Autor: Lourenço Cazarré

  • A segunda morte de Miguela de Alcazar

    A segunda morte de Miguela de Alcazar


    A primeira publicação de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar ocorreu em meados de 1991, quando um amigo de peladas de futebol de salão do Clube da Imprensa, Vicente Sá, poeta e jornalista da área de Cultura, me convidou para escrever um folhetim para o BsB Letras, suplemento literário de um semanário de distribuição gratuita no Distrito Federal.

    Acho que já tinha uns capítulos escritos, mas não estou certo disso. O fato é que me comprometi a partejar um capítulo de umas quinhentas palavras por semana. E foi o que fiz, metralhando de madrugada num computador pré-histórico que me custou uma boa grana. Título da época: Morte no Brasília Palace.

    O primeiro capítulo saiu em 28 de abril de 1991. Depois, vieram 21 semanas, sem pular uma só, até que no dia 15 de setembro apareceu o derradeiro. Tenho todos esses hoje amarelados fascículos nos meus arquivos implacáveis. Para mostrar aos inimigos, se a isso for desafiado.

    Lourenço Cazarré

    Passaram-se uns dez anos e um dia falei a um amigo, Jorge Schelb, sobre o folhetim. Ele se interessou, quis ler. Passei-lhe então uma cópia. Ele leu, ou mentiu para mim que leu, e me incentivou a recuperar aquela historieta, dando a ela mais altura, largura e profundidade.

    Foi assim que, em 2001, o livro começou a crescer. Trabalhei nele por alguns anos, vitaminando episódios, apimentando diálogos e retocando os personagens. Mas sempre me rindo muito porque A Misteriosa morte de Miguela de Alcazar é, antes de tudo, um livro de humor. Ou dito de outra forma: é uma sátira aos romances policiais.

    Confissão de leitor: durante décadas consumi literatura policialesca. Comecei com o belga Georges Simenon, em 1972, quando comprei, numa promoção da Livraria Mundial, em Pelotas, dez volumes protagonizados pelo detetive Jules Maigret. Depois, li os americanos Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

    Voltando ao Miguela. Em 2009, com o apoio do Fundo de Cultura do Distrito Federal, o livro foi publicado pela editora Bertrand Brasil. Pelo que sei, não teve lá uma vendagem muito boa. Talvez até se possa dizer que foi péssima. Mas a verdade é que o panfleto teve uma boa recepção por parte da crítica. Guardo cópias de várias dessas resenhas positivas. Para mostrar aos inimigos, se isso eles me exigirem.

    Pois bem, rolaram mais alguns anos e lá por 2017 conheci em Lisboa um escritor português, Pedro Almeida Vieira, autor de romances históricos e crónicas que se passam no Brasil (Assim se pariu o Brasil e O profeta do castigo divino). Encontramo-nos no Chiado, ao redor de um bacalhau, Pedro, Enio Squeff e eu. Enio é um artista plástico gaúcho radicado em São Paulo que ilustrou livros meus e do Pedro.

    Edição original em livro de ‘A misteriosa morte de Miguela de Alcazar’, publicada no Brasil em 2009.

    Algum tempo depois, falei para o Pedro sobre A misteriosa morte. Confessei a ele que nunca havia ficado satisfeito com as frases que inventara para o personagem coadjuvante, o lusitano senhor Joaquim Manoel Batota.

    Mal comparando, o Batota, o gerente de um hotel de Brasília, é feito da mesma matéria-prima que Watson, o auxiliar de Sherlock Holmes.

    Aliás, já que falamos do ajudante, não custa nada dizer algumas palavras sobre o principal personagem do livro, Campestre de Campos Campelo, um jovem jornalista gaúcho recém-chegado ao Planalto Central. Anarquista e debochado, é ele quem narra a confusão que ocorre durante um Seminário Internacional de Escritores Policiais, que não se realizou em Brasília em meados dos anos 1970.

    Voltando ao Pedro. Depois de ler o original, ele decidiu a participar da brincadeira. Mais que isso, eu diria que ficou muito entusiasmado diante do desafio de assumir a grave missão de dar à dicção de Batota a parecença de uma fala realmente lusitana. E de plantar, aqui e ali, flores de sarcasmo português pelo meio de um folhetim tupinambá.

    Seguindo. Pode-se dizer, sem medo de errar, que este é também um romance sobre alguns dos muitos sotaques da língua portuguesa. Título da resenha do poderoso O Globo: “Uma divertida homenagem à literatura”.

    Pois muito que bem, todos os escritores que participam do tal Seminário falam português, com diferentes sotaques brasileiros.

    A russa Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáia, por exemplo, fala exatamente como o vigarista cearense – conhecido nos seus anos de degredo na Sibéria – que consertava relógios, no escuro, usando só os cotovelos.

    Primeiro capítulo publicado em 28 de Abril de 1991 no BsB Letras do folhetim então intitulado ‘Morte no Brasília Palace‘.

    Já a inglesa Lady Águeda Christine pratica o mineirês, um jargão no qual a palavra você perde o v. Aliás, os mineiros, quando conversam, ficam o tempo todo girando. “Aí, ela virou pra mim e disse”. “Aí, eu virei pra ela e disse”.

    Já o belga Sim et Nom se socorre do carioquês, dialeto em que os esses deslizam, os erres derrapam e o esse final é trocado pelo x (pronuncia-se doix, treix).

    Vem depois o americano Dax Chamber, conhecedor do gauchês, um linguajar meio espanholado, cheio de metáforas campeiras (quase sempre grosseiras), cujos falantes, em todas as suas frases, metem um bah e um tchê, expressões que não têm significado algum.

    O chinês Foo Li Shi Man fala como um paulistano, ou seja, alguém que chama os outros, o tempo todo, ou de mano ou de meu. Ah, e que pronuncia cinqueinta por ceinto.

    Só agora, passados trinta e tantos anos, vejo que não dei um sotaque específico ao argentino Jorge Luís Bugres. Se o desse, hoje, seria o curitibano, difícil de satirizar porque as pessoas da capital do Paraná pronunciam perfeitamente todas as letras como elas parecem dentro de uma palavra.

