Autor: Brás Cubas

  • Hélder Rosalino, a fútil utilidade de um ser inútil

    Hélder Rosalino, a fútil utilidade de um ser inútil

    Se vós, como vivos, ainda não chegastes a essa conclusão, terei de ser eu a vos dizer: a utilidade, a futilidade e a inutilidade são os três estádios metafísicos do propósito humano, irmanados como actos de uma peça que nunca chega ao aplauso final.

    A utilidade é, na verdade, uma ilusão, a ilusão primordial, a máscara dourada que usamos para justificar a nossa presença no palco da vida até cair o pano. É somente o pretexto do relojoeiro para ajustar engrenagens, do filósofo para ajustar ideias, do político para ajustar promessas, e também orçamentos – embora nesta última tarefa se confunda amiúde a utilidade com a oportunidade. Como já bem sabia Epicuro, a utilidade é um conceito fluido: aquilo que serve ao efémero raras vezes serve ao perene, e a roda, girando para um lado, arrasta inevitavelmente o outro para trás.

    Já a futilidade é a utilidade transfigurada pela vaidade a caminho da inutilidade. Faz questão de se enfeitar de propósitos enquanto se entrega ao vazio. É a diligência do pássaro recolhendo palha para um ninho que jamais usará, ou do homem que, carregando livros, finge sabedoria sem os abrir.

    Já a inutilidade é o estádio sublime e filosófico do existir, que, como uma estátua de mármore, existe apenas para existir. Muito afastado de ser lastimável, a inutilidade transcende as ansiedades, enquanto contempla o futuro e o absurdo com um sorriso sereno. Tantas foram as figuras ao longo da História comprovando que somente o inútil está livre do fardo de errar em nome de algo maior.

    Pensemos em Diógenes, que habitava um barril e se ria dos poderosos; ou em Oblómov, que, na sua inacção gloriosa, expunha as falácias da diligência vazia; ou ainda em Bartleby, o escriturário de Herman Melville, que, com o seu lacónico “I would prefer not to”, desarmava a máquina burocrática, recusando-se a participar na engrenagem de uma sociedade que o consumia; ou até em Hamlet, cujo tormento metafísico o levou a preferir a hesitação à acção, descobrindo na contemplação do ser e do não ser o absurdo das escolhas humanas.

    Todos, mesmo se de forma diferente, demonstraram que a inutilidade, longe de ser um defeito, pode mesmo ser uma forma de resistência ao ridículo da busca incessante de propósito. Assim, enquanto o mundo gira, apressado e distraído, o inútil permanece um observador imóvel da vaidade universal, e é nesse paradoxo que reside a sua força.

    E não será a utilidade, afinal, uma ilusão criada para justificar a roda das conveniências? Aqueles que tentam ajustar o mundo às suas engrenagens raramente percebem que a verdadeira sabedoria está em reconhecer a beleza do imutável, do que não necessita de se justificar para continuar a ser. O inútil, como o mármore intocado, desafia o tempo ao não buscar a aprovação dele. Assim, mesmo que o resto do palco se desmorone, ele permanece — quieto, eterno e, por isso mesmo, superior.

    Desta sorte, a lusitana política e a sua ultramontana burocracia vieram, por estes dias, sacudir o meu mais sublime e nobre estado de ocupação improdutiva, isto é, o descanso, por mor da nomeação de Hélder Rosalino, outrora um ilustre ocupante de uma posição permanente no Banco de Portugal, para a sinecura de secretário-geral do Governo, sendo que o debate sobre quem paga a mercearia do senhor acabou por eclipsar a dúvida metafísica sobre quanto custam, afinal, os desvarios da Nação.

    Comecemos, por isso, com uma reflexão simples, mas fundamental: Hélder Rosalino é um homem útil? Não me refiro à utilidade óbvia de uma chaleira onde se ferve água ou de um cão que guarda a casa, mas à utilidade mais elevada, àquela que justifica a existência de certas figuras que transitam pelas engrenagens do poder. Não me parece.

    Se Rousseau nos ensinou que a sociedade cria desigualdades artificiais, talvez possamos afirmar que também inventa utilidades imaginárias, preenchendo cargos que, mesmo vazios, continuam a existir como monumentos à própria vaidade e à validade do sistema. E Hélder Rosalino, como provarei com a minha tese, ou dissertação, é somente o último mártir deste culto à utilidade fantasiosa, fruto de futilidades que levam à inutilidade, ligada sempre aos contribuintes, que tudo pagam.

    A filosofia utilitarista, que tanto encantou Bentham e Mill, deve ser aqui convocada como uma musa caprichosa. Afinal, sobre as questiúnculas da escolha e do salário do doutor Rosalino, os argumentos do Governo de Luís Montenegro nunca se centraram naquilo que ele produzirá, mas naquilo que se poupará. Ora, desde os romanos, que introduziram o conceito de utilitas, sabemos que a utilidade é aquilo que serve para alcançar um fim. Ora, aqui, o fim, ao que parece, não é outro senão a perpetuação de um sistema onde o Estado se alimenta da sua própria lógica circular. Hélder Rosalino é útil porque, sendo inútil no Banco de Portugal, passa a sê-lo no Governo, sem que ninguém, em momento algum, questione a natureza intrínseca da sua utilidade.

    Transportemo-nos à Grécia Antiga, à ágora onde Sócrates inquiria: “De que serve um homem, senão para aquilo que melhor sabe fazer?” Se Rosalino não deixa lacunas ao sair do Banco de Portugal, e se, por outro lado, o cargo de secretário-geral do Governo poderia ser ocupado por alguém que auferisse muito menos, então a pergunta de Sócrates reverbera per saecula saeculorum: qual é, afinal, o real valor deste homem? Será ele um moderno herói do saldo orçamental, ou apenas mais uma peça deslocada no xadrez burocrático, cujo movimento é justificado pela conveniência de quem o manipula?

    Ah, mas Luís Montenegro não deseja que o seu povo se perca em mesquinhezas terrenas, próprias de almas que jamais se elevam ao sublime horizonte da retórica oficial. Afinal, há uma certa elegância em transformar este sofisma magistralmente dissimulado numa retórica da poupança, um clássico exemplo de petitio principii. Rosalino impõe-se, ou é imposto, não pela sua incontestável utilidade passada, pela sua inequívoca utilidade presente e pela sua inevitável utilidade futura, mas pela graça de uma heroica poupança.

    À primeira vista, a argumentação oficial ostenta-se como uma obra-prima de lógica. Pena ser uma lógica tortuosa.

    Ao deslocar Rosalino, diz o Governo, evitam-se dois salários: o que seria pago a um novo secretário-geral e o que ele continuaria a auferir no Banco de Portugal. Assim, só haverá um, mesmo se principescamente pago. O vosso Luís Montenegro quer-vos crédulos, deseja que acrediteis que há uma poupança transferindo um encargo do orçamento do Banco de Portugal (independente do Estado, e até lucrativo) para o Erário Público, esse poço sem fundo que todos vós, contribuintes portugueses, alegremente alimenta. Que truque de prestidigitação! Que economia de narrativa! É como transferir um vaso de cristal rachado de uma sala para outra, esperando que, sob uma nova luz, brilhe como um rubi ‘pigeon blood’.

    E aqui, invoco Maquiavel, que nos ensinou que os governantes, para se manterem no poder, devem mascarar as suas decisões com o véu da necessidade. Nada mais conveniente do que apresentar Hélder Rosalino como a solução ideal – não por ser o melhor homem para o cargo, mas porque já é um custo que existia. A isso chamaremos a virtù da poupança: o talento de transformar o inevitável numa virtude.

    O astuto florentino, por certo, ficaria deliciado com esta lusitana intriga moderna, onde os interesses do Estado se confundem com os interesses individuais, e onde a necessidade de justificar decisões leva à invenção de realidades paralelas. Na verdade, a contratação de Hélder Rosalino para a secretário-geral do Governo não é o problema; ele personifica sim um sistema que vive da sua própria inércia, perpetuando cargos, salários e justificações que desafiam qualquer raciocínio padronizado.

    O primeiro-ministro, ao defender que a utilidade de Hélder Rosalino no Governo é única porque não se encontraria melhor – e por isso o foi buscar ao Banco de Portugal – , comprova a inutilidade do dito, porquanto o Banco de Portugal anunciou já prescindir da procura de quem o pudesse substituir. Portanto, onde o Governo vê um Rosalino absolutamente insubstituível, e assumirá um encargo de 15.000 euros? o Banco de Portugal suspira por se livrar do Hélder, alguém perfeitamente dispensável, poupando 15.000 euros.

    Eis o paradoxo lusitano em toda a sua glória: um homem que, segundo o Governo, é o epítome da excelência administrativa, ao ponto de não se vislumbrar igual no país inteiro, revela-se, noutra instituição pública, como uma ausência que nada altera, um vazio reconfortante. É como se um violino Stradivarius fosse removido de uma orquestra sem que ninguém notasse a diferença – ou, pior, como se a orquestra até passasse a tocar melhor. É como o Princípio de Peter ao contrário.

    Maravilho-me com esta lógica oficial, como esta obra-prima da contradição: o insubstituível do Governo é o descartável do Banco de Portugal. Que exemplo magnífico de como a utilidade não reside no que se faz, mas no sítio onde se é colocado! A carreira de Hélder Rosalino é, pois, um testamento vivo à arte da reciclagem institucional: uma espécie de ouro alquímico da Administração Pública portuguesa, que brilha sempre que muda de gaveta, mas cuja essência, quando examinada de perto, se revela um eco vazio do absurdo burocrático.

    E no entanto, que importa este vazio da utilidade, se enche, afinal, o meu tempo com reflexões deliciosamente fúteis? Confesso, que a existência de Hélder Rosalino é, para mim, de uma utilidade paradoxal: serve como pretexto para celebrar a inutilidade, essa sublime e filosófica condição que liberta o espírito dos desvarios da acção. E assim, involuntariamente, o novo secretário-geral do Governo transcende a sua própria vacuidade e torna-se uma inspiração para este meu fútil, mas prazeroso, exercício de escrita, permitindo-se um irrefutável silogismo condicional: se a utilidade é uma ilusão, a inutilidade pode ser, por certo, a mais elevada das verdades, mesmo estando inundada de futilidade.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Vasco da Gama & Gouveia e Melo: da glória passada à patetice presente

    Vasco da Gama & Gouveia e Melo: da glória passada à patetice presente

    Ah, que cena magnífica me coube contemplar nesta tarde de languidez filosófica! Numa galeria qualquer – porque haverá sempre uma galeria para abrigar excentricidades e devaneios – deparei-me com uma visão digna de um Goya em fase de mofice ou de um Dali em dia histriónico: um retrato vivo de tempos que se cruzam, mas que jamais deveriam se ter encontrado.

    De um lado, deparo-me com a imponente figura de Vasco da Gama, o herói das Descobertas, cujo olhar altivo se perde em horizontes que vós, mortais modernos, já nem sequer conseguis imaginar. Do outro, o Almirante Gouveia e Melo, em pose de efígie improvisada, envergando uma camisola poveira – sim, essa belíssima peça de tradição piscatória, agora transformada em traje de uma operação de marketing pessoal. Encontra-se ele de tal forma plantado ao lado do quadro que se mostra difícil decidir se quer homenagear ou eclipsar o velho Vasco.

    Autoria desconhecida mas real.

