo de bandidos para saquear vizinhos, com a promessa de repartir o saque. Os recursos não vão para investimentos produtivos, como fábricas ou computadores, mas sim para consumo imediato e votos comprados. Este mecanismo destrói a poupança, distorce a economia e cria uma população viciada em esmolas.

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    O segundo pilar: o capitalismo. Sem propriedade, sem lucros, sem preços livres, não há como afectar capital de forma eficiente. O socialismo é apenas viável em tribos, onde não há mercados. Na ex-URSS, os dirigentes recorriam aos preços dos mercados ocidentais para tomar decisões, pois sem preços não havia cálculo económico possível.

    Se um empresário tem de somar ovos, calças e laranjas nas receitas e subtrair carne, fiambre e couves nos custos, como sabe se obteve lucro? Precisa de uma moeda. Precisa de preços livres. Precisa de contabilidade. A partida dobrada, inventada nas cidades-estado católicas italianas, foi um marco civilizacional nesse sentido. Hoje, a contabilidade foi capturada pelo Estado, e os contabilistas servem para denunciar os que tentam escapar ao confisco.

    Outro instrumento essencial: as bolsas de valores. Criadas na Holanda protestante e depois replicadas em Inglaterra, Alemanha, países escandinavos e Império Austro-húngaro, foram instituições fundamentais para a descoberta de preços, mobilização da poupança e afectação eficiente de capital. Chegaram tarde ao Sul da Europa. Onde existiam, prosperava-se.

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    As bolsas permitem liquidez, permitem que pequenos investidores sejam integrados no sistema capitalista, na correcta afectação de capital, e impõem disciplina às empresas. A selecção é natural: os melhores prosperam, os piores desaparecem. É a destruição criadora. É o que o Estado tenta impedir, ao resgatar empresas falidas ou impor regras ESG ridículas que obrigam a contratar segundo quotas e não segundo a competência.

    Terceiro pilar: energia barata. O crescimento vertiginoso do PIB per capita desde o século XIX coincide com o início da exploração de combustíveis fósseis e da energia a vapor. Foi isso que substituiu a escravatura. Deixámos de depender do braço humano. A produtividade explodiu. Mas hoje, diaboliza-se essa energia barata com a mentira climática. Os impostos ecológicos servem para roubar e redistribuir aos amigos com empresas de energia verde subsidiada. O critério não é económico. É político.

    Por fim, a ética de trabalho. Trabalhar é produzir. Quem trabalha não está a consumir, está a gerar riqueza; mais: está a adquirir experiência, relações, mérito. Cada dia de trabalho é um dia de capital humano acumulado. Mas hoje venera-se o ócio. Feriados. Pontes. Subsídios. Rendimento mínimo garantido. Como se a riqueza surgisse do ar. Quem é que vai sustentar essa gente? O Estado? O Estado só pode tirar a quem produz. É um intermediário de saque.

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    Por isso, a riqueza não se explica por magia, sorte ou planificação central. Explica-se por cultura, por responsabilidade, por liberdade e por propriedade. A riqueza é a excepção. A miséria é o estado natural. Tudo o que hoje vemos ser destruído — a poupança, a propriedade, a confiança, a liberdade de investimento — são os alicerces da civilização. Quando forem totalmente arrasados, não restará senão a pobreza. Como antes. Como sempre.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Irão, ou como a impressora de notas norte-americana tudo arrasa

    Irão, ou como a impressora de notas norte-americana tudo arrasa


    Na madrugada do último 13 de Junho, Israel lançou uma ofensiva aérea massiva contra o Irão, numa acção coordenada que envolveu cerca de 200 aviões de combate e mais de 300 bombas lançadas sobre instalações nucleares, bases militares e centros de comando iranianos.

    A operação, baptizada “Leão em Ascensão”, visa destruir o programa nuclear iraniano e eliminar altos quadros políticos, militares e científicos iranianos. Em resposta, o Irão retaliou com mísseis e drones, atingindo alvos civis e militares em Israel, provocando dezenas de mortos e reacendendo a instabilidade regional, num confronto que se anuncia prolongado e potencialmente devastador, pois a este conflito poderá juntar-se ainda o colosso norte-americano ao lado de Telavive.