    São conhecidas por falarem corretamente a frase “leite quente da dor de dente”, brincadeira que não pode (obviamente) ser reproduzida em um texto (obviamente) impresso.

    Pois bem, agora, durante vinte e duas semanas, se é que a matemática não em engana, Pedro e eu trabalhamos na versão final, que é essa que os leitores do PÁGINA UM tiveram diante dos olhos. Sinceramente, espero que nossos improváveis leitores tenham se divertido tanto quanto nós, ao escrever. Trocando (a trocar) e-mails todas as semanas, fomos afinando a ironia e a zombaria, a mofa e a galhofa. Rindo sozinhos diante do écran (tela) luminescente, destilamos doses de veneno bem maiores que as das edições anteriores.

    Uma das recensões do folhetim policial aquando da sua publicação original em livro.

    Como se sabe, escritores do Brasil gostam de falar mal do seu país tanto quando os portugueses adoram atacar a mítica Terrinha (vide Eça).

    Agora, nos unimos, Pedro eu, para, pela primeira vez na História da Humanidade, apresentar uma novela policialesca escrita por gajos separados por quase oito mil quilômetros de distância. Sim, senhoras e senhores luso-falantes, orgulhem-se: nós saímos na frente. Porque não se sabe de iniciativa semelhante levada à frente por americanos e ingleses, que, como dizia Oscar Wilde, são separados por um oceano e por uma língua.

    Assim como nós, na falta de coisa melhor para fazer, imagino que aqueles que passaram os olhos por essa história deram algumas boas risadas. E, se houve alguém que não soube ou quis apreciar esta obra de finíssimo e sutil lavor, nele daremos, Pedro e eu, como sugeriu Machado de Assis, uns valentes piparotes.


    Leia todos os capítulos de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

  • Eça de Queirós, Rússia e Brasil

    Eça de Queirós, Rússia e Brasil

    Título

    Ecos do Mundo

    Autor

    Eça de Queiroz

    Editora (Edição)

    Editora Carambaia, Brasil (2019)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Um dos maiores escritores da língua portuguesa do século 19 – tinha do outro lado do Atlântico um rival (e adversário?) de idêntico quilate: Machado de Assis -, José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) foi também um formidável cronista que por décadas colaborou com inúmeras publicações de seu país e do Brasil.

    A observação implacável dos fatos, calcada em informações idôneas; a construção de perfis de grandes homens públicos; o esquartejamento impiedoso das idiossincrasias de certas nacionalidades e a análise acurada das tendências políticas e comportamentais de sua época; tudo isso – temperado por uma prosa elegante e uma ironia corrosiva – marca as crônicas jornalísticas do criador de Os Maias e A ilustre casa de Ramires.

    Em 2019, a editora Carambaia lançou no Brasil o livro Ecos do Mundo – reunião de 40 crônicas – que nos permite descobrir quanto o trabalho diplomático de Eça certamente contribuiu para que se tornasse o grande articulista que glosou, como fina inteligência e implacável sarcasmo, os principais acontecimentos do seu tempo.

    Essa obra traz artigos que podemos dividir em quatro grandes blocos. No primeiro, temos oito crônicas que fazem referência ao Brasil ou a brasileiros. No segundo, aparecem oito composições sobre a Inglaterra, país no qual o diplomata morou por 14 anos. No terceiro, há mais oito escritos sobre assuntos da França, onde Eça de Queirós atuou por 12 anos. Finalmente, na quarta parte, vêm 16 escritos sobre 13 nações.

    Golpes de tacape

    Ao final da leitura, a primeira pergunta que pode ocorrer ao leitor dos nossos dias é: como Eça de Queirós – ainda que sob pseudônimo – pode escrever o que escreveu sem perder o emprego no Ministério dos Negócios Estrangeiros?

    Sim, porque é incontável o tanto de ferozes e certeiros golpes de tacape que desfere contra civilizações, países, potentados e culturas. Mesmo quando traça um retrato simpático de alguém, como é o caso do Czar Alexandre III da Rússia, Eça não deixa de ser incisivamente crítico.

    “Ora, o Czar é um autocrata onipotente e de uma onipotência sem igual na história, pelo menos na história da Europa civilizada. Mesmo nas grandes civilizações asiáticas, os soberanos não dispõem de um poder tão incircunstrito”.

    Já a fotografia que Eça faz do mais extenso país do mundo é ainda mais vitriólica: “A Rússia é de fato uma velha casa asiática com uma varanda rasgada sobre a Europa… Um pouco do ar da Europa penetra então pela varanda levando o rumor de nossas ideias, de nossas inovações morais. Mas é um ar que mal passa das grades. E quando as portas da varanda se fecham, só há dentro um oriente antigo e muito estranho, que nós não podemos compreender”

    O livro todo

    A inclinação natural de alguém que escreve um artigo sobre Ecos do Mundo é a de pedir ao editor do jornal (hoje, blog) a mera transcrição dos trechos mais surpreendentes, certeiros e divertidos. Ocorre, porém, que esses belos trechos são tão numerosos que, no fim da conta, melhor seria reproduzir o livro todo, crônica a crônica.

    Vamos aqui nos concentrar principalmente na Rússia – onipresente na mídia mundial desde que há cerca de dois anos desencadeou uma “operação militar especial” para “desnazificar” a Ucrânia – e no Brasil.

    Maior que a Europa

    Comecemos por uma análise que Eça faz do trabalho de um jornalista do Times, de Londres, que escreveu sobre vários países da América do Sul, entre eles o Brasil, do qual traça um retrato favorável.

    Transcreve Eça do jornal britânico: “Doze milhões de homens estão perdidos num Estado que é maior que toda a Europa; a receita pública que é de doze milhões de libras esterlinas é muitos milhões inferior à de Holanda e Bélgica; com uma linha de costas de 4 mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de 2.600 milhas, o Brasil exporta em gêneros a quarta parte menos que o diminuto reino da Bélgica”.

