Autor: Frederico Duarte Carvalho

  • Falemos de Maria Botelho Moniz

    Falemos de Maria Botelho Moniz

    A apresentadora Maria Botelho Moniz teve o seu nome visado por um cronista que se referiu às suas características físicas de forma depreciativa. Aproveitemos nós então para dizer coisas verdadeiramente importantes sobre o nome Botelho Moniz. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Quero agradecer ao cronista Alexandre Pais o facto de ter chamado a atenção para o aspecto físico da apresentadora Maria Botelho Moniz, pois sem ele e sem o alarido público que a crónica provocou, não teria agora uma oportunidade de dizer algumas coisas que eu sei.

    Não, caro Alexandre, não vou falar de ti e das coisas que sei sobre ti – trabalhei com ele no 24 Horas e Tal&Qual e poderia contar factos, mas isso seria dar demasiada importância a assuntos que só interessam a uns poucos. Só tenho a dizer que não me surpreendeu o conteúdo da crónica. Está coerente com aquilo que há muito o Alexandre faz e tem o seu público.

    Maria Botelho Moniz

    Aquilo que o Alexandre não faz, vou fazer eu: vou contar-vos algumas coisas sobre o nome Botelho Moniz que, acredito, a grande maioria das pessoas não sabe e que são bem mais importantes do que andar a discutir o aspecto físico de uma das pessoas que ostenta o nome dessa família.

    O bisavô de Maria Botelho Moniz, chamava-se Jorge Botelho Moniz e, tendo nascido em 1898, entrou cedo na vida política. Pode-se mesmo dizer que foi com um estrondo, pois esteve envolvido no golpe de Sidónio Pais, a 5 de Dezembro de 1917, com apenas 19 anos. No ano seguinte, foi eleito deputado pelo Partido Nacional Republicano. Será depois um dos participantes do golpe militar do 28 de Maio de 1926, juntamente com o seu irmão, Júlio Botelho Moniz.

    Se a bisneta Maria tem no sangue a comunicação, então isso também se justifica pelas raízes familiares, pois o bisavô foi o fundador da Rádio Clube Português, em 1931. Segundo as informações que podemos ler sobre ele no News Museum, Jorge era amigo de Salazar e, durante a guerra civil de Espanha, por estar à frente uma rádio privada, conseguia ser mais activo na defesa da propaganda nacionalista espanhola do que a própria Emissora Nacional, que tinha de manter uma posição mais neutral.

    Foi, segundo a página da Assembleia da República com a sua ficha parlamentar, um “dos entusiastas da fundação da Legião Portuguesa”. Entre outros cargos que teve ao longo da vida, destaca-se ainda o de Administrador da RTP, em 1957, quatro anos antes da sua morte, em 1961.

    Jorge Botelho Moniz (1898-1971) e Júlio Botelho Moniz (1900-1970)

    O nome de Jorge Botelho Moniz será ainda recordado por ter sido ele, no início dos anos 50, responsável pelo fim da chamada Lei do Banimento. Essa era a lei que, vinda ainda do tempo da monarquia, mantinha banida de Portugal a família real descendente do rei D. Miguel, derrotado na guerra civil de 1832-34 pelos liberais de D. Pedro IV.

    Na sequência do fim da lei, um pequeno príncipe chamado Dom Duarte de Bragança, foi autorizado a vir viver em Portugal e ser hoje considerado como pretendente ao Trono de Portugal, apesar de ser descendente de uma linhagem banido desse direito.

    Coisas que a ditadura de Salazar conseguiu criar e que a República de hoje, ao ter em Dom Duarte a única e aparente réplica monárquica, aproveita isso como se fosse um seguro de vida. E é algo que bem que podem agradecer ao bisavô de Maria Botelho Moniz.

    Enquanto Jorge era uma pessoa bem integrada no regime de Salazar e um fiel seguidor das ideias do Estado Novo, o seu irmão Júlio, militar de carreira, tornou-se no ministro da Defesa, mas ficaria conhecido por ter estado na origem de uma tentativa de golpe militar. No mesmo dia em que o soviético Iuri Gagarin se tornava no primeiro homem no espaço, 12 de Abril de 1961, o tio-bisavô de Maria Botelho Moniz tentava atirar por terra o regime de Salazar. Queria promover a independência das colónias e evitar uma guerra, mas sem sucesso.

    António Salazar, à direita. Foto: Horácio Novais (1910-1988).

    A tentativa de golpe de Júlio Botelho Moniz levou então a uma remodelação no Governo e foi nessa altura que Adriano Moreira se tornou no ministro do Ultramar, tendo Salazar passado a assumir a pasta anteriormente detida pelo tio-bisavô de Maria Botelho Moniz. Só 13 anos mais tarde e muitos mortos depois é que Portugal encontrou a Democracia que hoje vamos tendo.  

    Como se vê, haveria muito mais para se dizer sobre Maria Botelho Moniz. Muito mais do que o mero comentário a respeito do seu aspecto físico que – cá entre nós, há quem goste e muito. Mas como a Imprensa portuguesa, nestes últimos 50 anos, não produziu grandes nomes, lamento apenas que fiquemos a conhecer Alexandre Pais por ter dito o que disse em vez de falar daquilo que eu sei.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ursula é a maior

    Ursula é a maior

    Num mundo de mentiras diárias, o passado dia 1 de Abril trouxe uma verdade à tona: a actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, está cada vez mais próxima de vir a ser secretária-geral da NATO. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    A notícia chegou-me no dia 1 de Abril via mensagem de uma pessoa amiga: “Von der Leyen está na corrida para secretária-geral da NATO”. Essa era uma hipótese que apresentei na crónica de 14 de Março – Perguntei à minha bola de cristal. Nessa altura, escrevi que o nosso primeiro-ministro, António Costa, era um bom nome para ser o próximo secretário-geral da NATO ou, caso não fosse possível, o cargo também poderia ser entregue à actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

    Perguntei então à pessoa que me mandara a mensagem se não seria uma brincadeira de 1 de Abril, ao qual ela acrescentou que não: era uma notícia do dia anterior e vinha no jornal britânico The Sun. Isso já era outra coisa. O The Sun é aquele jornal que nós aprendemos na escola de jornalismo a classificar de tablóide, um jornal popular, famoso pela rapariga da página três. E se isto era um assunto que eles queriam abordar, então a questão era mesmo séria.  

    Ursula von der Leyen

    As fontes do The Sun vinham do meio diplomático e, ao ler o artigo, percebi o motivo da notícia surgir num jornal popular de Londres: o governo britânico não estava de acordo com a escolha e iria vetar o nome da ex-ministra da Defesa da Alemanha, dizendo que a sua folha de serviço no tempo do governo do seu país tinha sido fraca. Só que isso é típico dos britânicos: suspeitar dos alemães.

    Explicava ainda o The Sun que o fim do mandato de Von der Leyen à frente da Comissão Europeia só termina em 2024, para o ano. As eleições europeias deverão ser em Maio, pelo que Von der Leyen teria de cumprir o seu mandato até essa altura e, quem sabe, ser reeleita quando houvesse uma nova composição do Parlamento Europeu. No entanto, segundo o jornal britânico, vários países membros da NATO tinham já “sugerido” que ela aceitasse assumir o cargo em Outubro deste ano, altura em que o actual secretário-geral, o norueguês Jens Stoltenberg, deverá sair.

    Muitos jogos de bastidores devem estar a ser combinados neste momento. E, sobretudo, longe do escrutínio público próprio da democracia, pois o cargo não é sujeito a uma eleição aberta: é combinado entre os líderes dos países membros. Aliás, o The Sun também explicou isso mesmo. Disse que os norte-americanos não costumam apresentar um candidato, pois garantem um general seu como o Comandante Supremo Aliado da Europa. O actual chama-se Cristopher G. Cavoli.

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    Para os britânicos, o futuro secretário-geral da NATO deveria ser o actual ministro da Defesa, Ben Wallace. Outros nomes avançados pelo jornal de Londres incluem a primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, embora se diga que não está interessada no cargo devido ao facto de ser de um país com fronteiras com a Rússia. Também se fala na ministra das Finanças do Canadá, Chrystia Freeland, que tem sangue ucraniano nas veias. Só que as hipóteses de ser escolhida também são escassas por causa do fraco investimento do Canadá nas contas da aliança.

    Acredito que o lugar esteja a ser preparado para Ursula. Ela vem de uma família ligada à política – o seu pai, Ernst Albrecht, era um antigo director-geral na União Europeia e foi primeiro-ministro do Estado alemão da Baixa Saxónia. Ela está suficientemente alinhada contra a Rússia de Putin e, embora ache difícil que Von der Leyen saia da Comissão Europeia antes do mandato terminar – pois iria criar uma situação difícil de gerir, com um sucessor para um período de apenas um ano –, não podemos deixar de dizer como os ingleses: the plot thickens, ou seja, a trama adensa-se.

    Para resolver este imbróglio, convinha que Jens Stoltenberg ficasse mais uns meses no cargo, indo para além de Outubro, dando assim tempo a Von der Leyen de terminar o mandato e poder depois manter-se em Bruxelas, agora na cadeira da NATO.

    António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Resta saber o que pensa António Costa destas mudanças. Não é segredo que deseja trocar Lisboa por Bruxelas. As recentes sondagens que dão o PS empatado com o PSD são já um prenúncio dessa situação e nota-se o cansaço e enfado em querer resolver os problemas nacionais. Também no dia 1 de Abril, não foi mentira nenhuma, houve a manifestação em Lisboa pelos direitos à habitação e sente-se que os problemas da população estão a ficar sem soluções viáveis.

    Por isso, as próximas eleições europeias, em 2024, vão ser decisivas para avaliar o pulso à Nação. E caso o PS ganhe por “poucochinho”, será que que Costa vai querer continuar em Lisboa ou emigrar para Bruxelas? Será que Ursula arranja por lá um emprego para o amigo?

    Não faço futurologia, pois não é essa a função de um jornalista. Mas não posso deixar de notar que há notícias de dia 1 de Abril que, sem o parecer, estão relacionadas.

    Basta sabermos ler.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os bisnetos de Norton

    Os bisnetos de Norton

    Foi há perto de 30 anos que o escritor Orlando da Costa lançou o romance Os netos de Norton. Seria apresentado como “um fresco histórico de uma geração que nasce para a política em 1949”, altura da candidatura presidencial do general Norton de Matos. Pretexto para aprender com um escritor que foi o pai do actual primeiro-ministro e do director-geral de Informação do Grupo Impresa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    O Jornal de Letras de 8 de Março de 1994 anunciava, com destaque de primeira página, o regresso de Orlando da Costa ao romance, após 30 anos desde o seu último livro do género. O lançamento da obra estava marcado para as 19 horas do dia 10, na Livraria Barata, à Avenida de Roma. Teria como título Os netos de Norton e o autor explicava que era algo que trazia na cabeça há muitos anos, sobretudo desde que fizera uma viagem à Índia das suas raízes familiares em Dezembro de 1974, ano da revolução de Lisboa.

    Descrito como “um fresco histórico de uma geração que nasce para a política em 1949”, percebe-se que o Norton do título é o general Norton de Matos, o homem que enfrentou o regime de Salazar em 1949, quando foi candidato a Presidente da República.

    Intrigado com a descrição e conteúdo da obra, decidi, 30 anos depois, procurar este livro. E ainda bem que o fiz, pois acabei por descobrir que até estava dedicado aos dois filhos do autor: António Costa e Ricardo Costa – sim, o actual primeiro-ministro e o irmão, director-geral de Informação do Grupo Impresa (que incluiu, entre outros órgãos de Comunicação Social, a televisão SIC e o semanário Expresso).

    O romance conta a história de quatro amigos durante os anos 60 do Estado Novo, até à revolução de 1974. Temos o ambiente da Lisboa dos estudantes, dos seus amores, dos artistas. O pai de António e Ricardo tinha 20 anos em 1949. Os netos de Norton seriam aqueles que estariam na casa dos 20 anos na etapa final do Estado Novo. À medida que avancei na leitura, não encontrei em “Os Netos de Norton” algo que se possa dizer como sendo particularmente revelador dos agora bisnetos de Norton, ou seja, os filhos de Orlando da Costa.

    É uma ficção assumida, mas tem lá a verdade da geração do pai. Não dei o meu tempo por perdido, pois diverti-me a destacar ensinamentos em algumas passagens da obra publicada em 1994 – isto é, um ano depois do actual primeiro-ministro ter ficado famoso por ter organizado a corrida entre um burro e um Ferrari durante a sua candidatura falhada à Câmara de Loures.