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    Se há povo que sabe o preço do sangue colonial é o persa. Entre 1917 e 1919, em plena Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido converteu a neutral Pérsia num matadouro a céu aberto: confiscou cereais, bloqueou importações e lançou o país numa fome que ceifou entre seis e dez milhões de vidas — até metade da população de então. Esta tragédia, apagada dos manuais ocidentais, permanece tatuada na memória colectiva iraniana como o seu holocausto silenciado

    Quando, décadas depois, Londres e Washington derrubaram o nacionalista Mohammad Mossadegh — que ousara nacionalizar o petróleo iraniano —, o fantasma do Império voltou a erguer-se. A Operação Ajax, comandada pela CIA e pelo MI6, reinstalou o Xá e entregou o ouro negro de volta às sete irmãs anglo-americanas (BP, Shell, Exxon, Mobil, Chevron, Gulf Oil e Texaco). Os documentos desclassificados da própria CIA não deixam dúvidas: foi um golpe palaciano puro e duro

    Para vigiar o novo vassalo, inventaram a SAVAK, polícia secreta treinada por ex-nazis e “sionistas revisionistas”: tortura industrial em nome da estabilidade. O serviço foi montado com o apoio directo da CIA e da Mossad, que forneceram métodos, quadros e doutrina. A sua actuação estendia-se das escutas domésticas à eliminação de dissidentes, passando por práticas sádicas dignas da Gestapo.

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    Hoje, as celas húmidas, os instrumentos de afogamento e os manequins ensanguentados ainda podem ser visitados no Museu Ebrat, em Teerão — antiga prisão política da SAVAK, agora convertida em memorial da dor. Ali se expõem as marcas do horror, como aviso e testemunho. Quando o Xá caiu em 1979, os iranianos sabiam, quem, em Londres e Washington, mexia os cordelinhos.

    Em Janeiro e Fevereiro de 1979, graças a manobras dos EUA e de França nos bastidores, o Xá Mohammad Reza Pahlavi foi pressionado a abdicar — dentro, aliás, de planos discutidos na cimeira de Guadalupe, onde Carter, Callaghan, Giscard e Schmidt deliberaram sobre a crise iraniana. Dois dias após a sua partida (entre 16 e 18 de Janeiro), Khomeini regressou ao Irão, desembarcando em Teerão a 1 de Fevereiro e recebendo a homenagem de milhões de apoiantes nas ruas.

    O exílio acabava, o poder clerical começava. A liderança militar realinhou-se rapidamente, rendeu-se, e apenas onze dias depois — a 11 de Fevereiro — o regime do Xá desmoronou por completo, dando lugar ao governo provisório liderado por Mehdi Bazargan.

    2 person wearing black hijab standing in front of white wall

    Até mesmo membros da oligarquia ocidental, como o secretário de Estado Cyrus Vance, defendiam que o Irão devia aceitar uma transição moderada, a fim de estabilizar o país após o regresso de Khomeini.

    Da ocupação britânica ao xadrez nuclear contemporâneo, o nó górdio chama-se petrodólar. Desde o final da Segunda Grande Guerra, mas em particular desde o final de Bretton Woods em 1971, o dólar norte-americano sobrevive não pela virtude, mas pela coerção: petróleo, sanções, sistema Swift.

    O Irão é um dos poucos Estados que evita essa camisa-de-forças — vende petróleo em iuanes, rublos, rupias, ouro, qualquer coisa menos dólares norte-americanos. É, pois, um herege monetário e, logo, inimigo sistémico desde que é governado por um regime teocrático abominável, cuja ascensão foi, no mínimo, tolerada — e até encorajada — pelos estrategas ocidentais, que viram em Khomeini um antídoto conveniente ao nacionalismo laico e à influência soviética.

    a pile of money with bullet shells on top of it

    Desde o final da convertibilidade do dólar norte-americano em ouro, em 1971, sempre que algum Estado ousa levantar-se contra esse trono verde-oliva, a resposta é sempre a mesma: bastão e dor. Veja-se o Iraque de Saddam Hussein, que em 2000 começou a vender petróleo em euros — três anos depois, foi acusado de esconder armas de destruição maciça (nunca encontradas), invadido, ocupado e transformado num cemitério civilizacional.

    Veja-se a Líbia de Kadhafi, que planeava lançar um dinar-ouro africano e escapar ao dólar norte-americano e ao franco CFA (Colonies Françaises d’Afrique). Foi bombardeada pela NATO em 2011, e hoje é um Estado falhado onde se traficam órgãos e escravos. Estes não são acidentes: são castigos exemplares.