    Mais adiante, o filho de Póvoa do Varzim se refere à Suíça, “que tem dois milhões de habitantes e juntamente os mesmos dois milhões de libras de receita, e vive em condições de prosperidade, de liberdade, de civilização, de intelectualidades bem superiores à tenebrosa Rússia, com seus 80 milhões de libras de receita e os mesmos 80 milhões homens”.

    Populações

    Esses números certamente causam uma grande surpresa nos leitores de hoje porque, como vimos, em 1880 (data da publicação da crônica), a Rússia tinha uma população quase sete vezes maior que a brasileira.

    Porém, enquanto o último censo brasileiro apontou, em 2023, a existência de 203 milhões de habitantes, estima-se que a pátria de Tolstói, Tchecov e Gógol teria agora cerca de 143 milhões de habitantes. Mesmo que possa haver alguma imprecisão nesses indicadores, o certo é em pouco menos de um século e meio a população russa cresceu 80 por cento, enquanto a brasileira multiplicou-se por cerca de 17 vezes. Dito de outra forma: o Brasil tem atualmente a sexta maior população do mundo, enquanto a Rússia fica em nono lugar.

    Aliás, dizem as más línguas que aquilo que os russos mais desejavam, com a guerra que desencadearam em 2022, era incorporar à sua estatística mais 43 milhões de cidadãos (mulheres, crianças e homens ucranianos).

    Economias 

    Ao longo desse tempo, a posição das duas economias também se alterou radicalmente. Nos anos 80 do século 19, a produção russa de riquezas era quase sete vezes maior que a brasileira. Hoje, o Brasil, nona maior economia do mundo, tem um PIB de 2,1 trilhões de dólares, ao mesmo tempo em que a Rússia, a décima-primeira, produz o equivalente a 1,8 trilhão de dólares

    Se nós, brasileiros, temos muitas reclamações quanto ao desempenho do nosso país, que jamais cresce no ritmo que desejamos e consideramos possível, o que podem pensar os russos da sua própria nação?

    O czar mujique

    Eça dedica à Rússia dois longos artigos. No primeiro deles esboça um até generoso retrato do Czar Alexandre III, conservador empedernido que pôs abaixo todas as iniciativas modernizadoras seu pai, Alexandre II, combateu qualquer influência vinda da Europa e agarrou-se firmemente à fímbria do manto da Igreja Ortodoxa.

    Nesse texto, Eça revela que o grande (1m90) Alexandre III preferia a vida familiar à da Corte, veraneava na pacata Dinamarca e pouco frequentava São Petersburgo por medo de seu explodido por uma bomba, como seu pai.

    “Do mujique tinha a robustez enorme e malfeita, o andar bovino, o olhar cismador. Os seus prazeres eram os trabalhos rudes dos homens do campo, em luta com a natureza áspera – desbastar mato, derrubar árvores e rachar lenha”. E, mais adiante, crava um prego: “O imperador substituía a pequenez do gênio pela imensidade da aplicação”.

    Guerras e roubalheiras

    Num dos artigos mais extensos do livro – na verdade, a reunião de seis crônicas escritas entre abril de 1877 e março de 1878, intitulado “Rússia e Turquia” – Eça de Queirós analisa a guerra entre aquelas duas nações.

    Sobram alfinetadas para os dois países em conflito, mas as mais corrosivas são às destinadas aos russos.

    “Outros atos desagradáveis têm sido praticados no exército russo; assim, o comissário-geral dos fornecimentos acaba de ser fuzilado sem processo. Esse funcionário estimável introduziu na farinha uma quantidade de cal que realmente não era possível deixar de lhe meter algumas balas no peito. Uma certa quantidade de cal na farinha, como uma certa quantidade de pau campeche no vinho, são procedimentos razoáveis que dão honra, grandes proveitos e ordinariamente uma condecoração. Mas uma tal porção de cal, que torna a farinha mais própria para pintar paredes do que para fazer pão, é realmente abusivo, e o conselho de guerra foi apenas justo dando àquele funcionário uma disponibilidade… na eternidade”.

    E acrescenta: “As falsificações dos comissários, a vergonhosa qualidade das rações, a insuficiência dos socorros sanitários, a desorganização das ambulâncias, das pagadorias, de tudo; os hospitais apinhados, a imbecilidade visível dos generais – não são condições para aumentar o respeito pelo regime autocrático”

    Talvez relinchando

    A crônica mais hilariante, sem dúvida, vem no bloco brasileiro. Seu título: “Aos estudantes do Brasil: sobre o caso que deles conta Madame Sarah Bernhardt”.

    Deus poupou a divina Sarah (1844-1923) do aprendizado do português porque, caso tivesse lido essa crônica de Eça no original, certamente teria sentido uma forte inclinação para o cometimento de um ato extremado, como o de beber um frasco de formicida. Diretamente no gargalo.

    A grande atriz concedeu uma entrevista tão extensa quanto imodesta ao Fígaro que seu título, segundo Eça, deveria ser: “História da minha missão e da minha influência civilizadora na América do Norte e do Sul“.

    Nela, candidamente, Madame Sarah relata suas viagens pelo mundo. Diz que na sua passagem pelo Canadá “o meu trenó andava seguido e acompanhado por todos os senadores e deputados”. O escritor lusitano deita e rola: “E bem podemos, pois, pensar que as duas câmaras eletivas seguiam Madame Bernhardt funcionando, providas do seu presidente e dos secretários, e da tribuna, e do copo de água…”

    Madame Sarah passa também pela Austrália, onde morre, no palco, em quase todas as peças que interpretava. Registra o português: “De tal sorte que se ela não cessasse de morrer… a Austrália seria hoje uma província da França… onde o último inglês estaria comendo o último canguru à sombra do último eucalipto”.

    Mas o melhor de sua graça zombeteira ele dedica aos brasileiros. Relata dona Sarah que, na sua visita à terra dos tupinambás, “os estudantes arrancavam os sabres e distribuíam cutiladas, porque os não deixavam desengatar os cavalos, meter os ombros aos varais e puxar eles a minha carruagem”.