    Apreciei, de sobremaneira, que Orlando da Costa tenha feito referência a um dos mais cruéis filmes neo-realistas italianos que vi. Espero que o actual primeiro-ministro e o seu irmão jornalista também tenham aprendido com pai o valor dessa obra. Estou a falar do filme de 1952 de Vittorio de Sica, “Umberto D.”, que retrata de forma crua o fim de vida de um velho viúvo, que tem apenas por companhia um cão.

    Sorri, depois, ao ler sobre aquele “burguês envergonhado e infeliz, um cosmopolita que não consegue passar o dia sem ouvir as notícias da BBC e sem ler os jornais – quanto mais estrangeiro melhor”, mais as manhas de como sacar dinheiro aos pais a trabalharem em territórios ultramarinos. Havia um que tinha um conluio com um alfaiate e, assim, “fazia dois ou três fatos por ano e cobrava contas de seis ou mais”.

    Esta era a geração onde as letras da sigla KGB não serviam para designar a polícia secreta da extinta União Soviética, mas sim os apelidos dos escritores americanos Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Agora, a frase que acabei por reter da leitura desta obra e que, a partir de agora, também a irei dedicar aos bisnetos de Norton, António e Ricardo, é esta que o pai deles escreveu várias vezes no livro: “Hoje estamos bêbados, amanhã seremos uma força moral”.

    Não quero ainda deixar de apresentar uma frase dita por um personagem que é agente da PIDE – e que, na realidade, é ele quem acaba por crismar os quatro personagens com o nome que dá o título à obra: “São estimados pelas famílias da metrópole que os acolhem. Têm-se por elites e à custa das mesadas que recebem fazem-se intelectuais da farra e tornam-se sem o saberem agentes do bolchevismo e da rebelião da negritude, como lhe chamam. Mulatos ou brancos, não falam nenhuma língua nativa, mas acamaradam, ao bilhar, com os pretos nos cafés do Conde Redondo. Odeio-os!”

    Finalmente, também não me escapou um diálogo da obra onde um dos personagens diz que “o Tejo não está aí para consolar apenas os derrotados das colónias, os emigrantes e os que hão-de retornar um dia… Está aí para nós também, nós os próximos instalados, os humilhados de ontem, os amargurados de amanhã. Está aí a chegar a hora da nossa geração”. E pergunta depois o outro: “Instalados? Que queres tu dizer com isso?” Como resposta, ouve: “Deixa lá, rapaz, não é nada. Qualquer dia explico-te, ou melhor, qualquer dia tu vais perceber. Todos, um dia, percebemos”. E, digo eu agora: já percebemos.

    Obrigado, Orlando da Costa, por esta lição sobre uma geração. Aprendi muito contigo ao ler este Os netos de Norton. Não sei se o António ou o Ricardo também aprenderam alguma coisa, mas mantenho a esperança de que ainda vão a tempo.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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  • Alexandre, o grande de Camarate

    Alexandre, o grande de Camarate

    Lutou pela verdade de Camarate durante décadas. Faleceu sem ter conhecido todos os factos, mas foi a sua determinação que não deixou cair no esquecimento as circunstâncias da morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro em 1980. Uma homenagem a Alexandre Patrício Gouveia. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Chamava-se Alexandre, como o grande da antiguidade, e era irmão de António. Estou a falar de Alexandre Patrício Gouveia, irmão de António Patrício Gouveia, o chefe de gabinete do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, que também foi uma das vítimas da queda do avião de Camarate.

    Alexandre faleceu a 12 deste mês e não posso deixar de lhe prestar uma homenagem, pois não li ainda um texto jornalístico que lhe faça a devida justiça. Conheci-o pessoalmente e sei o esforço que ele fez para descobrir a verdade de Camarate. Aliás, posso ainda acrescentar que me sinto responsável por muito daquilo que ele ficou a conhecer.

    Alexandre Patrício Gouveia

    Lembro-me de ele ter sido o rosto das notícias das várias comissões de inquérito parlamentar, representando as famílias das vítimas. Sobretudo no ano de 1995, quando via pela televisão a luta que Alexandre fazia junto da justiça para não deixar o caso prescrever nos tribunais. Era a altura da frase “a verdade não prescreve”.

    Cinco anos mais tarde, em 2000, já como jornalista do “Tal&Qual”, publiquei um primeiro artigo que mencionava a provável relação entre Camarate e um negócio de tráfico de armas para o Irão, durante a chamada crise dos reféns norte-americanos de Teerão. Essa relação consta do livro “O Crime de Camarate”, do advogado dos familiares das vítimas, Ricardo Sá Fernandes.

    Mais tarde, em 2002, devido à minha investigação, esteve na Assembleia da República um norte-americano, Oswald Le Winter, que testemunhou ter participado em reuniões secretas, em Paris, antes de Camarate, onde se teria combinado o tráfico de armas entre os EUA e o Irão.

    Sá Carneiro e o seu chefe de gabinete António Patrício Gouveia. Ambos morreram no atentado de Camarate em 5 de Dezembro de 1980.

    Durante essa altura, pouco falei com Alexandre. Ele parecia mais interessado nas questões técnicas, em explicar como nenhuma das teses de acidente conseguia demonstrar, de forma plausível, a queda do avião. A sua luta era no sentido de provar que houvera mesmo uma bomba a bordo. Os meus contactos eram sobretudo com Augusto Cid e Ricardo Sá Fernandes.

    Foi só em 2006, quando, então já como editor de Política da revista “Focus” e juntamente com o chefe de redacção, João Vasco Almeida, fiz uma entrevista a José Esteves, antigo segurança de Freitas do Amaral e o homem que muitos apontavam como o autor da bomba de Camarate. Quando a entrevista saiu, recebi um telefonema de Alexandre. Ele agora estava interessado em ir mais longe e queria saber mais sobre o provável móbil do atentado, o suposto negócio de tráfico de armas para o Irão.

    Encontrei-me com ele na sua casa da Rua do Jasmim, ao Príncipe Real. Tivemos depois vários encontros no seu gabinete do El Corte Inglés. A minha investigação continuava e, em Novembro de 2012, quando lancei o meu livro “Camarate – Sá Carneiro e as Armas para o Irão”, apresentei-lhe Jim Hunt, sobrinho e biógrafo de Frank Sturgis, um dos assaltantes do edifício Watergate e que era apontado como um dos alegados operacionais do atentado que causara a morte do seu irmão.

    O seu interesse nesta pista norte-americana crescia e isso ainda levou a que, graças a si, o Parlamento português ouvisse Jim Hunt e um investigador norte-americano, A. J. Weberman que, finalmente, levaram os deputados portugueses a pedirem, oficialmente, informações à CIA. Isso foi em 2015.

    Esse pedido nunca recebeu qualquer resposta da parte daqueles serviços. Nem sequer para desmentir o alegado envolvimento de norte-americanos na morte do primeiro-ministro de Portugal.

    Devido à ausência de resposta, Alexandre meteu mãos à obra e, coligindo de forma detalhada a informação que guardara ao longo dos últimos anos da investigação, lançou em 2020 a obra Os mandantes do atentado de Camarate: o envolvimento americano.

    Em Agosto do ano passado ofereceu-me a segunda edição. Falámos do que ainda tínhamos para fazer para descobrir a verdade. Seria um “até breve” e não suspeitava que estivesse doente. Só me lembro dele a sorrir quando nos despedimos no seu gabinete junto ao Parque Eduardo VII.

    Alexandre foi grande, enorme, na luta pela memória e pela verdade daquilo que levou à morte do seu irmão. Pelo caminho, foi processado por um primo, Francisco Pinto Balsemão, mas ganhou essa luta.

    Quanto à luta de Camarate, acho que ele ainda continua a trabalhar nela lá, na eternidade, onde descansa agora e, quem sabe, nos dará um dia uma revelação.

    Eu acredito que sim, Alexandre.

    Obrigado por teres sido grande.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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  • Perguntei à minha bola de cristal

    Perguntei à minha bola de cristal

    A NATO anda à procura do sucessor do actual Secretário-Geral, que deverá sair do cargo em Outubro. Quem poderá ocupar o seu lugar? Será que há um português a ser preparado para o cargo? Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Há coisas que preferia nem saber. Mas, como jornalista, vou recebendo informações de um lado e do outro. Podem ser simples confidências de amigos e fontes, misturadas com acontecimentos públicos aos quais se somam as habituais conversas que escuto nos transportes públicos ou nos balcões de café. Esqueçam as redes sociais, pois aí já aprendi que não se aprende nada.

    As redes sociais ou são para desabafos pessoais, insultos e queixas egocêntricas ou simples desinformação. Não foi há dias que disseram que o primeiro-ministro tem 15 pessoas numa central de comunicação para espalhar “boa informação” pelas redes sociais? Sei que 15 é um número pequeno para um país de 10 milhões – onde metade, cerca de cinco milhões, votou nas últimas eleições –, mas são eles que, ao responderem aos ataques contra o governo, fornecem depois argumentos de defesa aos chamados influencers, mais ainda a conhecidas figuras mediáticas com um poder de formar opinião com alcance público de milhares de seguidores.

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    No milagre da multiplicação de funcionários, sem necessidade de lhes pagar salários, a partir dos 15, constrói-se opinião de modo a garantir a vitória em próximas eleições – dos 10 milhões, 820 mil e 337 eleitores inscritos nas eleições de há um ano, o PS “só” precisou do voto de 2 milhões, 301 mil e 887 eleitores para ter a maioria absoluta. Há, portanto, 8 milhões, 518 mil e 450 portugueses com capacidade de voto que não se importariam de ver António Costa pelas costas.

    E Costa sabe disso. Como qualquer ser humano, com filhos criados, já sem nada para provar, com um bom apartamento montado e, a nível interno, o cargo maior que ainda poderá ambicionar alcançar é o de Presidente da República, só lhe restam então duas alternativas: ou tenta ir para Belém, ou consegue um cargo internacional, de preferência, em Bruxelas. Será pouco provável que venha a ser Secretário-Geral das Nações Unidas, pois o seu camarada socialista, António Guterres, já esgotou a quota de nacionalidade portuguesa para os próximos 100 anos.

    Perguntei então à minha bola de cristal, face a todos os tiros no pé deste Governo que, como disse o Presidente Marcelo à RTP, teve há um ano uma “maioria requentada” – que, para o meu gosto, até é boa nas tripas à moda do Porto –, o que poderá fazer António Costa? Será que vai manter-se em funções por mais três anos? É que, à minha volta, ouço muitas vozes que dizem que esta legislatura não vai ser para chegar até ao fim. Que será a primeira vez que um Governo com maioria absoluta poderá cair.

    António Costa, primeiro-ministro.

    Quem me conhece, sabe que não tenho bola de cristal.

    Isto da pergunta era uma espécie de metáfora. No entanto, tenho estado atento a vários factos que vão ter desenvolvimentos no futuro e que nos poderão ajudar a encontrar algumas respostas. Por exemplo, há um emprego importante que vai ter uma vaga em breve em Bruxelas: Secretário-Geral da NATO.

    Sim, o actual líder da organização do tratado militar do Atlântico Norte, Jens Stoltenberg – antigo primeiro-ministro norueguês –, já anunciou que pretende deixar o cargo em Outubro deste ano. E não faltam candidatos ao posto, vindos de todo os lados, pelo que a hipótese de António Costa poder trocar São Bento pela cadeira da NATO é até bastante remota.

    Só que a hipótese existe. Tal como uma outra hipótese, ainda mais rebuscada, admito, que é a do lugar acabar por ser entregue à actual presidente da Comissão Europeia, a senhora Ursula van der Leyen, que teria o condão de agradar àqueles que gostariam de ver o cargo a ser ocupado por uma mulher e que, aponte-se, já com experiência a lidar com militares, pois era ministra da Defesa da Alemanha quando foi substituir Durão Barroso em Bruxelas.

    Será que a saída antes do termo do seu mandato iria ser possível? E seria possível um primeiro-ministro português, chamado de emergência a Bruxelas, voltar a ser o líder da Europa?

    São meras especulações, aviso. Mas digo-vos que nunca as estaria a fazer aqui, em aberto, se não tivesse já falado sobre o assunto com mais gente e se não soubesse que, em Maio, vai haver uma reunião em Lisboa, num hotel na Ajuda, para falar destas e outras coisas.