    Rejeitar o dólar norte-americano não é uma simples opção económica — é uma declaração de guerra ao império monetário, e quem ousa rebeldia paga invariavelmente com sangue. O Irão, que há décadas vende petróleo em quase todas as divisas excepto o dólar norte-americano, conhece esse preço até à medula.

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    Nesta arquitectura, as “instituições independentes” e supranacionais — FMI, Banco Mundial, A Agência Internacional para a Energia Atómica (AIEA) — são fiadoras da primazia verde-oliva norte-americana. Se a AIEA se revelar uma correia de transmissão de Telavive (e, por tabela, da Casa Branca), desmorona-se o mito da imparcialidade tecnocrática que sustenta o regime global de sanções. Sem sanções, não há chantagem; sem chantagem, o dólar norte-americano perde o trono.

    Antes da análise à presente crise, importa recordar que em 2006, quando as autoridades libanesas anunciaram a descoberta de uma vasta rede de espionagem ligada à Mossad — chefiada por Mahmoud Abou Rafeh, um oficial da polícia que confessou operar para Israel e escondia explosivos e equipamentos de escuta em casa —, Telavive respondeu como habitualmente sabe: com mísseis.

    O cerco à verdade foi silenciado a fogo e aço. As investigações, que ameaçavam revelar infiltrações israelitas nos mais altos escalões libaneses, foram abruptamente interrompidas quando Israel lançou uma ofensiva devastadora contra o Líbano sob o pretexto de resgatar dois soldados capturados. Tal como agora, a sequência foi clara: primeiro a revelação, depois os bombardeamentos. O padrão é sempre o mesmo — quando a verdade ameaça emergir, há que criar uma cortina de fumo feita de explosões.

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    Foi aqui que o enredo se repetiu. A 7 de Junho do presente ano, Teerão divulgou ter capturado documentos confidenciais que comprometeriam Rafael Grossi, o director-geral da AIEA, em alegada colaboração ilícita com Israel. O argentino, recorde-se, já ficara mudo em 2022 quando admitiu, em Davos, que Kiev armazenava toneladas de plutónio e urânio — assunto logo abafado.

    Cinco dias depois, o Conselho de Governadores da AIEA aprovou, à pressa, uma resolução acusando o Irão de falta de cooperação. Rússia, China e Burkina Faso votaram contra. O escândalo ameaçava romper a cortina de credibilidade da Agência.

    Na madrugada seguinte, a 13 de Junho, rugiu o “Leão em Ascensão”: 200 F-35l e F-15, 330 bombas guiadas, 100 alvos — Natanz, Fordow, bases Quds, radares S-300. A sincronização é cirúrgica: denúncia de conluio hoje, bombardeamento amanhã. Quem duvide da causalidade que estude a cronologia.

    orange and yellow abstract painting

    A propaganda internacional alinha-se: Telavive exerceu “legítima defesa preventiva”. Nada de novo no teatro das operações psicológicas. Desapareceu a pergunta essencial: por que motivo se bombardeia exactamente no dia em que a máscara da AIEA estala?

    Porque admitir a parcialidade da Agência equivaleria a admitir que o sistema multilateral é um jogo viciado. Sem árbitro “neutro”, ruem as sanções; sem sanções, ruem as cadeias que prendem economias inteiras à liquidação de transacções internacionais em dólares norte-americanos; sem essa algema cambial, o “excepcionalismo” norte-americano dissolve-se.

    Convém nunca esquecer quem plantou a semente: o Reino Unido, o primeiro carrasco da fome persa, primeiro arquitecto do mapa sectário do Médio Oriente, primeiro fiador do Estado de Israel “incapaz de se defender sozinho”, como estipulou em 1915. Hoje sustenta Benjamin Netanyahu à direita e a Irmandade Muçulmana à esquerda, mantendo o conflito em eterno ponto de ebulição. A velha Albion a jogar xadrez com sangue alheio, como sempre fez.

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    Israel não atacou apenas centrifugadoras. Atacou a hipótese de vermos, a cores, a promiscuidade entre a AIEA e o seu arsenal nuclear não declarado. Atacou, por ricochete, qualquer questionamento à ordem monetária que mantém 330 milhões de norte-americanos a viver à custa de um planeta forçado a usar pedaços de papel verde.