    Eça descreve o episódio: fecha o tempo na frente do teatro, apresenta-se um policial que quer evitar o ridículo pátrio, mas é ferido pelos estudantes. A esses estudantes o autor se dirige no fecho do artigo: “… depois de duras cutiladas naqueles que vos queriam salvar do humilhante serviço, desengataste as éguas de Sarah, lançaste aos ombros democráticos os tirantes de Sarah, e puxastes a caleche de Sarah, trotando, talvez relinchando!”.

  • Evangelho das coisas ínfimas

    Evangelho das coisas ínfimas

    Então, por volta das três horas da tarde, Jesus bradou em voz alta: “Elohi, Elohi! Lemá sabachtháni?”, que traduzido quer dizer: “Meu Deus, meu Deus! Por que me abandonaste?”

    Marcos 15,34


    Eu, o Narrador, vos digo:

    Olhai a grande cidade obscena sob o sol luminoso. Encurralados entre o mar e as altas montanhas de pedra, milhares de edifícios. Apertados uns contra os outros, parecem assustados, mas não têm para onde fugir. O sol no alto do céu azul está a vigiá-los.

    Atentai bem:

    A boca negra da estação do metrô incessantemente vomita pessoas cabisbaixas e apressadas que provavelmente têm coisas urgentes para fazer. Mas o mundo passaria bem sem elas e sem as coisas que pretendem fazer. O sol não se importa com elas, quer apenas fustigá-las.

    Todas as histórias se parecem:

    De quando em quando corre um rápido sopro de ar pelo meio das ruas escaldantes. É como um suspiro que escapasse do peito da grande cidade de concreto. Nada mais que uma breve lufada que dobra a esquina e segue. E, logo, as ruas voltam ao ranço de todos os dias: misto de mijo velho e chope azedo.

    black and white building during daytime

    As cidades não se diferenciam muito:

    Quem consegue vencer o labirinto das ruelas estreitas, pode ver o mar que se estende preguiçoso e verde sob o céu sem nuvens. Na branca areia da praia, meninos e meninas andrajosos dormem amontoados. Por toda a longa noite cataram moedas no asfalto. Agora repousam. Sujos e ainda famintos. Quando acordarem, já levantarão com a mão estendida. Pedindo. Mas também ameaçando.

    A gente é sempre a mesma:

    Entre as altas palmeiras, homens amarram grandes fardos de latas amassadas de cerveja. Milhares de latas. É a fruta que mais dá por ali, seja nos regadios do asfalto preto seja no latifúndio da areia infértil. Dá coco também. Ocos cocos vazios que nada valem.

    Mesmo pesaroso, devo informar-vos que:

    Homens e mulheres passeiam pela grande calçada que separa a branca areia da barreira de edifícios. Aos milhares, velhos quase todos, azafamados. Nada têm a fazer, porém estão sempre apressados. Incessantemente, vão velozes de uma ponta à outra da longa praia. Parecem seguros de que, com essas caminhadas, enganarão a morte.

    Eu, fiscal de ninharias, vos asseguro que:

    A grande cidade movimenta-se também no interior dos edifícios. Pessoas vão de uma peça a outra realizando pequenas tarefas. Falar ao telefone, por exemplo. Preparar um café. Assistir televisão. Estão vivas e é isso que se espera de pessoas vivas: que andem de um lado a outro fazendo pequenas coisas.

    Eu vos alerto, porém, para um detalhe:

    Naquele meio-dia algo viria para sacudir o ramerrão.

    Escutai o meu relato:

    Um homem negro, de uns quarenta anos, nem alto nem magro, estava deitado numa daquelas calçadas sujas. Não era um homem decente derrubado por um mal súbito, como pode ocorrer às vezes. Não! Via-se pelas roupas rasgadas que era um nenhum. Tinha uns poucos fios de cabelos brancos nas têmporas. Ostentava os pés inchados e os calcanhares rasgados dos bêbados. Era, portanto, um dos tantos milhares que dormem naquelas calçadas e nos poucos desvãos onde os síndicos de edifícios ainda não colocaram ferros pontiagudos.

    Eu, auditor de insignificâncias, preciso insistir:

    Havia um homem preto de uns quarenta anos deitado numa calçada sob o sol amarelo. Daria um belo quadro, se ainda existissem pintores. O sereno rosto quase azul, a rala barba, o corpo ossudo por baixo dos trapos. Parecia estar dormindo. Mas, não, ele não estava dormindo.  Isso as pessoas só perceberam depois.

    Eu, praticante da esquecida arte dos contadores de histórias curtas, asseguro-vos que:

    Os que deixavam apressados a boca da estação do metrô tinham que desviar do homem estirado sobre as lajes rachadas do largo. Os que chegavam para pegar o trem também contornavam aquele corpo estendido no chão. Se estivesse morto, certamente alguma alma caridosa se encarregaria de jogar uma folha de jornal sobre ele. Mas o homem estava vivo.

    white and red textile on gray concrete floor

    Como sabeis, meu dever consiste em ajuntar minúcias ridículas:

    O braço esquerdo dobrado é o travesseiro. O braço direito, ligeiramente flexionado, está estendido diante do corpo. Um movimento muito leve, carinhoso, percorre a mão desse braço direito.

    Sim, reconheço que vós não precisais desta parábola:

    Muitos contornam o corpo sem lançar um só olhar para ele porque sabem que, hoje em dia, o que mais há são corpos caídos pelas ruas desta cidade.

    Ouvi, porém, o que tenho a declarar:

    Mas também existe gente curiosa. Uns velhos bem velhos e uns meninos bem meninos que olham o corpo estirado e percebem logo o lento movimento daquela mão. Uns riem abertamente. Outros sorriem. Outros, subitamente chocados, viram o rosto.

    Prestai atenção neste irrelevante pormenor:

    Naquela rua, havia um gato dormindo dentro de uma vitrina vazia.

    Digo-vos mais:

    O homem caído tem os olhos fechados e uma expressão quase beatífica. Seus lábios estão ligeiramente entreabertos de modo que todos podem ver uns belos dentes brancos e, entre eles, a ponta lúbrica de uma língua vermelha. É manso, quase imperceptível, o movimento daquela mão de grossos dedos que vai e vem empolgando o cilindro de carne quente.