    O resultado até poderá ser bastante diferente dos cenários para aqui avançados, mas que vão andar a falar sobre isso entre eles, isso vão. Basta estar atento depois ao que vai acontecer no mundo e não seremos apanhados de surpresa. E não preciso de nenhuma bola de cristal para saber isso.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A solidão de Kissinger em Lisboa

    A solidão de Kissinger em Lisboa

    Está previsto que o antigo secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, venha a Lisboa por ocasião do encontro do Grupo Bilderberg, que terá lugar poucos dias antes de cumprir os 100 anos de vida. Faça-se então uma reflexão para os próximos 100 anos da nossa vida. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Este é o Mundo dele. Henry Kissinger, antigo Secretário de Estado norte-americano – o equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros –, vai cumprir 100 anos de vida no dia 27 de Maio. E está previsto que, uma semana antes, esteja em Lisboa para participar na reunião do Grupo Bilderberg – que deverá ocorrer entre os dias 17 e 20 de Maio.

    Quando digo que este é o mundo dele é apenas porque é impossível dissociar a sua figura dos maiores eventos que moldaram a sociedade nas últimas dez décadas. É claro que não podemos colocar Kissinger no centro do Universo desde 1923, pois só começou a ter influência vários anos depois. Mas o próprio, como produto de uma certa época, acabou por ser o reflexo do muito que acontece nos dias de hoje.

    Henry Kissinger

    Nascido como Heinz Alfred Kissinger, em Furth, na Baviera, os pais fugiram da perseguição aos judeus, em 1938, e Kissinger, depois de se ter tornado cidadão americano em 1943, com 20 anos, serve no Exército norte-americano. Tendo-se valido bem da sua capacidade de falar alemão – uma língua que ainda hoje se nota no seu característico tom de voz metálico – foi na inteligência militar que iniciou a carreira, que, digamos, nunca mais deixou de exercer.

    Formou-se na Universidade de Harvard e cedo deu nas vistas, sobretudo quando, em 1957, publicou o livro Nuclear weapons and foreign policy (Armas nucleares e política estrangeira), uma edição com o apoio do Council on Foreign Relations (CFR), a organização privada que, basicamente, pensa e forma os futuros líderes da América no que diz respeito à política exterior. E, como se sabe, para controlar a política exterior, é preciso primeiro garantir a interior.

    Data também desse ano de 1957 a sua primeira participação numa reunião do Grupo Bilderberg, a organização não eleita que, desde 1954, reúne os principais políticos e empresários da Europa e Estados Unidos em encontros anuais, sem direito a escrutínio público, onde fazem o seu networking.

    Presidente norte-americano Gerald Ford e Henry Kissinger

    Discutem entre si, sem ser necessário tomarem decisões, pois todos eles acham que são os melhores do mundo e sabem melhor do que ninguém o que deve ser bom para todos nós. Os órgãos de Comunicação Social por si controlados, bem como os meios de propaganda das suas democracias, encarregar-se-ão depois de formarem o consenso necessário à aceitação pública das suas ideias pelas grandes massas. Algo há muito estudado.

    O homem que vai chegar a Lisboa no ano do seu centésimo aniversário, trabalhava ainda com os irmãos Rockefeller no tempo do presidente Dwight Eisenhower, aquele que quando deixou a Casa Branca, em 1960, avisou contra o “complexo militar-industrial” que controla a política dos Estados Unidos. Após a morte de Kennedy e os anos de Johnson, eis que Kissinger chega a Washington com o novo presidente, Richard Nixon.

    É então o tempo em que Kissinger impõe ao mundo a posição mais perversa que a política internacional criou e da qual nunca soube como sair: a “Realpolitik”.  Com ela não há ideologias honestas, não há políticas sociais humanas, não há solidariedade internacional verdadeira, não há relações comerciais sustentáveis, não existem trocas de experiências culturais genuínas. Há apenas o poder dos poderosos e o que é prático e imediato para garantir a sua sobrevivência.

    Henry Kissinger e Vladimir Putin em 2005.

    É claro que foi Kissinger que conseguiu estabelecer as boas relações com a China comunista de Mao, mas isso também é parte de um outro termo político, que é a “Détente” – palavra francesa que remonta ao período de paz precária entre a França e a Alemanha, antes da I Guerra Mundial. Chama-se, em bom português, “a paz podre”.

    Não preciso mencionar aqui todas as polémicas internacionais, os apoios a ditadores e golpes de Estado onde o nome de Kissinger parece estar sempre associado. Prefiro, nesta hora de soprar as 100 velinhas, pensar nos efeitos da sua passagem pela Terra e naquilo que ainda podemos salvar para o nosso futuro, quando ele deixar de estar fisicamente presente entre nós.

    Poderemos dizer, olhando para os argumentos belicistas que temos assistido ao longo do último ano, com a guerra na Ucrânia, a uma ausência de equilíbrio entre os poderes das principais potências nucleares. O mundo poderia viver a Paz da Guerra Fria.

    Henry Kissinger cumprimentando Mao Tse Tung em finais de 1975, sob o olhar do Presidente norte-americano Gerald R. Ford e sua filha Susan Ford

    Poderíamos ainda dizer que fazem falta mais homens com a visão pragmática de Henry Kissinger: frios e calculistas. Despidos de empatia na hora de fazer diplomacia. Mas também estou convencido que foi essa mesma política que nos conduziu a nomes que surgiram como falsos salvadores de uma certa comunidade de descontentes e de pólos políticos extremistas, como Donald Trump e Vladimir Putin.

    Não foram 100 anos de solidão, como no romance. São 100 anos da vida de um homem que vai demorar mais de 100 anos a corrigir a sua visão e os efeitos nefastos da mesma. Mas o positivo, se o quisermos tornar possível, é que deveríamos começar já a pensar, finalmente, num novo mundo, sem Kissinger, a partir de Maio. Devemos isso para os próximos 100 anos.     

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O mito que tudo omite

    O mito que tudo omite

    Como referência à morte do antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, relembramos o mito da eleição de Cavaco Silva em 1985, frente ao falecido ex-ministro, no congresso do PSD da Figueira da Foz. Antes que os mitos de Cavaco se tornem na verdade histórica. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    A notícia do falecimento do economista e antigo ministro das Finanças social-democrata, João Salgueiro, no passado dia 17, lembrou um mito esquecido na política portuguesa e que remonta ao congresso do PSD em 1985 e à eleição “inesperada” de Cavaco Silva.

    Antes disso, lembre-se que João Salgueiro era uma personalidade que não surgira na política portuguesa pós-25 de Abril de 1974 propriamente do nada, pois tinha a experiência governamental do tempo do Estado Novo, onde trabalhou directamente com o ditador Marcello Caetano, como subsecretário de Estado do Planeamento Económico. João Salgueiro também não era aquilo que podemos qualificar como um “homem do regime”, pois até esteve na fundação da associação cívica SEDES.

    João Salgueiro (1934-2023)

    Tendo sido vice-governador do Banco de Portugal, aderiu ao PSD após a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, em Dezembro de 1980. Uma decisão emotiva. Naquela altura, o sucessor do primeiro-ministro morto no alegado atentado de Camarate foi Francisco Pinto Balsemão, que não contou com o então ministro das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, para continuar no governo.

    João Salgueiro era vizinho de Balsemão, na Rua Ribeiro Sanches, à Lapa, e o novo primeiro-ministro queria-o para o seu executivo. Só que o economista rejeitou o convite por razões pessoais e, considerando ainda a recente adesão ao partido, que o vissem como um oportunista. Balsemão teve de se contentar com o centrista João Morais Leitão para o cargo anteriormente ocupado por Cavaco. Mas, em Setembro de 1981, após a resolução de uma crise governamental, Balsemão formou novo governo e, finalmente, levou o vizinho João Salgueiro para as Finanças, cargo que o economista conduziu até Junho de 1983.

    A marca imprimida por João Salgueiro levou-o depois a ser considerado como o principal candidato à liderança do PSD após a morte de Mota Pinto, em 1985. E é aqui que entra um mito da política portuguesa: João Salgueiro foi derrotado no congresso social-democrata da Figueira da Foz, em Maio de 1985, pelo antigo ministro das Finanças do governo de Sá Carneiro, Cavaco Silva, que só estava presente no congresso porque tinha ido fazer a rodagem do seu novo carro e saiu vencedor de forma “inesperada”.

    João Salgueiro, em entrevista na RTP em 1990.

    A margem eleitoral entre Cavaco e Salgueiro foram 57 votos e, depois do que aconteceu na Figueira da Foz, já se sabe: Cavaco tornou-se primeiro-ministro até 1995 e ainda chegou a ser Presidente da República. Fica sempre, para o reino da ficção alternativa, como seria Portugal caso João Salgueiro tivesse chegado a ser ele o primeiro-ministro em vez de Cavaco Silva.

    Ao ver as notícias da morte de João Salgueiro percebe-se como o mito inventado por Cavaco Silva está hoje bem enraizado na história recente da política portuguesa e, como estes textos estão escritos debaixo da designação “Histórias que eu sei”, sou levado a ter de recordar, nesta hora em que desaparece um homem que fez parte desta história, aquilo que sei.

    Sei que Cavaco Silva, que sempre disse ser um economista e que nunca se assumiu como político profissional, é o melhor político que este país conheceu. E se há muita gente que não gosta dos políticos portugueses, então é a Cavaco que o devem, pois o melhor político é aquele que nem sequer pode ser acusado de ser político. E Cavaco conseguiu criar esse mito à sua volta.

    O primeiro mito de Cavaco é ter-nos feito acreditar que, após a morte de Sá Carneiro, não tinha hipóteses de se manter no governo. Que até estava cansado e queria sair após um ano em funções, entre Janeiro de 1980 e Janeiro de 1981, altura em que Balsemão se preparava para se sentar na cadeira de S. Bento.

    Notícia do jornal Tempo de Julho de 1982.

    É falso: logo após a morte de Sá Carneiro, a 13 de Dezembro, o semanário Expresso, propriedade de Pinto Balsemão e dirigido interinamente pelo actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dizia em primeira página que o nome de Cavaco Silva estava a ser ponderado dentro do PSD como “hipótese forte” para ficar à frente do executivo, enquanto Balsemão ocuparia o cargo de presidente dos sociais-democratas.

    Será modéstia de Cavaco não reconhecer que o seu nome era o mais forte para suceder a Sá Carneiro em 1980?

    Ou será que foram as condições por si impostas a Balsemão que não agradaram ao único dos três fundadores originais do PSD que ainda estava vivo e filiado no partido? Talvez ajude relembrar aqui as declarações de Balsemão ao Diário de Notícias de 1 de Janeiro de 1981 que, a propósito do projecto de Cavaco Silva, afirmou: “Estou convencido de que nunca vingarão em Portugal projectos de poder pessoal, porque o povo português ao escolher quem quer para governar escolhe um conjunto de medidas, um modelo de sociedade, e não o cidadão A ou B”, tendo acrescentado esta frase fatal: “Santa Comba Dão em 1980, em Portugal, não é concebível”.

    Sim, Balsemão comparou directamente Cavaco Silva ao ditador Salazar. E isto, seis anos após o 25 de Abril, era visto como um enorme insulto político. Hoje, alguns diriam ser uma medalha, mas foi também no tempo em que Balsemão ainda não participava nas reuniões internacionais do Grupo Bilderberg e acreditava-se que Camarate tinha sido um acidente.

    O segundo mito de Cavaco é o de que se manteve de fora da política activa até à altura em que chegou a líder do PSD. Afinal, recusou ser deputado e só falava publicamente quando lhe pediam a opinião.

    Falso: Cavaco encabeçou uma lista para o Conselho Nacional do PSD no primeiro congresso do partido após a morte de Sá Carneiro, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa – actual Pavilhão Carlos Lopes –, em Fevereiro de 1981, tendo feito aí o seu primeiro discurso em congressos. Estava na política activa. E pior: era activamente contra o líder do seu partido e primeiro-ministro, Pinto Balsemão.

    Uma pessoa que topou bem essa nova esperança no futuro do PSD foi então um jovem jornalista do semanário Tempo, chamado Paulo Portas, que assinou uma entrevista com Cavaco Silva a 4 de Junho de 1981. Portas perguntou a Cavaco se, ao estar activo dentro do partido, não estaria a fazer um “tirocínio partidário” e se não colocava de lado a hipótese de poder ser chamado a funções mais elevadas. A resposta do economista Cavaco foi a resposta de qualquer político: “O PSD precisa de todos”.

    Um ano depois, Cavaco assinava, com Eurico de Melo, uma carta aberta contra Balsemão. Aquilo não caiu bem, tanto mais que havia eleições autárquicas em Dezembro e, viu-se, o mau resultado do PSD – coligado desde 1980 com CDS e PPM, na AD –, levou à demissão de Balsemão.