    Aproximemo-nos, vejamos bem: Vasco da Gama, herói de um Portugal que, ao menos nos sonhos de glória, almejava os confins do mundo; e Gouveia e Melo, personagem de uma era em que os confins do mundo não são mais do que uma abstração digital. Um com a armadura que enfrentou tempestades e batalhas; o outro, com a camisola de um pescador, mas sem o cheiro a sal nem sinal de luta contra as ondas. Que contraste mais pitoresco. E, ao mesmo tempo, patético…

    Não é preciso ser um grande historiador nem filósofo requintado para perceber que há algo profundamente deslocado aqui. Vasco da Gama, na sua grandiloquência renascentista, representa a História Monumental, aquela de que Nietzsche tanto falava, feita de grandes feitos e gestos titânicos. Já Gouveia e Melo é o fruto amadurecido, e talvez fermentado, da História Crítica ou, talvez, apenas da História Cómica – uma figura que tenta, em qualquer oportunidade, emular-se à grandeza do passado com recursos tão anacrónicos quanto a sua pose de capitão Iglo.

    Ah, e que direi daquela camisola poveira ofertada em plena pandemia! Esse pedaço de lã que outrora era o abrigo humilde de corajosos e sacrificados homens do mar, que enfrentavam tempestades e carestias com a mesma coragem e abnegação com que o Vasco da Gama enfrentou o Cabo das Tormentas somente para lhe dar o nome de Boa Esperança. Agora, no entanto, a pobre camisola é usada como figurino de uma tentativa de aproximação ao “povo”. Mas, que povo, Almirante? Ao povo que remenda redes ou ao povo que lhe remendará memes pelas suas patetices?

    A pose do vosso Almirante é um exemplo claro daquilo que Schopenhauer descreveu sobre o mundo como representação. Gouveia e Melo não está lá para ser – está lá para parecer. A camisola poveira não o aquece; ela o adorna. O retrato ao lado de Vasco da Gama não é para honrar o passado; é para sacar para si uma aura de glória que já nem pertence ao vosso tempo. E muito menos a ele.

    Tenho de ver se por aqui, onde me encontro, apanho o velho Vasco para lhe contar o que lhe andam a fazer à imagem. Acredito, porém, que se ele se pudesse mexer do quadro, olharia para o Almirante com um misto de desprezo e perplexidade. Afinal, que nobre capitão se apresenta com tamanha frivolidade ao lado de alguém que carrega o peso da História? Vasco, cuja vida foi feita de perigos reais e conquistas tangíveis, encontraria neste encontro apenas a sombra de um heroísmo que se perdeu nas curvas da modernidade.

    Gouveia e Melo, em versão renascentista envergando camisola poveira.

    Mas, mesmo que a ideia me seduza, não desejo ser completamente implacável com a figurinha do Almirante, ainda mais sabendo que ainda estará quentinho no seu peito a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo recebida das mãos do Marcelo. Na verdade, Gouveia e Melo teve os seus momentos de bravura – pelo menos, segundo os jornais e as redes sociais. Liderou a logística dos frescos do Pingo Doce, ou das vacinas na pandemia, já nem sei bem, com a eficiência de um excelso estrategista naval – embora, convenhamos, a batalha contra um vírus munido de seringas injectáveis me pareça menos epopeica do que o cerco de Calecute em 1502. Assim sendo, a camisola poveira, neste contexto, pode até ser vista como um símbolo da sua tentativa de traduzir grandeza para uma linguagem contemporânea – mas, infelizmente, essa tradução perdeu-se no caminho.

    E vós, pobres espectadores deste teatro, somente podeis contemplar este quadro vivo – ou com um vivo de camisola poveira encostado às glórias de um morto – entre o riso e a melancolia. Para mim, este retrato já nem é apenas uma imagem ridícula; é uma metáfora de Portugal. Este é um país que vive entre a glória passada e a patetice presente, entre o peso da História e a leveza das aparências. No fundo, este encontro entre Vasco da Gama e o Almirante Gouveia e Melo é mais do que um contraste de figuras; é um retrato do vosso próprio dilema existencial. Se Gouveia e Melo é a glória que hoje resta a Portugal, talvez seja melhor que o futuro vos esqueça.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


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  • António Costa: depois dos pontapés a Camões, os coices a Shakespeare

    António Costa: depois dos pontapés a Camões, os coices a Shakespeare

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima oitava edição, o piparote de Brás Cubas segue para Bruxelas em direcção à dicção e demais tropelias linguísticas de António Costa..


    Que me perdoem os mortos, e já agora também os vivos, se, escrevendo estas linhas, lhes pareço impregnado de um orgulho indiscreto. Mas não será o orgulho o motor da crítica, como a vaidade é o adorno do erro?

    Não sendo eu sujeito a remorsos nem a vergonhas – privilégios singulares desta existência post mortem –, permito-me assim iniciar este ensaio com um pensamento que me ocorreu certo dia de Oitocentos, às margens do Mondego, enquanto praticava o meu francês: o orgulho, no seu âmago, é o coche do mérito, enquanto a vaidade é a poeira que dele se desprende quando percorre estradas mal calcetadas pela Fortuna.

    Eis, pois, a distinção cabal que farei entre o meu orgulho linguístico e a vaidade – ou a falta dela – de certos figurões modernos, como o ex-primeiro-ministro de Portugal, agora transformado em presidente do Conselho Europeu, o ditoso António Costa, ou desditoso, cuja relação com a língua de Shakespeare evoca menos um coche do mérito e mais uma carroça aos solavancos pelas estradas do improviso. Devia ter ele se mantido a arranhar, menos mal, a língua de Molière.

    Isto, para nem falar em demasia, mas vou dissertar, nas galhetas desferidas contra a augusta e luminosa língua de Camões, com recurso a autênticas espadeiradas lexicais desferidas em forma de erros de metaplasmos – esse caprichoso fenómeno linguístico que, por si, sempre foi doutamente cultivado como nova arte hermética, ao mesmo tempo inspirando os mais argutos filólogos e arrancando gargalhadas sonoras em tertúlias espirituosas, onde o vinho é generoso e o espírito se solta.

    Ah, como diria um filósofo que nunca existiu, mas que bem poderia ter vivido no meu tempo: a língua, essa dama caprichosa, ora se veste de gala, ora se esconde sob trapos mal-alinhavados, como os que compõem as gloriosas traulitadas do nosso personagem em apreço. E que traulitadas, devo dizer! Nunca foram meras topadas linguísticas, mas autênticas investidas quixotescas contra os moinhos da gramática, perpetradas com o arrojo de quem acredita estar a esculpir, em mármore, o que afinal não passa de argila.

    Tomemos, por exemplo, o glorioso “poder-lhe dizia” – uma construção tão ousada que parece evocar Camões ressuscitado para um encontro com Yoda, entre hexâmetros e sabres de luz. Já “competividade” soa a uma nova teoria económica, talvez inspirada em Adam Smith Guilhermino, meu estimado padrinho de nomeada, mas com uma pronúncia inovadora que só um génio pós-iluminista poderia conceber.

    E “digitalição”? Ah, esta é quase poética: um tributo ao progresso, onde a tecnologia tropeça em si própria, caindo numa digitalização que se reduziu à sua mais honesta imperfeição. Não menos sublime é “prelenamente”, um advérbio de tal requinte que faz o “plenamente” parecer uma simplória redundância.

    E há mais! “Insintizámos” poderia, num outro contexto, ser o hino de um povo que sintetizou os seus sentimentos numa epopeia trágico-cómica. Já “pulação adulta” é uma provocação filosófica: seria o crescimento populacional humano um salto ou apenas um tropeço? E que dizer do exótico “maior badéfice de sempre”? Soa a um contrato tácito com a mediocridade, um ‘badéfice’ ao qual, infelizmente, estamos todos habituados.

    Mas a jóia da coroa é, sem dúvida, a “molibilição”. Ah, que beleza semântica, que revolução nas molas do pensamento! Aqui, o espírito entra em ebulição: esta palavra bem poderia designar o meu estado de espírito, suposto inventor da ‘emplastrofagia’ para a cura da melancolia, ao contemplar o mundo em movimento perpétuo e desconjuntado.

    E assim, entre “precalidade” e tantos outros neologismos involuntários, sempre assisti, na voz de António Costa, a língua de Camões a rodopiar numa valsa entre o sublime e o risível, como que a lembrar-nos que o erro, afinal, é a mais humana das invenções – ou, como diria o dito, a ‘molibilição’ dos que sonham com a perfeição, mas tropeçam alegremente na poeira das palavras.

    Tudo isto são autênticos monumentos ao génio criativo de António Costa, a reter para futuros compêndios de antropologia linguística. Se Camões choraria ou riria ao ver a sua língua tão retorcida? Ah, isso deixemos à imaginação dos leitores…

    Mas não coloquemos já todos os equídeos à frente do meu coche – o orgulho que me enobreceu no culto das línguas –, a cuja construção dediquei anos de estudo e empenho. Lembro-me bem dos dias da juventude em Coimbra, quando, às custas de noites mal dormidas, me afeiçoei ao latim de Cícero, cujas Philippicae recitei tantas vezes que quase podia ouvir Marco António a tremer sob o peso da oratória. O latim, essa língua venerável que jaz agora sob o pé de estudantes desidiosos, foi para mim o pórtico de um universo cultural que me levou ao francês de Voltaire, e daí ao inglês de Shakespeare e depois ao italiano de Dante. Confesso que tive especial predileção por Voltaire, cujas Lettres philosophiques li na edição de 1756, adquirida em Lisboa durante uma das minhas estadias regadas a portos e saudades. Se era no francês que eu encontrava a elegância das ideias, foi no inglês que descobri a vastidão das emoções humanas. Shakespeare, com o seu Hamlet, ensinou-me mais sobre a melancolia do que todas as dissertações filosóficas que já folheei.

    Por este motivo, afirmo que o orgulho linguístico radica no esforço e na Cultura. Aprender línguas não é um mero acto de conveniência social, mas um empreendimento hercúleo que exige paciência, dedicação e, acima de tudo, uma alma curiosa. Não é como aquela vaidade que decorre de circunstâncias fortuitas – o berço, o amiguismo, o acaso –, em que o sujeito ostenta um dom não seu, como um papagaio que repete palavras sem sequer as compreender.

    Se o orgulho se constrói no esforço, como afirmei, o oposto acontece quando a língua é tratada como mera ferramenta utilitária. Com a presunção de quem acredita que, se um português pode tratar a língua-mãe ao pontapé, assim mais facilmente pode dar coices no inglês, tivemos o infortúnio e a vergonha de assistir a António Costa a aventurar-se, há uns dias, a falar a língua de Shakespeare, sem qualquer rede de segurança, num espectáculo mais caricato do que a trapalhada saída de um persa a traduzir holandês para ser entendido por um chinês.

    Tudo aquilo foi mais confrangedor do que presenciar uma ópera interpretada por gatos de rua. Não tanto por ele dizer “more easy” em vez de “easier”, ou “chipa” em vez de “cheaper”, ou “means to payment” em vez de “payment methods”, mas sim por aquele sublime “concrete benefits” – como se os benefícios concretos somente pudessem ser vertidos em formas de betão, tal o peso da metáfora que, ao que parece, se perdeu entre o cimento das ideias e o movediço caos linguístico.

    Mas se os faux pas de António Costa já se inscreveram com mérito, pelo seu demérito, no anedotário europeu, o futuro promete reservar-lhe novas e gloriosas epopeias de inépcia linguística. Acredito não ter ele desvendado todo o seu potencial. Os seus lapsos, os seus deslizes e os seus solecismos, essas pérolas de oratória improvisada, têm, em si, o poder de transmutar-se em cânone, em perpétuos ensaios de desvarios, ou em recitais eternos de malapropismos, onde a língua de Shakespeare será ora a vítima, ora a cúmplice das suas mais audaciosas incursões.