    Sim, admito que aqui ninguém precisa de fábulas, no entanto:

    O homem do negro rosto azulado está fazendo amor consigo mesmo. Certamente pensa numa mulher porque seu rosto está como que suavizado por um sorriso. Uma mulher distante no tempo. Uma jovem mulher. E lentamente ele se afaga. Indiferente ao sol e aos edifícios. Sempre pensando numa fêmea. Em certos trechos do corpo dessa mulher. A bunda. Os seios. A racha úmida. A catinga boa que elas exalam quando estão excitadas.

    Concluirei, sim:

    Indiferente às pessoas apressadas e estamos todos apressados , o homem continua a se acariciar. Indiferente a tudo, o preto de cabelos ligeiramente grisalhos nas têmporas permanece deitado no largo da estação executando um movimento muito suave com a mão direita. A mão que acaricia uma parte daquele mesmo corpo. Um movimento muito suave sob o sol inclemente, na calçada, na clareira entre os altos edifícios.

    Eis, filhos de Deus, a moral desta alegoria:

    Muitos se reconheceram naquele movimento triste de mão solitária: o amor que se fabrica a si mesmo, o amor possível.

    Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco

    .

  • A movimentada festa dos praticantes de um ofício extinto

    A movimentada festa dos praticantes de um ofício extinto

    Prezado chefe, conforme combinado segue relatório de minha investigação:

    Tendo chegado a este Planeta Terra, mais especificamente a uma cidade chamada Brasília, nos últimos dias do mês de Seu Júlio, de 2023, vi surgir logo uma oportunidade de fazer o levantamento sobre os terráqueos ordenado por Vossa Excelência.

    Foi quando um senhor, cujo sobrenome seria em nossa linguagem marciana algo como Casa dos Fundos, acessou o Google e lançou naquele sistema de busca duas palavras: Preciso sósia. E acrescentou uma fotografia dele.

    People Toasting Wine Glasses

    O diálogo

    Assumindo o aspecto daquele cidadão, apresentei-me a ele e travamos o seguinte diálogo:

    – Para que o senhor precisa de um sósia? – perguntei.

    – Para me representar numa festa.

    – Festa?

    – Sim, amigos reuniram-se e, depois de muito refletirem, resolveram me dar um inusitado presente no dia do meu septuagésimo aniversário: uma festa.

    – Pessoas carinhosas, presumo.

    – Sim, e extremamente criativas.

    – Qual será o meu trabalho?

    – Representar-me na tal festa.

    – O que terei de fazer?

    – Circular entre pessoas sentadas ao redor de mesas e sorrir para elas.

    – Mas o que devo dizer a elas?

    – Nada. Pessoas que vão a festas de aniversário não querem ouvir nada. Preferem falar muito e em voz alta. E beber loucamente.

    – Portanto, posso imaginar que por lá encontrarei alguns chatos.

    – Vários. Diga a eles duas ou três frases banais e complete: preciso circular entre meus convidados.

    – Mas eles, pelo lado deles, não ficarão chateados?

    – Não. Logo pegarão outra vítima.

    – Por que o senhor não vai à festa?

    – Porque me sentiria ridículo!

    – Foi então que resolveu me contratar?

    – Sim, porque seria ainda mais ridículo uma festa sem o homenageado. Seria, como diria Mário Quintana, um velório sem defunto.

    group of people tossing wine glass

    Os retardatários

    No dia seguinte, na hora aprazada, seis da tarde, apresentei-me no local indicado. Permaneci por lá até às três da madrugada, quando a dona da casa, literalmente, varreu para fora os retardatários.

    Os jornalistas

    Pelo que pude depreender, tratava-se de uma festa de pessoas que exerceram um ofício hoje inexistente chamado jornalismo impresso.

    Jornalistas eram pessoas inteligentíssimas, que ganhavam pouco, trabalhavam muito e divertiam-se ainda mais. Produziam diariamente algo que era como um livro, só que de folhas imensas.

    Os jornalistas dividiam-se em duas categorias: os repórteres, que escreviam inverdades sobre políticos honestos; e os redatores, cuja função era deturpar ainda mais aquelas torpes acusações.

    Para executar sua missão, eles se utilizavam de aparelhos chamados máquinas de escrever. Um senhor idoso disse que recentemente levou uma dessas máquinas a uma neta que vive nos Estados Unidos e que a menina ficou realmente espantada:

    – Puxa, vô! Ela até imprime.

    shallow focus photo of black corded microphone

    Os patrões

    Jornalistas eram comandados por patrões, pessoas que eles costumavam roubar quando prestavam conta de suas viagens de trabalho.

    Dou dois exemplos:

    Um jornalista que foi a Manaus e por lá comeu um peixinho de 30 reais num boteco fuleiro apresentou a seu patrão uma nota de 300 reais na qual constava: Bacalhau à Lagareiro.

    Um fotógrafo bastante robusto foi a Buenos Aires e lá comprou dois galos de prata numa loja de artesanato. Quando apresentou a nota, salgadíssima, na qual constavam “dos pollos”, o patrão reagiu:

    – Mas você comeu dois frangos numa só refeição?

    – Veja o meu porte!

    Detalhe sórdido e líquido: Na foto acima está a bebida servida à sorrelfa, à socapa, por trás do balcão, só para os mais chegados ao aniversariante, contratante e tratante.

    Os bêbados

    Quando reunidos, jornalistas preferem contar anedotas sobre seus companheiros de profissão que não tinham controle pleno sobre o ato de ingerir bebidas alcóolicas, pessoas que carinhosamente tratam por “bêbados”.

    Célebre é o caso de um deles que foi a Florianópolis e lá caiu no sono em local inapropriado. Ao despertar, viu diante de seus olhos grossas barras de ferro. E exclamou: “Que merda fiz ontem para estar preso?” Ao levantar-se, percebeu que estava dormindo sobre uma calçada da Avenida Beira Mar Norte e que a grade pertencia a um edifício, que com ela, a grade, procurava livrar-se dos mendigos.