    Notícia do jornal Tempo de Maio de 1985.

    No discurso de despedida da liderança do PSD, em Março de 1983, em Montechoro, Balsemão deixa um recado ao interior do partido dizendo que não se poderia aceitar que viessem a ser recompensados aqueles que “nos últimos dois anos, só se distinguiram por se colocarem fora do sistema, por desrespeitarem as resoluções dos órgãos próprios do partido, por se refugiarem calmamente em sua casa ou no seu escritório e se limitarem a falar de quando em quando para os jornais ou a escrever cartas abertas publicadas nas piores ocasiões”. Está-se mesmo a ver quem era o alvo: o maior dos políticos.

    O terceiro mito de Cavaco e o maior de todos, é aquele em que ele diz que foi “inesperadamente” eleito líder do PSD no congresso da Figueira da Foz, em 1985, vencendo João Salgueiro, candidato apoiado por Pinto Balsemão. É certo que teve uma diferença de 57 votos, mas não se pode dizer que Cavaco Silva só foi ao congresso para fazer a rodagem do carro e dizer o que tinha a dizer e, depois, vir embora.

    A falsidade do argumento é desmentida, primeiro, pela manchete do Expresso a 11 de Maio de 1985, uma semana antes do congresso, que se realizaria entre os dias 17 e 19 de Maio: “Distritais avançam nome de Cavaco Silva”. Eram as letras gordas da primeira página do Expresso, acompanhadas de um ante-título, com letras mais pequenas, a dizer: “Com candidatura de Salgueiro quase certa no PSD”.

    João Salgueiro em 2010, sendo recebido por Cavaco Silva, então Presidente da República. Imagem RTP Arquivos.

    Outro semanário bem informado sobre os passos de Cavaco na preparação para o congresso, era o Tempo – uma escola para o futuro director do Independente, Paulo Portas. A manchete de sexta-feira, dia 17 de Maio, à abertura do congresso, tinha a foto de um sorridente Cavaco e, em letras gordas: “Discurso de Cavaco vai ser decisivo”. E com isto, ainda nos querem fazer acreditar na rodagem do carro? E no “inesperado”?

    Cavaco conseguiu ser eleito e João Salgueiro nunca mais exerceu qualquer outro cargo político, e este é agora o País que temos. Não sei se seríamos diferentes caso o resultado do congresso de 1985 tivesse sido favorável a João Salgueiro, mas uma coisa tenho a certeza que nunca haveria: os factos omitidos para a criação do mito de Cavaco Silva.

    Que a morte de João Salgueiro nos permita desfazer um pouco disto antes que se tornem para sempre na verdade em que todos acreditarão.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    ‘Na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga’

    Spoiler: esta é uma entrevista imperdível para os amantes de cinema. Mário Dorminsky tem um extenso currículo, de muitas valências, mas um dos seus papéis principais é o de co-fundador do Fantasporto, considerado o maior festival português de cinema. A sua 43.ª Edição decorreu de 24 de Fevereiro a 4 de Março passado, pela primeira vez no histórico Cinema Batalha, reabilitado pela Câmara Municipal do Porto. Em conversa com o jornalista Frederico Duarte Carvalho, em exclusivo para o PÁGINA UM, Dorminsky fala da estreia do festival no Batalha e do estado actual da indústria cinematográfica, relembrando com nostalgia a “época áurea” do cinema em Portugal e as dificuldades actuais de promover a Cultura e os espaços culturais.


    Este ano, o Fantasporto esteve pela primeira vez no Cinema Batalha. Como foi a experiência neste Batalha renovado, e agora “casa” do Fantasporto?

    Honestamente?

    Talvez seja preferível então uma resposta politicamente correcta…

    Politicamente correcto, muito bem. Acho que já dei a entender… Penso que há duas valências, uma delas é aquela que o Batalha oferece a quem o visita. E, como aliás já vem sendo habitual, mas neste ano em particular, a nossa imagem internacional é muito mais forte do que a imagem nacional. E daí que todos os estrangeiros que nos visitaram – e que, pelo que se pode contabilizar, são cerca de 170, a não ser que haja outros espectadores que nós desconhecemos… Acho que eles gostam muito do espaço. E, de facto, o espaço é, à primeira vista, muito agradável. Depois, tem algo de muito particular, que é um painel do [Júlio] Pomar, que ocupa toda a altura do edifício, a nível interior, e mantém-se outro alto relevo no exterior. Em 2012, o edifício foi considerado de interesse municipal. E nesse ano, aliás, com a minha intervenção – e também na altura da Paula Silva, do IGESPAR –, resolvemos fazer um projecto para considerar este espaço como um edifício de interesse nacional. Entretanto, a terminologia mudou, e passou-se a usar o termo “monumento de interesse nacional”. Assim, há dois monumentos, neste momento, dentro deste espaço: um é o Fantasporto, e o outro é, concretamente, o edifício em si do Cinema Batalha, actualmente chamado de Centro de Cinema.

    Como potenciar isso?

    A lógica que eu veria, em termos de funcionamento desta sala, seria próxima de uma programação de uma Cinemateca. Por isso, com parâmetros de programação que seriam de maior abertura conceptual e, também, por outro lado, de uma linha mais autoral. E haver um certo equilíbrio. O problema é que, aparentemente, chegou-se à conclusão… Independentemente, de eu ter excelentes relações com o director desta casa, Guilherme Blanc, acho que há uma política erradíssima em termos da programação do espaço. Não é que não conheça, já ouvi falar, mas nunca tive coragem de ver 99,8% dos filmes que eles exibiram até agora, e que vão exibir até Julho. A programação é extremamente fechada, e acho que não atrai públicos. Atrair públicos será feito provavelmente através de convites à borla, algo que, estranhamente, nos edifícios da Câmara parece algo que acontece. Tivemos pedidos de borlas para o Fantasporto deste ano como nunca. Quer dizer, as pessoas acham que não há, de facto, bilheteiras para comprar a porcaria de um bilhete a cinco euros. Ou a dois euros e meio, que é possível se tiverem um cartão oferecido gratuitamente pela municipalidade do Porto.

    Achas que é devido à falta de valorização da cultura, que as pessoas pensam que a cultura é de borla? O valor de cinco ou de dois euros e meio é quase simbólico. E mesmo assim as pessoas não querem pagar…

    Não, não… Quer dizer, na lógica das pessoas, a Cultura, sendo já subsidiada, não precisa mais de ter apoios, de ser paga.

    Ou seja, as pessoas pensam que já pagam a Cultura com os seus impostos.

    Exactamente. Eu também gosto, quando me oferecem a possibilidade de ir, sei lá, a um festival de rock; e ir de borla em vez de ter de pagar os 170 ou 200 euros pelos três dias, e até me oferecem, inclusivamente, um espaço VIP, onde posso beber, e vou mostrar-me. Aliás, o que acontece aqui, é a tal “quequice” de vir a um espaço como é, neste caso, o Batalha. Isto é, o Batalha antes de o ser, já é um espaço “queque”. No fundo, repete, aliás, aquilo que aconteceu com a Casa da Música no Porto, em que as pessoas iam ver determinado tipo de programação, que era uma programação hiper-elitista. Não acredito que as 700 pessoas dentro da sala fossem capazes de ter conhecimentos e gosto em termos musicais para poder sair de lá e dizer “magnífico”, “fantástico”, “genial”. E aqui, provavelmente acontecerá a mesma coisa no Cinema Batalha em muitos projectos que vão ser exibidos.

    Que cinema há no Porto no resto do ano, quando não há Fantasporto? Tirando o cinema comercial, obviamente… Em Lisboa, por exemplo, há a Cinemateca. No Porto, ainda está em funcionamento o Cineclube?

    O Cineclube do Porto fez uma sessão aqui e estava cheio. Uma sala pequena, tinha 120 pessoas. Mas, de qualquer forma, o que me parece é que este espaço, para conseguir conquistar público – porque ainda não conquistou –, vai acontecer o que já está a acontecer. Eu recebi já um convite para a próxima semana, à borla, para ver um filme e um ciclo que vai começar agora aqui.

    E vale a pena esse ciclo, ou não pagavas para ver?

    Não, eu nem de borla. Agora, a questão é que nem sequer aí há o factor de descoberta. Porque eu conheço o realizador, já vi um filme dele, e já disse que nunca mais vou ver nenhum.

    É uma questão pessoal?

    Não, é uma questão de gosto, e de aquilo que eu acho que é cinema e aquilo que eu acho que é instalação cinematográfica. É a mesma coisa que a exposição que nós temos aqui nesta casa, e que não nos permite colocar nada junto das paredes, nem podemos fazer sequer a exposição que estava prevista, do José Emídio, nos 60 anos do aniversário de uma das maiores estruturas culturais em termos de artes plásticas do país, que é a Cooperativa Árvore. De qualquer forma, o que acontece é que isso limitou-nos.

    E não houve cartazes dos filmes em exposição.

    Não tivemos hipótese de meter cartazes dos filmes, nem bandeiras dos países..! Uma vez, metemos bandeiras dos países à frente do Teatro Rivoli [risos]. Porque havia lá muitos buraquinhos, e disseram “ah, porque é que não põem bandeiras dos países?”, e pusemos. Pronto. Mas aquilo que costumamos pôr, que é billboards, cartazes dos filmes, que até são pagos; quer dizer, até as empresas pagam para ter os cartazes em destaque. Isso não, não pudemos pôr uma passadeira para fazer uma espécie de passadeira vermelha, pelo menos na abertura e no encerramento. Não pudemos fazer rigorosamente nada que tenha a ver com o festival. Para conseguir pôr um painel para tirar fotografias na entrada do espaço – aliás, não é bem na entrada, no lado esquerdo –, foi preciso ser o director a dizer que podíamos pôr ali. Eu acho que é do conhecimento geral, de toda a gente que vá à borla ao Fantasporto e participe no festival [risos], e que vê as condições de trabalho que a equipa tem… Quer dizer, tem um barraco que eu acho que aparece nas imagens. E ao mesmo tempo, tem um buraco por onde passam as pessoas que vão aquecer a comida no micro-ondas. E é isso o nosso espaço. O bar seria um espaço importante para nós, para que as pessoas se pudessem reunir, encontrar, beber uns copos. Aliás, os estrangeiros, em particular, gostam bastante de beber a nossa cerveja. E nem faço publicidade à cerveja que ainda apoia, ao fim de 42 anos, o Fantasporto, que aliás é a Superbock, precisamente [risos].

    Uma cerveja do Norte, pode-se mencionar como sendo um facto.

    Não, a Sagres também se bebe cá. Mas não interessa. Afinal, chegámos à conclusão que o bar fechava às 20 horas, o que quer dizer que abre às 15h e fecha às 20h. As pessoas não podiam sequer utilizar o bar. O único momento em que eu senti que houve alguma animação e gozo entre as pessoas, foi em certo dia ao fim da tarde, juntaram-se umas 30 pessoas, e o bar a fechar e as senhoras com vontade de ir embora porque já estava a chegar às 20 horas.

    Não lhes pagam horas extra… Mesmo havendo um festival internacional, não há horas extra e fecha tudo às 20 horas?

    Se houver, somos nós que pagamos, atenção, está contratualizado. Tudo o que sejam horas-extra, somos nós que pagamos, em qualquer das áreas. Inclusivamente na segurança.

    Mas o apoio da Câmara, ainda assim, é de salutar ou é apenas o possível?

    Não, não é só o que é possível. O problema é que o apoio da Câmara incorpora o espaço, que é algo fundamental. O Teatro Sá da Bandeira é o espaço que eu continuo a ter, no meu imaginário para fazer o Fantasporto à moda do Teatro Carlos Alberto, mas teríamos de ter dinheiro para o alugar.

    Achas que o Sá da Bandeira é que seria o sítio do Fantasporto?

    O Sá da Bandeira é o novo Carlos Alberto. Ou melhor, era um renovado Carlos Alberto.

    Tem condições?

    Tem, e a nível de estrutura e da engenharia, há 10 anos que estava garantida. E eu admito que ainda esteja, porque toda a estrutura de sustentação dos vários pisos é feita com grandes pilares de ferro, se é que se pode dizer assim. O que quer dizer que não há grandes problemas, excepto, dizem eles, nos camarotes mais elevados do espaço. De qualquer forma, é uma sala que é verdadeiramente gótica [risos]. E permite fazer, não só em termos de fachada como de entrada e de tudo, um espaço que não é fantasmagórico, mas visualmente atractivo.

    city buildings near body of water during daytime

    O Sá da Bandeira é privado…

    É privado, sim, e eles pedem um bocado de dinheiro por aquilo. Aliás, nós fazíamos lá o Baile dos Vampiros até determinada altura, só que depois os preços aumentaram substancialmente. Chegámos a fazer espectáculos musicais em paralelo com o próprio festival, com bandas de vários tipos, e lembro-me, por exemplo, de um momento interessante do Claudio Simonetti, que é o autor das bandas sonoras dos filmes do Dario Argento. Estavam lá os dois… E a adesão das pessoas a projectos desse género também é interessante, à parte do Fantasporto.

