Autor: Frederico Duarte Carvalho

  • Nós, os que ainda vão jantando em casa, te saudamos

    Nós, os que ainda vão jantando em casa, te saudamos

    Jantar fora à sexta-feira é um sinal de que, afinal, nem tudo está mal na economia dos dias de hoje? Como é que se baixou a fasquia daquilo que deveria ser o normal indicador económico? E ainda se lembram quando se apelava a não fazermos férias no estrangeiro porque isso seriam “importações”?


    Causou comoção nacional, com laivos de escândalo, uma declaração do presidente executivo do Santander Totta, Pedro Castro e Almeida. Disse ele que, apesar da crise, os portugueses continuam com “padrões de consumo relativamente elevados”. Este é o índice económico apresentado por este alto responsável da banca, que vê quando se circula pelas ruas de Lisboa, com pessoas a jantar fora à sexta-feira. Ou ao sábado de manhã.

    Imediatamente se rasgaram vestes, produziram-se textos e discursos contra os predadores da grande banca, que se acham donos disto tudo. Com que direito vem este banqueiro julgar quem opta por ir jantar fora à sexta-feira? Quer ele insinuar que jantar fora à sexta-feira, no meio da crise financeira, é condenável e devíamos estar em casa a poupar?

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    Houve depois quem viesse avisar que as palavras tinham sido mal observadas no seu sentido profundo. O presidente do Santander, afinal, não quisera condenar quem anda a gastar de forma irresponsável o pouco que tem. Nada disso. Ele até estava a dizer que, pelo contrário, é bom, muito positivo até, poder ver gente que poupou durante a pandemia e que agora anda a jantar fora à sexta-feira. Isso significa que as pessoas têm dinheiro no bolso. Andam felizes e com confiança no futuro. Têm poder de compra. É, portanto, um indicador financeiro positivo, sinal de que as coisas não estão assim tão mal como andam para aí a pintar.

    É este último pensamento – o do jantar fora à sexta-feira ser uma coisa boa –, que importa abordar, pois há um detalhe que parece ter passado ao lado de muitos jornalistas de Economia – sempre bons cumpridores de ordens e excelentes escribas de relatórios citados com aspas –, mas, por deformação profissional, fracos observadores.

    No meio das discussões e até de algumas reacções de pessoas que foram jantar fora na sexta-feira imediatamente a seguir – as declarações foram feitas numa quinta-feira –, ninguém disse o óbvio: a fasquia do indicador económico está visivelmente em baixo. E essa é a discussão que devíamos estar a ter.

    Pedro Castro Almeida, CEO do Santander Totta

    O que é feito daqueles termos tão caros aos economistas como o célebre “índice de produção na indústria transformadora”, o saudoso “índice de volume de vendas do comércio a retalho”, o tradicional “consumo de combustíveis (gasolina e gasóleo)”, o sempre revelador “consumo de energia eléctrica”, as enigmáticas “vendas de cimento para o mercado interno”, culminando nas análises dos números de “ofertas de emprego” e o sempre presente “procura de emprego por parte dos desempregados”, sem descurar, obviamente, o maior indicador de todos: “vendas de automóveis ligeiros de passageiros” e ainda de “vendas de veículos comerciais (ligeiros e pesados)” e, por fim, as “dormidas na hotelaria”?  

    O jantar de sexta-feira à noite nunca foi propriamente uma questão recorrente, sequer concorrente, nos indicadores quantitativos de consumo privado, onde eram contabilizados os bens para o lar, como computadores, equipamentos de telecomunicações e livros.

    Nem sequer se questionava o ir jantar fora ao mesmo nível do consumo dos bens alimentares adquiridos nos supermercados, dos bens não alimentares, como têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro, passando ainda pelos produtos farmacêuticos, médicos, cosméticos e de higiene.  

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    Quando queremos analisar a saúde financeira de um país, não andamos propriamente por aí, a espreitar pela janela dos restaurantes, para ver quem anda ou não a jantar fora – um dono da banca também não faz isso, pois basta-lhe ver os movimentos dos cartões de débito e crédito dos clientes para conhecer em detalhe toda a nossa vidinha e fazer os julgamentos para as decisões que bem entender.

    O verdadeiro economista vai analisar, por exemplo, o indicador de investimento, onde se vê o que gastamos, como país, em máquinas e equipamentos. Há coisas como o “volume de vendas”, “actividade corrente”, “perspectivas de atividade” e “perpectivas de encomendas a fornecedores”. Há factores como vendas de veículos ligeiros de passageiros para empresas de rent-a-car e táxis, os serviços e a construção e obras públicas. Jantar fora à sexta-feira nunca foi uma questão premente e reveladora. Até agora.

    Devemos então perguntar-nos como chegamos aqui? Como é que o jantar fora numa sexta-feira à noite chegou a ser um indicador da boa ou má saúde económica em detrimento de todos os outros? Como é que todos aqueles indicadores parecem estar em segundo lugar?

    Talvez seja bom recordar então – e isto é um mero exemplo – de uma frase dita em Junho de 2010 por uma pessoa que percebe muito de Economia. Um senhor que, além de muitas outras coisas, até foi ministro das Finanças, e que, há mais de 12 anos, em Junho de 2010, disse isto: “férias passadas no estrangeiro são importações e aumentam a dívida externa portuguesa”.

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    Extraordinário, não? Alguém ainda se lembrava desta análise tão profunda sobre os hábitos dos portugueses? Alguém ainda se recorda de quando poder-se ir de férias no estrangeiro valia mais do que os jantares fora à sexta-feira?

    E sabem quem foi o antigo ministro das Finanças, além de outras coisas mais tarde, que disse aquela verdade de tão elevado valor analítico? Pois. Foi o então Presidente da República, o Dr. Aníbal Cavaco Silva, doutorado em Economia Pública pela Universidade inglesa de York, e que serviu como ministro das Finanças do Governo de Francisco Sá Carneiro, entre 2 de Janeiro de 1980 e 10 de Janeiro de 1981.

    Quando Cavaco disse aquilo, o socialista José Sócrates era o primeiro-ministro e havia um programa de incentivo económico para que os portugueses, no sentido de ajudarem ao estímulo da Economia nacional, fizessem férias “cá dentro”.

    Que saudades do “vá para fora cá dentro”, quando ainda se podia, de todo, fazer férias, mesmo cá dentro. Quando ir jantar fora, “cá dentro”, era tão banal que nem chegava a tema de discussão. Bons tempos…  

    O mesmo Cavaco Silva, agora já ex-Presidente da República, escreveu em Abril do ano passado, no diário Público, que sem umas quantas reformas (que ele lá sabe) “continuaremos a ser um país de salários mínimos, de emigração dos jovens mais qualificados com ambição de subir na vida, uma classe média empobrecida, pensões de reforma que não permitem uma vida digna, elevado risco de pobreza e exclusão social e serviços públicos de baixa qualidade. Será assim, independentemente das promessas e ilusões criadas pelos governos e partidos políticos. A retórica e a mentira não produzem riqueza”.

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    Grande frase esta: “a retórica e a mentira não produzem riqueza”.

    Para muitos portugueses, colocar jantar na mesa todos os dias – não apenas à sexta-feira – é cada vez mais difícil. E se há uns que ainda vão jantar fora, esses que aproveitem bem, pois se não pensarem nos pobres, os pobres irão pensar neles.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Bíblia, esse manual de Economia

    A Bíblia, esse manual de Economia

    A discussão sobre os custos do altar para o Papa Francisco, para as Jornadas Mundiais da Juventude, levou-me a fazer uma consulta no livro sagrado dos católicos, a Bíblia. Fui à procura de respostas e, sobretudo, do que nos diz sobre a relação entre a Religião e a Economia. Foi um trabalho edificante.


    Não sou nenhum especialista em Teologia, mas também não me sinto diminuído na minha relação com a religião. Chamem-me espiritualista ou agnóstico, se precisarem de rótulos ou de minimizar a discussão.

    Factualmente, saiba-se que publiquei, em 2013, o livro de ficção “O Terceiro Bispo”, cujas bases se alicerçam no momento em que o Papa Bento XVI anunciou a sua resignação, em Fevereiro de 2013. Percebi depois o caminho que uma história sobre o tema poderia levar quando, a 13 de Março, o Papa Francisco apareceu à varanda do Vaticano a dizer que o foram buscar “quase ao fim do mundo”.

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    Era uma frase perfeita para registar numa obra que iria versar sobre o Terceiro Segredo de Fátima e as profecias de São Malaquias, onde é dito que este Papa Francisco é o último das profecias, o responsável pela destruição da Igreja.

    Durante os seis meses seguintes – entre Abril e Setembro –, dediquei-me à investigação e escrita do livro, tendo sido depois revisto e paginado durante o mês de Outubro para, finalmente, chegar às livrarias no início de Novembro.

    Terá sido, quase de certeza, a primeira obra de ficção a nível mundial a abordar a eleição do Papa Francisco – aliás, é por saber quanto demora a escrever diariamente, um livro de 300 páginas com investigação, método e disciplina, que me espanta haver quem, com uma profissão principal que o obriga a cumprir horários de trabalho, ainda assim consiga, apenas nos tempos livres, “produzir” anualmente uma obra que, em média, tem 600 páginas.

    Recordo-me bem de alguns dos passos do novo Papa. Sobretudo a visita à casa “Dom de Maria”, das Missionárias da Caridade, a 21 de Maio de 2013. Esta casa, no Vaticano, perto do edifício da Congregação para a Doutrina da Fé, costuma acolher pobres e sem-abrigo. Foi aí que Francisco disse estas palavras que, pela sua importância, incluí no livro: “Um capitalismo selvagem tem ensinado a lógica do lucro a qualquer custo, do dar para obter, da exploração sem considerar as pessoas… e podemos ver os resultados na crise que estamos a viver!”.

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    Era um Papa que atacava o “capitalismo selvagem” e pregava contra os maus exemplos do luxo. Ficou famoso o seu gesto de mandar fazer uma cadeira de madeira em vez de usar o tradicional “trono de ouro”. Isso caiu muito bem em certas pessoas. Também achei bem, confesso.

    Até que o meu amigo Luís Miguel Rocha – autor de várias obras sobre o Vaticano e precocemente desaparecido do nosso convívio terrestre em 2015 –, na apresentação do meu livro, no Porto, apontou para um detalhe: o “trono de ouro” há muito que estava pago. Nem era um luxo, pois é uma obra de arte do escultor do século XVII, Gian Lorenzo Bernini, feito em madeira e banhado com bronze dourado.

    Mas a nova cadeira de Francisco, essa, custou dinheiro – foi pouco, mas ainda assim um gasto desnecessário. Um gasto supérfluo para que o Papa pudesse mostrar uma nova imagem e parecer “pobre”.

    A recente polémica do altar de quatro milhões para as Jornadas Mundiais da Juventude, que vão ter lugar em Lisboa durante a primeira semana de Agosto, levou-me a ir procurar na Bíblia algumas respostas sobre como a Igreja encara a relação com o dinheiro.

    Não fiz um levantamento exaustivo, mas deambulei pelo livro sagrado dos católicos com a curiosidade de alguém que quer perceber a visão milenar dos católicos em relação à Economia e como isso se adapta aos tempos modernos.

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    (Nota: para esta busca usei a versão de “a Bíblia para todos: Edição Interconfessional”, edição LBE-Loja da Bíblia Editorial e tradução Sociedade Bíblica de Portugal).

    Há palavras interessantes, sobretudo nos Provérbios. Em 22:1 avisa-se que “mais vale ter bom nome do que grandes riquezas; ter a estima dos outros é melhor que ouro e prata”. Claro que isto não ajuda a pagar contas na mercearia, por muito boa fama que se tenha no bairro.

    Logo a seguir, em 22:2, regista-se: “O rico e o pobre têm algo em comum: ambos foram criados pelo Senhor”. Estas últimas palavras, em vez de me tranquilizarem, preocuparam-me. Mostram que o “Senhor” não criou homens iguais, e há no provérbio bíblico uma clara distinção entre “o rico” e “o pobre”. Como se isso fosse uma inevitabilidade.

    Em Provérbios 22:7, a Bíblia explica mesmo que “o rico domina sobre os pobres; o que pede emprestado fica escravo do credor”, o que confirma muito do que digo aos meus amigos pobres: pedes emprestado ao banco, ficas escravo do banco.

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    Será então em 22:9 que leio uma frase esclarecedora sobre a distinção entre ricos e pobres: “Aquele que é generoso será abençoado, porque reparte o seu alimento com os pobres”. Agora percebo a tal inevitabilidade de haver ricos e pobres: é para permitir aos ricos serem abençoados caso decidam serem generosos.

    Será ainda em 22:16 que se avisa: “Oprimir o pobre para se engrandecer, ou dar ao rico, conduz à pobreza”. Isso é uma verdade tão óbvia que deveria fazer pensar católicos e não católicos: para quê dar dinheiro a ricos que se engrandecem à custa da opressão dos pobres? Gastar em supermercados que, a pretexto de guerras, aumentam preços ao mesmo tempo que anunciam aumentos de lucros? Pagar mais do que se pode de prestação da casa, via Euribor, enquanto o governo se regozija com o aumento do PIB? Afinal, são essas as coisas que conduzem à pobreza.