    Imaginemos, pois, este intrépido orador a enfrentar novamente a língua de Shakespeare sem papéis, sem teleponto e sem tréguas, em épicas batalhas. Imaginem-no, com o mesmo ar confiante de quem sabe que pode transformar qualquer erro em espectáculo, entrando nos salões de Bruxelas para mais uma actuação memorável, digna de figurar nos anais das gafes linguísticas europeias. Cada cimeira europeia se anunciará como uma comédia involuntária

    Num discurso inflamado sobre inovação, por exemplo, não será surpreendente ouvi-lo dizer: “Portugal will push into the future with strong knees!”, proclamando, com vigor, que os joelhos portugueses serão a chave do progresso. Os tradutores, presumo, hesitarão entre uma vergonhosa correcção ou a negligência de deixarem a assembleia acreditar que a modernização portuguesa inclui exercícios de agachamento colectivo.

    Noutra ocasião, prevejo que Costa exaltará o papel do vosso país na União Europeia, com uma proclamação: “Portugal is a big player in the European onion market!”, fazendo os ministros da Agricultura dos países comunitários a imaginar camponeses lusitanos com sacos de cebolas nos corredores de Bruxelas.

    E haverá, sem dúvida, o dia em que, desejando transmitir firmeza, Costa garantirá: “We will deliver more concrete actions by the end of the year!”. A plateia ficará a imaginar um comboio de pedra britada, areia e cimento a caminho da Comissão Europeia, com mudança de bitola, enquanto os engenheiros do Parlamento questionarão se as “acções concretas” incluem mesmo reformas betuminosas no edifício de Estrasburgo.

    Mais tarde, numa cimeira sobre pobreza, o vosso António Costa declarará, certamente, com ênfase e a sinceridade que só ele possui: “We are committed to reduce the number of poors in Europe.”. Os irlandeses, conhecidos pela sua fleuma, esconderão um riso contido, que, no seu literalismo, quase soa a um plano de extermínio metafórico. E os restantes líderes, já habituados, acenarão com um sorriso, como quem vê uma criança orgulhosa do seu desenho torto.

    Por fim, haverá um momento culminante, ou fulminante, quando Costa, querendo demonstrar liderança no Plano de Recuperação Europeu, disser com solenidade: “The recovery plan is our new Bible; we just need to interpret the scripts.”. O auditório ficará assim, na dúvida, se o vosso português é um Homem de Fé ou anda em preparativos para realizar uma produção cinematográfica.

    E assim será o futuro do vosso António Costa: um contínuo desfilar de metáforas desajeitadas, fonéticas criativas e interpretações únicas do idioma de Shakespeare. E assim sendo, entre risos contidos e expressões perplexas, auguro que Portugal continuará a ser notado, nem que seja pelas aventuras linguísticas do seu pretérito primeiro-ministro – uma figura que, sem rede, sem dicionário, mas com muita convicção, transformará cada presença deste lusitano numa obra-prima da comédia diplomática. E assim mesmo, António Costa perpetua a tradição lusitana de deixar a sua marca no Mundo – não por palavras certas, on the contrary, mas sempre de forma memorável.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Pedro Nuno, o rapaz dos losangos

    Pedro Nuno, o rapaz dos losangos

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima sexta edição, o piparote de Brás Cubas vai para o pedantismo de Pedro Nuno Santos, secretário-geral do Partido Socialista, por querer imortalizar, através de uma fotografia, o seu encontro juvenil com Mário Soares.


    Concedei-me, neste meu mundo, que há-de ser também vosso, minhas belas leitoras e meus ilustres leitores, o prazer de vos conduzir por estas linhas como quem desce um rio de águas mansas, mas traiçoeiras, onde o reflexo das coisas é tanto a verdade quanto a mentira.

    A Humanidade, antes do advento do daguerreótipo e, mais tarde, da fotografia, era como uma criança num bosque: livre para se imaginar heróica, nobre, reluzente e eternamente bela, sem jamais confrontar-se com o espelho implacável da realidade. Mas eis que o progresso, esse artesão do inevitável, nos legou uma arma terrível: a eternização da imagem. Com isso, os nossos grandes feitos passaram a ter um companhia desconfortável: as nossas tristes figuras.

    Natureza Morta, daguerreótipo de Louis-Jacques-Mandé Daguerre, 1837, na colecção da Société Française de Photographie.

    Sim, porque onde antes a memória se vestia em sedas e ouro, adornada pelas lantejoulas da imaginação e o pincel do artista, agora jaz a cruel objectividade da imagem. Tomemos, por exemplo, Napoleão Bonaparte. Nos retratos pintados, ele surge como um semideus guerreiro, alado pela glória. Porém, as primeiras experiências fotográficas captaram os seus seguidores em posições um tanto desajeitadas. Pobres soldados, com botas enlameadas e bigodes mal aparados, pareciam mais figurantes de uma peça provinciana do que o exército que aterrorizava a Europa. Que diria o próprio Napoleão se pudesse ver a posteridade estampar, lado a lado, suas vitórias em Austerlitz e uma fotografia de um batalhão de barrigas salientes e espingardas tortas?

    E Luís II da Baviera, cognominado ‘Rei Louco’. Nos seus retratos pintados, ele surge em trajes de sonhador melancólico, rodeado por castelos de contos de fadas, símbolo de uma alma sensível e refinada. Porém, a fotografia fez questão de o registrar em caminhadas solitárias, envergando um casaco demasiado grande, o calçado maculado pelo ímpeto das lamas e uma expressão que não evocava sonho algum, mas antes um sujeito perdido a meio de uma caçada.

    Mais precavido foi o meu criador, Machado de Assis, que nunca foi de muitas fotografias, para que os vindouros sempre o recordassem com ar sério, taciturno, os óculos redondos conferindo-lhe mais uma aparência burocrática do que a de um gênio literário. Não há grande pompa nem pose – apenas um homem discreto, talvez desconfortável com a ideia de que a sua imagem pudesse perdurar mais do que os seus textos. Enfim, até eu, nas minhas memórias, reflecti sobre como a posteridade nos transforma, seja para o bem ou para o mal, dependendo de quem conta a história, e como a quer contar. E a vossa história é agora contada, cada vez mais, pelas fotografias, digitais agora, tiradas a torto e a direito. E, embora haja sempre a ideia de que a imagem capturada pela lente corresponda mais ao que desejamos ser do que àquilo que realmente somos, muitas vezes glorifica menos e humilha mais, imortalizando não os feitos, mas os defeitos.

    Fotografias de Machado de Assis.

    Na verdade, a fotografia, essa amante traiçoeira, conspira em demasia contra as ilusões construídas em denodado esforço. Os heróis tornam-se trapalhões, os visionários ganham ares de desastrados, e todos, inevitavelmente, ficam à mercê do riso incontrolável da posteridade.

    Uma questão filosófica que os antigos gregos nunca poderiam ter previsto: a verdade da imagem mostra-se mais destrutiva do que a mentira da memória. Porque, convenhamos, havia algo de nobre em recordar uma batalha como Homero fazia, com deuses, trovões e sangue glorioso. Hoje, porém, somos condenados a revisitar os feitos como meros mortais suados e desengonçados, capturados na luz fria e impiedosa do real.

    Mas não vos enganeis, minhas caríssimas leitoras e meus não menos caros leitores. O verdadeiro espectáculo sempre estará nas figuras menores, nos protagonistas dos episódios mesquinhos que a fotografia fez questão de iluminar – e de os iludir na grandeza.

    E na semana passada, a pretexto do centenário do nascimento de Mário Soares, um destes protagonistas nos veio relembrar um seu pretenso feito memorável, quando há umas duas dezenas de anos, imberbe, um milionésimo de segundo o eternizou ao lado do estadista português, algo que, acredito, tem guardado como uma relíquia mais preciosa do que a Vera Crux ou o Sanctum Praeputium.

    Pedro Nuno Santos e Mário Soares, circa 2000.

    Confesso que há nesta fotografia um microcosmo de tudo o que a política moderna tem de fascinante e risível. De um lado, à direita, o bonacheirão Mário Soares, um dos pais da democracia portuguesa, olhar terno e condescendente, talvez a cogitar sobre o fado inexorável da política portuguesa, como quem contempla uma tapeçaria já concluída, sabendo que os fios da sua obra política estão bem tecidos, ainda que por vezes desfiados pelos caprichos alheios. Eis o semblante de um estadista que já viu tudo e mais alguma coisa – e que, naquele momento específico, talvez lamentasse não estar numa esplanada de Paris com um bom vinho. Soares, o homem que enfrentou Salazar e Caetano, que devolveu ao povo o poder, observa um jovem com a bonomia irónica de quem sabe que os grandes não se fabricam nas juventudes partidárias. Há naquele olhar um quê de Voltaire, um eco de Talleyrand, uma chispa de Willy Brandt, como se pensasse: “Este caramelo, tão cheio de si, acredita que a História o espera. Mas mal sabe ele que a História não tem paciência para jovens vaidosos com camisolas horríveis e ideias vagas.”

    À esquerda, por sua vez, o ‘caramelo’ é o jovem Pedro Nuno Santos, empertigado, de ar compenetrado e gesto inflado, envolto numa camisola de losangos que faria corar um fabricante de tapeçarias do século XVIII. Estaria a pensar, por certo, até por agora revelar a fotografia num artigo evocativo a Mário Soares, ter esculpido ali o seu nome no mármore da História. Pobre ingénuo: pela fotografia emana uma retórica que não passa de gesso. Ali se assume como um Robespierre antes do terror, cheio de convicções, mas sem a argúcia para compreender que os grandes não se fazem apenas de discursos inflamados.

    Aliás, esta camisola merece um parágrafo à parte, porquanto não é somente uma peça de guarda-roupa: é uma metáfora em estado puro. Os losangos, com as suas cores berrantes e desconexas, representam perfeitamente a carreira de Pedro Nuno Santos. Uma colecção de peças encaixadas às pressas, sem unidade nem estética, mas que, de longe, pode parecer algo decente. Se ao menos tivesse escolhido algo mais clássico – um casaco escuro, uma camisa discreta, já nem falo em gravata –, poderia ter disfarçado o vazio das suas palavras. Mas não, ele optou por um traje que grita tão alto quanto os seus discursos, como quem quer compensar a falta de substância com a excentricidade visual.

    Pedro Nuno corporiza, em todo o esplendor, o protótipo de uma escola bem conhecida da História: a dos políticos que fogem da adversidade e se encostam aos gigantes na esperança de que, por osmose ou reflexo, o brilho dos outros os ilumine. É o mesmo fenómeno que se viu em Carlos de Bourbon, o duque que orbitava Napoleão sem nunca conquistar nada próprio; ou Dutra, o presidente brasileiro que viveu da sombra de Vargas sem criar luz própria; ou mesmo Cesare Balbo, um teórico que apenas planeou quando Garibaldi agiu.

    Pedro Nuno Santos, circa 2024.

    O problema não é apenas por causa de quem vive no reflexo dos gigantes, mas de quem nunca ousa desafiar a luz por conta própria. A mediana vulgaridade moderna não é só a do imitador, mas também a do conformista — aquele que aceita a inércia como caminho, perpetuando discursos sem obras, como Pedro Nuno Santos, que se confunde entre a glória alheia e os próprios losangos berrantes.