    Bom, não me mentiste, porque eu pedi-te só uma opinião sobre o Fantasporto aqui na Batalha, e nós já falámos de várias coisas.

    Mas há mais aspectos…

    Há mais aspectos de que possas falar? Então pronto, continua…

    Toda a área circundante. Isto é, toda a área circundante é bonita. É uma zona turística.

    É, temos o Teatro de São João…

    Exactamente. Só que, primeiro, não há parques de estacionamento. As pessoas perguntavam: “onde é que eu ponho o carro?”. Segundo, havia uma frequência de manhã muito magrebina. Pronto, não interessa estar a definir. Não tenho nada contra eles, mas a determinada altura… Aliás, até brinquei com uma realizadora turca e com o marido, e estava-lhe a dizer “opá, isto de manhã parece a Turquia, parece Istambul” [risos]. E, depois, ao fim da tarde, começa a ser uma coisa mais complicada. Além de uma coisa que me surpreendeu negativamente, e que eu aparentemente consegui resolver falando com o presidente da Câmara, que é a sopa dos pobres mesmo em frente ao Batalha. Tudo isso cria uma sensação de mal-estar. As pessoas diziam-me para olhar para dentro do Batalha.

    As sessões depois da meia-noite sempre foram uma marca do Fantasporto.

    Sim, foram uma marca, e até às duas e três da manhã, e por aí fora [risos]. E aqui não pudemos fazer. Aliás, viu-se pelo número de pessoas que estavam na sala.

    E a sala deste ano não foi muito grande, tem metade do tamanho daquela que tinham.

    Eu não queria falar nisso, porque isso é uma história que, então, estávamos aqui muito mais tempo a falar…

    Mudemos agora um pouco de prisma. Como é que está o audiovisual nacional, actualmente?

    Está excelente, nunca se viu tanto cinema como agora.

    Mas as pessoas vêem em plataformas, em casa…

    Estás a dizer o que eu ia dizer. Podemos falar claramente de tudo o que é streaming, logo aí, dos grandes, acho que são sete canais. As pessoas têm acesso a esses canais, e já estamos a falar aí das primeiras gerações de ‘fantas’. Porque as primeiras gerações de ‘fantas’ já foi há quarenta e poucos anos, não é? As duas últimas gerações já são a malta dos ipads, dos computadores, da piratagem [risos]. Das televisões que já começaram há uns anos a ter 30 ou 40 filmes quando entrou o cabo… Começaram a entrar 30, 40 ou 50 filmes diferentes por dia. Claro que depois repetem. Mas, lá está, as alternativas aí são tantas. Aliás, quando foi o período da covid-19, as pessoas mais jovens não sentiram nada [risos]. Já estavam habituadas a ver cinema em casa, já tinham com que se entreter à vontade.

    Aliás, diz-se que as restrições da pandemia só funcionaram mesmo porque as pessoas já estavam pré-habituadas a estar em casa. Foram elas que pediram para ficar em casa antes de o próprio Governo o decretar. Um grande exemplo de civismo, não é verdade? [risos]

    [risos] Exactamente. Os números são claros, muita gente já falou sobre esse tema. E vamos falar naquilo que é a única multinacional em Portugal, e que toma conta de 96% do mercado de distribuição e de exibição em Portugal, que é a NOS. E são nossos patrocinadores também, através da TV Cine. O cinema teve uma quebra, há dez anos, de 70%. Os dados do Instituto de Cinema, há dois anos, eram de uma quebra de mais 20%. Temos 10% do que era normal, o que é uma coisa absurda. A grande excepção, por exemplo, no ano passado, a nível de espectadores, foi o Top Gun – Maverick, que fez um número muito significativo de espectadores, e aparentemente, segundo o que foi dito, equilibrou um bocadinho as contas.

    E mesmo esse filme talvez tenha resultado porque era a continuação de um filme dos anos 1980. A geração que viu o Top Gun em 1986 quis agora vê-lo de novo no grande ecrã…

    Exacto, e tem uma banda sonora muito boa; já a do outro também era excelente. Ou melhor, é aquela que se adapta ao gosto da maioria das pessoas. E isso também levou a que o filme fosse, de facto, um sucesso.

    Sim, agora não é normal os filmes ficarem mais do que duas semanas nas salas, não é?

    E para fazer isso… Mas isso também é culpa da própria distribuição. Eu tentei manter a distribuição que fazia antes, mas só que a partir do momento em que passou a haver o domínio total – com a excepção concretamente das salas do El Corte Inglês, a UCI… Tirando essas salas, e outra meia dúzia que o Paulo Branco tem em Lisboa, se é que é meia dúzia, mais uma que existe no Porto e mais dois estúdios que fazem parte da estrutura de equipamentos municipais da Câmara…

    Voltando ao Batalha. Conseguias fazer alguma coisa com o actual Batalha?

    Tinha de ter uma programação completamente diferente. Estou-me a lembrar de duas salas no centro de Londres, com uma programação de filmes de culto, que é uma coisa que chama muita gente, e cada vez mais. No outro dia estava a falar com um distribuidor, e ele disse-me que agora ia comprar clássicos, que é o que está a dar. Quando ele fala em clássicos, eu depois cheguei à conclusão. era algo, sei lá, do tipo Streets of fire [risos].

    Todos os filmes que fizeram sucesso nos anos 1970 e 1980.

    Já são clássicos. E um gajo começa a pensar… Aliás, temos uma área chamada Fantasclassics, que este ano não fizemos. Quando começamos a pensar em clássicos… “Clássicos, mas este filme nós passamos. Já tem quarenta anos”.

    Na minha e na tua geração, quando pensamos em clássicos, estamos a pensar em filmes a preto e branco, até aos anos 1940-50, ou 60, no máximo. A partir dos anos 70 já são quase uns contemporâneos. Mas para muita gente até os filmes dos anos 90 já são clássicos.

    O próprio cinema americano altera o cinema mundial, e o cinema europeu se altera com o cinema novo.

    Se calhar há muitos filmes que estão clássicos porque só existem em DVD e VHS, e muita gente não os viu hoje, e outros já os viram há muito tempo.

    Aliás, se vamos pensar numa coisa que chegou a existir e que as pessoas nem sabem, que é uma coisa chamada 70 milímetros [risos]. E ver o Lawrence da Arábia em 70 milímetros, uma pessoa até fica com sede [risos]. Enorme filme, mas pronto. Estou a brincar com a areia porque se passa, de facto, no deserto.

    Mas estás a imaginar um Lawrence da Arábia no Batalha?

    Não dá, não dá, isto é miserável. Este ecrã é pequeníssimo. Quer dizer, para o tamanho da sala, o ecrã até dá mais ou menos neste momento.

    O IMAX também é o que faz sucesso.

    Eu pessoalmente não sou fã.

    Na indústria, parece que se está a privilegiar mais técnicas do que histórias. O que vês daquilo que te vai chegando?

    Ora bem, temos de dividir cinema em duas áreas completamente diferentes. As multinacionais, que continuam a ter produção própria; uma produção que, teoricamente, é feita para chegar ao mercado das salas de cinema. Quando eu falo em multinacional, pode-se pensar que são filmes que qualquer um pode exibir, mas não é verdade. Os distribuidores em cada país têm os direitos de uma determinada multinacional. Cá em Portugal, os direitos são todos da mesma empresa. Têm três nomes diferentes, mas é a mesma empresa e os sócios são praticamente os mesmos. Mas isso leva a que haja esse cinema, dos super-heróis e das “Ressacas”.

    E do outro lado tens um cinema de descoberta, daquelas cinematografias que normalmente não entram num país como Portugal. Daí que haja uma diversidade de países no caso do Fantasporto, que é brutal. Quer dizer, nós recebemos filmes de 60 e tal países, e temos filmes de 30 países a ser exibidos – que não entram em Portugal de maneira alguma, nem nas televisões nem em lado nenhum, já não há hipótese. Entravam no passado, no pós-25 de Abril de 1974. Estamos a falar já dos clássicos [risos]. Nem há cá, como em Espanha, alguns serviços de streaming que têm clássicos e filmes que, de alguma forma, foram fazendo a História do Cinema, e que raramente entram no circuito comercial. Nós cá somos extremamente radicais nesse aspecto. São raros os projectos que são organizados por institutos de vários países europeus, e que criam Festas de Cinema. Então, viramo-nos muito para a Ásia, onde de facto, o festival tem um peso muito forte.

    Há uns anos deram um prémio ao primeiro filme de ficção científica chinês.

    Sim. No próximo ano, a China vai estar presente em força no Fantasporto. Não só através da China mainland como através de Hong Kong e da Formosa. E depois, há países que ninguém liga e que têm coisas notáveis. A cinematografia do Cazaquistão é absolutamente brutal! Não exibimos nada este ano porque um amigo nosso, que é distribuidor, e por sugestão minha, vai fazer precisamente um pack de filmes do Cazaquistão para começar a divulgar através dos festivais. E, recebe também, logicamente, um fee de aluguer por esse núcleo de filmes que, entretanto, conseguir. Essas cinematografias são êxitos grandes em vários países. No ano passado, umas quatro dezenas de ante-estreias mundiais. Isso só mostra o peso do festival em certos países onde os portugueses não ligam ao cinema que lá se produz.

    Sim, somos mais bem tratados lá de fora para dentro…

    Eles sabem que o Fantasporto tem um impacto que lhes permite depois lançar o filme a nível internacional. Uma senhora que trabalha com festivais no Hungary Film Institute disse-me que para muitos o Fantasporto é um espaço de lançamento do cinema húngaro. Agora, há outros detalhes. Este ano tivemos cá 170 estrangeiros, dos quais 80% são realizadores de filmes que estiveram aqui presentes. E tivemos os realizadores desses países, aqui, sem pagar uma única viagem.

    Quer dizer que que o Fantasporto está bem de saúde, recomenda-se, e vai continuar no Batalha, enquanto não conseguires o sonho do Sá da Bandeira [risos].

    O sonho do Sá da Bandeira… Atenção, a minha equipa acha que é genial, mas eu preciso de ter o dobro ou o triplo do público que tenho neste momento. E para isso preciso de outro espaço, de estar noutra área da cidade.

    Mas o Fantasporto pode ser um espaço para que esta zona chame mais pessoas.

    A programação deste ano foi pensada para o Batalha, que é uma coisa que não é tão fácil quanto isso.

    Explica-me lá então como é isso…

    Nem os filmes que passámos à noite são tão para o grande público como era habitual no Fantasporto. Mas os filmes que passaram no Fantasporto são filmes de qualidade, ponto final. Goste-se ou não se goste.

    Aliás, o Fantasporto dava qualidade a filmes sem qualidade. Mas este ano não houve tanto disso…

    Não. Aliás, o filme mais maluco de todos é o Life of Mariko in Kabukicho, um filme japonês. Digo “maluco” no sentido de ser fora da caixa. Agora, o resto são filmes dentro da caixa.

    Uma coisa que acontece muito, quando os realizadores vêm ao Fantasporto, é que ficam com vontade de fazer filmes no Porto, ou em Portugal.

    E de vir outra vez ao Porto. Aliás, não quero mentir, mas recebi entre 10 a 12 mensagens, e as pessoas adoraram estar cá. E dizem logo: “o meu próximo filme vai ter de estrear aí”. Claro que é sempre uma forma simpática de…

    Não, mas eu estou mesmo a falar de pessoas que querem vir filmar ao Porto.

    Sim, isso tem acontecido. Aliás, o Shape of water [A forma da água, em português, vencedor de quatro Óscares em 2018, incluindo melhor filme e melhor realizador] do Guillermo del Toro, foi escrito cá, no Rivoli. O Argento também esteve cá a escrever um dos seus filmes. Há um espaço que desapareceu, quer dizer, não há a vivência de relacionamento entre os convidados, e que é fundamental. Não há esse espaço. Não é por acaso que as pessoas ficaram afastadas, quando há hotéis à volta da Batalha [risos]. Não é por acaso que as pessoas ficaram num hotel junto do Rivoli. Foram para lá porque eu quis que saíssem daqui e mudassem de zona. Sobretudo à noite, e que não acordassem nesta zona. Os nossos participantes reduziram de 100 para 25. Onde é que punham o carro? Pura e simplesmente perdemos participantes, perdemos público ao vir para o Batalha, e público tradicional do Fantasporto. Ganhámos um espaço que é bonito, agora se funciona…

    Quem escolhe os filmes são vocês os dois, tu e a Beatriz [Pacheco Pereira]?