    Enquanto um só míssil cair sobre Teerão ou Telavive, o debate sobre o petrodólar, a farsa das sanções e o genocídio britânico de 1917-19 permanecerá fora da “imprensa”. É assim que se conserva um império: mata-se a verdade à fome, exactamente como se matou metade do Irão há um século.

    Que ninguém se engane: o “Leão em Ascensão” não defende Israel — defende o trono do dólar norte-americano. Cada bomba que explode é, afinal, uma nota verde impressa com tinta de sangue.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dermatologista ‘ladrão’ e a vaca sagrada SNS

    O dermatologista ‘ladrão’ e a vaca sagrada SNS


    Num país onde o Estado se arvora em zelador da moral, da saúde e da dignidade pública, um médico dermatologista embolsa mais de quatrocentos mil euros em apenas dez sábados, como quem colhe, sem lavrar, os frutos da horta alheia.

    Miguel Alpalhão, médico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, consagrou-se, não pela excelência da ciência, mas pela astúcia de facturar, em regime de ‘produção adicional’, valores de uma obscenidade que fariam corar qualquer boticário de uma qualquer aldeia remota.

    silver and black stethoscope on 100 indian rupee bill
    Foto: D.R.

    Dizia-se que removia quistos e sinais benignos, mas cobrava como quem executa cirurgias de alta complexidade. Fê-lo sob o manto da legalidade, apadrinhado pelo labirinto regulamentar que permite, em nome do combate às listas de espera, instituir verdadeiros coutos privados dentro do ‘património público’. Não foi um erro. Foi um modelo. Todos sabiam.

    A ministra, com aquele semblante de virtude ultrajada que só a classe política domina, prometeu auditorias, sindicâncias, relatórios. Mas a encenação repete-se. O drama é sempre o mesmo: um escândalo, um discurso, um manto de silêncio. O país volta a dormir. O que ninguém ousa perguntar é o essencial: como é possível que isto não aconteça com regularidade, quando o modelo inteiro é concebido para o abuso?

    Todos os partidos, das franjas da extrema-esquerda ao centro plastificado da direita urbana, passando pela nova direita de timbre autoritário e pela liberalóide ilusão meritocrática, rezam o mesmo credo: o problema é de gestão, não é de modelo. Juram, com fervor quase religioso, que se forem eles a nomear os directores, a escolher os chefes de serviço, a contratar os cozinheiros de hospital, tudo será maravilha, eficiência e ética. Nenhum assume que o planeamento central é, por definição, um convite à corrupção, ao compadrio e ao desperdício.

    A ministra da Saúde, Ana Paula Martins. / Foto: D.R.

    A classe política portuguesa assemelha-se a uma irmandade de prestidigitadores: com um golpe de retórica, fazem desaparecer as causas e projectam as culpas para os rostos mais fáceis. O problema nunca é estrutural, nunca reside no sistema, mas sempre em algum actor que “abusou” ou “exagerou”. Contudo, um sistema concebido para funcionar sem preços, sem propriedade privada, sem responsabilidade directa, não é passível de reforma: é passível de abolição. Os vícios do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não são acidentes. São a expressão natural da sua arquitectura moral e económica.

    O equívoco não é apenas económico: é civilizacional. A Constituição da República Portuguesa, esse alfarrábio de pretensões pias e contradições colossais, mistura direitos negativos com pretensos direitos positivos, confundindo liberdade com benesse, propriedade com concessão, dignidade com dependência.

    Os verdadeiros direitos, os únicos compatíveis com uma ordem justa, são negativos: não ser morto, não ser roubado, não ser preso arbitrariamente. Para esses, não se exige nada a ninguém, apenas que se abstenham da violência. Já os chamados direitos sociais, como a saúde, a educação ou a habitação, exigem espólio, administração, coerção. Alguém tem de pagar, à força se preciso for. É aqui que a liberdade se esvai.

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    Foto: D.R.

    Não há nobreza na espolça fiscal, nem dignidade na dependência estatal. Quando um cidadão é obrigado a entregar parte do fruto do seu labor para sustentar um sistema que não escolheu, não está a contribuir: está a ser saqueado. Quando o serviço oferecido é de baixa qualidade, lento, burocrático e opaco, não está a ser ajudado: está a ser ludibriado. Quando lhe dizem que tudo isto é um direito, não está a ser informado: está a ser enganado.