    E, nesse aspecto, numa vintena de anos, Pedro Nuno não me tem desiludido, seguindo o padrão dos jovens do início do século que usavam camisolas de losangos quando cresceram: fez nada. Ou vá, quase nada, porque agora é o secretário-geral do Partido Socialista e foi ministro das Obras Públicas, um cargo que, pelo nome, sugeria acção, mas que, nas suas mãos, deu para pontapear discursos em vez de construir algo digno de uma cabeça.

    Mas por mais que o pintemos, ou retratemos, ele comporta-se, na verdade, como um discípulo tardio de Nero, um incendiário da retórica, mas sem o talento de erguer algo das cinzas. Agora, na oposição, ensaia o habitual tirocínio para voos mais altos, ou, quem sabe, para a queda definitiva – aquela que a sua camisola já prognosticava com precisão quase bíblica.

    Minhas digníssimas leitoras e meus não menos dignos leitores, finalizo com uma refexão de filosofia política. Há algo profundamente intrigante na perpetuação dos medíocres no mundo partidário, um fenómeno que transcende tempos e geografias. Não é apenas um produto da política, mas de um sistema onde a aparência, o discurso vazio e a gestão da imagem muitas vezes substituem a verdadeira substância. Os senadores romanos que preenchiam o vazio deixado por César, os conselheiros de Luís XVI que discutiam reformas enquanto o povo erguia guilhotinas, ou os líderes modernos que parecem mais preocupados em acumular ‘likes’ do que em construir legados – todos são sintomáticos de um mesmo padrão: o poder é frequentemente ocupado não pelos melhores, mas pelos que melhor sabem ocupá-lo.

    ‘Anão esperando a luz do gigante’, de autor desconhecido exposto em lado nenhum.

    E no mundo contemporâneo, onde a política se tornou uma extensão do espectáculo mediático, este padrão não apenas persiste como se amplifica. Redes sociais e campanhas de marketing criam a ilusão de grandeza, e figuras vazias ascendem pela habilidade de parecer mais do que são. Assim, o fenómeno que outrora se limitava a salões de corte e câmaras legislativas, encontra agora fértil terreno num palco global. Pedro Nuno Santos, tal como muitos outros, parece moldado por esta nova dinâmica: muito barulho, muita pose, mas pouco conteúdo. Se os grandes constroem legados e os medíocres vivem deles, Pedro Nuno ainda nem escolheu o que quer ser.

    Esta é talvez a verdadeira tragédia do nosso tempo: ao contrário dos grandes líderes do passado, cujas falhas eram frequentemente compensadas por feitos marcantes, os políticos modernos deixam-nos apenas a memória das suas ambições desmedidas e das suas promessas não cumpridas. A mediocridade, assim, não é apenas um estado passageiro – é o destino inevitável de um sistema que confunde imagem com substância, projecção com liderança e ruído com impacto.

    Pedro Nuno Santos, como muitos outros, é o epítome deste espírito: muito barulho, muita fanfarra, muito gesto, muita bravata, muito desassossego, muita prosápia, muito nada. Ele é como um Colombo sem caravelas, um Einstein sem fórmulas, um Garibaldi sem revolução, um Marx sem ideais, um político sem obra – salvo a obra de se manter na ribalta.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Gouveia e Melo, o Almirante dos Sete Egoceanos

    Gouveia e Melo, o Almirante dos Sete Egoceanos

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima sétima edição, o piparote de Brás Cubas torpedeia o inchado Gouveia e Melo que, seduzido pelo canto da sereia, se comparou ao Princípe Perfeito.


    Vaidade. Ah, a vaidade dos homens, esse perfume barato da alma que tão frequentemente sobe à cabeça como vinho azedo de má colheita. Desde tempos imemoriais, os mortais nutrem uma irresistível tentação por se fazerem grandes, mesmo que, no processo, se agigantem apenas na sua pequenez. Tal é o destino da Humanidade: querer ser mais do que se é e acabar menos do que se imaginou.

    E eis que, não faltando nada, veio a Revista da Armada, essa proclamação moderna de epopeias sem métrica, desencantar um retrato que figurará de rompante no mais ridículo salão dos egos do Parnaso, com um Gouveia e Melo ao lado de D. João II, o Príncipe Perfeito. Não cura, isto, por certo, a nostalgia de grandeza de um país, mas parece-me ser um pequeno paliativo para o ego de quem parece desejar ser lembrado pelos séculos vindouros.

    Permitam-me uma introdução à memória descritiva deste fresco ao ego moderno, da autoria de Vasco Ferreira, cuja mestria ombreia, sem hesitação, com a do inigualável escultor Emanuel Jorge da Silva Santos – aquele mesmo que, para escarmento de uns e pesar de outros, foi tragicamente desviado para as lides políticas da freguesia do Caniçal. Perdeu-se, na verdade, e de forma prematura, um verdadeiro génio do grotesco monumental. O célebre busto de Cristiano Ronaldo, saído das suas mãos, foi um grito de Fídias às avessas, com escopro e cinzel aos ares, soba forma de prova viva em natureza morta da capacidade humana para alcançar alturas cósmicas no domínio do cómico involuntário. Tal obra não apenas arrancou risos à escala global como também revelou que o verdadeiro génio artístico reside, muitas vezes, na audácia do improvável.

    Ilustração de Vasco Ferreira para a Revista da Armada retratando Gouveia e Melo ao lado do Príncipe Perfeito.

    Assim como Emanuel transformou o rosto de um ícone do futebol numa alegoria surrealista de perplexidade e espanto, Vasco Ferreira elevou agora a ilustração digital a novos patamares de enlevosa soberba, onde o Almirante Gouveia e Melo se perfila, impávido e seguro de si, ao lado do Príncipe Perfeito.

    E, tal como o busto de Ronaldo foi posteriormente substituído por uma versão mais “realista” – embora à custa de perder o seu carácter icónico –, esta ilustração do ‘fresco naval’ talvez devesse ser consagrada, no futuro, em manhoso pechisbeque ou em escaiola polida, para as futuras gerações contemplem os perigos do narcisismo mal calibrado.

    Em todo o caso, não sendo eu, Brás Cubas, almirante ou príncipe, reconheço que os homens sempre adoraram se eternizar na sombra dos grandes. E aqui temos, pois, o Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, com o seu sorriso largo e ares de semideus, de braço dado – metaforicamente, que a História não permitiria tamanha ousadia literal – com o Príncipe Perfeito, D. João II, que introduz toda uma nova escola artística: o realismo egocêntrico em solfejos de ironia.

    A ironia faz-se só com a memória descritiva, que invoca o “mar” como “nossa maior riqueza”. Ora, é curioso como a língua pode ser traiçoeira, pois, em alguns lusitanos contextos, mar pode significar também vastidão: “No seu olhar, um mar de memórias submergia-me, numa vastidão insondável.” Pode significar, de igual modo, infinito: “Naquele instante, o silêncio tornou-se um mar infinito de espera.” E, enfim, pode, conformemente, retratar o vazio: “Na imensidão do universo, sentia-se um grão de areia perdido num mar infinito de nada.”

    Um busto

    Ora, aqui chegamos. O mar parece-me uma analogia perfeita para descrever o discurso vazio que se segue. “Novos tempos, novas tecnologias…” – e assim, minhas elegantes senhoras, e meus estimados senhores, seguimos a par e passo a ladainha dos tempos modernos, onde tudo se resume a inovação e inteligência artificial, como se o espírito humano fosse apenas uma extensão de algoritmos e drones.

    Mas o cúmulo da audácia surge na prosápia de que D. João II, se vivo fosse, “certamente não hesitaria em trocar ideias” com o Almirante. Ah, sim, porque o monarca, mestre do equilíbrio geopolítico e estratega incomparável, ver-se-ia agora reduzido a uma espécie de tutor tecnológico de alguém que se atreve a equiparar-se ao seu legado. Imagino o Príncipe Perfeito a debater com Gouveia e Melo sobre a operacionalidade de drones, enquanto, nos bastidores, Diogo Cão e Bartolomeu Dias reviram os olhos em uníssono.

    E quanto á qualidade artística da imagem? Confesso que me arrancou um riso, meio amarelo, meio pitoresco. Eis o Chefe do Estado-Maior da Armada com uma pose que evoca não só D. João II mas, atrevo-me a dizer, uma espécie de Almirante Napoleónico à moda lusitana – só lhe falta a mão no peito e o cavalo branco. Ao fundo, oferecem-nos um submarino com uma árvore de Natal em plena torre – uma alegoria profunda, certamente, à navegação espiritual do consumismo natalício. Que imaginação, que grandiosidade! Quase posso ouvir Luís Vaz de Camões, dos confins desta nossa eternidade, murmurando: “Por minha culpa, Portugal canta estrelas valorosas; por culpa vossa, só restam caricaturas presunçosas.”

    Um Almirante dos Sete Egoceanos de antanho…

    E já que falamos em caricaturas, que dizer mais deste texto? “O glorioso passado e presente”? Certamente, trata-se de uma ode mal disfarçada ao espírito empreendedor de um país que, nostálgico, ainda almeja a antiga grandeza imperial. No entanto, fá-lo com uma curiosa amnésia dos próprios limites que se impôs ao longo do tempo – pela inércia, pela procrastinação estratégica e pela resistência em aceitar que a verdadeira força de uma nação moderna não reside apenas nas memórias de epopeias marítimas, mas na capacidade de enfrentar os hodiernos desafios com pragmatismo e visão realista. Este texto não só romantiza um “destino marítimo” como parece esquivar-se ao incómodo reconhecimento de que o mar, embora uma dádiva, é um recurso cuja exploração exige mais do que sonhos grandiloquentes: exige planeamento, ética e competência sem a máscara de bacoca retórica saudosista. E sobretudo sem laivos de superciliosa empáfia.

    Conjugando ilustração com memória descritiva, confrontamo-nos com um curioso exemplo de culto de personalidade, mas de uma personalidade que não se contenta com a sua contemporaneidade. Não, Gouveia e Melo precisa de algo mais – quer se imortalizado ao lado de D. João II. A História, porém, é uma amante cruel: tolera as mais desvairadas pretensões, mas nunca as valida.

    E não podemos ignorar o peso filosófico deste retrato e da narrativa que o acompanha. Se fôssemos ouvir Epicuro, ele talvez nos recordasse que o verdadeiro prazer reside na simplicidade – mas o Almirante, com o peso de tantas medalhas e a grandiosidade de um retrato que mais parece um afresco de catedral, certamente confundiu ‘simplicidade’ com ‘extravagância’ e ainda ‘prazer’ com ‘ostentação’. Um equívoco comum entre aqueles que preferem a vanglória ao bom senso.

    Um Almirante dos Sete Egoceanos pós-GM…

     Mas se Epicuro não vos convence, permitam-me trazer Diogénes, o cínico, que certamente encontraria no Almirante Gouveia e Melo um candidato perfeito para um sermão sob a luz da sua lanterna. “Procuro um homem honesto”, diria ele, com ironia, enquanto o Almirante, de farda entupida de galões e medalhas, impecável, mas com uma árvore de Natal em cima de um submarino, proclamaria que a honestidade reside em se enaltecer ao lado do Príncipe Perfeito. Diogénes, sem dúvida, reviraria os olhos e retirava-se para o seu barril, concluindo que, afinal, a loucura moderna ainda é mais insondável que os oceanos.

    Maquiavel, com o seu pragmatismo mordaz, talvez visse neste retrato um jogo estratégico mal concebido – afinal, a política da imagem exige precisão. Contudo, em vez de arte calculada, temos aqui um manual improvisado de como confundir ambição com glória maquinada, provando que, mesmo na era moderna, ainda há quem se derrote em batalhas antes de sequer entrar no teatro da guerra.