    Não sei se a leitura da Bíblia faz parte dos cursos do ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão de Lisboa – ou da Nova SBE – Nova School of Business and Economics –; mas devia.

    Nem deveria citar a mais famosa parábola de todas – precisamente porque é a mais famosa – que alude ao facto de ser mais fácil um camelo (que, neste caso, é uma corda grossa para prender barcos, e não o animal) passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Mas gostaria de citar um outro provérbio, o 28:22, que anuncia: “O homem ganancioso tem pressa de ser rico, mas não sabe que vai cair sobre ele a pobreza”. Isso poderia estar gravado em moto – em letras de madeira banhadas a bronze dourado – nas entradas principais daquelas instituições. Estilo “Inferno”, de Dante: “Vós que entrais, abandonai toda a Esperança”.

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    Há ainda duas parábolas que retenho.

    A primeira, conta Mateus, em 20:1-16, é a de um proprietário que, de manhã cedo, saiu para contratar trabalhadores para a sua vinha. E combinou com eles que pagava uma moeda de prata por dia. Mas às nove da manhã foi de novo à praça e chamou mais trabalhadores e disse-lhes apenas que pagaria o que achasse “justo”. Fez o mesmo ao meio-dia, às três da tarde e ainda, mais uma vez, pelas cinco da tarde. Ao cair da noite, deu ordens ao feitor para pagar aos trabalhadores, começando pelos que começaram pelas cinco da tarde e acabando nos que começaram de manhã cedo.

    Quando se fez o pagamento, aqueles que trabalharam menos, os que entraram apenas às cinco da tarde, receberam uma moeda de prata. Os que começaram de manhã e trabalharam todo o dia, ao verem aquilo, esperavam receber bem mais. Mas só receberam a mesma moeda de prata, apesar de terem trabalhado mais tempo. Claro que começaram a estrebuchar: “Então estes últimos só trabalharam uma hora e estás a pagar-lhes tanto como a nós que aguentámos o dia inteiro a trabalhar debaixo de sol!”.

    É nesse momento que o proprietário diz algo que deveria estar nos manuais de Economia grafado em letras grossas: “Olha amigo, não estou a ser injusto contigo. O salário que combinámos não foi uma moeda de prata? Toma lá o que é teu e vai-te embora, pois eu quero dar a este último tanto como a ti. Não tenho eu o direito de fazer o que quero com o que é meu? Ou tu vês com inveja o facto de eu estar a ser generoso?”.

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    Claro que Karl Marx depois elevou esta questão a outro nível, mas Jesus concluiria isto com a célebre frase: “Deste modo, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”.

    A segunda história é a parábola dos talentos. Um homem foi fazer uma viagem e deixou dinheiro com três criados. Deu 500 moedas a um, 200 a outro e 100 ao terceiro. Quando regressou, o que tinha recebido 500, devolveu-lhe as 500 e ainda acrescentou mais 500 que, entretanto, conseguira ganhar em negócios feitos com o dinheiro. O que recebeu 200, também devolveu 200 e ainda a acrescentou mais 200. O terceiro, disse que teve medo de perder o dinheiro e guardou-o num buraco, para o devolver na totalidade.

    O homem recompensou os dois primeiros e mandou o terceiro dar as 100 moedas ao que recebera 500 e disse esta máxima da Economia moderna: “Pois, a todo aquele que tem, mais se lhe há-de dar e terá de sobra, mas àquele que não tem, até o pouco lhe será tirado” (Mateus 25:29). Em Lucas, 19:26, a resposta é ainda mais cruel na sua verdade lapidar: “Pois eu digo-vos que ao que tem dá-se-lhe mais, mas ao que não tem tira-se-lhe até o que possui”.   

    Feita esta abordagem por entre provérbios e parábolas – e muitos mais haveria para citar aqui! – fui procurar respostas específicas a duas perguntas concretas que se colocaram com a polémica do altar do Papa.

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    Quando se questiona se o Papa Francisco, depois desta confusão, deveria vir ou não a Lisboa, recorro a Marcos 2:15, onde se fala de um momento em que Jesus estava sentado à mesa com pecadores e… cobradores de impostos! Perguntaram então a Jesus como podia ele comer na companhia de semelhante gente, ao que ele respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ora eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. Portanto, Francisco que venha a Lisboa, onde há muitos pecadores à sua espera para o convívio.

    Finalmente, a questão mais propagandeada prende-se com o valor do palco, os quatro milhões de euros. Pergunta-se: “Mas que desperdício! Esse dinheiro não deveria ser dado aos pobres? Ora, a Bíblia tem uma resposta para esta pergunta em específico. Não é uma pergunta nova. Podemos encontrar tanto em Mateus 26:6, Marcos 14:3 e João 12:1-8.

    Coligindo as três versões, a história conta-se assim: está Jesus em Betânia, antes do momento da traição de Judas. Ele já sabe que vai morrer. João diz-nos que estavam em casa de Lázaro, o ressuscitado, embora os outros dois, Mateus e Marcos, falem de Simão, “o leproso”. Não importa. O importante é que, nesse momento, surge uma mulher com um vaso de alabastro contendo um “perfume muito caro”. Feito das melhores plantas de nardo. Aquilo era coisa para custar 300 moedas. À cotação da época, daria bem para comprar um escravo.

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    A mulher deitou o perfume caro pelos pés de Jesus e “depois secou-os com os seus cabelos” – Mateus e Marcos dizem apenas que o deitou pela cabeça de Jesus abaixo, mas isso também não importa. O importante foi a reação dos discípulos que, note-se, até eram amigos de Jesus.

    Eles foram os primeiros a condenar a cena e, indignados, disseram exactamente aquilo que, dois mil anos depois, ainda anda por aí muita boa gente a perguntar e, sobretudo, agora com a questão do altar: “Para que foi este desperdício? Este perfume podia vender-se por uma grande quantia e dava-se o dinheiro aos pobres!” (Mateus). “Para quê desperdiçar todo este perfume? Pois podia vender-se por mais de 300 moedas que se davam aos pobres” (Marcos).

    No Evangelho de São João é até explicitado que quem fez a pergunta foi Judas Iscariotes, esse mesmo, o discípulo que haveria de trair Jesus. Ele perguntou: “Por que não se vendeu este perfume por 300 moedas para distribuir pelos pobres?”. João acrescenta que, quando Judas fez aquela pergunta, “não disse aquilo por ter amor aos pobres, mas porque era ladrão, pois era ele que tinha a bolsa do dinheiro e roubava do que lá se metia”. Tão actual. Em dois mil anos, não se avançou muito, realmente.

    Então, e qual foi a resposta de Jesus a esta questão moral?

    Escolho a versão de Marcos, por achar ser esta a mais completa e límpida de todas: “Deixem a mulher em paz e não a incomodem. Ela praticou uma bela acção para comigo. Pobres irão ter sempre convosco e poderão fazer-lhes o bem que quiserem. Mas a mim é que não me poderão ter sempre. Ela fez o que pôde, perfumou o meu corpo para a sepultura. E garanto-vos que em qualquer parte do mundo, onde for pregada a boa nova, será contado o que esta mulher acaba de fazer e assim ela será recordada”.

    Sim, Senhor: recordaremos o perfume de nardo quando estiverdes em Lisboa…

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Hino novo, discussão velha

    Hino novo, discussão velha

    O músico Dino Santiago usou um evento do semanário Expresso para colocar em causa a letra do hino nacional. Fomos ler o que disse o semanário Expresso quando, em 1997, Alçada Baptista fez a mesma proposta no seu discurso de 10 de Junho.


    “Não tem nenhum eco no coração da juventude evocar a vitalidade da pátria gritando ‘às armas’ e propondo-nos ‘marchar contra os canhões’”. Quem disse isto? Se pensou no nome de Dino Santiago, o músico que, no passado dia 6 de janeiro, durante a conferência comemorativa dos 50 anos do semanário Expresso, propôs a alteração do hino nacional, então está errado.

    Dino disse algo parecido. Mais precisamente: “A nossa geração, este nosso tempo, já é um tempo de termos um hino menos bélico, que incentive menos às guerras. Não gritemos mais ‘às armas, às armas’ e não marchemos mais ‘contra os canhões’. Os nossos filhos não precisam disso e a nova emancipação não pode ser territorial. Que seja mental, espiritual, com amor”.

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    Então, quem disse a frase inicial e quando? Aquelas foram palavras de António Alçada Baptista (1927-2008), advogado, romancista e editor que, entre 1988 e 1997, foi o presidente da Comissão Organizadora do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Seria no 10 de Junho de 1997, na cidade de Chaves, que Alçada Baptista, como orador oficial, questionou o hino nacional perante o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro António Guterres.

    É preciso, primeiro, contextualizar a altura em que Alçada Baptista disse aquelas palavras. Em 1997, Portugal vivia o segundo ano do governo socialista de António Guterres. Era uma nova política, após os dez anos de Cavaco Silva à frente do governo. Guterres não tinha uma maioria parlamentar, mas vencera as eleições e geria o cargo em maioria relativa, sem qualquer acordo parlamentar assinado à esquerda. O actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, era então o líder do PSD desde que vencera o congresso de Santa Maria da Feira no ano anterior.

    O país ainda não tinha entrado na crise económica do “pântano” ou da “tanga”, mas discutia-se uma das mais importantes decisões que afectariam a soberania de Portugal: a adesão ao euro e o fim da nossa moeda, o escudo. É nesse ambiente que Alçada Baptista lança o repto em relação à discussão do hino.

    Três dias depois, no semanário Expresso – o mesmo que no dia 6 deste mês deu palco ao músico Dino Santiago para ir avante com a sua proposta – o subdirector Fernando Madrinha, no espaço de crónica com a designação “Página Dois”, por ocupar a segunda página do semanário, assinou um texto intitulado “E a seguir ao Hino?”. Alertava que “a falta de assunto” levou a que Alçada Baptista fizesse uma proposta reveladora “de uma certa atitude que contribui para nos desarmarmos ainda mais enquanto Nação”.

    Madrinha contou que o primeiro-ministro da altura – e actual secretário-geral da ONU, António Guterres –, comentou que todos os hinos estão “desfasados” e não seria suposto serem tomados à letra. Sendo um canto de exaltação, “não se espera dele que faça apelo à razão dos comportamentos ou que seja fiável quanto ao rigor dos factos históricos; espera-se bem pelo contrário, que faça apelo às emoções e mobilize a vontade daqueles a quem se dirige”, escreveu o subdirector do Expresso.

    António Guterres, antigo primeiro-ministro e actual secretário-geral da Organização das Nações Unidas.

    Frisou Madrinha que a questão aparecia “justamente num tempo histórico em que bem precisados estamos de reforçar essa noção de Pátria, que a alguns – poucos, felizmente – parece repugnar. Se a proposta de mudar o hino tivesse seguimento, que sentido faria manter a bandeira, visto que alguns dos seus símbolos também perderam actualidade?”.

    Pois é. A seguir ao hino, será a bandeira a ser colocada em causa?

    “E já que as fronteiras se diluíram e a moeda está em vias de desaparecer, por que não eliminar todos os sinais que contribuem para a nossa identificação nacional?”, perguntava ainda, em tom de provocação, o subdirector do jornal fundado em 1973 por Francisco Pinto Balsemão, que foi primeiro-ministro de Portugal entre 1981 e 1983.  

    António Alçada Baptista

    Mas as frases mais provocadoras do subdirector do Expresso estavam reservadas para o fim da crónica que, lida com os olhos higiénicos do novo pensamento de contra-cultura dos dias de hoje, seria facilmente conotada com posições “extremistas”, pois Fernando Madrinha registou que a proposta de Alçada Baptista caiu em “saco roto e não comprometeu mais ninguém senão o próprio autor da inusitada proposta. Se outros lhe tivessem dado ouvidos, ao nível da representação política, isso seria um grave sinal de que estávamos muito perto de nos transformarmos de vez num povo sem memória, num Estado sem raízes, numa Nação sem uma ponta de respeito pelo seu passado”.

    Pimba!

    Madrinha ainda dedicou umas palavras ao Presidente da República, Jorge Sampaio, dizendo que esperava que deixasse de haver a figura do orador oficial “ou que, pelo menos, evitem o absurdo de algum futuro orador oficial se achar no direito de usar a tribuna do Dia de Portugal para apoucar os símbolos nacionais”. E não acabou por aqui. Ainda teve mais: “E espera-se também que Jorge Sampaio arranje iniciativa e criatividade bastantes para interessar o país inteiro por essas celebrações. A fim de que 10 de Junho continue a ser identificado como o dia de Portugal e não seja cada vez mais o dia em que se joga a final da taça no Estádio Nacional”.

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    Pumba!