    Sim, mas isso tem a ver também com a nossa formação, que curiosamente é muito semelhante.

    Beatriz Pacheco Pereira e Mário Dorminsky.

    Sempre funcionaram por serem um casal?

    Sim, mas por sermos muito diferentes, por vezes, nas escolhas. E isso é bom. Eu ainda no outro dia tinha saudades, e estava a dizer que era fantástico nós durante três anos enchermos, todas as semanas, o Coliseu do Porto com filmes que estávamos a exibir nas chamadas noites duplas do Coliseu. São 3.300 lugares, e enchíamos. Pá, onde é que isso é possível hoje? Não é.

    O Festival continuou a ser eclético, com a semana dos realizadores, o fantástico, terror, séries e documentários…

    Esse conceito foi muito interessante para a evolução do Festival. Mas, das duas uma: ou nos definimos como um festival de cinema fantástico, ou como um festival de cinema geral. E isso é uma coisa que, passados estes anos todos, eu acho que cria um bocado de confusão às pessoas. Por acaso, este ano, fizemos um acordo, digamos assim, para que a maior parte dos filmes da semana dos realizadores fossem thrillers. Quer dizer que encaixa mais ou menos…

    No fantástico…

    Não encaixa no fantástico, porque os filmes são realistas. O fantástico tem uma certa loucura, e nós este ano cortámos com essa loucura de uma forma mais ou menos radical. Loucura no sentido de serem, como dizíamos, filmes fora da caixa. Cortámos porque deixou de fazer sentido. Faz sentido se calhar no MOTELX, mas aqui não faz, porque isto é um festival generalista quase.

    Pois, então se calhar aquele público que havia nas sessões da meia-noite…

    Não gostou, mas não gostou já logo na altura da passagem do Carlos Alberto para o Rivoli. E houve ali logo um choque, mas nós não perdemos público. Fomos ganhar público, porque conseguimos conquistar não só o público do fantástico, como o do generalista. O problema é que as salas estão carregadas de DC Comics, Marvel, e super-heróis, e isso é o que agrada, neste momento, à geração que vai às salas de cinema. Porque os pais já ficam em casa… Isto é igual à música, atenção, com a música é a mesma coisa.

    brown bridge with light

    Eu conhecia o tempo do Carlos Alberto e agora está muito mais higienizado aqui. No Carlos Alberto uma pessoa pode fumar, comia-se dentro da sala se fosse preciso…

    Sim, sim, tomava-se o pequeno-almoço ao sair da sala, às 6 e às 7 da manhã.

    Sim, e agora está muito mais asséptico.

    E, nessa altura, os filmes não eram legendados, e tínhamos lá o homem do talho, da padaria… E no outro dia, uns tipos que me foram levar umas bebidas ao escritório, disseram: “epá, o Fantasporto no Carlos Alberto é que era”. E lá está, este público… Eu disse-lhe assim: “mas você não percebe de filmes”. E ele disse: “mas visualmente era uma coisa espectacular”. E pronto [risos]. A partir daí está explicado uma coisa que é inexplicável. Eu acho que as pessoas continuam a ouvir falar no Fantasporto. Agora, a forma como os media têm funcionado nos últimos dez anos, os jornais foram desaparecendo, e as televisões repetem as mesmas notícias 56 vezes… Não pegam em cultura. Pegam em música, alguns canais. Porquê? Porque os organizadores dos festivais conseguem fazer contratos com as bandas garantindo que a televisão A ou B vai poder exibir o vídeo XPTO.

    Uma das coisas que não quiseste nos últimos anos foi ter uma grande estrela mundial, uma carpete vermelha…

    Sempre quis a carpete vermelha. O problema é que, não tendo carpete vermelha, tenho de dizer aos tipos que, afinal, a roupa na noite de abertura é normal. Eles perguntam sempre qual é o dress code. Nos 25 anos do Fantasporto, montámos uma tenda gigante transparente na Praça D. João I, fizemos uma ligação de passadeira vermelha entre o Rivoli e a tenda. Foi no ano em que a Toyota chegou a fazer um carro Fantasporto, o I Go Fantas. E a Diesel fazia relógios especiais para o Fantasporto… As empresas participavam no Fantasporto de uma forma muito forte. E isso desapareceu.

    Porquê?

    Porque as pessoas começaram a não investir em publicidade. A Diesel, por exemplo, achou que bastava Espanha, não precisava de Portugal. E isso foi acontecendo em contínuo. Com os carros é uma questão diferente, detalhes. Mas pronto, fazer uma coisa glamorosa é perfeitamente possível, e eu aliás ando a chatear o Turismo do Porto e Norte de Portugal; é ridículo que não nos apoiem. Ou melhor, que não apoiem os nossos convidados, para que eles possam sentir algum glamour aqui. Quando vais nos autocarros de turismo, passam à frente do Rivoli e dizem: “aqui é que se realiza o Fantasporto”. Sente-se que há uma ligação directa da cidade com o Fantasporto, mas não é o Futebol Clube do Porto.

    Falta recuperar aqui uma simbiose… É possível recuperá-la?

    Recuperar a simbiose implica que haja um processo tipo Cannes. É ridículo estar a comparar, porque Cannes é Cannes, e aqui não há mercado.

    O nosso small is beautiful.

    Isso é perfeitamente possível criar. Agora, podes ter cânones importantes. Pode haver essa lógica da passadeira vermelha, só que eu tenho de pensar que, para trazer qualquer americano de Los Angeles, só um custa-me uns cinco mil euros. Mas eles não vêm sozinhos, vêm logo com não sei quantos guarda-costas.

    E estão a perder dinheiro ao estar aqui…

    A questão é um bocado essa, eles podem vir cá. Só nos 25 anos, tivemos cá, à vontade, 10 grandes nomes do cinema, dos quais dois oscarizados.

    Qual foi o que te deu mais prazer ter cá?

    O Guillermo del Toro, é evidente, porque já era amigo no passado. O Peter Jackson, por exemplo, nunca veio cá, mas é outro que tal. Nós tivemos patuscadas em vários sítios, os três. Três de barba, três gordos. Agora já emagreceram os outros dois [risos].

    Já estiveste tu, o Guillermo del Toro e o Jackson?

    Ui, umas quatro ou cinco vezes. Queres que eu te conte a história?

    Quero!

    Uma vez fomos a um boteco, daqueles que se comem tapas, só que o homem disse: “ah, ainda não abrimos”. E nós: “não se preocupe, que nós comemos tudo e limpamos tudo”. E o Guillermo, quando chegou cá, disse que não podia comer porque estava a emagrecer. Foi comigo à Brasileira, aquilo eram pratos atrás de pratos. E depois ainda comeu tripas à moda do Porto. E mais sobremesas… Opá, pronto. É malta porreira.

    Só para concluir, gostava de explorar a ideia das salas de culto, que eu acho que isso é parte do futuro. Explica-me lá como isso é.

    Eu e a Beatriz temos falado muito sobre que espaço é que poderíamos eventualmente ocupar, ou recuperar, para poder fazer uma sala de culto. O Cine-Teatro Vale Formoso é um dos projectos que nós temos, mas é um problema, porque é muito grande também. Não exageremos [risos]. Das duas uma, ou tenho parceiros para poder fazer outras coisas do Vale Formoso… Como está agora, para além da sala que tem, dá para fazer mais 10 salas! Cada andar dá para fazer à vontade quatro salas de cada lado. Aquilo é enorme, gigantesco. E tem uma piscina, porque aquilo era da IURD.

    Eu quero explorar mais o conceito em si…

    O conceito é Fight Club; é, sei lá, filmes de Tim Burton, que funcionam sempre. Danny Boyle, irmãos Cohen… Quer dizer, há todo um conjunto de cineastas e de gente que apela à atenção de quem gosta de Cinema, e já não vai ao cinema… [risos] Mas apela à atenção, e isso é fundamental. E eu acho que isso implica o espaço em si; e o que nós temos minimamente disponível são dois em centros comerciais, e eu não quero. Aliás, há três. E depois a montagem das salas, neste momento já é um bocado caro.

    Pena foi quando há 13 anos, a dona Margarida, dona deste espaço, não aceitou o contrato preparado pelo sobrinho dela, que é advogado, com que nós discutimos a possibilidade de vir para o Batalha. Era um projecto total, far-se-ia uma renovação do Batalha, que estava mais degradado. Mas nós não tínhamos na altura um valor de 800 mil euros para a renovação do espaço. E também tínhamos a certeza, e constava no acordo, que daríamos 30% das receitas após a recuperação do investimento feito. Portanto, não era um problema de ter ou não ter dinheiro, só que era uma lógica completamente diferente. A entrada, as bilheteiras, também seriam diferentes. Isto tinha um potencial, de cruzar inclusivamente música com artes performativas e Cinema, o que era excelente. Falhou, porque a dona Margarida decidiu não assinar o contrato, porque foi no período de pré-campanha eleitoral. E já tinha havido contactos, e houve promessas de que a Câmara compraria o espaço. Fez negócio com o Rui Moreira, que foi eleito, e fizeram um acordo. Por isso, quanto pensamos em espaços, é complicado. Há outros espaços, mas não foram cinemas; e os que existem, neste momento são escritórios.

  • A festa continua, viva, e recomenda-se

    A festa continua, viva, e recomenda-se

    O PÁGINA UM esteve a acompanhar o Fantasporto no renovado Cinema Batalha. Leia as impressões de uma semana de cinema fantástico no Porto sob o olhar de Frederico Duarte Carvalho.


    Vamos ser claros: o Fantasporto não é um festival de cinema de terror, mas sim, como o nome o indica, é de cinema fantástico. Existe desde 1981, graças a dois nomes incontornáveis da cultura portuense: Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira. Há terror nas salas, claro, pois o cinema é feito de emoções e o medo é uma das mais básicas de todas. Também há sangue, e muito. Mas ao ser mostrado numa tela, presumimos que é falso. É toda uma encenação a retratar a vida real, e um realizador não precisa de saber a quantidade exacta de sangue jorrado quando alguém morre na vida real: ele sabe que nunca será o suficiente.

    Aliás, foi essa a pergunta que fiz ao realizador belga Karim Ouelhaj: se não haveria demasiado sangue em algumas das cenas do seu filme sobre os dois filhos de um serial killer que repetiam as façanhas do pai. Ele sorriu e respondeu, com ar de menino inocente, que pretendia apenas fazer uma “expiação” de sangue. No fundo, o que lhe interessava, como artista, era criar imagens. E a conversa seguiu depois para os quadros de Caravaggio e a cena final, onde, num sofá, a irmã segura um bebé recém-nascido enquanto é abraçada pelo irmão, que acabara de matar homens que a tinham violado, incluindo o pai da criança. Enfim, um dia normal no Fantasporto.

    Megalomaniac, do realizador belga Karim Ouelhaj.

    Naquela altura em que conversávamos, estávamos longe de imaginar que o filme Megalomaniac iria vencer os dois prémios mais importantes do festival: Melhor Filme e Melhor Realizador. Mas já se intuía que o de Melhor Actriz poderia ir para a “mãe” da criança, Eline Shumacher, como se veio a confirmar. “Houve muita confiança entre nós para fazer este filme”, contou-me Karim. Não era fácil fazer o papel de empregada de limpeza numa fábrica e violada por colegas e que tem de se manter discreta em casa, enquanto o irmão rapta e mata mulheres. A assistente social que é morta por fazer demasiadas – e inúteis – perguntas que o diga…

    De origem marroquina, Karim é um realizador belga que, ao visitar o Porto durante a 43ª edição do “Fantas”, descobriu uma cidade pela qual se enamorou e onde gostaria de regressar: “Desta vez, para fazer uma história de amor”, como revelou. Ele não quer ficar preso a um género, como o terror que imprimiu em Megalomaniac.