    E já que estamos em clima de sátira, chamemos ao palco Molière, o mestre do ridículo. Imagino-o a esboçar uma nova comédia: ‘O Admirável Almirante no Mar das Ilusões’. Nesta peça, o protagonista seria um homem de convicção inabalável – sobretudo em si mesmo – que, na ânsia de imortalizar o seu nome nos anais da História, constrói um monumento ao seu próprio ego. Contudo, em vez de aplausos, encontra apenas gargalhadas, pois o público, longe de se maravilhar com a sua grandeza, delicia-se com a sua pompa desmedida. Certamente, Molière saberia temperar a narrativa com um humor irresistível: o Almirante, num momento de exaltação, explicaria a D. João II as maravilhas da tecnologia moderna – drones, inteligência artificial, inovações náuticas – apenas para ouvir o rei, com pragmatismo, responder: “Para traçar o destino do Mundo, me bastou um astrolábio.” E assim, o Almirante, de rosto corado e discurso em ruínas, terminaria a cena a contemplar o “mar das ilusões” por si criado, enquanto o público, às gargalhadas, o aplaudiria – não pela grandeza, mas pela comédia.

    Um pavão…

    E o que diria Mark Twain, com o seu humor cáustico, se lhe mostrássemos este quadro moderno de lusitana vaidade? Sem dúvida, veria aqui material perfeito para uma nova coletânea de ensaios sarcásticos. “Os factos são teimosos,” poderia ele escrever, “mas não tanto quanto um homem que acredita que um uniforme cheio de medalhas pode colocá-lo ao nível de um rei que conquistou oceanos e nações.” Twain, com o seu pragmatismo, certamente acrescentaria que o verdadeiro perigo não reside num submarino decorado, mas na audácia do homem que se imagina como sucessor de um dos maiores estrategas da História, sem sequer uma batalha à sua conta. Até a Padeira de Aljubarrota conseguiu melhor sem molhar os pés.

    Enfim, em última análise, não há como fugir à constatação de que o grande inimigo da vaidade não é a crítica, mas a própria realidade. E esta, como sabemos, tem uma habilidade peculiar para desmascarar ilusões com uma precisão quase cruel. Este retrato do Almirante, ao lado do Príncipe Perfeito, é uma lição viva de como a vaidade é a mais ardilosa das sereias: canta melodias doces aos ouvidos de um homem, prometendo-lhe glória e imortalidade, apenas para o arrastar para os abismos do ridículo. E saiba o Almirante que assim dita uma velha sentença: o tempo, sempre imparcial no seu cinismo, dissolve o louvor efémero e, em assuntos mais rasteiros, peneira os homens para assim descartar o joio da sua inflada soberba. Em muitos, nem sobra sequer o eco de um nome.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Um cêntimo de quem não vale nem um vintém

    Um cêntimo de quem não vale nem um vintém

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima quinta edição, o piparote de Brás Cubas vem, desta vez, sob a forma de ‘agradecimento’ ao arqui-adulador do Almirantado, o panegírico-mor Leonardo Ralha, que doou um cêntimo ao PÁGINA UM.


    Que alegria, que surpresa, que honra inusitada! Foi com uma admiração paroxística, quase sideral, que beirou o espanto hiperbólico e ligeiramente histriónico – todas emoções dignas de figurar entre as mais sublimes da Humanidade – que soube da esplêndida dádiva ao PÁGINA UM concedida pelo cronista de panegíricos Leonardo Ralha, arqui-adulador do Almirante Gouveia e Melo no vetusto Diário de Notícias, após a escrita da minha recente crónica.

    Um cêntimo!

    Comprovativo de generoso donativo do benigníssimo Doutor (Dr) Leonardo Ralha ao PÁGINA UM.

    Não vos espanteis, minhas queridas leitoras e meus caros leitores, pela miudeza numérica da quantia, pois tal como um átomo encerra o segredo do Universo, assim este cêntimo contém toda a grandeza de um pequeno espírito que ousou doar o pouco que tem daquilo que pouco lhe sai.

    Imagino, com alguma licença poética, a cena em que o Ralha, em leito de insónias na tenebrosa escuridão, quebrada apenas pelo brilho do ecrã do telemóvel, se debateu no mais profundo dilema moral da sua existência: “Contribuir ou não contribuir: that is the question”. Porventura, como Hamlet diante do crânio, reflectindo sobre as futilidades do Mundo, sinalou o louvaminheiro que, mesmo na mais insignificante das moedas, reside um acto de heroísmo.

    Ah, a invidia de defunto! Como desejava eu, agora, sentir o tormento do seu pensamento em hora tão decisiva! Quem sabe, no acto do seu trémulo dedo, quantos manjares postergou, quantos charutos protelou, quantos sonhos sacrificou? Ou será que, com uma leveza que somente grandes mestres da ironia falhada almejam involuntariamente alcançar, pulsou “Enviar” sem pestanejar, confiando ao Mundo o peso do seu cêntimo?

    Leonardo Ralha. Foto: DR.

    Não me acuseis de exagero. Este cêntimo, por mais modesto que pareça, transporta consigo o peso simbólico de tantas dádivas históricas. Não será, porventura, irmão espiritual das bibliotecas mandadas construir por Andrew Carnegie, que iluminaram mentes? Não terá algo do espírito de Alfred Nobel, ao transformar riqueza em legado? Ou ainda do albino elefante Hanno, enviado por D. Manuel I ao Papa Leão X, em gesto que combinava o absurdo com o diplomático? O Ralha, com o seu renascentista nome próprio, parece desejar alinhar-se com tais figuras, embora o seu animal exótico seja de menor porte: um cêntimo de cobre galopando em corcel dourado.

    Ah, mas permiti-me um desvio. Pergunto-me: que destino o PÁGINA UM dará a tamanha fortuna? Talvez compre um parafuso para suster os seus alicerces morais. Ou alugue um byte nos confins da Internet, garantindo que mais uma verdade alcance os leitores. Não vos preocupeis, caríssimos mecenas, tenho a fezada de que cada milímetro deste cêntimo será usado com a máxima eficiência, e um relatório de contas será emitido com o rigor de quem administra um tesouro dos Templários.

    Seja como for, proponho, às donzelas e aos cavalheiros de bom coração, a assinatura de uma subscrição pública para se erigir uma estátua em honra a este gesto. Sim, uma Estátua ao Cêntimo, erguida no Terreiro do Paço, substituindo o cavalo e o inútil D. José, que o Machado de Castro não se importará, para que multidões possam venerar o acto de um homem que legou ao Mundo algo que desafia o risível desprezo. O epigrama será singelo, mas eterno: “Ao benigníssimo Doutor Leonardo Ralha, que não valendo nem um vintém, se superou oferecendo um cêntimo.

    “O meu cavalo por um cêntimo”, frase apócrifa do rei D. José.

    À guisa de conclusão, eu, Brás Cubas, até me irmano com Leonardo Ralha, com inveja: se intentei, mas falhei, alcançar os favores e a benesse da Posteridade com um emplastro que curaria a melancolia humana, porque a morte me cortou a vaidade, o cronista do Diário de Notícia deu-nos, em vida, a fortuna de gargalhar com a sua dádiva de um cêntimo. E assim, entre a grandeza e o ridículo, o vosso mundo avança em direcção ao meu estado.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • O cronista Ralha, ufando e rufando o Almirante

    O cronista Ralha, ufando e rufando o Almirante

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima quarta edição, o piparote de Brás Cubas afinfa no cronista Leonardo Ralha, que compõs um panegírico ao Almirante Gouveia e Melo no Diário de Notícias.


    Entre as vantagens diversas de se estar morto — e olhem que há muitas, incluindo a ausência de contas por pagar e desacreditar nas promessas de um equilíbrio orçamental –, está o prazer de poder observar os vivos e as suas excentricidades com um olhar superior, sem dano nem mácula. E foi assim que, num repente, me vi folheando um jornal da terrinha, que nasceu quando eu ainda era vivo, e que me admira muito por não estar já enterrado como eu.

    Falo-vos do vetusto Diário de Notícias e de um artigo do escriba Leonardo Ralha, que, talvez por queda de assunto importante, teve de despachar um ‘calhau’ de três páginas em forma de prosa, mas que se assemelha a poema épico barroco, dedicado ao novo Aquiles Português, ou melhor, ao Ulisses da Farda Lusitana, o senhor Henrique Gouveia e Melo.

    Ralha, cujo nome já prenuncia o riso forçado e a incoerência (ah, como é irónica a Providência Divina), quis ontem erguer-se como o novo Homero das redacções, depois do saudoso Serpa na Bola, mas sem o discernimento de um cego inspirado. Em vez de nos dar um herói crível, mesmo se pouco credível, brindou-nos com uma figura tão sobrecarregada de atributos e qualidades que nem mesmo os deuses gregos, mestres em vaidades e falhas, ousariam reclamar para si.

    Gouveia e Melo à caça de narcotraficantes.

    Ralha, o jornalista cujo apelido já se imagina num boteco de esquina – “Mais um copo, pró Ralha!” –, resolveu transformar um Almirante em mito antes mesmo de o bom senso o permitir. O seu texto torna-se quase um insulto à própria ficção, que exige, por convenção, alguma verosimilhança. Pois se até os romances mais audaciosos de Balzac, as óperas mais dramáticas de Verdi e os épicos mais delirantes de Camões se sustentaram numa base mínima de lógica, deveríamos exigir que Ralha não fizesse um falso emplastro a que deu o horroroso título de “Coragem, visão e foco são marcas do ‘nada suave’”.

    O ‘nada suave’ é, sabido está, o cognome envernizado e estapafúrdio aplicado ao Almirante, um disparate de marketing retórico que tenta mascarar o óbvio: o marujo, na verdade, apenas tropeçou em obrigações rotineiras, mas o alçaram por empenhos ao Olimpo político como se tivesse, à semelhança de Rousseau, redigido um novo Contrato Social que refundasse os laços entre o indivíduo e o Estado, ou, como Locke, lançado as bases de um governo guiado pela razão e pelos direitos naturais. Nanja! O homem destacou-se por ser um operador de logística afortunado de um só produto já em sezão de abastança vacinal.

    Pois, mas que importa a substância da realidade quando podemos criar ditirambos – esses cânticos fervorosos dignos de Dioniso – em honra à gloriosa epopeia das insónias do Almirante, como faz Ralha na sua croniqueta? Sobre as suas madrugadas de mente vagueante, mais perdida que Ulisses sem Ítaca à vista? A cosmovisão de Gouveia e Melo não se mede, no ralhómetro do Ralha, em feitos concretos, em acções valorosas ou mesmo numa ideia que se sustente por mais de dois parágrafos. Não, o verdadeiro herói do nosso tempo não precisa de façanhas épicas, mas de noites mal dormidas! Que se erga um monumento à sabedoria ‘insonesca’, essa prodigiosa habilidade de responder a mensagens às três da manhã como se o destino do Mundo repousasse na ponta de um dedo vigilante.

    Leonardo Ralha. Foto: DR.

    Imaginemos o novo panteão dos deuses modernos: Apolo, com a sua lira, é dispensado; Atena, com sua lógica, é irrelevante; Deméter, com a sua abundância, é ignorada; Afrodite, com o seu encanto, é desprezada; e eis que entra em cena o Deus da Insónia, barbas brancas, farda marítima irrepreensível, coroado não com louros, mas com olheiras profundas, a segurar não uma espada, mas um telemóvel. Que paradoxo sublime! A coragem, antes reservada aos que enfrentavam sanguissedentos leões ou mares procelosos, é agora definida pela bravura de quem encara um ecrã luminoso no silencioso trevor.