    Vinte cinco anos se passaram desde aquela altura. A moeda única, aprovada em 1998, surgiu fisicamente em 2002. O Hino de Portugal foi bastante cantado durante a carreira da selecção de futebol no Euro2004. Os primeiros sinais da crise financeira internacional começaram em 2008 e atingiu-nos em força em 2011. Hoje, nem mesmo o hino e a bandeira parecem ter força suficiente para nos exaltar como povo. A não ser, talvez, nos jogos da selecção.

    Nota histórica:

    A Portuguesa é o nome do hino de Portugal e, originalmente, a parte que fala de marchar contra os canhões era contra os “bretões”, os britânicos. Começou por ser uma canção de protesto contra a imposição da chamada questão do ultimato britânico do “Mapa Cor-de-Rosa” de 1890, em que se exigia que as tropas portuguesas abandonassem o território compreendido entre Moçambique e Angola.

    A letra é de Henrique Lopes de Mendonça e a música de Alfredo Keil. O sucesso popular e o facto de ser uma bandeira contra uma monarquia refém dos ingleses, elevou a canção a hino nacional no ano seguinte à revolução republicana do 5 de Outubro, em 1911, tendo substituído o “Hino da Carta” que vigorava desde Maio de 1834.

    Desde então, houve novas oportunidades revolucionárias para mudar o hino. Poderia ter sido feito, por exemplo, aquando do golpe do 28 de Maio de 1926. Também o ditador Salazar poderia ter mudado o hino na altura em que teve uma nova constituição, em 1933. Criou o Estado Novo, mas não aproveitou para fazer o “Hino Novo”.

    Aliás, a 16 de Julho de 1957, o Conselho de Ministros, presidido por Salazar, fixou a letra e arranjo musical, tendo sido publicada a versão oficial da partitura no Diário do Governo de 4 de Setembro de 1957.

    Com o 25 de Abril de 1974, marcando o fim da ditadura e início da actual democracia, também não se mudou o hino – pelo que o “Grândola, Vila Morena” a canção de Zeca Afonso que serviu de senha para a revolução, perdeu assim uma bela oportunidade de substituir “A Portuguesa”. Sobra-nos, ao menos, o consolo de ter um hino com nome feminino que, pelos vistos, sempre poderá contar como algo a seu favor nos tempos que correm.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Carta aberta a Cristiano Ronaldo sobre o Vítor Baptista

    Carta aberta a Cristiano Ronaldo sobre o Vítor Baptista

    Caro Cris,

    Não nos conhecemos pessoalmente, nunca falámos sequer profissionalmente, pelo que, na realidade, deveria tratar-te por Cristiano ou Ronaldo ou, de uma maneira mais formal, Senhor Aveiro. Mas como sei ser assim que te tratam na Selecção, uso o mesmo tratamento por “tu”. Espero que não faça diferença para aquilo que sinto ter para te dizer.

    Poderás perguntar: mas quem é este “Carvalho” que vem procurar protagonismo à minha custa? É verdade, podes pensar isso e, acredita, haverá por aí muita boa gente que vai fazer o mesmo tipo de pergunta.

    Explico então: sou jornalista da área da política nacional e internacional. Entre obras de ficção e de investigação jornalística tenho já quase vinte livros publicados. Escrevi sobre temas complicados e polémicos, como a morte do primeiro-ministro Sá Carneiro e os encontros internacionais dos ditos “Donos do Mundo” – Grupo Bilderberg. Não há nada que me ligue ao desporto, excepto… bem, Cris, talvez até poucos o saibam, mas o meu primeiro livro de todos, publicado no Verão de 1999, foi sobre um jogador de futebol.

    Um jogador de futebol chamado Vítor Baptista, dito “O Maior” – era esse, aliás, o título do livro. No início deste mês, no dia 1 de Janeiro de 2023, cumpriram-se exactamente 24 anos desde o seu falecimento. Tinha 50 anos e morreu na cama da casa da sua mãe. Estava doente, pobre e abandonado pelos amigos. Tinha ele então a mesma idade que tenho eu hoje. Talvez, por isso, com estas emoções todas, me tenha lembrado de escrever-te esta carta.

    Nasci no mesmo ano – 1972 – em que, por exemplo, também nasceu um jogador que conheces bem: Luís Figo. Somos, eu e ele, da mesma geração. Crescemos sem termos visto jogar o Pelé e Eusébio, mas conhecíamos os seus feitos graças a gravações de jogos às memórias dos mais velhos.

    Sou assim da geração que tinha 6 anos quando apareceu a “Tango”, a bola do Mundial de 1978 na Argentina, a mais linda que alguma vez se fez e que apareceu pela primeira vez no Mundial de 1978. Aos 10 anos chorei quando uma das melhores equipas do Brasil – com Sócrates, Zico e Falcão – foi eliminada pelos três golos do Paolo Rossi, em Barcelona. Nunca ninguém tinha feito um hat-trick ao Brasil e nunca mais ninguém fez depois. Foi o único até hoje. Nem quando perderam 7-1, em 2014, frente à Alemanha.   

    Cris, sim, também eu quis ser jogador de futebol e driblar como Futre ou Maradona, fazer a “chilena” do Hugo Sanchéz ou marcar com o calcanhar como o Madjer na final de Viena de 1987. Joguei nos iniciados do Francos, o clube do meu bairro no Porto, ao lado do Estádio do Bessa – sou boavisteiro, se quiseres saber – até que descobri que o futebol não é para todos.

    Era preciso estudar e lembro-me de, a caminho de um jogo no Bessa, chamarem-me a atenção para um jogador do Benfica, que fora um dos melhores e, por não ter instrução, caíra na droga e vivia então dentro de um carro. Ainda não o sabia, mas esse era o Vítor Baptista que eu viria a conhecer mais tarde. As esperanças de uma carreira no futebol terminaram quando acompanhei o Sá Pinto a um treino do Salgueiros para os lados de Campanhã – frequentávamos a mesma escola secundária. Ele ficou e eu vim embora porque o plantel já estava cheio. Não tinha talento suficiente para os convencer a deixarem-me ficar. Dediquei-me ao jornalismo, que requer bem menos talento e, como deves calcular, também paga menos.

    No Verão de 1997, após os estudos no Porto e o início da profissão no diário portuense “O Primeiro de Janeiro” cheguei a Lisboa para trabalhar no “Tal&Qual”. Foi a “contratação milionária” de um jornalista do Porto para a equipa da capital. Acabei por ir inaugurar as instalações do jornal no edifício na Praça Marquês de Pombal, onde passaria ainda a funcionar a revista “Visão” e um novo jornal diário, o “24 Horas”.

    É engraçado, mas ao ver o teu percurso de vida, verifico que foi nessa mesma altura – época 1997/ 1998 –, que deixaste a tua ilha da Madeira e, com apenas 12 anos, também vieste para Lisboa. Não sei se foste logo viver para a pensão residencial D. José, no número 79 da Avenida Duque de Loulé, próxima do edifício onde estavam os jornais, no número 13 da Praça Marquês de Pombal.

    Foi aí, nesse edifício, num fim-de-semana em que estava tudo vazio que, na Páscoa de 1998, fiz a última entrevista ao Vítor Baptista. Conhecera-o uns meses antes, quando me mandaram ir entrevistá-lo a Setúbal. Sabes o que é que ele fazia nessa altura? Estava a trabalhar como coveiro. Um emprego que a Câmara Municipal lhe arranjara para tentar resgatá-lo do mundo da droga. E foi ao vê-lo, ainda com pose de atleta, com sachola na mão para abrir as covas, a arrancar ervas daninhas saindo entre as pedras da calçada com pequenos toques de pé encurvado – os mesmos pés que, anos antes, em outros relvados, faziam levantar multidões –, percebi que tinha de escrever um livro sobre ele.

    Ele, que fora o maior da sua geração, que tivera tudo, perdera tudo…

    Não sei, Cris, se conheces o percurso desportivo do Vítor, mas ele, tal como tu, era de uma família pobre – os pais trabalhavam na indústria da conserva em Setúbal. O Vítor perdeu o pai aos 12 anos e começou a trabalhar como electricista e canalizador ao mesmo tempo que jogava nas escolas do Vitória de Setúbal. Aos 18 anos, o treinador Fernando Vaz chamou-o para a equipa principal e teve a estreia no jogo contra o Leixões, na segunda mão da eliminatória da Taça de Portugal, a 18 de Junho de 1967, no Estádio do Mar, em Matosinhos. Vítor fez a assistência para o primeiro golo na vitória de 3-0.

    Esteve depois na eliminatória contra o FC Porto e foi jogar a final da Taça de Portugal de 1967, no Estádio Nacional, contra a Académica de Coimbra, onde ganhou o seu primeiro título: “Acho que não há nenhum jogador de futebol no mundo que tenha ganho a taça do seu país aos 18 anos. Eu devo ser o único”, disse-me ele na entrevista. Na altura não verifiquei, mas registei que era essa uma das memórias de vida que nunca lhe tinham tirado. Há outros, mas ele está lá também.

    As duas épocas seguintes não tiveram grande história e Vítor jogou apenas como jogador de meio-campo. Nunca marcou golos. Mas o destino mudou quando o treinador do FC Porto, José Maria Pedroto, incompatibilizou-se com a direcção portista e, em Abril de 1969, assinou contrato com o Vitória de Setúbal. Fernando Vaz foi para o Sporting. O “teu” Sporting, Cris. Quando chegou ao Bonfim, Pedroto percebeu como deveria lidar com Vítor Batista e fez dele o goleador que precisava. E sabes contra quem foi o primeiro golo do Vítor: foi no Bonfim contra o antigo clube do seu novo treinador, o FC Porto!

    Fiquei emocionado durante aqueles primeiros meses de 1998, o ano da Expo, quando ocupava os meus tempos livres a ler os arquivos dos jornais desportivos na Hemeroteca de Lisboa, ao Bairro Alto, a consultar a carreira do Vítor, que começara anos antes de eu ter nascido. A 9 de Novembro de 1969, Vítor entrou em campo aos 78 minutos, quando o jogo estava já com 4-0, mas ainda fez o quinto tento da partida – se fores verificar, o golo aos 88 minutos está atribuído a um jogador do FC Porto, Valdemar, como tendo sido na própria baliza. Mas foi porque estava a tentar parar o remate do sadino. O golo foi mesmo dele.

    Na segunda volta, a 1 de Março de 1970, nas Antas, sabes quantos golos o Vítor marcou ao FC Porto? Dois. E sabes porquê? Porque à entrada do túnel, viu o Pedroto a acender um cigarro com um isqueiro de ouro “Dupont” e gabou-lhe o gosto. O treinador virou-se para ele e disse, à frente dos companheiros, que o isqueiro era dele se marcasse dois golos. Quando marcou o segundo, foi a correr para o banco a bater no peito e a gritar “O isqueiro é meu! O isqueiro é meu!”. Perdeu-o mais tarde numa camioneta para Setúbal.

    Não foi só o isqueiro que ele perdeu durante a vida. Mais famosa é a história do brinco que perdeu após ter marcado um golo ao Sporting e parando por momentos o jogo para o procurar. Nunca o encontrou. Dessa história, quase de certeza, já ouviste falar.

    Vítor Baptista e Frederico Duarte Carvalho nos anos 90.

    Na segunda época de Pedroto à frente do Vitória de Setúbal, a de 1970/ 71, o Vítor só não foi o melhor marcador do campeonato porque, na última jornada, tinha 22 golos, o mesmo número de tentos de Artur Jorge, que jogava no Benfica. E o Artur Jorge conseguiu marcar dois golos contra a sua anterior equipa, a Académica de Coimbra.

    Em 1998, o Vítor ainda não tinha digerido isso. Queixou-se a mim que os dois golos da última jornada, a 2 de Maio de 1971, tinham sido “gamados” e explicou: “Uma coisa que o Artur Jorge nunca soube fazer na sua vida foi fintar todos em campo. O homem atrapalha-se, pois só sabe jogar bem dentro da área. Então como é que ele dribla todos os jogadores da académica que caem de cu?” – já agora, para que vejas como são as coisas do futebol (e eu sei que sabes melhor do que ninguém), os golos que deram o título de melhor marcador ao jogador do Benfica foram marcados ao cair do pano, aos 79 e 88 minutos, quando os encarnados já venciam a Académica por uns confortáveis 3-1. Vítor, a jogar no campo pelado em Faro, e fortemente controlado, não conseguiu fazer a sua parte. Mas nunca esqueceu.

    É claro que, com aquelas exibições, surgiu o interesse de outros clubes. E sabes, Cris, o Vítor até queria ir jogar para o “teu” Sporting. Pagavam-lhe mais. O Sporting oferecia-lhe 1800 contos por três anos, fora as luvas. O Benfica dava 1200 pelos mesmos três anos. Mas a decisão estava nas mãos do Setúbal e no seu direito de opção. E como o Benfica ofereceu – com salários pagos pelo clube da Luz – o “bom gigante” Torres, um dos heróis da selecção de 1966, mais uma promessa chamada Matine e ainda 3 mil contos (que serviu para construir uma bancada no Bonfim), Vítor lá teve de se contentar com a ida para o Benfica. E com o dinheiro da assinatura do contrato, comprou uma vivenda em Setúbal.