    A história que venceu a edição deste ano do histórico festival portuense é baseada no caso de um serial killer da vida real conhecido como O carniceiro de Mons, a cidade belga onde, entre Janeiro de 1996 e Julho de 1997, apareceram os corpos desmembrados de cinco mulheres. Um crime ainda por resolver e que levou Karim a imaginar: “E se o carniceiro morreu, mas teve filhos que, passados 20 anos, retomaram as mortes”? A ideia deu um filme premiado e, agora, o filme que Karim pretende fazer no Porto, se vier a ser uma história de amor, poderá, quem sabe, dar mais prémios.

    Karim Ouelhaj

    Em competição, embora sem ter vencido nenhum prémio – excepto a honra de ter estado presente na selecção oficial à primeira tentativa –, esteve o filme S.Ó.S, do jovem realizador português (33 anos) Tiago Santos. Nascido em Lisboa, mas a viver em Viseu há quase 30 anos, o realizador é músico profissional e freelancer na arte do vídeo. Fundador de “A Toca do Lobo”, fez, entre outros, a curta-metragem Alpha – história sobre lobisomens, filmada em Lafões (Viseu), “terra de Lobisomens também”, como destacou.

    Para o Fantasporto, juntamente com os co-produtores João Silva – mais ativo atrás das câmaras, com efeitos visuais e concepção de arte e design –, e Ivo Saraiva, mais activo à frente da câmara, Tiago trouxe um filme com um título ambíguo – entre um apelo de emergência e a aventura de um homem sozinho num cenário pós-apocalipse – esta produção tem ainda a particularidade de ter sido feita com “zero” de orçamento: “O material de vídeo era material já usado por mim na minha vida de freelancer na videografia. Foi filmado com uma Sony a6400 e duas lentes, uma 16mm e uma 50mm. A caracterização do Ivo foi feita com roupas dele e outras minhas. Os acessórios foram emprestados por amigos que praticam airsoft. Filmámos literalmente em frente de minha casa, num parque da cidade – felizmente, Viseu tem bastantes. A casa é uma que está para venda, cedida pelo Luís Pinto, personagem principal do ‘Alpha’. Era do seu avô e fica relativamente perto do centro de Viseu”.

    E assim se consegue ter o sonho de fazer cinema em Portugal…

    Ainda mais impressionante, visualmente, foi um dos cenários deste filme de Tiago: o parque aquático do Almargem, um espaço abandonado e que o realizador português caracteriza como “a nossa pequena Chernoby”. Pediu-se aos donos a autorização de filmagem, mas não chegou qualquer resposta.

    Vai daí, não estiveram de modas: “Embora não tenhamos recebido qualquer resposta ao nosso pedido para filmarmos, enviámos um termo de responsabilidade e sentimo-nos encorajados com outros testemunhos nas redes sociais. Decidimos arriscar ao estilho de ‘guerilla filmmaking’ e filmar lá. Achámos um desperdício não filmarmos na nossa pequena ‘Chernobyl’, embora sem autorização oficial. Não consigo dizer grandes detalhes sobre o local, apenas sei que era um grande projeto para a região e que foi abandonado, felizmente para nós”.

    Para provar ainda que é possível fazer produções cinematográficas em Portugal praticamente sem meios técnicos – e isto nem sequer se deveria dizer, pois depois ainda vão dizer que não se precisa gastar dinheiro na cultura –, temos o exemplo do trabalho do português Pedro Gil Vasconcelos que, com um telemóvel filmou a sua experiência num caminho de Santiago e também fez um pequeno filme nas férias na Turquia, tendo vencido já prémios de curta e micro filmes.

    Mas houve um português que ganhou um prémio internacional. Tito Fernandes, natural de Barcelos, a viver entre Hollywood e o Reino Unido, trabalhou nos efeitos especiais de filmes bem conhecidos como Star Wars – The Force Awakens, Interstellar e o The Dark Knight. Só que ele quer ter o nome debaixo do título do filme, em vez de aparecer apenas nos créditos finais e ser reconhecido pelos amigos. Subiu ao palco na noite da entrega dos prémios para receber o prémio internacional de Melhor Curta-Metragem, pelo filme Incubus, onde, durante 16 minutos, uma mulher debate-se contra os seus medos.

    O filme de Tito Fernandes demonstra um realizador já feito, do qual se espera com ansiedade o momento em que será possível aventurar-se em longas-metragens. No seu pequeno filme, o português usa efeitos especiais na construção de um monstro e fica-se a pensar como seria se a técnica evoluísse para uma ficção com assinatura portuguesa. O filme, que é também um alerta contra a violência doméstica – daí o trauma da mulher com os seus medos –, venceu ainda a categoria de melhor filme português.

    O Fantasporto tem de ser visto do princípio ao fim. Desde a cerimónia de abertura até ao encerramento, uma semana depois. Há quem consiga estar todos os dias na sala principal, com três – ou até quatro – sessões diárias. Que o diga, por exemplo, Pedro Afonso, natural dos Açores, técnico de desenho e cinéfilo, que dedicou uma semana de vida para alimentar o seu site Laxante Cultural com os resumos e apreciação de todos os filmes que passaram na sala principal do Fantasporto.

    Pedro Afonso, cinéfilo e autor do site Laxante Cultural.

    Regressar ao cinema Batalha, leva-nos a um dito muito portuense que é o “bai no Batalha”, assim mesmo, à Porto. Mário Dorminsky não gosta da expressão, pois acha-a depreciativa, visto a expressão designar algo que é uma “treta” – a origem é do tempo em que o cinema Batalha, como grande sala, simbolizava todo o cinema da cidade do Porto e, quando alguém refutava uma história que lhe era contada como sendo exagerada ou digna de ficção, o interlocutor rematava com o dito “bai no Batalha”, expressando o seu sentimento de descrédito do relato, sendo mais parecido com a trama de um qualquer filme de ficção projectado na tela do Batalha. Mas para o portuense, para o amante de cinema, é sempre um prazer ir ao Batalha.

    O novo Batalha recuperou – e bem – as pinturas originais de Júlio Pomar, mandadas esconder pela polícia do Estado Novo, contudo tem detalhes que precisam de ser revistos. O bar fecha a horas que não são as mais propícias ao ambiente de um festival. A zona dos corredores não permite um convívio após filmes. E os convidados internacionais, aqueles que irão depois falar bem ou mal da cidade, são confrontados com a sopa dos pobres à saída do edifício. A ficção da tela do “bai do Batalha” ganha outros contornos realistas quando se está na rua em frente. A lembrar-nos que esta é a sociedade que soubemos fazer.

    Uma sociedade onde a guerra na Ucrânia é também uma realidade e que, nesta edição do Fantasporto, esteve presente, ainda que de forma discreta e menos mortal do que aquela que se passa no terreno. Nem todos os que estiveram no Porto entre os dias 25 de Fevereiro e 5 de Março saberão que o consulado da Ucrânia no Porto enviou à direcção do Fantasporto uma queixa formal pela exibição de uma curta-metragem russa.

    Sleeping Beauty, o filme em questão, tem a particularidade de ter sido filmada debaixo de água. Conta a clássica história da bela adormecida através apenas de música clássica e bailado. Não é uma novidade cinematográfica, mas garante sempre um belo efeito, sobretudo neste caso em que a realizadora, Jana Nedzvetskaya, é uma conhecida designer de moda e responsável da marca Miss Lo – da palavra inglesa para amor, “love”. A curta insere-se em anteriores trabalhos levados a cabo pela designer russa, que é conhecida por ter feito apresentações de moda com a mesma técnica de filmagem.

    Acontece que para o consulado ucraniano no Porto, a exibição daquele filme russo suscitou “preocupação”, porque “o Kremlin usa várias armas, incluindo armas que matam as almas e destroem a consciência da gente. O Kremlin é conhecido há muito tempo por usar a cultura e o seu ‘poder’ de influência para manipulação e propaganda política. O Estado agressor faz amplo uso das ferramentas da diplomacia pública e cultural para expandir a sua influência nos círculos académicos e artísticos estrangeiros, bem com no público, em todo o mundo”, afima-se.

    A carta enviada à direcção do Fantasporto ainda acrescenta que “enquanto continua a guerra russa contra a Ucrânia e continua o sofrimento dos civis, enfatizamos a importância de encerrar a cooperação com todas a instituições no campo da cultura, bem como representantes da Rússia no estrangeiro”.

    Sleeping beauty, filme russo exibido, sob protesto do cônsul da Ucrânia.

    Frisa ainda a carta assinada pela cônsul da Ucrânia no Porto, Alina Ponomarenko, que “a cultura russa ou se manifesta apoiando a guerra iniciada pelo regime de Putin ou não considera necessário expressar uma posição clara, silenciando a guerra na Ucrânia”, terminando com o apelo de que “agora é necessário limitar a influência da cultura russa no mundo”, pois esta é “uma cultura que lançou as bases ideológicas desta guerra, uma cultura que pode justificar furtivamente a agressão da Rússia, uma cultura que a Rússia sabe usar para os seus próprios objectivos”.

    Em contraponto, a mesma carta expressava gratidão ao Fantasporto por ter exibido o filme ucraniano Sashenka, de Oleksandr Zhovna. Filmado a preto e branco, contrasta perfeitamente com o filme russo. Enquanto o primeiro é uma fábula colorida e conta uma história de príncipes e princesas, em “Sashenka” temos uma história centrada na União Soviética dos anos 70, sobre um rapaz obrigado a viver como se fosse uma rapariga – porque a irmã morrera antes do seu nascimento. Obra doentia, com uma interpretação igualmente perturbante do actor Dmitry Nizhelsky, deixou marcas, embora não o suficiente para garantir prémios.

    Menos polémico, mas igualmente de Leste, mais concretamente da Polónia, houve a oportunidade de apreciar em estreia europeia o mais recente filme do polaco Krzystof Zanussi, Perfect Number. Uma obra simples e perfeita sobre temas complicados como Deus, sentido da vida, acasos e matemática. Um realizador que caminha anónimo pelas ruas do Porto, passando por pessoas que ignoram que aquele homem, por exemplo, já venceu um Leão de Ouro em Veneza, em 1984 – com o filme “A Year of the Quiet Sun” – ou que foi ele que, em 1981, fez o primeiro documentário sobre a vida do cardeal polaco Karol Wojtyla até se tornar no Papa João Paulo II.

    Outra presença de peso cinematográfico neste festival – houve muitos mais, eu sei, mas que me perdoem os outros, como os participantes filipinos, japoneses, ingleses, húngaros, franceses, norte-americanos, colombianos, etc. –, foi certamente o britânico Anthony Waller. Digo britânico porque os seus pais são naturais da ilha das Brumas, mas ele nasceu em Beirute, fala alemão e russo e vive no Mónaco.

    Anthony Waller foi mais uma daquelas boas razões para o Porto e o seu festival fazer muito sentido. É seu o filme de 1995 Lobisomem americano em Paris, a sequela ao filme de John Landis, Lobisomem americano em Londres. Durante o Fantasporto houve ainda a oportunidade de assistir ao seu filme de 1994, em cópia restaurada, Mute witnessNão falarás. Um thriller com rasgos de emoção digna de Hitchcook, passado em Moscovo, onde uma norte-americana, assistente de produção de uma equipa de filmagens norte-americana, é testemunha de filmagens proibidas da máfia russa – os chamados filmes snuff, onde as mortes são reais. Só que ela tem um problema: é muda.

    Sashenka, filme ucraniano em competição.

    Uma das maiores atracções deste filme de Waller, no entanto, é o facto de ser um dos últimos filmes do grande actor britânico Alec Guiness. E a razão disso daria mais um filme. É um prazer ouvir o realizador contar como conseguiu ter aquela estrela no seu filme. Uma lição.

    Anos antes de fazer o filme, Anthony Waller estava a estudar cinema na Alemanha, graças a uma bolsa que vencera na escola de cinema do Reino Unido, como patrocínio do realizador John Schlesinger. Um dia aparece Alec Guiness a quem Waller diz que gostaria de o ter um dia num filme. O homem da Ponte do rio Kwai, o príncipe Faisal do Lawrence da Arábia e, finalmente, o Obi-Wan Kenobi do Star Wars, disse-lhe que isso até poderia acontecer, mas ele já estava com a agenda preenchida para os próximos dois anos. É então que Waller atira: “E amanhã de manhã, pode ser?”.

    Perante aquele desafio, Alec Guiness disse que sim e, durante a noite, Waller arranjou uma equipa e material. De manhã, gravou três cenas dentro de um carro nos anos 30. Inicialmente, seria um filme com gangsters em Chicago. As cenas são de noite e Alec Guinness faria o papel de um vilão, o The Ripper, onde diria algumas falas sobre “onde estava a rapariga” e a importância de não deixar testemunhas. Aquelas filmagens estiveram guardadas durante quase dez anos, até que, finalmente, foram montadas para uma história em Moscovo. O material original com Alec Guiness permitiu que, com a inversão da imagem em algumas cenas e diálogos com intercomunicadores, disfarçando a voz do actor, servissem para o dobro do tempo na edição final. Lição de cinema.