    Ora, não sei quanto a vós, mas cá deste lado do além, conheci gente de todas as épocas que dormia pouco, e nenhuma delas foi endeusada por isso. César, dizem, mal pregava olho enquanto cruzava o Rubicão, mas foi imortalizado pelo seu génio estratégico, não pelas olheiras. Da Vinci, que dividia o sono em curtos intervalos para maximizar o tempo, deixou-nos a Mona Lisa e o Homem Vitruviano, não um tratado sobre a arte de responder a mensagens nocturnas. Beethoven, surdo e insoniado, compôs a Nona Sinfonia, mas ninguém o coroou rei dos insones por isso. Churchill, que fazia sestas intermitentes durante a guerra, é lembrado pelas suas decisões históricas, não pelas noites em claro com charutos e conhaque. E até o meu ‘pai’, Machado de Assis dormia mal e deu-nos Capitu e Bentinho, e a mim próprio, mas ninguém o tratava como um semideus por mor das noites em claro.

    Porém, para o Ralha, insónia é sinal de génio, de visão superior. Se ao menos essas insónias fossem produtivas! Se delas tivessem saído, como da caverna de Platão, ideias que iluminassem o Mundo… Mas não: o Ralha celebra o simples facto de o não-dormir ser virtude divina, quando é apenas um capricho humano elevado à categoria de mito por quem, incapaz de entender a grandeza real, decide fabricar heróis com barro de mediocridade. Poderei estar, confesso, a ser exigente, por mal ventura, às custas da minha ignorância: às tantas, o Almirante, entre mensagens nocturnas, já planeou o fim da fome, a paz mundial e o segredo da vida eterna. Lamentavelmente, não lhe tem sobrado tempo para nos informar disso.

    white concrete statue of man
    Alguém sem importância…

    Portanto, mesmo sem esse desfecho, cantemos, ó leitores, um novo ditirambo, não sobre o vinho ou a dança, mas sobre a nobre arte de perder horas de sono. E que ninguém ouse perguntar se essas insónias valem mais do que o sono profundo de quem, descansado, depois de acordar, constrói pontes, descobre curas ou, pelo menos, escreve algo que não seja uma ode ao vazio. Pois, no reino das insónias endeusadas, a lógica está a dormir profundamente.

    Segue-se, no garrancho do Ralha, uma cascata de superlativos sobre o Almirante que causariam um rubor insuportável até aos mais fanáticos hagiografistas do Barroco. “Foco fora do normal”, “linguagem transversal a toda a sociedade”, e capacidade de “estar com 30 mil coisas ao mesmo tempo“, assim entre aspas por ser citação de uma ignota testemunha. Ou inexistente. Ao que parece, Gouveia e Melo não é apenas um homem, mas um híbrido de Leonardo da Vinci, Bismarck e Bill Gates, tudo numa só farda. Se ele tivesse vivido na Grécia Antiga, Sócrates teria parado de questionar a vida para apenas admirá-lo. Aristóteles teria rasgado a ‘Ética a Nicómaco’ e dito: “Já temos o modelo da virtude perfeita.” Platão, por sua vez, teria abandonado o ‘mundo das ideias’ e proclamado: “Eis aqui a forma encarnada do Belo e do Justo”.

    Ah, mas que interessa a verdade, se com a ficção se consegue, sem escopro nem cinzel, erigir monumentos ao barroquismo jornalístico? Como não nos deleitarmos com uma ode à hipérbole descontrolada de Ralha que nos revela, sem citar vivalma nem corar de vergonha, que Gouveia e Melo identifica “primeiro coisas que mais ninguém estava a ver, o que tanto se aplica, ao que parece, no seu inédito delineamento de centros de vacinação (coisas nunca vistas em terras lusitanas) como na ousada escrita da obra ‘Preservativo das Bexigas e dos Terriveis estragos ou Historia da Origem e Descobrimento da Vaccina, dos seus Effeitos ou Symptomas, e do Methodo de Fazer a Vaccinação & c.’, embora ilegalmente apropriada pelo médico, certamente charlatão, Manuel Joaquim Henriques de Paiva, que se apropriou e a publicou em seu nome em 1801. E isto claro, mesmo sem gritar hosanas à missiva instrutora de autarcas para se uniformizarem procedimentos, ou à “antecipação da importância que os drones teriam em operações de guerra e patrulhamento”.

    Ora, aqui jaz, perante a nossa admiração, um monstro da clarividência divina. Gouveia e Melo não é apenas um almirante, é um verdadeiro vidente, um oráculo vivo, o Delfos de farda. E o cronista está para celebrar. Onde todos vêem a banalidade do mar, Ralha vê que ele vê a Atlântida; onde outros vêem uns papeluchos bolorentos e esburacados pelas traças, Ralha vê que ele vê os manuscritos de Sun Tzu; onde outros vêem um militar burocrata rabugento, Ralha vê que ele vê um inventivo Leonardo da Vinci da logística.

    Embarcação turística algures nos mares polares…

    É como se o almirante tivesse óculos de realidade aumentada, não aqueles comuns; antes umas gafas que permitem perscrutar até os pensamentos mais obscuros de Poseidon. Mas, atenção, não confundamos: estas visões reveladoras estão reservadas apenas àqueles iluminados que “trabalham com ele”. Para o resto de vós, meros mortais, sobra a escuridão da ignorância.

    Além disso, reparem: o seu Almirante não sabe apenas dirigir uma frota ou enfrentar piratas modernos (ou narcotraficantes), mas criar composições dignas de uma exposição de arte naval, como seja centros de vacinação testados em plena Academia Militar. Imaginemos mais longe: Gouveia e Melo, pincel em punho, esboçando, não hospitais já, mas sim caravelas futuristas enquanto declama sonetos de Camões sobre a glória marítima na Capela Sistina. Nem sei como o Ralha não viu no Almirante um verdadeiro Miguel Ângelo dos estaleiros do Alfeite!

    E se houvera pincéis, também haveria de haver penas com tinta feita à moda antiga, com vinho tinto, pau de figueira e bugalhos de carvalho. Também na arte da epístola, diz o Ralha, se sobressai o nosso Admiral das terras de Viriato (ou de Quelimane, ali mesmo ao lado), nem que seja na comezinha função de uniformizar procedimentos junto de autarcas. Ah, gritem louvores ao heroísmo burocrático! Eu nem sei o que mais me impressiona, se o acto da redacção escolar ou a transmutação, pelo louvaminheiro Ralha, de uma corriqueira carta em façanha titânica. Alexandre, o Grande, conquistou o Mundo; Gouveia e Melo, por sua vez, conquista os corações de autarcas com o poder de uma carta bem alinhada. Qual será o segredo? Uma caligrafia impecável? Metáforas náuticas? Selos com aroma de maresia? Parvoíces do cronista?

    close up photography of blue peacock painting
    Alguém com importância..

    E que dizer de Ralha quando elogia a visão de Gouveia e Melo – por certo incrementada em horas passadas nas profundezas, quando o Albacora, o Barracuda e o Delfim despejavam óleo nos mares, de tão velhos que andavam no crepúsculo da pretérita centúria – em antecipar a importância de meios aéreos em operações de guerra e patrulhamento? Que descoberta revolucionária! É como se Gouveia e Melo tivesse inventado o avião, o radar e a própria ideia de patrulhar os céus, ou até a Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão. Vou dar ali um peteleco ao Saramago por se ter esquecido de meter um Gouveia Sete-Faróis no seu ‘Memorial do convento’…

    Ademais, imagino a vergonha dos Wright Brothers que devem andar escondidos no canto do purgatório, a murmurar: “Que desperdício, não antecipámos nada disto!” E eu aqui a pensar que o mundo militar viveu séculos de penumbra – que digo! –, de obscurantismo, sem perceber que os meios aéreos têm algum valor na paz e nas guerras! Que visão mais celestial, mais divina trazida por Gouveia e Melo, justamente agora alavancada pelo Ralha.

    Na sua exaltação desenfreada, o Ralha até entroniza o Almirante ao símbolo dos “marinheiros de silício” em detrimento dos “marinheiros de carbono”. Que metáfora engenhosa! Que profundidade analítica! Que nada!… Pois, se me permitem um aparte filosófico, vos acrescento que até Platão sabia ser preferível um simples carpinteiro, que faça mesas úteis, ao poeta, que fabrica metáforas vazias. E cá entre nós, sejam os marinheiros de silício ou de carbono, estes sempre precisam de ventos e bússolas, ou equivalentes, e, acima de tudo, juízo. Já o Ralha, por outro lado, navega em mares de retórica vazia, onde o único farol é a adulação descabida.

    Mas há mais. Ralha vendeu o bom senso, e meteu o processo das vacinas a par de um suposto combate aos narcotraficantes. Ou seja, Gouveia e Melo, depois de derrotar o vírus, tornou-se o terror dos cartéis. Seria a personagem perfeita para um filme de acção de segunda categoria. Imaginemos o título: “Almirante Implacável: Do Cabo das Tormentas ao Cabo do Medo”. Dirigido, claro, pelo próprio Leonardo Ralha, com uma trilha sonora que inclui hinos patrióticos e baladas épicas.

    Mas há algo ainda mais delicioso neste escrito: o tom messiânico. Ralha, como os pregadores medievais, já não escreve apenas para informar; escreve para converter. O Almirante não é apenas bom; é perfeito. Não é apenas competente; é infalível. Não é apenas humano; é inumano. Isso faz-me lembrar a história da Carochinha, que, em busca de um noivo, enfeitava-se com moedas e promessas até atrair o rato para a panela de feijoada. Assim também vai o jornalismo, caro leitor, transformando os seus protagonistas em deuses, esperando que o público salte de cabeça no caldeirão da credulidade.

    Mas no fundo, embora talvez apenas nas Fossas das Marianas, Ralha tem razão neste obelisco ao vazio inflado, onde veste ao seu Dionísio um fato épico por tarefas triviais: Gouveia e Melo é mesmo uma figura única. E ele, Ralha, também. Afinal, só um almirante de tão sublime mediocridade, cuja maior proeza parece ser a capacidade de respirar e existir em simultâneo, poderia ser catapultado a tamanhas esferas celestiais pelas mãos febris de um jornalista tão delirante que o ordinário ele transforma em prodígio, a monotonia em epopeia e o corriqueiro em cântico de louvor digno de um Homero embriagado a vinho carrascão.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Gouveia e Melo: a epopeia de um narciso

    Gouveia e Melo: a epopeia de um narciso

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima segunda edição, o piparote de Brás Cubas ‘quebra o costado’ à vaidade do Almirante Gouveia e Melo, que transforma cada operação rotineira numa cruzada épica.


    Se os navios portassem alma, como supunha Aristóteles das plantas, é certo que muitas frotas desejariam antes naufragar no silêncio dos oceanos a serem comandadas por líderes cuja maior preocupação não é cumprir a derrota de um escalambrado navio, mas sim almejar a vitória de uma pose perfeita. A vaidade no comando das naus, ou dos submarinos, ou dos faróis, ou de toda a Armada, meus estimados leitores, é o escorbuto das marinhas; enquanto o verdadeiro rói somente as gengivas e articulações dos marinheiros, o segundo corrói a estrutura das esquadras.

    Como testemunha póstuma de tantos egos desvairados, sinto-me compelido a narrar-vos a tragédia daqueles que, sobre ou sob as águas, se esmeram mais na fotogenia do que no leme, convertendo rotineiras missões marinhas em odes à sua própria vanglória terrena.