    Vítor Baptista trabalhou como coveiro em Setúbal nos últimos anos de vida.

    O resto, como se costuma dizer, é história. Foi campeão nacional pelo Benfica cinco vezes (mais uma Taça de Portugal), onde criou a fama de indisciplinado e arrogante – hoje diriam “dotado de personalidade própria” e “excêntrico”. Seriam muitas mais as histórias sobre a sua vida dentro e fora dos relvados numa carreira desportiva que, depois de ter saído do Benfica, em 1978, levou-o a saltitar entre vários clubes – Vitória de Setúbal, Boavista, San Jose Earthquakes (nos EUA, onde esteve 15 dias), Amora, Montijo, União de Tomar, Monte da Caparica e Estrelas do Faralhão. Deixou de jogar em 1986, tinhas tu um ano de vida.

    Cris, quero que saibas que o Vítor nunca deixou de ser aquele menino pobre que tinha a alegria de jogar à bola e era mesmo o melhor de todos. Estava à frente do seu tempo. Um tempo que ele abriu para ti, para que os melhores possam ser hoje quem são sem se preocuparem com o que digam sobre si.

    O problema do Vítor foi que tinha 25 anos quando a liberdade do 25 de Abril chegou e começou a experimentar drogas. Também não tinha responsabilidades com filhos – confidenciou-me uma história trágica de como, numa discussão com uma mulher que dizia estar grávida de uma menina, sua filha, bateu-lhe (ela estava com uma caçadeira, não perguntes) e, alegadamente, acabou por provocar a morte da criança.

    As más decisões da vida, o facto de ter crescido a jogar à bola como um menino que nunca deixou de ser, não o preparou para um mundo cruel depois do futebol.

    É isto que quero dizer-te, Cris: és o melhor do mundo, “O Maior” da tua geração e acho que vais jogar até aos 40 anos ou mais – tens corpo para isso e só precisas de organizar o espírito. Mas até lá, lembra-te daquilo que aprendi com o Vítor: a tua vida a sério só vai começar quando o menino que eras aos 12 anos, o menino pobre da ilha da Madeira, que foi viver para a pensão da Duque de Loulé e comprou depois um apartamento de 8 milhões ali perto, no alto do Parque Eduardo VII para mostrar a todos que venceu na vida, esse menino, Cris, vai ter de saber sobreviver num mundo diferente quando tiver de deixar de jogar à bola.

    Não vais ter amigos se perderes o dinheiro – é muito, eu sei, e deve demorar séculos a ser gasto, mas acredita há muita gente disposta a ajudar-te a gastá-lo rapidamente. Sabes qual é a frase que guardo do Vítor? É uma que ele me disse quase no fim da entrevista, com a voz gasta da droga: “Eu nasci nu e agora olha para mim, já tenho uma roupinha, estou a ganhar! Portanto, saio desta vida com mais do que trouxe, sempre é alguma coisinha e agora está a dizer que sou um teso? Eu sou rico, tenho mais roupa do que quando nasci!”.

    Sei que sabes estas coisas todas e estás mais do que avisado. Estás avisado porque, se calhar, já conhecias esta ou outras histórias parecidas. Se calhar, naquela Páscoa de 1998, mesmo sem o saberes, pode ser que te tenhas cruzado com o Vítor por Lisboa. Ele, quase a fazer 50 anos, doente, sabendo que iria morrer dali a uns meses – disse-me e não se enganou – e tu, criança, a sonhar com vitórias e glórias.

    A tua verdadeira vitória virá com aquilo que vais fazer depois de deixares de jogar à bola.

    Lembra-te disso, Cris.

    Abraço. 

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Catarina e a dúvida de matar fascistas

    Catarina e a dúvida de matar fascistas

    ATENÇÃO: Este texto revela detalhes sobre o conteúdo da peça teatral Catarina e a beleza de matar fascistas, pelo que coloca em causa o efeito de surpresa a potenciais espectadores que ainda não viram esta representação. O texto foi escrito para servir de reflexão ao conteúdo da peça e relata o que o repórter assistiu do que se passou em palco e também fora dele. Se ainda não viu a peça e tem planos de o fazer, terá então de ter em conta este esclarecimento e decidir se quer mesmo prosseguir com a leitura. Se deseja saber o que provoca a discussão sobre a peça e é-lhe indiferente conhecer antecipadamente detalhes da mesma, poderá ler à vontade e ficar na posse de informação que lhe será útil na medida daquilo que pretender depois fazer com ela.


    Devemos matar um fascista uma vez por ano? Este é o mote da peça de teatro Catarina e a beleza de matar fascistas, que regressou à cena no Centro Cultural de Belém (CCB), entre 4 e 7 deste mês, depois já aí ter estado em 2020 e ter percorrido várias salas em outras cidades portuguesas, de Espanha, França, Bélgica, Itália, Noruega e Suíça. Com texto e encenação de Tiago Rodrigues, este trabalho tem vindo a suscitar diversas reacções, nomeadamente no que diz respeito a críticas de incentivo à violência. Fomos ver e contamos o que vimos.

    Os actores já se encontram em palco à medida que os espectadores entram na sala. O cenário está iluminado e à vista de todos. Os artistas conversam em surdina entre si e observam os passos de quem entra, procura lugar e senta-se. Vê os que encontram amigos enquanto outros, sentados no lugar errado, têm de trocar de fila quando chegam os possuidores do bilhete certo.

    Quem se sentou nas pontas, tem de levantar-se para deixar passar aqueles que ocupam o meio da fila. Falam depois entre si, olham para quem entra e comentam o nome de alguma personalidade pública que, entretanto, apareceu. Apontam para detalhes no palco e há ainda os que tiram a fotografia para a sua rede social, informando uma audiência privada. É um espectáculo que só pode ser visto de cima do palco pelos actores.

    Talvez os espectadores ainda não se tenham apercebido nesse momento, mas dá para intuir que, ao longo da peça, algo vai mudar na ordem natural das coisas.

    Temos vista ampla para o cenário onde a acção se irá desenrolar: uma casa de madeira e uma mesa preparada para uma refeição. Visto da audiência, os actores movimentam-se no lado extremo esquerdo do palco, enquanto no lado extremo direito, onde está a mesa, permanece sentado à cabeceira da mesma apenas um actor. Veste fato e gravata e depreendemos, sem que seja necessário que nos digam, que aquele é o fascista que, fazendo jus ao título da peça, está ali para ser morto.

    A toalha que cobre a mesa tem escrito, na parte lateral virada para o público, a frase “Não passarão” – um lema cuja origem remonta às tropas francesas durante a I Guerra Mundial, mas tornado célebre na versão castelhana “¡No pasarán!” durante a Guerra Civil de Espanha por Dolores Ibárruri Gómez, dita “La Pasionara” e uma das fundadoras do Partido Comunista Espanhol. Saberemos depois que estamos no Alentejo, na propriedade de uma família, e que a história se passa num futuro próximo, com um governo de extrema-direita no poder.

    É tradição desta família matar um fascista por ano. E isso tem uma origem que remonta a 1954, ano em que a ceifeira Catarina Eufémia, de apenas 26 anos, foi assassinada pela GNR durante uma greve em Baleizão, Alentejo. Uma amiga de Catarina, casada com um guarda da GNR, discutiu nessa noite com o marido por ele não ter impedido aquela morte. O diálogo tornou-se violento e culminou com a mulher a matar o marido e pai de seus filhos. Por ser fascista. Foi o primeiro fascista a ser morto e acabou enterrado debaixo de um chaparro.

    A partir daí, essa mulher pediu, em carta deixada aos seus descendentes, que todos os anos se reunissem e mantivessem a sua tradição – embora na carta não especificasse que deviam matar um fascista (como será referido mais tarde ao longo da representação).

    Os protagonistas – à excepção do fascista – vestem-se todos de ceifeiras, seguindo as instruções da carta, homens incluídos – figurinos de José António Tenente. É-lhes ainda pedido que, enquanto estiverem juntos, tratem-se todos pelo nome de “Catarina”. Homens incluídos.

    O actor António Fonseca faz de tio. É o mais velho da família, sendo que seria filho do primeiro fascista morto, pois a primeira Catarina de todas era a sua mãe. Beatriz Maia é a Catarina que vai matar o seu primeiro fascista, enquanto Carolina Passos Sousa interpreta o papel da irmã mais nova, a Catarina que ainda tem de esperar pelo dia em que terá oportunidade de matar o seu fascista. Isabel Abreu é a mãe de Catarina, que já matou sete homens. Homens, não. Eram fascistas… Os outros três actores, todos Catarinas, são interpretados por Marco Mendonça, António Afonso Parra e Rui M. Silva.

    Depois, é claro, há o fascista, interpretado por Romeu Costa.

    E hoje é o dia em que uma Catarina, que cumpriu 26 anos – a mesma idade de Catarina Eufémia quando morreu –, vai matar o seu primeiro fascista.

    Ela está contente e mostra-se empenhada. Sente-se motivada para disparar a pistola, depois de ter raptado o fascista, tendo para isso criado um perfil falso nas redes sociais e, a pretexto de uma reunião secreta para a mudança da Constituição, leva-lo até uma cilada. Só que há algo que não corre como nas vezes anteriores. Como aconteceu todos os anos, desde 1954:

    Catarina tem dúvidas no momento de disparar e anuncia que não consegue matar o fascista.

    Começa então, em família, de uma forma mais ponderado, mas também exaltada, toda uma discussão filosófica e política sobre a necessidade e a beleza de matar fascistas. Saltam imensa citações e palavras como “a cadela do fascismo está sempre com cio” (isto é Brecht) ou ainda Karl Popper e o seu “Paradoxo da Tolerância”, que diz: “Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.

    E Catarina, aquela entre eles que tem dúvidas sobre matar fascistas, será ainda colocada face ao dilema sobre para que lado puxar uma alavanca de modo a desviar um comboio desgovernado: para o lado onde está uma aldeia e causar a morte a centenas de pessoas ou para o lado onde existe apenas uma casa, mas é nela que se encontra a sua mãe? Ela prefere uma terceira via, nada original e de duvidosa exequibilidade, mas que não satisfaz a resolução do dilema. E este permanecerá a pairar na sua essência.  

    Ao contra-argumentar com a mãe, Catarina pergunta se matar fascistas não será também uma forma de impor uma ditadura. Claramente, na ficção que serve de pano de fundo à peça, a tradição de matar um fascista por ano durante sete décadas – são 70 anos –, não impediu que eles chegassem ao poder.

    O fascista destinado a ser executado é o autor dos discursos que levaram um líder da extrema-direita a ser agora o primeiro-ministro de Portugal. E tem um cão chamado “Kaiser” – que significava “Rei” em alemão. Para Catarina, a solução não é matar os fascistas, mas falar com as pessoas que os elegeram e compreender os motivos que os levaram a votar neles. A mãe diz que o problema é “opiniãozinha” e o facto de os fascistas terem voz.

    Conforme explicou o autor Tiago Rodrigues, num texto datado de 25 de Abril de 2020, esta peça estava pensada para ser sobre o rapto de “um juiz ultraconservador e machista que proferiu várias sentenças favoráveis a homens que agrediram mulheres”.

    Embora Tiago Rodrigues não o mencione pelo nome, acrescenta que o magistrado “citou textos religiosos para condenar a vítima pelo seu comportamento adúltero”, sendo esse o caso de 2017, do juiz Neto de Moura, e que acabou por ter um castigo disciplinar pelo Supremo Tribunal de Justiça.

    Tiago Rodrigues gosta de juntar a vida contemporânea à ficção que cria. Isso viu-se com o seu trabalho de 2011, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, peça teatral depois adaptada ao cinema por Tiago Guedes, cuja acção decorre durante o governo da Troika e onde o próprio autor do texto interpreta o papel de um primeiro-ministro inspirado na figura de Passos Coelho.

    “Não se trataria de uma história de justiça ‘olho por olho’ feita pelas próprias mãos, mas de um caso de justiça ‘olho real por olho teatral’”, explica o autor da peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”. Mas em 2019, quando estava a trabalhar no texto, a realidade em Portugal ofereceu-lhe mais material: “Em Outubro, as eleições legislativas em Portugal traduziram-se numa vitória expressiva da esquerda e de forças progressistas.

    No entanto, também resultaram na eleição de um deputado de extrema-direita pela primeira vez em 46 anos de democracia. De uma paisagem política em que a extrema-direita tinha uma expressão tão residual que quase parecia ridícula, passámos para um contexto em que o populismo de tendência fascizante passa a ter representação parlamentar”, registou.

    E acrescenta: “Dir-me-ão que estamos ainda longe do perigo ameaçador da ascensão dos populismos de extrema-direita em muitos países europeus, mas não podemos negar que se trata de uma alteração drástica e traumática da vida política portuguesa. Além disso e infelizmente, não parece ser um fenómeno passageiro”.