    O que todos se esquecem de dizer: o cálculo económico é impossível num contexto socialista; ou seja, quando os meios de produção pertencem ao Estado. Sem propriedade privada, não há preços genuínos. Sem preços, não há como saber se um acto de produção é eficaz ou ruinoso. A informação económica é dispersa, contextual, intransmissível centralmente. Nenhum ministério da saúde, por mais computadores que tenha, pode substituir o juízo descentralizado de milhões de indivíduos a tomar decisões diárias no mercado. Não se trata apenas de ineficiência, mas de imoralidade institucionalizada. Um sistema como o SNS é construído sobre roubo, sobre coerção, sobre arrogância tecnocrática. O utente não é cliente. O médico não serve. Obedece. O gestor não inova. Cumpre directivas.

    Querem exemplo mais claro? Imaginem que o Estado decidia assegurar comida gratuita para todos, em nome do ‘direito à alimentação’. Criava uma rede de cantinas públicas, com cozinheiros contratados por concurso, ementas definidas por nutricionistas da DGS, fornecimentos atribuídos a empresas amigas.

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    Foto: D.R.

    À entrada, filas. No prato, arroz sem sal e peixe congelado. Os alimentos frescos sumiam-se nos desvios logísticos. Os directores de cantina enchiam os bolsos com subornos e favores. Os empregados de mesa tinham, obviamente, cartão partidário. Os utentes, esfomeados, procuravam alternativas no mercado negro. O Estado, incapaz de admitir a falência, dizia que faltava “mais investimento”. É exactamente isso que sucede com o SNS.

    Até um mendigo, que vive da caridade e do excesso alheio, consegue comer e vestir-se numa sociedade capitalista. Porque o mercado, quando livre, produz abundância tal que o excedente serve até os que não produzem. Um par de calças, uma refeição quente, um cobertor – tudo isto se consegue pela livre acção humana, sem coerção, sem regulamento. Mas o mesmo Estado que diz querer ‘garantir’ direitos é o primeiro a impor barreiras, a destruir incentivos, a punir a excelência. Na saúde, como na comida, como na educação, o planeamento central gera escassez, degradação, corrupção.

    É tempo de dizê-lo sem meias palavras: a saúde não é um direito, é um bem económico. Não é moral que um cidadão seja coagido a pagar pelos serviços de outro, sob pretexto da solidariedade. Não é justo que sejamos espoliados para sustentar um sistema que nos trata como utentes, não como senhores da nossa vontade. É justo, sim, que cada um possa escolher o seu médico, o seu hospital, o seu seguro. Que possa contratar, pagar, reclamar. Que possa, em liberdade, decidir como cuidar da sua própria saúde.

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    Foto: D.R.

    Mas para isso, é preciso coragem. Coragem para dizer que o rei vai nu. Coragem para enfrentar a turba que venera o SNS como se fosse um altar. Coragem para admitir que somos enganados há décadas. E, sobretudo, coragem para mudar. Até quando iremos insistir nesta fraude?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pote dos 133 mil milhões e os parasitas em campanha

    O pote dos 133 mil milhões e os parasitas em campanha


    Termina hoje mais uma campanha eleitoral neste bordel institucionalizado a que insistem em chamar democracia representativa. Foi, como sempre, uma campanha sem debate sério, sem ideias que rompam com o estatismo doentio que define o regime, e marcada — outra vez — pela suspeita de corrupção no seio do poder.

    Desta feita, não foi o PS que caiu do cavalo, mas o PSD, em plena montada: o escândalo tem nome de clínica privada de fisioterapia ou rótulo de uma garrafa de vinho verde — Spinumviva. A empresa do agora primeiro-ministro Luís Montenegro e família, que afinal tinha como clientes os senhores da Solverde, uma empresa que explora casinos.

    Ninguém, porém, ousa colocar a verdadeira questão: se vivêssemos em mercados livres, onde qualquer indivíduo pudesse abrir um casino, como um talho ou uma padaria, por que razão um empresário pagaria a Montenegro por acesso e favores?

    A resposta é óbvia: porque os mercados não são livres — são cartéis legislados, concessões para monopólios, onde os donos mudam de camisa conforme o partido no poder. O Estado, esse buraco negro de favores e regulações, cria a escassez artificial, fecha a porta ao concorrente e permite que os Montenegro desta vida vendam a chave da entrada. É a porta giratória do banditismo democrático.