    Há géneros diversos de Narcisos em fluidos aquosos, todos figuras mais deploráveis do que a daquele que fez perder a ninfa Eco. Um dos mais patéticos que me surge em memória é o Narciso de Alto Mar. Uma visão magnífica da inutilidade. Rodeado por um oceano sem fim, lançado na vastidão de um palco que jamais requereu assistir ao seu espectáculo, esse tipo de Narciso descobre sempre que, afinal, as pelágicas águas não foram concebidas para o adorar. É que o mar, com sua vastidão preguiçosa, não reflecte como um cristalino lago ou umas poças saídas do marulho à beira-mar. Impacientes, por vezes em vagas, as ondas movem-se sem prestar vassalagem nem quitar pedágio ao nosso pobre narcisista. Ele ainda se debruça sobre a proa, olhos ansiosos na cachola, para se reflectir, mas o mar, debochado, lhe devolve somente espuma na tromba. Este Narciso, na sua barca de orgulho, sente cada onda como um insulto, uma conspiração contra a sua contemplação, ignorando que o mar nem se queda por caprichos humanos. Enquanto ele se lamenta pela ausência da efígie, o oceano continua o seu eterno trabalho de existir, sem o menor interesse por feições ou egos. O oceano não é plateia; é abismo.

    Que o diga o Narciso dos Submarinos. No fundo, bem no profundo de mim, tenho certa comiseração por este. Entre as muitas almas de ego latente que tive a ventura de examinar, nenhuma me causou mais espanto, porquanto, sentindo-se ele apaixonado por si mesmo, mesmo assim troca o tranquilo lago por um submarino metálico, numa insana busca do centro do mundo. Mas, como toda boa comédia humana, não é o mundo que ele deseja explorar, mas a si. Por regra, os submarinos, coitados, são logo tomados por espelho. Cada painel brilhante, cada vidro, o tanque de lastro, as lentes e espelho do periscópio, tornam-se o proscénio da sua contemplação. Este Narciso multiplica ângulos para amplificar o ego, e ademais das vezes irrita-se até com os peixes porque, arrogantes, se interpôem entre si e ele próprio. Quando, finalmente, chega ele bem fundo, não da alma mas do mar, e se depara com o escuro e vazio tédio, onde nem sequer criaturas fosforescentes o brilham, e afinal o silêncio o vela, somente lhe resta os ensurdecedores ecos de uma plateia ausente.

    E depois destes, temos, mais refinado, o Gouveia e Melo, o Almirante que se insinua acima das mundanas firulas, mas que se espraia em escrupulosidades pindéricas, de sorte que, por exemplo, o seu uniforme reluz com mais esmero do que um convés em dia de inspecção. Dir-se-ia que, no seu estilo, um militar não é alguém que arrisca desboroar a farda e rasgar o corpo no confronto com o inimigo, mas antes sim uma figura de sarau na Old Albion, desfilando entre debutantes. Informalidades, isso, só quando vai trincar pregos com os amigos…

    Por isso, num preceito ordinário, com a solenidade de um Aquiles lusitano, o Almirante nunca perde tempo, e se se tem de proclamar vitória, então que se proclame vitória! E com pompa, e em qualquer circunstância. Ah, mas não sejamos injustos. Gouveia e Melo não inventou a vaidade no comando; ele apenas a aprimorou. Afinal, quem pode esquecer Alonso Pérez de Guzmán y de Zúñiga-Sotomayor, duque de Medina Sidonia, o infeliz comandante da Armada Invencível, que conduziu sua frota à ruína porque preferiu não parecer fraco a ser eficaz? Ou Pierre-Charles-Jean-Baptiste-Silvestre de Villeneuve, que na Batalha de Trafalgar escolheu a bravata em vez da estratégia? E que dizer do capitão Smith, do Titanic, cuja confiança na ‘inafundabilidade’ do navio o levou ao fundo? A vaidade, meus amigos, é uma correnteza traiçoeira que arrasta até os mais poderosos.

    Mas que vitória foi essa, a de Gouveia e Melo? – perguntam os mais distraídos. Ora, não repararam? Então não souberam que cruzaram mares lusitanos, há muito vistos e transcritos, duas fragatas da Rússia, mais uma corveta da Rússia, mais dos navios reabastecedores da Rússia, mais três navios de pesquisa científica da Rússia, mais um navio de (suposta) espionagem da Rússia. Dir-se-ia que, não fosse a Marinha Portuguesa, liderada pelo intrépido Gouveia e Melo, e Portugal estaria na iminência de ser invadido pela famigerada Frota do Norte à bolina desde Severomorsk. Na verdade, só não desembarcaram no Mindelo, os russos, porque houve “uma resposta”, como afiançou Gouveia e Melo aos jornalistas, e uma acção: “segui-los, controlá-los, mantê-los sob pressão constante, com a nossa presença também constante”. Estou a imaginar se ousassem, os russos, ripostar: teriam o triste fim de Alcibíades na expedição siciliana no século quinto antes de Cristo. Eis-vos assim, de graça e por graças de Gouveia e Melo, com “a soberania nacional defendida”. Que frase”! Bem digna de se inscrever no mármore do Torre de Belém, ao lado do “Aqui nasceu Portugal”.

    E, na verdade, conseguiremos alguma vez saber as profundíssimas, e intrinsicamente malignas, intenções dos argonautas de Putin? Um mundo de possibilidades se escantilha, não havendo sequer detidos para elicitar verdades mediante pulsão muscular. Por isso, especulo: os russos desejaram somente saber o preço da sardinha na lota de Matosinhos; ou a densidade do nevoeiro no cabo Espichel; ou se o polvo já andava a mercadejar lotes no fundo do mar, inflaciando o valor das âncoras enferrujadas; ou se o velho farol do Bugio mudara de luz para ‘Light Emitting Diode’, por questões de sustentabilidade; ou se os besugos estavam a conspirar protestos contra a pesca com palangre de fundo; ou se a bússola da caravela perdida do século XVI ainda andava a rodopiar, indecisa entre o sul e a saudade. Ou talvez pressaber pormenores da noite de borga de dois (cara)Melos no bar Cockpit.

    Enfim, marchemos adiante: a frota russa, na versão Gouveia e Melo, saiu derrotada – e nem foi pelo confronto, mas somente pela narrativa, causando mais pasmo. Afinal, em Portugal, quem precisa da glória de uma batalha quando se tem ao pé um triunfal comunicado de imprensa ou um esplendroso pé-de-microfone pré-cozinhado à mão? Quem não inveja o titânico engenho do antigo director dos faróis em transmutar um banal exercício numa homérica epopeia lusitana? Camões, se o visse, de olhos esbugalhados ficaria, incluindo o direito, que perdeu algures, ou alhures – nem ele sabe. Aliás, o Vate ainda agora me disse que se deveria decretar já, se voluntária acção não se impuser, a recolha editorial de todos os exemplares pretéritos e presentes d’Os Lusíadas, para uma competente e justa correcção póstuma da terceira estância do primeiro canto, que assim passará a constar, segundo me ditou:

    Cessem do sábio Grego e da Pompeia
    As navegações grandes que fizeram;
    Cale-se de Alexandre e de Medeia
    A fama das vitórias que tiveram;
    Que eu canto o peito ilustre do Gouveia,
    A quem Neptuno e Putin obedeceram.
    Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
    Que outro valor mais alto se alevanta.

    Direis: e Vasco da Gama e tantos outros? Não foram mais ousados e corajosos? Oh desditosas mulheres e desventurados homens, ambos sem tino: Vasco da Gama e outros tantos foram, deveras, verdadeiros heróis dos mares de antanho, que armados em caravelas navegaram com sucesso em busca de novas rotas e riquezas para a Nação Lusitana; mas todos ficaram rasos aqui, aquém e além-mar, a milhas, do ínclito Gouveia e Melo, que, municiado de câmaras e microfones, como um Atlas marítimo, carregando não o peso do mundo, mas o volume da sua vaidade, atrai mais manchetes do que as sereias de Homero alguma vez imaginariam, mesmo entoando melodias de encantar. Enquanto os heróis de outrora, enfrentavam, é certo, monstros e tormentas, não julgueis que Gouveia e Melo tem menores desafios.

    Se os Albuquerques, os Bartolomeus, os Dias, os Cãos, os Gamas, os Cabrais, os Lopes, os Cortes-Reais, os Magalhães, os Tristões, os Pachecos, os Castros, os Fagundes, os Teixeiras e até os Escobares e os Pinheiros enfrentaram, além de tempestades, o escoburto, o beribéri, a disenteria, a febre tifóide, a malária, a sífilis, a pneumonia, a tuberculose, a escabiose, a pelagra, o raquitismo, mais intoxicações alimentares, e ainda a peste bubónica e a leptospirose, o vosso Gouveia – único, apenas acompanhado pelo Melo, não o Nuno, que esse é só para os pregos – combate, de modo bravo e tenaz, a indiferença a que são botados agora os militares em democracia e tempos de paz, para assim chegar ao cesto da gávea do protagonismo mediático.

    Se os mares bravios de outrora ameaçavam caravelas e corpos, agora não se substime as dificuldades de encerar palavras e poses até ao porto de aclamação pública. Não se subestime, pois, a gesta de Gouveia e Melo, feita não de mapas e astrolábios, mas de soundbites e vaidades.

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    Contam as crónicas que Afonso de Albuquerque, quando conquistou Malaca e se instalou nas Molucas, não perdeu tempo em comunicar os seus feitos. Nem Magalhães, ao circunavegar o globo, publicou boletins diários. Da mesma sorte, Nelson, que despedaçou a frota de Villeneuve em Trafalgar a tiros de canhão, preferiu os seus actos às jactâncias da tinta no papel. Mas Gouveia e Melo, ah, ele é um homem do seu tempo, e entende que a vitória não se forma completa antes de ser compartilhada em alta resolução. Em Full HD, de preferência.

    E aqui chegamos à pergunta que não cala: porque um homem como Gouveia e Melo sente a necessidade de transformar cada operação rotineira numa cruzada épica? A resposta, temo, não está no mar, nem nos búzios, mas na política. Porém, sejamos francos, a vaidade de Gouveia e Melo não é um fim em si mesma; é um meio. Cada comunicado, cada manchete, cada proclamação, cada dentada num prego, sempre em estilo de sobranceira superciliosa empáfia, é um passo em direcção ao Oceano primordial, ou à doce Tétis, isto é, às urnas eleitorais. E, no fim, o narciso só quer um singelo artefacto se chegar à cadeira do Palácio de Belém: um espelho. Ou talvez um pavão.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Crónica de um guru urubu, ou o lacrau ofendido (‘editio princeps’)

    Crónica de um guru urubu, ou o lacrau ofendido (‘editio princeps’)

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta edição especial, o piparote de Brás Cubas mima o guru urubu Luís Paixão Martins, agora lacrau mercenário, o conhecido ‘agente de comunicação’, que ficou ‘arreliado’ com um ‘furo’ jornalístico do PÁGINA UM sobre o encontro nocturno entre o Chefe do Estado-Maior da Armada e o ministro da Defesa, Nuno Melo, num bar, em Lisboa.


    Não há criatura mais fascinante que um guru urubu, essa figura moderna e versátil que povoa o mercado de opiniões e as antecâmaras do poder. Ora rapina, ora rasteja, ora saltita, mas nunca se esquece da sua natureza – sempre calibrado para bicar e a chafurdar em nome de quem lhe paga a conta.