    É neste contexto que, enquanto Catarina discute com todas as outras Catarinas da sua família, o fascista permanece calado, tal como sempre esteve desde o início da representação. Sem voz. Há um momento em que é interrogado sobre a posse de um telemóvel, mas só responderá com abanos de cabeça para indicar “sim” e “não”. Permanecerá à vista do público durante toda a peça, com cara de assustado, de condenado à morte. É levado de um lado para o outro e tenta resistir, mas sem sucesso. Vai sendo exibido consoante algumas mudanças de cenário.

    Diga-se ainda, do ponto de vista cénico, a peça proporciona efeitos técnicos eficazes, como quando as paredes da casa criam cenários, movendo-se ao sabor dos protagonistas. Também os momentos em que se escuta música são acompanhados da acção em que os personagens colocam auscultadores – e ouvem-se composições de Hania Rani, Joanna Brouk, Laurel Halo e Rosalía. 

    Entre conversas sobre a vida das andorinhas e a sua felicidade e liberdade, Catarina decide-se a, finalmente, matar o fascista. Já é quase noite e a cova está preparada. O fascista será sepultado, tal como todos os outros antes dele, debaixo de um chaparro. E a cortiça nunca será retirada. Espera-se que Catarina dispare o seu revólver e todas as outras Catarinas têm também um revólver na mão. 

    Só que Catarina volta a ter dúvidas e defende que o fascista não deve ser morto. A irmã mais nova não aceita e avisa que, nesse caso, ela matará o fascista. Catarina mete-se à frente dele, defendendo-o. A seguir, passa-se tudo muito rápido… E é aqui que uma das Catarinas assume uma posição de maior relevo.

    O actor Marco Mendonça, por ser de origem moçambicana, destaca-se no elenco dos protagonistas que interpretam os descendentes da ceifeira alentejana. Ele interpreta uma Catarina pouco comunicativa em palavras. Fruto de um trauma por matar fascistas. Ele fala, e de forma assaz eloquente, mas apenas quando mete os auscultadores e o público entra no seu mundo interior. É ele que, em algumas situações, guia o público como um narrador.

    Será esta Catarina que dispara sobre Catarina e, então de forma muito rápida, sem se perceber de onde, todas as outras Catarinas são abatidas a tiro. O ruído do primeiro disparo, aquele que atinge Catarina enquanto tenta proteger o fascista, assusta-nos. Os outros disparos, nem tanto. Mas sente-se mesmo o cheiro a pólvora vindo da arma.

    Silêncio. Só há duas pessoas vivas em palco e uma delas é o fascista. A outra é a Catarina de Marco Mendonça. O fascista olha para ele e percebe que está livre. A Catarina viva não parece que o vá matar como fez às outras. Então, o fascista veste o casaco e prepara-se para ir embora. Abandonar aquele local e dar graças por estar vivo.

    Só que, obviamente, tendo estado calado durante toda a peça, o actor tem de mostrar que também tem voz. E um texto para dizer. O fascista vai à boca de cena e começa a falar. A falar sobre liberdade e o que aprendeu com a experiência. E o discurso do fascista usa palavras que nos parecem familiares. Daquelas que ouvimos às vezes na televisão ditas por quem defende o trabalho dos polícias, por exemplo. Não incentiva à invasão de países, mas diz defender o seu.

    Instala-se nesse momento a confusão da parte do público. Ouve-se um grito contra o actor e as suas palavras, vindo lá de cima, da zona das galerias. Seria um actor extra, alguém contratado para iniciar o momento que se seguiu ou foi mesmo uma reacção emocional genuína? Isso é para ser respondido por quem quiser um dia explicar como aconteceu. Agora, a seguir a esse primeiro grito de revolta, começou um coro de protestos à medida que Romeu Costa dizia o discurso do fascista.

    O discurso dura bem mais de 10 minutos – esta informação é apenas uma estimativa pessoal –, mas é difícil de captar os argumentos do fascista, pois agora o espectáculo está nos protestos que se ouvem vindos da plateia e galerias. As Catarinas “mortos” levantam-se e colocam-se em fila, no lado esquerdo do palco, atrás da Catarina viva, a olhar quer para o fascista que discursa, quer para o público que se manifesta.

    Canta-se o “Grândola Vila Morena”, mas não estamos na vida real, em 2013, quando, por exemplo, se interrompiam os discursos de Miguel Relvas com o mesmo cântico. Há legendas em inglês num discreto ecrã no topo da casa de madeira. É por elas que nos podemos guiar em relação a algumas das palavras do actor que representa o fascista enquanto o público não se cala e não deixa ouvir o que ele está a dizer. Pois o que ele diz também faz parte do texto de Tiago Rodrigues.

    A dada altura do discurso, percebe-se que o fascista fala das andorinhas. As mesmas que tanto agradavam às Catarinas. Só que, para ele, as andorinhas são pássaros que chegam, fazem ninho onde querem, sujam tudo à sua volta e vão embora sem dizer “obrigado”. Menciona ainda como uma minoria não pode impor a sua vontade a uma maioria – mas, sem lembrar que a legitimidade de uma maioria, vê-se na forma como esta trata as minorias.

    Há um espectador que tenta subir para o palco, mas é impedido por um segurança. No fim da peça, o segurança explica que não foi o primeiro a ter esse tipo de reacção: “Costuma acontecer também nas outras sessões”. Numa outra sessão há o registo de uma mulher que atirou um sapato contra o actor.  

    Será que essas pessoas que apupam e não deixam ouvir o discurso do fascista sabem que o actor Romeu Costa, aquele que até tentaram agredir, é um profissional da interpretação e que, no início de 2022, tinha em cena no Teatro D. Maria II um monólogo autobiográfico intitulado “Maráia Quéri“, onde relatava a sua experiência de vida como homossexual na cidade de Aveiro? [O título é uma versão aportuguesada do nome da artista Mariah Carey].

    A peça termina com o fim do discurso: “Viva Portugal”. E o fascista sai de cena. Vivo. Ninguém lhe deu um tiro. As luzes apagam-se e há, finalmente, aplausos do público. Várias chamadas de actores ao palco para os aplausos, onde eles agradecem de forma colectiva, deixando-nos a pensar como seria se fossem um a um, até ao actor fascista. 

    Tiago Rodrigues escreveu ainda: “Se, como defende o historiador Federico Finchelstein, os populismos contemporâneos são ‘uma reação autoritária a uma prolongada crise de representação democrática’, então não será precisamente no território dos sub-representados – esses que os líderes populistas manipulam para efeitos eleitorais, mas que continuam a oprimir com mecanismos de exploração – que podemos imaginar uma história de resistência violenta?”.

    Haverá alguma moral a retirar desta representação para além da manipulação das emoções dos espectadores a desejar a morte do fascista, mas que Catarina quis defender com o custo da sua própria vida? A moral será então pensar como, a caminho dos 50 anos do 25 de Abril, quantas mais Catarinas precisam de se matar entre si até que o fascismo deixe de ter razão para existir.

    Fotografias de ©Jaime Machado

  • Tenente Pires, um herói desconhecido da II Guerra Mundial

    Tenente Pires, um herói desconhecido da II Guerra Mundial


    Portugal tem um novo herói. Chama-se Manuel de Jesus Pires, mas podemos tratá-lo como Tenente Pires. Foi ele o administrador da Vila de Baucau durante a invasão de Timor pelos japoneses, em 1942, e liderou a resistência ao invasor, tendo salvado quase uma centena de vidas numa altura em que o regime do Estado Novo abandonou portugueses à sua sorte. A sua história é agora uma série de ficção da RTP com o título Abandonados.

    A ser emitida a partir desta quarta-feira, dia 21, e com realização de Francisco Manso, a série conta com sete episódios, de 50 minutos cada, debaixo de um título que reflecte bem o que esteve em causa durante aquele período em que não houve qualquer ajuda vinda da Metrópole.

    A invasão de Timor pelas tropas japonesas e a resistência que se seguiu é um episódio longínquo da História de Portugal, e que remonta a Fevereiro de 1942, escassos dois meses após o ataque japonês à base norte-americana em Pearl Harbor, no Havai. Marcou um momento de tensão entre o regime de Salazar, os aliados britânicos e o regime fascista de Hitler.

    Esquecidos e abandonados em Timor, na luta persistente de um militar – o Tenente Pires, que contra todos os obstáculos e dificuldades, criados aliás pelo próprio governo de Salazar, tudo fez para salvar os seus companheiros, até ao seu sacrifício final.

    Esta série mostra-nos “os caminhos tortuosos da política e dos interesses dos estados sobrepondo-se aos interesses individuais, com toda a carga de injustiça e de desumanidade que muitas vezes isso acarreta, conferindo a Abandonados um significado universal”, diz a RTP na apresentação deste trabalho.

    Abandonados, série da RTP realizada por Francisco Manso, será emitida a partir desta quarta-feira.

    A nova aposta do canal público na ficção, que teve recentemente uma apresentação no cinema São Jorge, em Lisboa, resulta da adaptação do livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires, editado pelo ISCTE, cujo autor, o historiador António Monteiro Cardoso, é também responsável pelo argumento – mas que não chegou a ver o resultado, visto ter falecido em 2016.

    “Baseada em factos reais, esta série recorda a aliança inédita entre Portugueses, timorenses e australianos unindo-se contra um inimigo comum que não hesitava em cometer as maiores atrocidades contra as populações locais e contra todos os que se lhe opunham”, acrescenta a RTP.

    O papel do Tenente Pires é interpretado pelo actor Marco Delgado, que comparou as façanhas deste “herói” à história de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português de Bordéus que desobedeceu às ordens de Salazar e permitiu a fuga dos refugiados judeus. Aristides Sousa Mendes teve o seu nome banido do reconhecimento público durante o tempo do Estado Novo, sendo apenas reabilitado após o 25 de Abril de 1974.

    Cena durante as filmagens de Abandonados.

    Marco Delgado disse ao PÁGINA UM que “para além de ter sido emocionante” assumir este papel, considera que o papel do Tenente Pires “é mais um nome desconhecido que “deve ser revelado e é importante que a RTP siga esta linha de prestar homenagem a verdadeiros heróis portugueses”.

    Embora seja um trabalho de ficção, a série conta, por exemplo, o episódio verídico da saída do Tenente Pires da ilha timorense a bordo de um submarino para pedir apoio aos australianos e como, sem ter sucesso nessa missão, regressou a Timor para continuar a resistência, mesmo sabendo que lhe custaria a própria vida.

    “Para mim era importante, moralmente, prestar-lhe a devida homenagem”, acrescenta Marco Delgado que, a partir de agora, poderá juntar o rosto do Tenente Pires à sua galeria de personagens.

    Timor esteve para ser o local das filmagens, mas pandemia obrigou a relocalização para a ilha da Madeira.

    O realizador Francisco Manso destacou ao PÁGINA UM que o Tenente Pires, “não sendo conhecido como uma pessoa anti-regime, era um militar à antiga e mantinha a crença de defender todos até à morte, sobretudo após o abandono pelo regime”. Uma situação que, mais tarde, em 1961 será de novo colocada na invasão da Índia portuguesa, mas com um desfecho diferente.

    Estima-se que morreram cerca de 50 mil pessoas durante os três anos e meio da ocupação japonesa de Timor. A série está já prevista para ser exibida na televisão de Timor, tendo havido, há um mês, uma apresentação pública na antiga ilha portuguesa. 

    Com a acção a desenrolar-se entre os anos de 1942 a 1945, Francisco Manso refere que, ao longo das filmagens, em termos cinematográficos, há filmes que “não deixam de ser uma referência” como os clássicos A Ponte do Rio Kwai  e ainda Feliz Natal, Mr. Lawrence.

    Vítor Norte, um dos actores de Abandonados, é presença assídua dos filmes realizados por Francisco Manso.

    Inicialmente prevista para ser filmada no cenário natural de Timor, as restrições da pandemia obrigaram a uma mudança de planos. Assim, as matas da antiga província portuguesa na Ásia foram recriadas num outro território bem português, mas próximo da costa de África: a ilha da Madeira.

    A Floresta Laurissilva da Madeira, um cenário luxuriante de espécies indígenas e anteriores à chegada dos navegadores portugueses àquelas paragens, ofereceu as imagens e cenário natural para se poder contar esta história.

    A “magia” da ficção está nestes pequenos detalhes, que levaram Marco Delgado a recordar, por exemplo, o facto de estarem a filmar com temperaturas baixas, mas de forma a dar a entender que estavam a suar em pleno Verão na zona do Pacífico.

    Fazem ainda parte do elenco de Abandonados, os actores António Pedro Cerdeira, Elmano Sancho, Luís Esparteiro, Maya Booth, Soraia Tavares, Virgílio Castelo, Chico Diaz, Sabri Lucas, Francisco Froes, Joaquim Nicolau, Marques D’Arede, Jorge Pinto, Rodrigo Santos, André Albuquerque e Paulo Calatré.