    A piscina

    A festa foi realizada à beira de algo que chamam piscina, uma escavação que contém água, recoberta por uma grade de proteção feita com fios de nylon trançados.

    Durante a festa, curiosamente, caíram apenas duas pessoas (ambas abstêmias!) na tal piscina. Um desatento jornalista esportivo cruzou-a rapidamente, em ângulo oblíquo, tropicando sobre a grade de proteção. Teve ali, disse ele depois, a ideia para uma nova competição olímpica.

    O outro jornalista não chegou a atravessar a piscina. Deu apenas meia dúzia de delicados saltos acrobáticos, de rara beleza plástica, sobre a tela de proteção, mal molhando os sapatos.

    As bebidas

    Jornalistas, aparentemente, gostam muito de beber. Os mais idosos, que eram numerosos, davam preferência a uma bebida insípida, incolor e inodora chamada “água”. A maioria, porém, inclinava-se por um suco escuro servido em taças bojudas. A minoria dedicava-se a um líquido amarelado que era retirado de garrafas vermelhas. Essa última espécie me pareceu a mais sedenta.

    Os pelotenses

    A mesa que mais me chamou a atenção era aquela na qual estavam pessoas que se consideravam realmente especiais, mais cultas e civilizadas. Eram oriundos todos de um lugar chamado Pelotas.

    Havia um chamado Karl Edward, que se apresentava como Príncipe da Pomerânia, e outro que se dizia Kzar de Leningrado, Serguei Narigovitch. Um outro era plebeu, porém milionário, chamado Joseph Cross, o Lorde das Cidades Satélites. Nessa mesa havia um cidadão que não quis me declinar seu nome. Disse-me apenas: “Sou O Empresário Paulista”. O mais jovem daquela mesa sussurrou: “Não, eu não sou, como andam dizendo por aí, O Novo Tubarão Branco”.

    Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco


    Nota do autor:

    Embora não seja comum o autor dizer de onde tirou a ideia de escrever uma crônica (na minha época, em Pelotas, dizia-se: quem explica é porteiro de boate), resolvi dar aqui um breve esclarecimento:

    Odeio aniversários, em especial os meus. Sabendo disso, meus filhos resolveram comemorar o septuagésimo. Chamaram inclusive pessoas de lugares distantes. Quando soube, fiquei furioso. No tal dia, quase não fui à festa. Mas acabei cedendo ao choro da minha mulher. Lá o vinho tratou de acalmar-me. Como a maioria dos convidados era jornalistas com os quais trabalhei nos anos 1970 e 1980, resolvi vingar-me deles.

  • Faltarão cadeados!

    Faltarão cadeados!


    Como muitíssimos brasileiros mal informados, estava eu tranquilo a assistir televisão – uma pacata e sangrenta partida do enlameado rúgbi inglês – quando uma nota no telefone celular me informou que uma baderna em verde e amarelo estava destroçando instalações do Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

    Porquê mal informado?

    Porque no dia anterior as águas turvas chamadas redes sociais – nas quais não navego – já haviam antecipando a possibilidade desses atos de pirataria política.

    Busquei o socorro de um ditado popular para tentar começar a explicar a um amigo português, Pedro Almeida Vieira, a minha visão – perfunctória e apressada – do acontecimento:

    –  Arrombada a porta da casa, coloca-se o cadeado.

    [N.D. Os adágios na língua de Camões têm distintas versões de um lado e do outro do Atlântico; em português europeu dizemos simplesmente “casa arrombada, trancas à porta”]

    Vamos aos fatos.   

    Pouco horas depois da arruaça vandálica, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, demitiu seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, que há poucos dias era – vejam só! – o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.

    Onde estava Anderson em dia tão movimentado? Nos Estados Unidos, na Flórida, onde, por acaso (será?) se encontra exilado por vontade própria o ex-presidente.

    Em Anderson foi posto o primeiro cadeado.

    Horas mais tarde, o ministro Alexandre de Moraes, o mais temido do Supremo Tribunal Federal, afastou, por noventa dias, o próprio governador.

    Segundo cadeado posto.

    Ora, a tomada e destruição dos prédios mais simbólicos da democracia brasileira certamente não se restringirá a esses dois cadeados. Exigirá outros. Mas quem os colocará? E em quem?

    Isso é o que veremos nos próximos capítulos da novela televisionada que teve início ontem.

    Para irmos mais além dos furibundos editorais da imprensa e dos sempre inflamados discursos dos políticos, que pedem cabeças e mais cabeças, seria interessante darmos um passeio pelas esquisitices da administração pública brasileira, esquisitices que seguramente contribuíram para o descalabro de 8 de janeiro.

    O Brasil é constituído por 26 Estados e um Distrito Federal (onde fica Brasília, claro). Tem um Estado que é mais populoso que muitos países: São Paulo, com seus 45 milhões de habitantes. E tem Estados com menos de um milhão de habitantes. Todos eles contam com forças policiais fardadas e armadas: as Polícias Militares.

    O Distrito Federal, como diz o nome, deveria ser um distrito, ou seja, uma unidade administrativa dependente de autoridade maior. Além da capital federal, também conhecida como Plano Piloto, o Distrito Federal conta com uma dezena de povoações menores, chamadas cidades-satélites.

    Criado em 1960, o Distrito Federal tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Até 1988 era chefiado por alguém indicado pelo Presidente da República. Mas, no auge de euforia democrática da Constituinte de 1988, recebeu o direito de escolher pelo voto seu governador, três senadores, oito deputados federais e vinte e um deputados locais (chamados distritais).

    Agora, simultaneamente à carnificina que foi a última eleição presidencial, o Distrito Federal reelegeu governador um simpatizante do Governo Bolsonaro: o advogado Ibaneis Rocha.

    Então o paradoxo que temos hoje é: um aliado (ou ex-aliado, nunca se sabe porque os políticos brasileiros mudam facilmente de posição) de Bolsonaro no comando da cidade onde ficam as sedes das embaixadas e os prédios dos três poderes, entre os quais está o palácio de despachos do presidente Lula.

    Embora tenha obtido a liberdade de escolher seus políticos, o Distrito Federal continuou recebendo verbas federais para pagar suas forças policiais e os funcionários do sistema de saúde e educação (primeiro e segundo graus). Ou seja, continuou distrito.

    Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal (Brasília)

    Essa baderna, arruaça, barbárie ou mesmo tentativa de golpe – embora anunciada pelas estrondosas trombetas das redes sociais – não foi contida pela força oficialmente encarregada de impedi-la: a Polícia Militar do Distrito Federal. Daí as punições às autoridades de Brasília.

    Ocorre, porém, que o Governo Federal tem seus próprios mecanismos de vigilância: as poderosas Polícia Federal e Agência Brasileira de Informação (Abin), e mais os sistemas de informação das forças armadas que, em tese, todos eles, deveriam estar alertas para a eclosão de um atentado predatório de tais dimensões.

    Foi mesmo uma tentativa de golpe?

    Muita gente acha que sim. Mas as perguntas são muitas. Os que invadiram os palácios estavam à espera de alguém que viesse assumir a cabeça do complô? Quem seria esse alguém? Por que se retiraram sem resistência dos prédios públicos se eram tão numerosos?

    Destruídos os palácios, chega o momento de descobrir quem financiou a vinda de tanta gente à capital (fala-se em quatro mil pessoas, transportadas em cem ônibus, centenas delas já presas). Quem são e quantos são?

    Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (ao lado), é o Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Fez entretanto um pronunciamento sobre os acontecimentos de ontem.

    Nas redes sociais há milhares de rostos exibidos em retratos tirados dentro dos edifícios invadidos. Serão todos acusados? 

    Cabe ainda uma pergunta indigesta: haverá punidos dentro do próprio governo federal que, a rigor, estava no comando da nave chamada Brasil fazia uma semana?

    Enfim, só nos resta esperar que agora as autoridades brasileiras, que tanto falharam, se mostrem à altura de enfrentar esse novo desafio, que é esclarecer como, num certo domingo sem futebol, o país ganhou negativamente as manchetes de todo o Mundo.

    E profetizar, como o faria um iracundo editorialista de um jornal do século XIX: “Faltarão cadeados!”

    Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!


    Se há alguma novidade na relação entre Brasil e Portugal nesses últimos duzentos anos – depois que aquele jovem fidalgo dado a aventuras galantes resolveu criar uma nova nação – é a inversão do fluxo dos viajantes.

    Desde a incursão pioneira de Pedro Álvares Cabral, os lusitanos nunca deixaram de viajar à Terra de Santa Cruz. Vieram aos milhões. As últimas levas significativas talvez sejam as decorrentes da descolonização da África no começos dos anos 1970.  

    Porém, o que se nota agora, nos últimos dez ou vinte anos, é a alteração radical da corrente migratória.

    Existem números provando isso.

    As cidadanias lusitanas concedidas a brasileiros pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros nos últimos anos são somadas em dezenas de milhares.

    Todo ano, incontáveis jovens brasileiros chegam a Portugal em busca de empregos melhor remunerados – e olha que os salários por aí, sabemos todos, não são lá essa maravilha!

    Também desembarcam aposentados que recebem pensões que, mesmo depois de transformadas em euros, ainda podem ser consideradas razoáveis.

    Por fim, aparecem os casais com filhos em idade escolar que pensam economizar um belo dinheirinho todo mês se colocarem os filhos nas escolas públicas portuguesas.

    Para certos brasileiros, em especial os de classe média que perdem renda, ser obrigado a matricular as crianças em colégios do Governo é algo tão assustador quanto cair na malha fina do Imposto de Renda.

    Pois bem, arrematando: estimativas apontam que os brasileiros residentes em Portugal, atualmente, seriam entre 180 e 200 mil.

    O direito de ir e vir

    São muitas as explicações para essa nossa hoje fortíssima inclinação por voltar à viver na Terrinha dos ancestrais. Uma delas, bastante singela, é o fato de que em Portugal se pode sair à noite sem medo de ser assaltado ou assassinado.

    Em Lisboa ou no Porto, brasileiros oriundos de grandes e médias cidades podem desfrutar de um valor que perderam nos anos 1960: o simples, velho e bom direito de ir e vir após a queda do sol.

    Mas onde, como e por quais motivos a coisa começou a desandar para esta nação gigantesca que, nos diziam orgulhosos os professores primários dos anos 1950 e 60, logo seria o país do futuro?

    São muitas as razões, sejam elas alevantadas por acadêmicos de capelo e beca ou por cachaceiros de botequim. Vejamos umas poucas.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    População

    Comecemos pela explosão demográfica.

    A população brasileira saltou de 70 milhões no final da década de 1960 para 143 milhões em 1991. Mais que duplicou em três décadas, fato que certamente não se repetiu em nenhum outro país.

    Diante da grandiosidade desse número só resta perguntar em português claro e direto: Foi possível construir escolas e hospitais para tanta gente em tão curto espaço de tempo?

    A ocupação das cidades

    Paralelamente à bomba demográfica, Pindorama registrou outro fenômeno social igualmente devastador e também de dimensões bíblicas: a urbanização acelerada.

    A população vivendo nas cidades brasileiras, que era de apenas 12 milhões de almas (31 por cento do total) em 1940, saltou para cerca de 137 milhões (81 por cento da soma) no ano 2000. Para simplificar, decuplicou em sessenta anos.

    Logo, imensos círculos de moradias precárias se estreitaram em redor das metrópoles regionais e das cidades de médio porte, estrangulando-as.

    Daí decorreram, dizem os estudiosos, a desorganização das cidades, o trânsito caótico, a poluição da água e do solo e a violência desembestada.

    De novo, aqui, podemos indagar: Conseguiriam os nossos governantes, mesmo que dotados de poderes mágicos, acomodar a avalanche humana que nos chegava dos campos?

    aerial view of green field and city during daytime

    Corrupção e incompetência

    A bomba demográfica e a urbanização descontrolada, como vimos, podem ser dimensionadas. Há, porém, outros fenômenos que não podem ser exatamente delimitados porque ocorrem nas brechas e desvãos da administração pública. Como, por exemplo, corrupção e incompetência.