    Mas não se pense que isto se resume à Solverde ou ao PSD. O verdadeiro drama português é o pote. Um pote de 133 mil milhões de euros, segundo o Orçamento do Estado para 2025. É a soma colhida à força por um exército de fiscais, inspectores e cobradores de dízimos, sob a égide de uma máquina chamada Autoridade Tributária. Chamam-lhe o “nosso dinheiro”. Mas o que é arrancado com ameaças não é “nosso” — é deles, os que decidem quem mete a mão no pote. Todos, mas todos os partidos, disputam apenas isso: quem o esvazia, quanto e para quem.

    A única preocupação das duas alas do Partido Socialista — PS1 (de Pedro Nuno) e PS2 (de Montenegro) — é garantir que continuam a ter prioridade na colher. O medo não é o colapso do regime, mas a entrada de um novo parasita: o Chega. Ventura, esse populista profissional, não quer mudar o sistema, apenas alterar os convidados à mesa. Nada de cortes na despesa, nada de redução do Estado, nada de liberdade. Quer mais leis, mais regulamentos, mais penas e mais polícia — ou seja, mais Estado.

    No entanto, o problema estrutural é evidente: há milhões de portugueses que já não contribuem para o pote, mas dele dependem. Em 2025, o Estado prevê gastar 43,5 mil milhões de euros em pensões — incluindo as não contributivas, os complementos solidários e os reformados da CGA.

    Acrescem os subsídios: 1,7 mil milhões em desemprego, fora os de doença, maternidade, inserção e por aí fora. No total, são 51,3 mil milhões de euros a sair do pote — ou seja, quase 4.800 euros por português. Entretanto, as contribuições para a Segurança Social somam apenas 37,9 mil milhões — um défice de 13,4 mil milhões que é coberto com os impostos gerais: IRS, IVA, ou seja, o roubo normalizado aos que ainda trabalham.

    A mentira do porquinho é das mais perversas. Disseram a cada português que poupava para si mesmo, mas o que sempre existiu foi um sistema de redistribuição forçada — onde os activos são saqueados para comprar os votos dos inactivos. É o modelo do bandido estacionário: o político não destrói a sua base de exploração, mas confisca de uns para comprar os outros. O tempo é curto, por isso urge perpetuar-se no poder.

    É nesse desespero que nasce a política de importação de gado humano. Milhares de imigrantes do terceiro mundo, muitos sem qualificações e com um sonho na cabeça, são despejados num país sobrelotado, com rendas absurdas, hospitais de campanha, transportes públicos ao estilo de Calcutá e escolas onde o português já é a segunda língua. Tudo “grátis”, claro. Gratuito para quem chega, pago por quem fica — até à exaustão.

    O povo acorda, e eis que a “extrema-direita” ganha palco. Palavras como “deportação” entram na arena pública com o Chega, o Ergue-te e o ADN, cada um à sua maneira, apontando o dedo aos imigrantes. Mas, paradoxalmente, não se insurgem contra o sistema que os trouxe. Esperam, com algum cinismo, que o mesmo Estado que os atraiu com subsídios e serviços “grátis”, pagos pelo colectivo saqueado, agora os expulse.

    À esquerda, o delírio mantém-se intacto. O Bloco de Esquerda fala de tectos às rendas como se a inflação, a invasão do terceiro mundo, os impostos, as taxas, as licenças, o IMI, o IMT, o IRS, o IRC e a impressora do BCE não existissem. O problema do preço das casas é, para eles, apenas o senhorio. Vivem, definitivamente, num universo paralelo.

    A CDU segue fiel à cassete: nacionalizar a banca e os “sectores estratégicos”. Quais são? Nunca se sabe. É a mesma dúvida quando se trata de identificar os rostos do “Grande Capital”. São os que o Comité Central definir numa noite de tinto e tremoços. Com que dinheiro? Com o dinheiro do gado, claro. Porque, no fundo, a vaca fiscal tem de continuar a ser ordenhada — mesmo que já só largue sangue.

    O Livre, por sua vez, atinge novos cumes de comédia trágica. Propõe “dar” 5 mil euros por cada nascimento. É como se o ladrão, depois de nos assaltar, nos oferecesse uma manta para o berço. É a ilusão estatista no seu esplendor: tiram-nos 10, devolvem-nos 2 e esperam que agradeçamos de joelhos.