    O realizador Francisco Manso e o actor Marco Delgado, durante as filmagens.

    Vítor Norte, que tem sido uma presença regular na vasta filmografia de Francisco Manso, é outro dos actores que dão corpo às personagens envolvidas neste episódio da História de Portugal e da II Guerra Mundial, referindo-se como curiosidade acrescida que, ao interpretar o papel do juiz Nepomuceno dos Santos, tem a particularidade de encarnar o homem que era o pai do cantor Zeca Afonso, autor do “Grândola Vila Morena”.

    Abandonados estreia dia 21 de Dezembro, às 21 horas na RTP1, havendo antestreias na RTP Play a partir das 12 horas.

  • A morte de Sá Carneiro em Camarate no nevoeiro da memória

    A morte de Sá Carneiro em Camarate no nevoeiro da memória

    Dia 4 de Dezembro. Mais um ano de Camarate. Já lá vão 42.

    E as memórias começam a ficar mais turvas, como a neblina desta manhã. As notícias são escritas por jornalistas sem memória, com pouca capacidade para descobrir a mentira nos detalhes.

    Carrego comigo uma herança: desde que há três anos faleceu Augusto Cid, devo ser o jornalista que mais sabe sobre Camarate – pelo menos aquele que ainda fala disso em público e escreve sobre o assunto. Por isso, tenho esta estúpida e inglória obrigação de estar constantemente a chamar a atenção dos outros jornalistas para os factos errados.

    Francisco Sá Carneiro (1934-1980)

    Friso que não são factos que possam ser discutidos de forma subjectiva, com testemunhos contraditórios ou conclusões científicas de leituras dúbias. Não. São os factos reais e históricos que nunca poderão ser alterados. Não podem? É pena verificar que podem. Pequenos detalhes que alteram toda a história, como este que vi ao ler uma notícia nesta manhã. Está no Diário de Notícias, e intitula-se “PSD e CDS lembram Sá Carneiro e Amaro da Costa“.

    Acredito que quem a escreveu não o fez por mal, mas está a mudar a história e a esconder as verdadeiras circunstâncias da morte de Sá Carneiro e demais ocupantes do avião. Diz o texto jornalístico, não assinado: 

    Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa dirigiam-se à cidade do Porto para apoiar o general António Soares Carneiro, candidato da Aliança Democrática (AD) às eleições presidenciais, no que seria o comício de encerramento da campanha“.

    Imagens de arquivo da RTP dos destroços do Cessna em Camarate num directo da noite de 4 de Dezembro de 1980.

    Não. Não era “o comício de encerramento da campanha”.

    Dirão alguns que é um detalhe sem importância e que não muda em nada a opinião que têm sobre o que aconteceu. Mas muda. E muda muito.

    Muda porque, tal como num livro policial, este é o detalhe que revela o assassino. Está ali, na verdade que o DN revela neste engano – porque não acredito na inteligência de uma cobertura propositada, mas sim no equívoco de memória de quem elabora o texto sem saber a gravidade do que informa – que se encontra a chave para entender o atentado: como se organizou a morte de Sá Carneiro.

    Vamos então aos tais factos históricos que ninguém pode negar, nem o DN.

    Augusto Cid (à direita) na Assembleia da República em 1991, com José Luís Ramos (à esquerda), deputado e relator de uma comissão de inquérito sobre Camarate, que concluiu ter a queda do Cessna sido um atentado.

    Os factos dizem que, no dia 3 de Dezembro, uma quarta-feira, houve um comício no Porto com a presença do candidato Soares Carneiro. E com a presença de Adelino Amaro da Costa. Regressaram todos no Cessna fatídico, após esse comício. E, no dia em questão, dia 4, estava marcado um comício EXTRA na cidade do Porto. A cidade natal do então primeiro-ministro Sá Carneiro.

    Só que o comício com Soares Carneiro, há muito marcado para esse mesmo dia na cidade de Setúbal, também previa a presença de Sá Carneiro. Faça-se notar ainda que o primeiro-ministro decidira que não iria a comícios fora da área de Lisboa em dias da semana, pois isso seria descurar a sua responsabilidade principal como governante a favor de um papel de líder político numa campanha presidencial. Assim, só iria ao Porto e outros locais fora de Lisboa aos fins-de-semana ou dias feriados.

    Notícias sobre a morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.

    Por isso, esteve ele em Évora no feriado do 1 de Dezembro. Por isso, nunca ele deveria ir ao Porto na quarta-feira dia 3. Mas foi no dia 4. A um comício EXTRA e especialmente preparado para ele. Onde era inevitável ter de ir de avião. Naquele avião.

    E é aqui que o plano se torna mais detalhado e onde, ainda hoje, é perigoso fazer estas perguntas. E entendo que ninguém as queira fazer. Por isso é que eu não me importo de ser o único a ter de as fazer: está na minha natureza de homem liberto.

    O avião que deveria levar Sá Carneiro ao comício EXTRA, combinado especialmente para ele, era o único aparelho disponível no normal mercado de aluguer dos aviões-táxi. E porquê? Porque os outros aparelhos tinham sido apreendidos uma semana antes no aeródromo de Tires pela Guarda Fiscal a pretexto de irregularidades burocráticas com licenças de utilização.

    Capa do relatório integral da Comissão Multidisciplinar de Peritos da VIII Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Tragédia de Camarate. Houve 10 comissões.

    Quem mandou a Guarda Fiscal (ou a autorizou) a levar a cabo aquela operação num momento em que o país estava a ter uma campanha eleitoral e correndo o risco de ser acusada de instrumentalização política? Essa questão nunca se colocou na altura, apesar do candidato mais prejudicado ser aquele apoiado pelo Governo.

    O único avião que não foi apreendido era o que estava em piores condições. E foi aquele que estava ao serviço do rival, Ramalho Eanes. Seria esse que viria, precisamente, a cair em Camarate quando seguia para o comício EXTRA no Porto. Esse avião fora sub-alugado pelos donos dos aviões apreendidos em Tires e que precisavam de cumprir o contrato de aluguer com a campanha de Soares Carneiro.

    Todos estes factos demonstram como Sá Carneiro foi conduzido para aquele avião em específico, com o pretexto de ir a um comício EXTRA no Porto. Um comício que não era de “encerramento de campanha”, mas sim especialmente preparado para a sua presença, aproveitando-se o facto de ser natural do Porto, pelo que ele dificilmente poderia dizer não à sua presença. Sobretudo havendo um avião para o levar ao fim do dia de trabalho de Lisboa ao Porto e trazê-lo de volta, logo após o comício, de modo a estar de manhã a trabalhar em Lisboa. E tudo isto foi organizado dentro do círculo interior da campanha eleitoral.

    Os nomes, do director de campanha que marcou o comício EXTRA e do ministro das Finanças que tinha a tutela da Guarda Fiscal que mandou apreender os aviões em Tires são públicos. O nome da pessoa que, no dia 3, esteve no Porto e pediu ao empresário João Macedo e Silva, dono da RAR, que emprestasse um outro avião Cessna – idêntico ao de Camarate, mas mais seguro, para transportar Sá Carneiro de Lisboa ao Porto e, após o comício, de volta para Lisboa, mas que nunca chegou a ser usado – também há muito que é conhecido.

    Sabe-se tudo sobre Camarate. Não há hoje qualquer segredo. Mas os jornalistas insistem no nevoeiro da falta de memória e, com isso, sem o saberem, estão a condenar toda uma sociedade às trevas, à exploração, à mentira, miséria, fome, subjugação e tragédia.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Frederico Duarte Carvalho participou, na qualidade de autor do livro Camarate: Sá Carneiro e as armas para o Irão, na X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate em 2013. O seu depoimento está AQUI na íntegra. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • No cantinho do Cristiano

    No cantinho do Cristiano


    Como adepto, decidi boicotar o Mundial do Catar; mas como jornalista decidi ver o jogo de Portugal contra o Gana no único sítio possível à face da Terra para uma reportagem: o “CR7 Corner”, na Baixa Pombalina. Esta é a crónica de um jogo histórico. 


    Sentados ao balcão, os sul-coreanos vibravam com os minutos finais da partida entre o seu país e o Uruguai. O ex-benfiquista Darwin Nuñez bem que se esforçava, mas não conseguia desfazer o 0-0, enquanto o treinador da selecção asiática, o nosso Paulo Bento, “com tranquilidade”, esbracejava para todos os lados.

    O árbitro termina a partida e os coreanos celebram o empate frente a uma das equipas candidata ao primeiro lugar do mesmo grupo onde está Portugal. Um ponto que poderá ser precioso para o resto dos jogos do grupo H. O tempo o dirá, quando tivermos de fazer contas no último jogo – que é sempre uma fortíssima probabilidade estatística do nosso fado –, que será contra a Coreia do Sul, após a nossa partida contra o Uruguai, na segunda-feira, dia 28.

    Antes disso, há que despachar o jogo contra o Gana, aquele que venho assistir no bar do Hotel Pestana CR7, o “CR7 Corner”, na Baixa Pombalina. É o único local onde estaria disposto a ver uma partida do Mundial do Catar. A partida histórica vai começar: é o primeiro jogo daquele que será – não é arriscado mencionar como facto – o último Mundial de Cristiano Ronaldo, mas o primeiro em que está desempregado. Em todo o caso, acho que nunca o iremos ver na fila de um centro de emprego.

    Para além dos já mencionados clientes sul-coreanos, o bar parece um mundo em miniatura: consigo identificar canadianos (que falam o inconfundível francês do Quebeque); há outros que dizem ser irlandeses e falam com turistas que afirmam viver nos Estados Unidos. Também se sentam portugueses à minha volta, com a camisola da selecção. Fazem-se prognósticos: “Acho que vai ficar 3-1”, diz um. “Acho que Ronaldo já tem clube e quando anunciar vai ser uma bomba”, acrescenta outro. Especula-se que seja o PSG, para jogar com o argentino Messi e o brasileiro Neymar. Logo se verá. Para já, aguarda-se pelo começo do jogo frente ao Gana.

    Existem 10 ecrãs espalhados pelo bar; seis deles estão no tecto, em círculo, de modo a garantir a visibilidade a partir de vários ângulos. É mesmo um bar para se ver futebol e, à falta de alternativa ao Estádio 974, onde a acção está a desenrolar-se em tempo real, não haveria outro local no Mundo para ver este espectáculo. Digo eu. E estamos lá. Acrescento.    

    Ronaldo aparece finalmente no ecrã e o bar anima-se. São pessoas que estão aqui a puxar por Portugal apenas pelo facto de, por acaso, ser este o país que deu ao Mundo este vulto. Os mesmos sul-coreanos sentados ao balcão, como que numa primeira fila, apontam a câmara do telemóvel para onde surge o herói dos tempos modernos. Tento olhar para um televisor que não esteja escondido pelas cabeças à minha frente, e alterno ainda entre as televisões do tecto. As equipas alinham-se no túnel de acesso ao relvado e Ronaldo é o único obrigado a cumprimentar as crianças que vão entrar em campo de mão dada com os restantes jogadores.

    Ele faz isso, vejo, com prazer. São as crianças que o procuram. Que o exigem. O capitão da equipa de Portugal vai para a frente da fila e as câmaras focam a sua cara. “Está concentrado”, dizem ao meu lado.

    O hino faz-se ouvir e os portugueses presentes acompanham os jogadores numa cantoria tímida. Os estrangeiros respeitam o momento. Nota-se a emoção na expressão do número 7 enquanto entoa “A Portuguesa”. O jogo começa de forma calma e os primeiros aplausos fazem-se escutar no bar quando, ao minuto 9, Ronaldo consegue ficar de frente para o guarda-redes do Gana. Não concretiza.

    São “19 minutos de paciência”, diz o narrador. O jogo permanece empatado. Será que vai ser assim até ao fim? Um resultado idêntico aos dos outros adversários do grupo. Ronaldo irá fazer a diferença? Já não finta como antigamente, já não faz grande jogadas em campo. Mas aos 30 minutos parece que vai responder a quem ainda tem dúvidas, só que o golo que marca é anulado, por falta sobre o adversário. Discute-se se foi mesmo assim, mas o árbitro norte-americano não teve dúvidas.

    Golo anulado, mas que tem o condão de acordar o ambiente no “CR7 Corner”. As vozes elevam-se e o jogo, finalmente, está a ficar mais competitivo. Dez minutos depois, Ronaldo está no caminho da bola na pequena área, onde ia a passo. Não chega. Noutros tempos, a bola acabaria dentro da baliza sem que as leis da física conseguissem explicar.

    Quem chega é o intervalo, e tudo empatado. E há uma pessoa com uma camisola de Ronaldo. E há estrangeiros com cachecóis de Portugal. As bebidas e a comida seguem para as mesas. Os 15 minutos passam, rápidos, recomeça a partida. Olhos focados no homem do bar, ou melhor, do que lhe dá o nome. 