    É, afinal, um agente de comunicação do século XXI: um escultor de narrativas, um virtuoso da manipulação, e, por vezes, um malabarista das aparências. Um velhaco, que aparenta ser uma ave de rapina, mas, na verdade, só rapina. Porém, no caso em questão, o nosso ilustre guru urubu mostrou que, quando mordido por palavras que doem mais que o seu próprio bico, a compostura pode falhar como uma velha ponte ao vento.

    Eis o caso: num cenário digno de crónica do absurdo, o guru da nossa estória – profissional de “construir imagens” para políticos de gestos tão firmes como gelatina e para empresários de ética tão rígida quanto um elástico – viu-se confrontado por uma sentença proferida pelo director do PÁGINA UM, que ousou nomeá-lo não guru urubu, como deveria, mas, chamando o ‘boi pelo nome’, o fez descer do topo dos brilhantes ares para a lúgubre aba de um calhau, dando-lhe epíteto de lacrau mercenário. Não que tal caracterização seja inaudita; é preciso dizer que a fauna comunicacional está repleta de sevandijas equivalentes, embora, eufemisticamente, os nomeiem com expressões mais cândidas, variando entre ‘spin doctor‘ e ‘traficante de influências’.

    Desta vez, o veneno das palavras atravessou as espessas escamas do dito lacrau. O insulto, ao que parece, feriu-o como um espinho peçonhento, talvez porque, na sua infinita ironia, acertou o alvo com precisão cirúrgica. “Maldito negacionista!” – presumo que tenha gritado o guru lacrau antes de partir para o seu golpe final, que, convenhamos, foi menos de mestre e mais de aprendiz: bloqueio nas redes sociais. Ah, que doce vingança é esta de um clique, que elimina o adversário do horizonte digital como quem apaga uma mosca irritante com um peteleco. Mas, como em tudo na vida, o bloqueio tem o efeito de um ‘boomerang’: longe de silenciar, ainda causa mais vontade de amplificar o eco do conflito.

    E que não se pense que o lacrau ficou apenas no bloqueio. A ofensa ainda latejava como artrose em dia de frio. Talvez o movimento dos ferrões o tenha deixado em dores crónicas, porque não só bloqueou, como decidiu, num raro ataque de prolixidade digital, lançar não um, mas dois posts inflamados sobre o PÁGINA UM.

    A ironia, aqui, é tão espessa que quase pode ser cortada à faca: o lacrau, especialista em gerir crises de imagem, acaba ele próprio preso no turbilhão de uma crise que já não sabe controlar. Talvez por excesso de zelo, ou por uma confiança desmesurada no poder do seu ferrão.

    Agora, sejamos justos: o lacrau mercenário não é figura recente na zoologia social. Desde os tempos de Roma, sempre houve aqueles que vendiam os seus talentos retóricos ao melhor licitador. Mas há algo de tragicómico no seu destino contemporâneo. Imagine-se: passou a vida a vender políticos e empresas aos média, a moldar manchetes e fabricar consensos. E agora, neste pequeno escândalo, vê-se desnudo perante a plateia pública, o veneno de outros a corroer-lhe a reputação que tanto cuidou em maquilhar.

    O director do PÁGINA UM – chamado de “negacionista” por esta mesma criatura – sai incólume, exactamente porque não o conhece, o que só o abona por estar longe da peçonha. Afinal, ele não é feito de artifícios comunicacionais, mas de palavras, e estas são as armas que melhor maneja.

    Resta perguntar, por fim: e se o director do PÁGINA UM o tivesse chamado de serpente venenosa em vez de lacrau mercenário? Seria o lacrau capaz de suportar tamanha metáfora? Ou morderia a própria língua, de tão enraivecido, selando assim o seu destino num ciclo irónico de auto-envenenamento?

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Os arabescos retóricos em negação de Maria Luís Albuquerque: uma reflexão

    Os arabescos retóricos em negação de Maria Luís Albuquerque: uma reflexão

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima primeira edição, o piparote de Brás Cubas arremete contra Maria Luís Albuquerque, a nova comissária portuguesa na Comissão Europeia, por mor da logorreia de negações durante a sua apresentação em Bruxelas.


    Aprecio deveras frases retumbantes e grandiloquentes vocábulos, com dotes para se alcandorarem sobre os muros da volátil memória da plebe, impondo-se como lapidares axiomas que, mesmo se de calcanhares de barro, sempre dignas serão de um Panteão em preito ao efémero, encravando-se nos neurónios como epitáfios para aí se perpetuarem, embora por breves momentos, na impossibilidade de se eternizarem. Por exemplo, o mais famoso Sócrates, José de nominata, aprecia proclamações fortes, que muito eu estimo pelo vigoroso e impetuoso léxico, como “golpada judicial”, “sinistro aparelho de produção das mentiras mais escabrosas”, “profunda canalhice” e “cobardia moral”. São autênticos torpedos retóricos, crivados de paixão e despeito, que erguem o insulto ao nível da arte e transformam uma acusação em epopeia.

    Aliás, com amarga nostalgia relembro tropos seus que, lamentavelmente, caíram em desuso na língua de Camões, como infâmia, acinte e azedume, que outrora envergavam uma dignidade ácida mas sedutora. Num cenário ideal, esses vocábulos deveriam reviver nas vossas pragas diárias, para elevar os impropérios ao sublime, à erudita perfídia, de sorte que o insulto se fizesse com elegância, minorando, ou tornando mesmo elogiosa, a ofensa, e confortando o vexado.

    Esse Sócrates não fez escola neste estilo político, na arte da verborreia, mas há um outro mal, que atinge os políticos, e que, aparentemente, copiaram de um Sócrates menos conhecido, o grego: a logorreia.

    Ora, como sabeis, o tal grego clamou, certo dia, a hora incerta, pelo que poderia ser já noite, um axioma: “Só sei que nada sei”. A frase carrega um irónico paradoxo, fundando-se numa autocontradição ao se afirmar uma sabedoria que, curiosamente, se resume à negação do próprio saber. Trata-se, contudo, de um axioma da negação: em vez de destruir, a negação ilumina. Ao declarar que sabe nada, Sócrates professava o conhecimento de uma única certeza: a da sua ignorância.

    Essa afirmação gera, hélas, um efeito de ouroboros filosófico, a mítica serpente que morde a própria cauda, pois se alguém sabe que nada sabe, então possui pelo menos o conhecimento da própria ignorância. Assim, a máxima não é uma rejeição da verdade, mas uma celebração da humildade intelectual, uma abertura ao desconhecido, que torna o saber genuíno possível ao reconhecer as suas fronteiras.

    Porém, sendo certo que o “só sei que nada sei” funciona como uma vacina contra o dogmatismo e a arrogância, tornando o filósofo num D. Quixote do saber, lançado ao mundo não para possuí-lo, mas para questioná-lo, caiu-se na exageração: negar a negação passou a ser, em circuitos políticos, um exercício de prestidigitação retórica, onde as palavras giram sobre si mesmas, como num bailado de lógica invertida, até que o sentido, ou a falta dele, se dissolve nas sombras do absurdo.

    É como se o próprio ouroboros do discurso devorasse o seu rabo de razão, num ciclo infindável de “eu disse o que disse, mas não disse o que queria dizer”, em que se afirma e desmente com a fluidez de uma brisa maliciosa, deixando no ar apenas um rasto de dúvidas. E, ao fim desse malabarismo verbal, talvez a única certeza seja a incerteza – ironicamente, estamos em face do derradeiro triunfo do sofista.

    E assim chegamos a Maria Luís Albuquerque, a indigitada comissária para os Serviços Financeiros e a União de Poupança e Investimentos, que, em Bruxelas, não poupando palavras, investiu no helénico axioma socrático e saiu-lhe tripla negação para o grau de espinhosidade das suas fiduciárias tarefas: “Não tenho ilusões de que não será nada fácil”.

    A pretexto desta intervenção da ex-ministra das Finanças da ‘terrinha’ em Terras de Brabante, mesmo se dita na língua de Shakespeare, merece uma breve reflexão esta arte política – ou melhor, esta ciência ardilosa – de multiplicar negativas para produzir, não clareza, mas um nevoeiro espesso de ilusões.

    Desde o túmulo, convencido cada vez mais estou, e mais até do que estava quando sobre a terra perambulava, de que o engenho e a nobreza de espírito podem existir tanto nas sinapses que sublimaram Kant, a ponderar sobre a ‘coisa-em-si’, ou nas que afundaram Hegel, a decifrar os labirintos da dialética, como nos impulso da mioleira dos políticos que verborreiam uma alquimia discursiva onde a afirmação se dilui e a verdade se suspende, transformando cada frase numa teia impenetrável de nulidades, como se o objetivo último fosse o de não dizer absolutamente nada, mas disfarçado com eloquência e pompa.

    Ora, mas direis: Maria Luís Albuquerque não esteve ali a enganar ninguém, mas apenas a comunicar. Porém, é aí que entra a questão da negativa sobre a negativa: um duplo ou triplo “não”, ao invés de anular-se como nos manuais de álgebra de um professor entediado, apenas atira a audiência numa espiral de perplexidade. Vejamos antes a palavra como “ilusão” – que evoca imagens platónicas e poéticas de sombras e luzes, com uma leve pitada de Rousseau – precedeu logo duas ou três construções que apenas se justificam para confundir.

    Talvez, ao fim do turbilhão gramatical, o pobre cidadão, exausto, já aceite o discurso como uma verdade intrínseca, como uma segunda natureza. Afinal, se algo é repetido, mesmo com tamanha tortuosidade, quem ousará dizer que nada, absolutamente nada, ali faz sentido?

    Julgo ter sido Nietzsche que, em tirada cínica, defendeu que a mentira serve, em primeira e última instância, para proteger o mentiroso, ou o político faltoso. Assim, se mentir, dissimular, forjar e deturpar são artesanias da política, então nada mais justo que sejam temperadas de pitadas generosas de logorreia com a profundidade de tripla negação e complexidade gramatical bastante para causar tremores a qualquer noviço das letras.

    Na verdade, as negativas dobradas e triplicadas que pululam nas frases políticas, como se quisessem lançar poeira aos olhos do ouvinte, funcionam como uma espécie de defesa prévia contra a indagação; tornam-se uma cortina de fumaça densa, atrás da qual se esconde o mesmo velho temor de que o discurso revele uma fragilidade desconcertante.

    Ao invés dos escritores e poetas, que lançam mão da multiplicidade de significados e da riqueza vocabular para compor as suas obras numa tapeçaria em filigrana, o político limita-se a driblar e desviar, a “não dizer” com prolixidade. Afinal, se como nos diz Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”, para um político “complicar é preciso, cumprir não é preciso”.

    O discurso político hoje deve dizer, ao mesmo tempo, tudo e nada: é como o gato de Schrödinger, presente e ausente na mesma frase. A retórica é tanta, o rodeio tal que talvez o próprio político já nem saiba o que quis dizer. Estamos defronte de um verdadeiro campo minado de palavras, onde o objetivo é deixar um rastro que nada explica, mas que evita o apedrejamento público.

    Prevejo assim que Maria Luís Albuquerque queira, em tom de introspecção perfomativa no final do seu mandato em Bruxelas, declarar sobre o seu desempenho: “Não posso deixar de não acreditar que não há razão para não duvidar de que o meu projecto não tenha fracassado.”

    Poupo-vos ao labor de discernir este enigma de penta-negações digno de teatro do absurdo, onde qualquer personagem, aí sim, deve cair no ridículo, mas com elegância. Sugiro, por isso, à Maria Luís que declare somente: “Acho que fracassei”. Sem pirotecnia verbal nem arabescos retóricos. Inteligível. E fiel à realidade.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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