    O mesmo raciocínio se aplica à sua proposta de taxar as “grandes fortunas”. Como se alguém que emprega centenas, arrisca o seu capital e gera riqueza devesse ser castigado por ter sucesso. Talvez desejem que os empresários vendam as suas fábricas para pagar os caprichos de Paulo Raimundo ou Rui Tavares. É a destruição da criação para alimentar a redistribuição.

    E a Iniciativa Liberal? São apenas globalistas simpáticos? Dizem que “desejam” cortar impostos — roubar menos. Mas propõem cortar 1% por ano na despesa pública!, o que é uma anedota em câmara lenta. É como prometer emagrecer comendo mais arroz e a mesma feijoada. Sem cortes reais na máquina pública, a redução de impostos é só um aperitivo de ilusão.

    O PS1 defende o Estado Social como “a maior conquista de Abril”, esquecendo convenientemente que nos trouxe três bancarrotas e abriu as portas a uma invasão do terceiro mundo. A ideia de que um punhado de políticos e burocratas gere melhor o dinheiro dos outros do que os próprios indivíduos é o dogma central desta seita.

    Já o PS2 fala em baixar impostos, mas sem mexer na despesa. Tal como a IL. Resultado: nada de novo. A dívida continuará a crescer, a despesa continuará a explodir e o empobrecimento será inevitável.

    Portugal está entregue. Não à direita ou à esquerda. Está entregue à lógica do saque. A única variável que muda é o nome do assaltante. O pote de 133 mil milhões continua a ser servido na mesa. Os comensais, de garfo e faca na mão, olham para si!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O apagão e o bandido estacionário

    O apagão e o bandido estacionário


    Na passada segunda-feira, Portugal, o país dos 133 mil milhões de euros em receitas estatais anuais – confiscados sob ameaça a uma população que trabalha de sol a sol –, converteu-se num autêntico Burkina Faso durante algumas horas. Sem energia, sem serviços, sem Estado funcional.

    Um buraco negro institucional a que chamam “serviço público”. Quem confiava na omnipotência estatal percebeu, mesmo que só por momentos, que o rei vai nu, muito nu. O Leviatã que tudo prometia é um colosso com pés de barro.

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    É nestes momentos que vale a pena lembrar a analogia do bandido estacionário, conceito desenvolvido pelo economistra norte-americano Mancur Olson no século passado. Porque se há imagem que melhor sintetiza o Estado, é essa: o ladrão que deixou de fugir e decidiu ficar.

    Imaginemos um vale fértil, habitado por camponeses laboriosos. Um Éden terrestre, onde a riqueza brota do suor e da terra. Os camponeses vivem em paz, trocam entre si, cultivam os campos, constroem famílias e vida. Um dia, das montanhas, descem uns salteadores: armados, sedentos de ouro e mulheres, disparam, assaltam, saqueiam. Mas, como qualquer ladrão, fogem. Saquear e fugir, essa é a essência do bandido tradicional.

    Mas eis que surge um novo tipo de bandido. Um que, ao olhar o vale fértil, pensa diferente: “E se ficasse? Se, em vez de fugir, ficasse aqui para sempre a saqueá-los? Mais eficiente, mais contínuo, menos arriscado.” Assim fez: instalou-se no vale, autoproclamou-se rei, distribuiu títulos nobiliárquicos pelos seus lacaios e instituiu a primeira taxa: 10% de tudo o que os camponeses produzissem. Nascia assim o Estado. O roubo organizado, institucionalizado, perpétuo. O bandido estacionário deixara de ser bandido: tornara-se governante.

    a lit candle in the dark with a black background

    Mas este novo tipo de ladrão tinha um problema: a aritmética. Os camponeses eram muitos, os bandidos eram poucos. Como evitar a revolta? Como manter o saque sem resistência? A resposta foi tão velha quanto genial: a dissimulação. A força bruta não bastava. Era preciso convencer as vítimas de que não estavam a ser roubadas. Era necessário construir um véu de legitimidade, de inevitabilidade, de justiça. Nascia assim a propaganda.