    Aos 53 minutos, no mesmo momento em que um remate do Gana coloca em perigo a baliza de Portugal, ouvem-se gritos. São maioritariamente femininos. “Há quem esteja a ver futebol de outra forma”, comentam os portugueses. Os gritos repetem-se sem que haja qualquer jogada que os justifiquem e percebe-se que, os anteriores, foram uma coincidência. O jogo continua sem empolgar e a única expectativa é mesmo continuar à espera do que poderá ou não acontecer se CR7 tocar na bola de forma, enfim, eficaz.

    Fernando Santos, o homem que manda nisto tudo – vulgo seleccionador – faz entrar o defesa William e sou obrigado a ouvir: “Temos dois trincos a jogar. Não percebo nada disto!”

    Quando me preparava para aceitar o empate como o menos mau dos resultados – dando caminho à tradição nacional que, no passado, já nos rendeu um Europeu na França – ouço uns aplausos tímidos quando árbitro assinala penálti sobre Ronaldo.

    Faço então como muitos presentes no bar: aponto o meu telemóvel aos ecrãs em modo de filme na expectativa de registar o “momento” do jogador desempregado mais famoso do Mundo, e que se prepara para ser o primeiro jogador masculino a marcar golos em cinco Mundiais. Aguarda-se. Com ansiedade. Apela-se ao golo. Incentiva-se o atleta como se nos ouvisse. Como se estivéssemos no estádio. Ronaldo parte para a bola aos ziguezagues… o guarda-redes estica-se… para o lado da bola… e… golo! A potência do remate não deu hipóteses.

    Festa no bar da Baixa Pombalina ao minuto 65 da partida. “That was amazing”, diz a estrangeira atrás de mim depois da dança da vitória.

    (Numa repetição do momento da celebração, vista da perspectiva do banco da selecção nacional, o “mister” Fernando Santos não comemora o golo. É a emoção gerida de forma diferente, pois sabe que o jogo ainda não acabou. E tinha razão).

    Aos 71 minutos, o guarda-redes Diogo Costa faz com que pareça fácil a tarefa de defender, mas dois minutos volvidos, passando como manteiga entre centrais, a bola ficou ao alcance do homólogo de Ronaldo. O capitão ganês, André Ayew juntou o seu nome a feitos dignos de registos estatísticos. Siga o primeiro golo de uma equipa africana neste Mundial. Tinha mesmo de ser contra Portugal?

    low angle photography of brown concrete building

    Sente-se que o ambiente ficou mais empolgado. O jogo está aberto. O Gana acredita e mostra – passe o óbvio jogo de palavras, que se deveria evitar – bem mais ganas do que Portugal.

    Teme-se o pior… Afinal, numa visão pessimista, este pode ser o antepenúltimo jogo de Ronaldo num Mundial. O verdadeiro adepto português é aquele que duvida sempre. Aquele que é pessimista. Aquele que sofre. Mas tem de sofrer de forma profissional, preparar mentalmente convenientes desculpas para se convencer depois que era só um jogo.

    Todos os clientes do bar, ainda assim, esperam o próximo golo. Que seja do CR7. Mas são os pés de João Félix que nos fazem felizes – eis mais um jogo de palavras perfeitamente evitável…

    E fazendo uso de toda uma cultura e gíria futebolística, dou por mim a pensar que o “ketchup” saltou no minuto 80 com o terceiro golo português, marcado pelo recém-entrado Rafael Leão – e desculpem pelo novo jogo de palavras: que entrada de leão!

    Com isto, o ambiente fica menos tenso. As conversas no bar tornam-se soltas. Muito mais. Afinal, parece que vamos vencer. Assim não vai dar para o empate. E há muito que não entrávamos num Campeonato do Mundo com uma vitória.

    (Ui! E quele jogo contra a Alemanha, em 2014 no Brasil, que vi no Parque Eduardo VII? 4-0, não foi?)

    Entretanto, Ronaldo ameaça marcar, de novo, mas os aplausos para o melhor do Mundo acabavam por se ouvir outra vez ao minuto 87, quando é, enfim, substituído.

    O jogo, porém, não acabou para o Gana: 3-2. Mau! Mau! A tensão em campo aumenta. No bar também. Há amarelos divididos pelo árbitro norte-americano para Danilo para o ganês Iñaki Williams.

    A placa com o tempo extra aponta o 9; nove minutos suplementares. Como está, é coisa suficiente para o Gana empatar e, quem sabe – já se viu de tudo no mundo futebol – para ganhar. Lá vem o pessimismo. Nota-se o nervosismo na selecção; Bruno Fernandes leva amarelo. Não há soluções; e bar suspenso. O som da festa já não se ouve. As conversas são feitas em tom mais suave. Receoso.

    Depois, o silêncio, nos últimos quatro minutos. As imagens de Ronaldo no banco mostram a imagem da apreensão. O cronómetro no canto superior esquerdo dos ecrãs, tic-tac, tic-tac, a correr devagar, devagarinho… Dois minutos em falta e uma bola batida por um ganês passa por cima da rede da baliza lusa.  

    CR7 está de pé a dar indicações para o campo. Lembra-me outros tempos. No “CR7 Corner”, há uma comunhão, mas de medo. Susto! Gritos! Diogo Costa escapa por um triz de se associar ao golo mais ridículo do Mundial, e logo na primeira jornada, ao rolar docemente a bola no relvado sem se aperceber do sorrateiro adversário atrás de si. Um clássico para se eternizar no YouTube. Salva-se ele, Diogo Costa, da perpétua chacota, porque o seu anjo-da-guarda faz o ganês escorregar ao roubar a bola, e perde-se o remate fatal.

    Para alívio de corações palpitantes, o árbitro dá a partida como terminada. Alívio, finalmente.

    Mas só até segunda-feira. Até ao jogo contra a equipa do Uruguai, de má memória, que nos eliminou no Mundial da Rússia. Se não resolvermos logo aí a passagem à fase seguinte, temo que os coreanos, aqui na primeira fila, já não estarão a vibrar tanto pelo nosso Ronaldo.

    Entretanto, saio para ver como corre o resto do mundo. Na Baixa Pombalina.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Brasil, preso entre o passado e o futuro… e, já agora, Portugal também

    Brasil, preso entre o passado e o futuro… e, já agora, Portugal também


    No Palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa, há um quarto muito especial. É decorado com cenas do livro D. Quixote, do espanhol Miguel Cervantes, e é esse o nome daquela habitação real. Foi aí que nasceu e morreu o rei D. Pedro IV de Portugal, primeiro Imperador do Brasil, cujos 200 anos de Independência hoje se comemoram. Apenas 36 anos separam as datas do seu nascimento – 12 de Outubro de 1798 – da sua morte – 24 de Setembro de 1834 -, mas este rei e imperador teve uma vida tão preenchida cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir em ambos lados do Atlântico.

    Faltavam dois anos para a invasão de Portugal pelas tropas de Junot quando, esse mesmo Junot chegou a Portugal para servir como embaixador do governo de Napoleão. Em 1805, o homem que alcançara o posto de general francês durante a campanha do Egipto, apresentou-se na corte portuguesa, perante o príncipe regente, D. João VI, trajando o seu uniforme de coronel general dos hussardos. Branco e azul, as mesmas cores do Portugal de então.

    Pormenor do quarto D. Quixote, Palácio Nacional de Queluz

    As cicatrizes no rosto do francês compunham a imagem militar e o pequeno D. Pedro, presente ao lado do pai, não deixou de ficar impressionado. Mal sabia que, dentro de dois anos, aquele mesmo homem iria dar início a uma invasão de Portugal que marcaria a história do mundo. E da qual ele também faria parte de forma preponderante.

    Dizem as crónicas da época – registadas nas memórias de Laura, mulher de Junot – que dois dias depois da apresentação das credenciais do embaixador francês, um criado de D. João VI foi pedir o uniforme hussardo para que se fizesse uma cópia para uma versão de adulto e outra para uma criança. A criança que o vestiria depois era D. Pedro, aquele que ficaria conhecido para a história como “Rei Soldado”.

    Este pequeno episódio da infância de D. Pedro poderá ajudar a explicar o sentimento militar que esteve presente durante a vida de D. Pedro e levou a vários episódios que marcaram as relações entre Portugal e Brasil, países irmãos, com história comum, mas que parecem estar cada vez mais afastados, sobretudo quando a política brasileira surge polarizada nas eleições marcadas para Outubro.

    D.Pedro I do Brasil, e IV de Portugal, quando infante.

    Se antes havia um fluxo migratório de Portugal para o Brasil – país imenso e com uma capacidade de fixação mais ampla -, agora o polo inverteu-se e Portugal tem de receber os irmãos falantes de português, procurando integrar hábitos e costumes próprios da geografia livre e tropical do que da soturna e fria cultura europeia.

    O processo da Independência do Brasil já foi sobejamente descrito. Não faltaram recentemente obras sobre a questão e revistas nacionais dedicaram páginas e páginas ao assunto. O coração de D. Pedro, depositado na Igreja da Lapa, no Porto, viajou de avião da força aérea do Brasil, com o presidente da Câmara do Porto a bordo, para levar a relíquia até às antigas terras de Vera Cruz.

    Faltou, no entanto, frisar que a ideia de exibir o coração do Imperador no Brasil partiu de um descendente brasileiro de D. Pedro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que tem a particularidade de, ao contrário do que sucede com grande parte da família, exercer actividade política desde 2005. O descendente do rei português é actualmente deputado federal por S. Paulo, representando o Partido Liberal, do qual também faz parte o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

    Por cá, podemos lembrar que também temos um descendente de D. Pedro na política: é Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD e empresário de Comunicação Social.

    As comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil acontecem num país que organizou um referendo em 1993 para poder decidir se queria um regime republicano ou monárquico. A maioria optou pela forma republicana, mas o referendo não ficou livre das acusações de anti-democrático pelo facto dos membros da família real terem sido proibidos de participar nas campanhas do lado monárquico. Em Portugal, República desde 1910, nunca houve esse referendo, sendo que o regime é imposto ao povo sem qualquer escrutínio.

    Os 200 anos da Independência do Brasil são apenas um episódio num caminho cujos primeiros capítulos começaram em 2008, quando o presidente português, Aníbal Cavaco Silva, fez uma visita de Estado ao Brasil, entre 6 e 9 de Março, para celebrar os 200 anos da chegada da Corte portuguesa após a invasão das tropas de Napoleão, comandadas por Junot. Entre as várias cerimónias públicas, Cavaco jantou, no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com o então presidente Lula. De destacar que o actual primeiro-ministro português, António Costa, também fez parte da comitiva oficial que se deslocou ao Rio de Janeiro com Cavaco Silva, indo então na qualidade de presidente da Câmara de Lisboa.

    Coração de D. Pedro IV em exposição. (Foto: D.R.)

    Eram tempos diferentes: Lula, que é agora candidato contra Bolsonaro, ainda não tinha sido julgado e preso na sequência do caso “Lava-Jato”. O nome de Jair Bolsonaro não surgia nas notícias como o de um adversário político de relevo.

    Entre 2008 e o presente ano de 2022, podemos ainda evocar a data que, em 2015, registou os 200 anos da criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Foi a 16 de Dezembro de 1815 que Portugal se tornou numa imensa Nação transatlântica, com capital no Rio de Janeiro. A bandeira passou a incluir uma esfera armilar – a mesma que está ainda hoje na bandeira da República portuguesa.

    Só que, dois anos depois, houve a revolta liberal no Porto. O 24 de Agosto, data que faz parte da toponímia da cidade Invicta e que teve os seus 200 anos assinalados com relevo. O rei teve de regressar a Lisboa e D. Pedro disse: “Eu fico”! Mas nunca se explicou bem porque falhou a ideia da capital de Portugal ficar no Brasil. Isso seria uma boa ideia para se discutir nos próximos anos, sobretudo quando parece que a capital do Brasil começa a ser Lisboa.

    Lula da Silva, presidente do Brasil aquando da visita de Cavaco Silva, então presidente da República Portuguesa, ao “país irmão” em 2008.

    A história escreve-se com mais datas, perdidas nas ruas das cidades, sem que dediquemos muito mais tempo à sua origem e ao que podem representar para o nosso futuro.

    Ainda vamos a tempo de celebrar mais datas que vão atingir a idade redonda de 200 anos nos próximos tempos. Ou então continuar a esquecer, a negar a sua origem e a perder mais futuro.

    Lembremos então que, daqui a 10 anos, vamos ter os 200 anos da Lutas Liberais e que a Avenida 24 de Julho, em Lisboa, evocará os 200 anos da Libertação da cidade. Durante muitos anos era o equivalente ao 25 de Abril de 1974.

    Lembremos ainda que D. Pedro IV cruzou o oceano Atlântico três vezes: a primeira, em criança, quando foi para o Brasil. A segunda, em 1832, quando veio lutar contra o irmão. E a terceira, em 1972, há 50 anos, quando o Brasil celebrou os 150 anos da Independência e o seu corpo foi enviado para o panteão em S. Paulo.