    Nós, brasileiros, sempre críticos, temos a tendência de achar que a nossa corrupção é a maior e a mais sofisticada do mundo – ler noticiário recente – e que a nossa incompetência gerencial não têm similares no vasto universo.

    Pode ser que sim, pode ser que não.

    Os portugueses, por exemplo, em tempos remotos, conheceram muito bem a corrupção, quando ela grassava à solta nas muitas colônias daquele império que se estendia por quase todo o globo.

    O voo da penosa

    Dizem os economistas brasileiros que há cerca de meio século o país não cresce de forma sustentada. A nossa atividade econômica caracteriza-se pelos voos de galinha. Ou seja, decola por um aninho ou dois para aterrissar logo a seguir, dando com o bico no chão e perdendo penas, em mais uma recessão.

    Isso quando a penosa não voa para trás.

    Detalhe sórdido: esses voos galináceos não são propriedade de um só grupo político, não. Ocorreram tanto nos desgovernos de direita quanto nos de esquerda.

    Mas será mesmo que o Brasil deu efetivamente com os burros na água? Há exemplos internacionais mostrando isso?

    shallow focus photograph of black and gray compass

    Espanha e Coreia

    Para demonstrar o nosso insucesso econômico nos últimos 50 anos, alguns analistas recorrem aos exemplos de Espanha e Coreia do Sul.

    Em meados da década de 1970, cidadãos do Brasil, Coreia e Espanha tinham rendas médias semelhantes. Hoje, coreanos e espanhóis dispõem de ingressos duas ou três vezes maiores que o nosso.

    Ações governamentais concretas explicariam essas diferentes performances. A Coreia, por exemplo, revolucionou seu sistema de ensino e criou grandes grupos industriais que hoje atuam – em dimensão planetária – na fronteira tecnológica.

    Já a Espanha ingressou na endinheirada Comunidade Europeia e, com os generosos fundos comunitários, renovou sua infraestrutura e melhorou todos os seus indicadores sociais. Como fez Portugal.

    O Brasil, isolado numa América Latinha que parece ter feito uma opção preferencial pela imobilidade, continuou a correr. Mas parado no mesmo lugar.

    É por isso que, hoje, comentam economistas impiedosos, exporta um transatlântico carregado com soja em troca de uma canoinha com computadores.

    Que falem os imigrantes

    Mais interessante que debater tema tão surrado – por que o gigante permanece deitado no berço esplêndido? –, seria tentar adivinhar o que diriam os milhões de portugueses que, nesses séculos todos, se transferiram para o Brasil.

    O que nos contariam os mais modestos participantes – quase sempre muitos jovens – dessa epopeia?

    O que esperavam encontrar na imensa terra selvagem e desconhecida para onde seguiam?

    Como era viajar mais de um mês – vendo só água e horizonte – sobre o mar do solerte Ulisses?

    O que mais afligia aqueles que se viam obrigados a deixar a terra áspera e dura que os partejou, a língua de todo o dia e os parentes amados?

    woman in purple and white floral shirt sitting on white bed

    Alfredo e Henriqueta

    No meio desse povo retirante, estavam meus avós maternos: Alfredo e Henriqueta, nascidos na aldeia de Santiago de Piães, no Concelho de Cinfães.

    Na primeira década de 1900, separadamente, eles desembarcaram em uma cidade do extremo Sul brasileiro, então muito rica e industrializada, chamada Pelotas, que hoje tem 300 mil habitantes.

    Lá, ajudados por conterrâneos já instalados, deram início à vidinha. Trabalhavam duro. Meu avô era padeiro, tarefa que lhe consumia grande parte da noite, mas também mantinha uma grande horta onde – durante o dia – plantava hortaliças para o consumo da família e para venda aos vizinhos. Minha avó, considerada florista de boa mão, enfeitava casamentos e batizados para reforçar o caixa da família.

    Com rédeas curtas e pancadas, educaram os rebentos para que não se tornassem vadios ou debochados. As recriminações e advertências, obviamente, vinham no mavioso linguajar dos lusos. Criaram seis filhotes. Outros três morreram na infância, como era comum na época.

    As crianças só conseguiram atravessar as cinco séries do Curso Primário, mas paralelamente tiveram aulas de Mecânica, Contabilidade e Corte e Costura. Tornaram-se mecânicos, costureiras, comerciárias e operárias.

    Alguns dos netos chegariam à Universidade nos 1970.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    O silêncio

    Eram gente de pouco palavrório.

    Minha avó só relatava às filhas brasileiras, para assustá-las, o medo imenso que sentia, quando pequenina, caminhava sozinha por escarpas nevadas ouvindo bem próximos os uivos dos lobos.

    Nem ela nem meu avô falavam dos parentes que haviam abandonado na Terrinha. Vô Alfredo deixou para trás mãe e três irmãs.

    Uma só frase

    Minha avó portuguesa ficou paralítica aos 47 anos e penou por mais de duas décadas sobre cadeiras e camas até que a bondosa Velha-com-a-foice veio resgatá-la deste Vale.

    Meu avô português, de bigodes de pontas retorcidas, olhos verdes e vasta e lustrosa careca, morreu aos 57 anos, meses antes do meu nascimento.

    Da cantante língua lusitana só me ficou uma frase, dita e repetida por minha avó.

    Na penumbrosa saleta da casinha de madeira onde morava, presa à cadeira de balanço, vó Henriqueta não podia me impedir – guri irrequieto de seis ou sete anos – de dar incontáveis saltos mortais no sofá de molas arrebentadas.

    walking boy wearing blue denim jacket under the bridge

    Contrariada, porque era uma velha muito brava, que nunca fizera um só carinho nos seus filhos machos ou beijado suas filhas fêmeas, resmungava:

    – Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Assim, neste momento, enquanto rabisco sobre esses tais duzentos anos, a imagem mais forte que me vem à mente é a da minha avó aleijada, com a mão esquerda torcida como a garra de um pássaro contra o peito seco, me mirando com seus frios olhos cinzentos e resmungando com o sotaque de Maria Lionça:

    – Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas, A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e A longa migração do temível tubarão branco


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.