    Ao longo da história, o bandido estacionário serviu-se de tudo. Da religião (“o rei governa por vontade divina”), da inflação (“não é roubo, é política monetária”), da manipulação simbólica (as colunas de Trajano, os hinos patrióticos, os retratos oficiais, as estátuas dos governantes), da pedagogia da servidão (as escolas públicas, os manuais de “cidadania”). A arte do parasita é sofisticada: quanto mais complexa for a estrutura, menos perceptível será o roubo. É por isso que as vítimas, hoje, nem sabem o que lhes está a acontecer.

    Depois, o golpe de mestre: o contrato social. Um documento que ninguém viu, ninguém assinou, mas que supostamente legitima tudo. Reza a fábula que homens livres e selvagens, felizes no planeta Terra, se reuniram voluntariamente para estabelecer um acordo com o seu opressor. O resultado? Um monopólio do uso da força, dos tribunais, da justiça. Quem rouba julga. Quem abusa legisla. Um prodígio de circularidade lógica que até faria rir o Diabo. É como se o lobo passasse a decidir litígios entre as ovelhas e as suas próprias dentadas.

    Numa fase inicial, nos tempos da monarquia absoluta, o saque era mais honesto. Sabíamos quem nos roubava. Era um homem, com nome, cara e trono. O roubo era concentrado. O povo via o ouro, os bailes, as orgias palacianas, e, de vez em quando, revoltas e revoluções despontavam. Quando Maria Antonieta sugeriu que dessem bolos ao povo, o povo respondeu com guilhotinas. A visibilidade do parasitismo era o seu maior inimigo.

    Com a democracia, o golpe foi ainda mais brilhante. Agora, todos, em teoria, podemos ser ladrões. Todos podemos aceder ao pote. O roubo democratizou-se. A ilusão é que há participação. Mas o resultado é idêntico: o dinheiro vai para o mesmo lado.

    A diferença? O trajecto. Na monarquia, o saque ia do povo para o rei. Na democracia, vai do povo para o “público” – esse conceito abstracto e gaseificado – e depois, pelas vias do compadrio, escorre até ao bolso dos novos duques: os administradores de empresas públicas, os assessores autárquicos, os gestores de monopólios subsidiados, os parasitas eleitos. Gente que não sabe estrelar um ovo, mas que aparece todos os meses com salários de cinco dígitos para “servir o interesse comum”.

    E onde entram as causas ambientais nesta equação? Ora, onde sempre entraram as causas nobres: como camuflagem. O CO2, o alimento das plantas, tornou-se o novo Satã. Como nas indulgências da Igreja, em que se pagava para salvar a alma, agora paga-se para salvar o planeta. É o mesmo mecanismo medieval, agora com verniz ecológico. Um pretexto para confiscar mais. O gado confuso aceita tudo: imposto sobre combustíveis, imposto sobre automóveis a combustão, imposto sobre o plástico, imposto sobre energia fóssil. Tudo em nome da salvação!

    Onde se gasta esse dinheiro? Nas empresas de energias renováveis, claro. Não porque estas sejam viáveis, mas porque são a nova galinha dos ovos de ouro do saque bem-pensante. Os amigos do regime aparecem como administradores dessas empresas, recebem subsídios, benefícios fiscais, contratos garantidos, financiamento verde, directamente da impressora do BCE. É o milagre da multiplicação do saque. É o assalto com arco-íris e painéis solares. Tudo com um sorriso e uma propaganda impecável. Porque, lembremos, a arte do bandido estacionário não é roubar com violência, mas sim com consentimento.

    Eis, portanto, a realidade nua: vivemos num sistema de pilhagem institucionalizada, sofisticada, pacífica e contínua. O apagão de Segunda-feira foi apenas uma breve revelação. Uma janela para o que acontece quando o bandido estacionário “falha” por umas horas: o caos. Mas o caos não é a ausência do Estado. O caos é o Estado em acção, quando deixa cair a máscara de eficiência e se mostra na sua forma crua: um parasita gigantesco a sugar a vida de milhões, em nome do bem comum.

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    Portugal não precisa de mais Estado. Precisa de menos. Não precisa de mais democracia, precisa de mais liberdade. Não precisamos de novos líderes, precisamos de menos ladrões. O bandido estacionário não se reforma. Só desaparece quando o povo se recusar a ser vítima. Quando entende que não deve tributo ao seu assaltante, nem vassalagem ao seu algoz.

    Até lá, continuará a pagar a factura do assalto…com apagão incluído. Porque, como já perceberam, até a luz que o ilumina serve para alimentar o parasita.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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