    Agora, viajou o seu coração, a parte do corpo que faltava. Uma quarta viagem à qual, espera-se, somar-se-á uma quinta: quando o coração regressar ao Porto, a cidade que se diz “Invicta” por ter sido aí que D. Pedro resistiu, vitorioso, ao cerco das tropas absolutistas do seu irmão.

    Pormenor do convite da exposição comemorativa dos 200 anos da deslocação da Corte Portuguesa para o Brasil, inauguradano Rio de Janeiro.

    D. Pedro pode ter nascido e morrido no quarto do Palácio de Queluz, mas o corpo está hoje no Brasil. Entretanto, em Lisboa, no Panteão dos Bragança, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, está o corpo de D. Miguel. O irmão derrotado nas lutas liberais mas reabilitado pela Ditadura. Foi exumado na Áustria em 1967 e trazido para Portugal, um ano antes de Salazar cair da cadeira.

    Esquecer o legado liberal de D. Pedro e não compreender que Portugal e Brasil já foram um Reino Unido é condenar-nos a perder mais 200 anos de História. A não ser que se o plano seja celebrar, com grande pompa e circunstância, daqui a quatro anos, os 100 anos do 28 de Maio.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe

    Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe


    Caro amigo leitor, veja se consegue responder a esta questão sem ter de ir procurar em livros ou na Internet: quem foi a mulher do último rei de Portugal?

    Se não sabe – ou até diz que nem sequer precisa de saber para continuar a sua vida –, tudo bem. Pode permanecer na ignorância sobre a sua própria História, pois esse é um direito que lhe assiste.

    Aliás, num país que se diz republicano, acredito que até seja um ponto de honra e orgulho dizer que não sabe, nem quer saber, nem lhe interessa conhecer o nome da mulher do último rei de Portugal.

    gold and blue crown

    No entanto, um povo culto e conhecedor da sua própria História é um povo exigente. E, dessa exigência, resulta depois uma melhor escolha dos governantes. Só que há portugueses com orgulho na sua ignorância e, mesmo assim, permitem-se serem exigentes com os dirigentes. Estes, que não são propriamente burros, sabem que os outros, ignorantes da sua História, podem depois ser facilmente comprados com falinhas mansas e subsídios. É, aliás, da História.

    Serviu esta introdução para dizer que há dias, na revista do Expresso (Edição 2591 de 24 de Junho de 2022), na secção de passatempos, nas palavras cruzadas, no 2 Horizontal, pedia-se que se indicasse, com seis letras, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Assim que olhei para aquilo, pensei que era uma questão muito inteligente e lembro-me de ter congratulado, mentalmente, o autor – Marcos Cruz – por ter apresentado uma tão interessante questão.

    Repare-se que não estava a pedir o nome da “última rainha de Portugal”, embora se pudesse dizer que a mulher do rei é sempre uma rainha. Não. Se fosse a última rainha de Portugal, a questão poderia tornar-se aberta a subtilezas e interpretações jurídicas quanto ao que o autor das palavras cruzadas pedia. Seria a última rainha reinante, que foi D. Maria II, ou a mulher do último rei de Portugal?

    Palavras cruzadas do Expresso: para seis letras, quem foi a “mulher do último rei de Portugal”. A resposta certa (Amélia) estava, afinal, errada.

    Perguntar quem foi a mulher do último rei de Portugal é, assim, um pouco diferente do que perguntar quem foi a última rainha de Portugal, se bem que para uns puristas, uma e outra são sempre a mesma coisa: é mulher de rei? Então é rainha!

    Mas, é preciso ver que o último rei de Portugal, quando deixou de ser rei, ainda não era casado. Não tinha rainha. Porque, como todos bem sabemos, o último rei de Portugal foi… bem, caro leitor, quem foi mesmo o último rei de Portugal?

    A maioria das pessoas a quem coloco esta pergunta costuma dizer que o último rei de Portugal foi D. Carlos. Cada vez que me dizem isso, peço-lhes então que verifiquem os seus conhecimentos sobre a História que ambos partilhamos em comum pelo facto de termos escrito “República Portuguesa” no CC.

    Se D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908, pelo Costa e Buíça, e se, nesse mesmo dia, mataram também o seu filho mais velho e herdeiro do Trono, Luís Filipe, então Portugal ficou sem rei entre Fevereiro de 1908 e 5 de Outubro de 1910, data da Implantação da República?

    Ora, claro que não, caro leitor. Claro que não porque, o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho mais novo, que ficou para a História de Portugal como D. Manuel II.

    Aclamado em Cortes, no mesmo edifício onde hoje é Assembleia da República, a 6 de Maio de 1908, seria deposto a 5 Outubro de 1910, tendo partido para o exílio, em Inglaterra, com a sua mãe, Amélia de Orleans.

    Estabelecido então, sem sombras para dúvidas, que o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho D. Manuel II, a questão levantada pelas palavras cruzadas do Expresso é, deveras, interessante.

    Senão vejamos: D. Manuel II, último rei de Portugal estava solteiro quando foi deposto a 5 de Outubro de 1910. A rainha era a rainha-mãe, Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    De facto, o último rei de Portugal casou. Mas o matrimónio só teve lugar em 1913, três anos depois de ter sido deposto do trono de Portugal, já quando estava a viver no exílio inglês. D. Manuel II casou a 4 de Setembro de 1913 com Augusta Vitória, princesa de Hohenzollern-Sigmaringen. Esta foi, de facto, tal como pedia as palavras cruzadas do Expresso, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Daí a minha primeira reacção ter sido a de verificar ali uma maneira muito inteligente de colocar a questão, já que, dizer “última rainha de Portugal” seria algo que levantaria dúvidas. Haveria quem defendesse que se deveria considerar Augusta como rainha, visto ter casado com um rei – mesmo que ele não o fosse na prática –, e haveria aqueles que defenderiam que a última rainha de Portugal seria aquela que ocupava o cargo em 1910, antes da abolição da monarquia, o que, nesse caso, era D. Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de Manuel II.

    D. Manuel II foi destronado em 1910, com a implantação da República, e era então ainda solteiro.

    Mas a questão do Expresso era taxativa e sem espaço para dúvidas, uma vez que não nos embrenhava em questões jurídicas, apresentando-nos, sim, uma simples questão de cultura geral colocada de forma inteligente: quem fora a mulher de D. Manuel II, último rei de Portugal? E a resposta, única e inequívoca, é só uma: Augusta.

    Só que, caro leitor, com quantas letras se escreve a palavra Augusta? Com sete letras. Mas a resposta que o Expresso pedia… seis letras. É nessa altura que aquilo que eu considerava ser a coisa mais inteligente que tinha visto no Expresso nos últimos anos, acabou por se transformar na dúvida mais agonizante sobre a ignorância histórica de Portugal, impressa num jornal que vai comemorar 50 anos de vida em Janeiro próximo e que é responsável pela informação transmitida a muitos portugueses.

    E que forma opinião.

    Será que o Expresso ignorava que o último rei de Portugal fora D. Manuel II e julgava que o pai dele, D. Carlos, é que era o último rei? É que Amélia, mulher de D. Carlos, tem seis letras… Será que a resposta certa era Amélia e não Augusta?

    Esperei uma semana para confirmar a minha dúvida.

    Uma semana depois (Revista Expresso 2592 de 1 de Julho de 2022), lá vinha a solução da 2 Horizontal, seis letras: Amélia. Para o Expresso, a mulher do último rei de Portugal chamava-se Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    Esta ignorância da parte do Expresso é a mesma de muita gente em Portugal e que, infelizmente, ameaça contaminar as gerações futuras. Não vou entrar em clichés de afirmar que, quem não conhece a sua História está condenado a repeti-la, mas gosto sempre de avisar que George Orwell escreveu no seu 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. E o Expresso controla o presente. E se o Expresso nos diz que a resposta correcta à questão de quem foi a “mulher do último rei de Portugal” é Amélia, então o Expresso, ao controlar o passado, está a reescrever o futuro.

    É que esta questão da mulher do último rei de Portugal não é de somenos importância. Ao ignorar que D. Manuel II foi o último rei de Portugal e que casou, mas morreu sem deixar descendência, é o futuro que está em causa.

    O Expresso, ao ignorar isto, nunca vai conseguir informar os seus leitores que o último rei de Portugal morreu em 1932, há exactamente 90 anos – cumpridos a 2 de Julho –, três dias antes da tomada de posse de António de Oliveira Salazar como Ditador, a 5 de Julho de 1932.

    D. Carlos, penúltimo rei de Portugal, assassinado em 1908,e a sua mulher, D. Amélia de Orleães, durante uma visita à Madeira, em 1901.

    O Expresso não vai assim poder contar que, um mês depois, a 2 de Agosto de 1932, Salazar presidiu ao funeral do último rei de Portugal, quando o corpo de D. Manuel II veio de barco de Inglaterra e o caixão desfilou depois pelo Terreiro do Paço, no mesmo local onde pai e irmão foram assassinados 22 anos antes, e sepultado no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora.

    Na verdade, a Monarquia não acabou a 5 de Outubro de 1910, mas sim quando Salazar fez o funeral ao último rei de Portugal, em 1932, sendo que a mulher do último rei de Portugal, Augusta Vitória, faleceu a 29 de Agosto de 1966. Sem descendência.

    O Expresso não vai conseguir ainda contar aos seus leitores que, por D. Manuel II não ter deixado filhos de Augusta, Salazar conseguiu manter o poder porque o país estava dividido entre monárquicos e republicanos.

    Já estava assim desde 1910, pelo que houvera a necessidade de um golpe militar a 28 de Maio de 1926; mas, em 1932, os monárquicos estavam divididos sobre quem deveria suceder a D. Manuel II. Era preciso encontrar um candidato dentro do País ou então ir buscar, ao exílio, na Áustria, os descendentes do rei D. Miguel.

    Mas este era de má memória, pois os descendentes representavam o rei banido do trono depois da derrota na Guerra Civil de 1832-34, contra o irmão D. Pedro IV, do qual D. Manuel II era o último representante real directo.

    D. Manuel II e a sua mulher Augusta Victoria de Hohenzollern no exílio. Nascida em 1890, no Império Alemão, casou em 1913 com o deposto rei português seu primo em segundo grau, Faleceu em 1966, na Alemanha.

    Para Salazar foi a oportunidade de ouro para dividir e reinar. Pediu aos partidários de uma solução interna que se mantivessem quietos, senão iria à Áustria buscar os descendentes do rei Absolutista, mais bem organizados. Disse depois a estes que estivessem quietos, senão iria encontrar uma solução interna. E disse aos republicanos que estivessem quietos, senão iria buscar não importa quem. E todos, “a bem da Nação”, ficaram quietos.

    Nos anos 50 do século passado, seguindo uma proposta do deputado Jorge Botelho Moniz, terminou a chamada Lei do Banimento e os descendentes de D. Miguel puderam regressar a Portugal. Entre eles, veio uma criança chamada D. Duarte, agora o putativo rei de Portugal. O Estado Novo apostou na ignorância dos Portugueses e começou a controlar o passado. A controlar o nosso futuro. Já ninguém falava numa solução interna.

    A 5 de Abril de 1967, o corpo de D. Miguel, após ter sido exumado na Áustria, regressou a Portugal e foi sepultado ao lado do corpo do irmão, D. Pedro IV. Pouco a pouco, o regime do Estado Novo começou a corrigir o resultado da Guerra Civil de 1832-1834, substituindo a memória de D. Manuel II, último rei descendente directo de D. Pedro IV e das ideias liberais, pelos descendentes de D. Miguel, absolutistas e conservadores. E, a 10 de Abril de 1972, já com Salazar morto e enterrado em campa rasa em Santa Comba Dão, o corpo de D. Pedro IV, foi trasladado do Mosteiro de São Vicente de Fora e enviado de barco para o Brasil, por ocasião dos 150 anos da Independência do País.

    D. Duarte Pio de Bragança não é descendente de D. Manuel II, que não teve filhos.

    O Expresso bem que poderia dizer que, em breve, quando o coração de D. Pedro IV, que está na Igreja da Lapa, no Porto, voar num avião da Força Aérea do Brasil, por ocasião dos 200 anos da Independência do País, aquele será o último vestígio físico em Portugal do antecessor do último rei de Portugal. Mas para isso seria preciso primeiro que o Expresso soubesse a História de Portugal.      

    P.S. A pessoa que assina as palavras cruzadas do expresso é “Marcos Cruz”. É do conhecimento público que este é o pseudónimo de Mercedes Balsemão, mulher de Francisco Pinto Balsemão, dono e fundador do Expresso e descendente de um filho bastardo de D. Pedro IV. Tal não significa que tenha sido ela a responsável pela questão que provocou esta crónica. Poderá ter sido outra pessoa que a substituiu. De qualquer modo, em última análise, cabe ao director do semanário fazer a devida correcção. A mulher do último rei de Portugal chamava-se Augusta e não Amélia. Amélia era a senhora sua mãe.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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