    Presente na qualidade de júri, Waller recebeu ainda o prémio de carreira, assim como o realizador da Estónia, Elmo Nuganen, cuja trilogia sobre o boticário da Idade Média, Melchior, fizeram as delícias de quem os viu. As obras do realizador da Estónia são marcadas por uma cinematografia de cores vivas e uma encenação cuidada. O próprio realizador é um reputado encenador e, quando subiu ao palco para receber o seu prémio, percebeu-se bem essa formação teatral. Sobretudo quando disse, na sua língua, como foi poder nadar no Atlântico. Mesmo sendo no Porto, em Março.

    Muito mais haveria para dizer, mas este relato das impressões da 43ª edição do Fantasporto não poderia deixar de mencionar o filme L’órafo (O ourives) do realizador italiano Vincenzo Ricchiuto. Ficou de fora da competição por ter chegado já fora do tempo, mas ainda assim decidiu-se, e bem, incluir na programação aquele que é a primeira longa-metragem de um realizador com mãos experientes.

    A história de um casal de reformados que monta uma armadilha a um grupo de três assaltantes, numa história com luz e fotografia cuidada, interpretações de algumas figuras conhecidas da cena artística italiana e com um guião que permite momentos de tensão e humor. Um filme bem conseguido e que mereceria ser visto por mais pessoas.

    O filme da sessão de encerramento é outro momento de destaque. Desta vez, a honra coube à primeira mulher turca a realizar um filme de ficção-científica. Serpii Altin trouxe à Invicta o filme Once upon a time in the future: 2121, uma versão turca de um 1984. Vale a pena pela partilha cultural – pois muito do cinema que passa no Fantasporto tem esse condão universalista –, com uma cinematografia a fazer lembrar a simetria de um Wes Anderson, referência assumida da realizadora. Mas o mais perturbador é a ideia da história, onde o tema são os mesmos de todo o mundo, onde não há a esperança um futuro radioso, mas sobra-nos aquele onde a sociedade está cada vez mais controlada.

    As pessoas vivem em habitações subterrâneas, submetidas à Lei da Escassez, onde o sistema controla a vida e a comida. O aspecto mais perturbador é que a sociedade culpa os mais idosos das guerras anteriores que destruíram o mundo e, as “novas gerações” – assim mesmo tratadas – são as mais protegidas. Aliás, quando nasce uma criança, a pessoa mais idosa da família é eliminada da sociedade.

    Uma teoria de substituição avançada. Para pensarmos na hora da despedida e enquanto não chega a edição de 2024, marcada no mesmo Batalha, para os dias 1 a 10 de Março. Está já na agenda!


    Os premiados de 2023 do Fantasporto

    Cinema Fantástico

    Grande Prémio – Megalomaniac, de Karim Ouelhaj, com produção de Florence Sâdi

    Melhor Realizador – Karim Ouelhaj (Megalomaniac)

    Melhor Actor – Tom Huges (Shephard)

    Melhor Actriz – Eline Shumacher (Megalomaniac)

    Prémio Especial do Júri – Demigod: the legend begins, de Chris Huang Wen-Chang

    Melhor Argumento – Convenience story, de Satoshi Miki

    Menção Especial – Stone turtle, de Woo Ming Jin

    Semana dos Realizadores

    Melhor Filme – Narcosis, de Martijn de Jong

    Prémio Especial – Kaymak, de Milcho Manchevski

    Melhor Realizador – Hans Herbots (Ritual)

    Melhor Argumento – The game, de Péter Fazakas

    Melhor Actor – Zsolt Nagy (The game)

    Melhor Actriz – Thekla Reuten (Narcosis)

    Menção Especial do Júri – The grandson, de Kristóf Deák

    Orient Express

    Melhor Filme – Kargo, de T. M. Malones

    Menção Especial – Stone turtle, de Woo Ming Jin

    Curtas Metragens

    Melhor Curta – Incubus, de Tito Fernandes

    Filme Português

    Melhor Filme – Incubus, de Tito Fernandes

    Melhor Filme Escola – Quando a terra sangra, de João Morgado

    Menção Especial – The space in between, de Joana Dantas

    Prémios não oficiais

    Prémio da Crítica – Immersion, de Takashi Shimizu

    Prémio do Público – Life of Mariko in Kabukicho, de Eiji Uchida e Shinzô Katayama

    Prémios de Carreira

    Ferdinand Lapuz

    Krzystof Zanussi

    Elmo Nuganen

    Anthony Waller

  • Ano II da Propaganda versus Jornalismo

    Ano II da Propaganda versus Jornalismo

    A Guerra na Ucrânia vai entrar no seu segundo ano e é cada vez mais notória a luta da propaganda versus jornalismo. A recente reportagem do jornalista veterano norte-americano Seymour Hersh sobre a sabotagem do gasoduto Nord Stream 1 e 2 pelos militares dos Estados Unidos, que foi classificada de “ficção”, é um exemplo do que está em causa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Tenho aqui à minha frente um livro que comprei em 2018. É a autobiografia do jornalista norte-americano Seymour Hersh. O título diz tudo sobre quem é esta pessoa: “Repórter”. Apenas isso. E já é muito. Na capa, o repórter está ao telefone (com fios) e tem uma máquina de escrever à sua frente. A foto foi captada em 1972 na redacção do “The New York Times”.

    Seymour Hersh é um nome assaz conhecido – e reconhecido – nos Estados Unidos. A sua primeira grande reportagem data de 1969, quando denunciou o massacre de My Lai, no sul do Vietname, onde soldados norte-americanos mataram mais de 300 civis. Ao serviço do The New York Times, Hersh investigou depois o Watergate e muitas das suas reportagens fazem parte da história que, em Agosto de 1974, levou à demissão do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.

    Com boas fontes juntos dos militares e serviços secretos norte-americanos, denunciou depois, em Março de 1975, um plano da CIA para recuperar um submarino soviético afundado no Oceano Pacífico desde 1968. Conhecido como “Project Azorian”, o plano envolveu a construção de um navio capaz de transportar poderosas gruas que iriam trazer o submarino à tona, permitindo assim aos Estados Unidos terem acesso aos segredos nucleares dos soviéticos. A construção do navio custou, em números dos dias de hoje, o equivalente a 4 mil milhões de dólares. E contou com o apoio do milionário Howard Hughes como fachada para a operação secreta.

    Dois meses depois daquela história, Seymour Hersh assinou uma segunda reportagem onde denunciava operações navais de espionagem com submarinos norte-americanos em águas territoriais da União Soviética. Uma operação que levantava muitas críticas dentro dos meios militares dos EUA por colocar em causa a détente da Guerra Fria.

    Não foram histórias de “ficção”, mas pareciam. Bem mais recente, lembremo-nos de que, em 2004, Seymour Hersh, ao escrever então para a revista The New Yorker, foi ainda o jornalista que revelou ao mundo como eram os processos de tortura norte-americana na prisão iraquiana de Abu Ghraib. 

    Imagens chocantes de maus tratos em prisioneiros em Abu Ghraib

    Por isso, quando, aos 85 anos, este repórter escreve num site da Internet dedicado a artigos que não conseguem ter lugar na Imprensa generalista, que os militares dos Estados Unidos levaram a cabo uma missão secreta para destruírem o gasoduto russo Nord Stream 1 e 2, através de uma explosão que se registou a 26 de Setembro, na zona próxima à Noruega, então temos de ter em consideração que não estamos propriamente face a um qualquer jornalista. 

    Por muito que a Casa Branca venha desmentir e dizer que a história de Hersh é “completamente falsa” e que mais parece saída de uma “ficção”, sabemos que não podemos simplesmente descartar aquela sabotagem que, no fundo, tem uma grande importância estratégica para o conflito na Ucrânia, que entra agora no seu segundo ano.

    No prefácio da sua autobiografia, Seymour Hersh explica que ele é “um sobrevivente da época dourada do jornalismo, quando os repórteres dos jornais diários não precisavam de competir com o ciclo noticioso de 24 horas da televisão por cabo, quando os jornais tinham dinheiro da publicidade e dos anúncios de procura de emprego”. Uma época em que ele tinha a possibilidade de “viajar para qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo, com cartões de crédito da empresa”.

    Imagem da zona da explosão do pipeline do Nord Stream em Setembro de ano passado. Fonte: Autoridade Marítima da Dinamarca.

    Havia tempo para relatar uma notícia de última hora sem ter de depender do que estava constantemente a aparecer na página de Internet do jornal. Mas o que não havia mesmo no tempo de Seymour Hersh, segundo ele, eram os “especialistas” e jornalistas de TV por cabo “que começam as respostas a todas as perguntas com as duas palavras mais mortais do mundo dos média: ‘Eu acho’”.

    O jornalismo actual, acrescenta Hersh, é composto, essencialmente, por coisas como “pouco mais do que dicas ou indícios de algo tóxico ou criminoso”. A falta de tempo, dinheiro ou equipas qualificadas, desembocam em “histórias do tipo ‘disse ele, disse ela’, nas quais o repórter é pouco mais do que um papagaio”.

    Aponta ainda este norte-americano: “Sempre considerei que a missão do jornalista era a procura da verdade e não a mera notícia do conflito. Houve um crime de guerra? Os jornais ficam agora dependentes de um relatório negociado nas Nações Unidas que surge, na melhor das hipóteses, meses depois dos factos. E os média fizeram algum esforço significativo para explicar por que um relatório da ONU não deve ser considerado por muitos, à volta do mundo, como sendo a última palavra? Existem sequer relatórios críticos sobre a ONU?”.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    As perguntas de Hersh deviam ser as perguntas de todos os jornalistas que dizem fazer jornalismo. E, de forma lapidar, afirma este repórter: “Toda a minha carreira tem sido sobre a importância de contar verdades importantes e indesejadas e tornar a América num lugar mais informado. Talvez seja por isso que é muito doloroso pensar que nunca teria conseguido fazer o que fiz se estivesse a trabalhar no mundo caótico e desestruturado do jornalismo de hoje. Claro que ainda estou a tentar”.

    A tentar.

    E essa tentativa viu-se agora com o descrédito votado à sua reportagem sobre a destruição do gasoduto russo que fornecia gás à Alemanha e que, na prática, veio ajudar ao aumento dos gastos da produção de energia na Europa e todas as consequências que vemos com os aumentos dos produtos nos supermercados e nas taxas de juros do crédito à habitação. No fundo, a inflação.

    A guerra é uma coisa terrível. Não há honra, não há regras – apesar das convenções de Genebra que quiserem inventar. O pior do ser humano é revelado, embora também existam histórias de heroísmo de um e outro lado.

    closeup photography of bong mask

    Portugal, como membro da NATO – aliás, membro fundador da NATO ainda no tempo da ditadura de Salazar –, está do lado da Ucrânia. Logo, qualquer notícia que seja suspeita de agradar aos russos, deve ser ponderada com critérios mais apertados do que qualquer outra que seja bem mais simpática ao “nosso lado”.

    A isso não se chama jornalismo, mas sim propaganda.

    Um ano volvido sobre o início da Guerra na Ucrânia, esta já levou muitos jornalistas a irem visitar o terreno em aventuras controladas nos cenários de guerra, de onde saíram vivos para contarem histórias idênticas a muitas outras desde que o homem inventou a barbárie dos conflitos armados modernos.

    Fugas em massa, pais separados de filhos, despedidas comoventes, reencontros emocionantes, mortes de inocentes, exemplos de bravura e resistência, relatos de massacres inimagináveis, crimes de guerra, avanços e recuos de tropas, armas inteligentes e humanos cada vez mais estúpidos. Há de tudo para que se escrevam belos discursos, poemas, textos emotivos, artigos importantes, livros de crónicas que engrandecem currículos de jornalistas ditos “de guerra”.

    gray concrete building with red and white flag on top

    Entretanto, na retaguarda, enquanto uns vão jantar fora à sexta-feira, há ainda jornalistas como Seymour Hersh que arriscam a vida e reputação ao revelarem o que alimenta de verdade esta guerra. São esses quantos, que insistem em tentar fazer jornalismo, mesmo correndo o risco de serem acusados de criar ficções, que ainda mantém a chama do jornalismo acesa.

    Só que, para eles, soldados da pena jornalística, não haverá medalhas nem sequer uma chama eterna como num monumento ao soldado caído.  

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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