Autor: Brás Cubas

  • ‘Habemus cadaver’: soltem as notícias!

    ‘Habemus cadaver’: soltem as notícias!


    Se há algo que me solaz verdadeiramente, deste lado da existência — onde já não há boletins informativos, apenas o sussurro longínquo da Eternidade e os ecos maliciosos da vaidade humana —, é observar a sofreguidão com que os vivos se apressam a escrever sobre os mortos antes mesmo que o corpo arrefeça, quiçá ainda morno de unção.

    De ordinário, a imprensa, essa liturgia do efémero, converte-se então de súbito — e com piedosa avidez — numa oficina de beatificações laicas, onde se compõem hinos elegíacos com a diligência de um sacristão em véspera de enterro de bispo. Bastam dez minutos de agonia — um soluço mal digerido, uma síncope mais dramática — para que brotem dos teclados as mais extensas endechas e pungentes epicédios, verdadeiros elogia funebria..

    Para a imprensa, que já não distingue entre o exitus e o incipit, a morte — esse derradeiro e solene acto biográfico — já não representa o fim de uma vida, mas sim o princípio de uma maratona editorial, uma espécie de Pentecostes necrológico em que todos falam ao mesmo tempo, em todas as línguas, sobre o mesmo cadáver. E se o dito for um Papa…

    Confesso, aliás, que eu próprio estive para escrever esta crónica há umas semanas, talvez no exacto dia em que se espalhou, com zelo quase apostólico, a pneumonia bilateral de Jorge Mario Bergoglio — um rumor sobre o derradeiro momento que viajou com mais velocidade do que muitos dos seus motu proprios. Hesitei também quando o cotovelo do Santo Padre roçou uma marquesa hospitalar, esse altar clínico moderno onde tantos papas se tornam, enfim, mortais. Ou ainda — e talvez com mais tentação literária — quando a Santa Sé, num gesto de inusitada transparência (ou prudente previsão), começou a enviar aos jornalistas credenciados material de apoio à hagiografia redaccional, incluindo resumos biográficos laudatórios, instruções para subtítulos comoventes, modelos de manchetes beatíficas e notas de rodapé sobre a liturgia da escolha do próximo pontífice, com habemus papabile e tudo.

    Mas enfim… procrastinei-a, delonguei-a, adiei-a, suspendi-a, posterguei-a, negligenciei-a e, por fim, desdenhei-a, com a brandura própria de quem já passou pela alfândega do Além e sabe que um morto, por mais literato que tenha sido em vida, tem sempre assuntos mais urgentes do que redigir panegíricos sobre outros defuntos ou dar varada nos abutres que tecem loas com penas de avestruz emocional e tinteiro de conveniência. A verdade é esta: há mortos que têm pressa em serem celebrados — e outros, como eu, que têm mais que fazer.

    E aqui estamos a escrever à pressa, embora a minha intenção nunca fora escrever sobre o Papa, mas sim sobre estes tempos modernos onde a morte dos importantes é precedida por obituários em embargo, prontos a saltar do purgatório digital para a glória tipográfica assim que o electrocardiograma deixar de fazer piruetas.

    E assim aqui estou eu, com esta crónica, a constatar o óbvio: Francisco — o pontífice dos gestos, das metáforas de evangelho reciclado e dos sapatos de sola jesuíta — ainda não esfriou os dedos do rosário e já lhe compuseram o epitáfio em cinquenta idiomas — ou mais, segundo consta, até em esperanto vaticanês —, cada um mais reverente que o anterior, como se toda a imprensa mundial se tivesse convertido de súbito à Sancta Ecclesia Catholica, Apostolica, Romana et Mediaticamente Oportunista. E louvam-lhe a humildade com tamanha empáfia que um eremita das Astúrias se sentiria mundano, um trapista belga pareceria tagarela, e um cartuxo da Bretanha soaria a influencer digital.

    E repete-se tudo isto, em milhares de colunas, especiais televisivos e podcasts devotos, a mesma melodia piedosa: o homem do povo, o reformador possível, o pastor ternurento. O tom é de ladainha com layout modernizado. E o que mais me faz rir — e note-se que o riso, entre os mortos, é um acto de resistência e de elegância — é a antecipação.

    Faz-se tudo isto em catadupa porque, hélas, há muito estava tudo já escrito. Todos os textos estavam preparados desde os tempos em que o desditoso Francisco— ou ditoso, porque dos vivos se livra — ainda subia escadas sem apoio e discursava com o vigor de seminarista inflamado

    Já o velhinho arcebispo argentino se queixava das dores nas costas e arquejava, ofegante e curvado, como quem carrega mesmo nas vértebras o peso simbólico da cátedra de Pedro e as contradições de um pontificado de sorrisos humildes e bastidores tensos — e nas grandes redacções escrevinhava-se, como quem compõe o menu da última ceia, o seu obituário. Não se fez isto por devoção, não por reconhecimento sincero, mas porque a morte alheia rende cliques, como antigamente rendia indulgências.

    A verdade, devotas leitoras e reverentes leitores, é que entre os vivos cultiva-se uma ciência antiga e obscena: a necroexpectativa. Não é exactamente desejar a morte — é apenas preparar-se para colher dela os dividendos simbólicos e profissionais. As redacções fervilham com dossiers sobre presidentes caducos, actores com acidentes vasculares cerebrais recidivantes, filósofos com Alzheimer, cantores com arritmia, atletas com demência precoce… e papas. Sobretudo papas. Há um gozo mórbido e metódico em estar pronto antes do próprio defunto. As lágrimas que se vertem nas linhas são bem calculadas: choram-se tronos vagos, púlpitos libertos, audiências reencaminhadas para novos vultos.

    A morte de um Papa, mais do que comoção, é reposicionamento geopolítico, reconfiguração de influências eclesiásticas, rearranjo de carreiras episcopais, reacerto de colunas de opinião. Sempre se apreciou isto. Já há bispos a limpar a batina, cardeais a actualizar contactos, monseigneurs a rever selfies com o pontífice, teólogos a publicar análises para se fazerem notar no radar do Espírito Santo — ou, vá lá, dos eleitores com barrete escarlate.

    As palavras de pesar vêm sempre acompanhadas, nas entrelinhas, de um leve eufemismo de alívio e um subtil tremor de expectativa: a história recomeça, e há lugares por preencher.

    Eis a hipocrisia suprema dos vivos: choram a perda de quem lhes atrapalhava os planos. Não por malícia, entenda-se — mas por pura fisiologia da ambição. A morte do outro é, quase sempre, um fim, pelo menos teórico, nas limitações que ele nos impunha. Lembro-me, quando morri, de ter ouvido de um velho conhecido — desses que em vida me dispensavam salamaleques mecânicos — um discurso pungente sobre a minha inteligência, o meu espírito e o meu estilo. Nunca mo dissera em vida. Mas morto, tornei-me elogiável. Porque já não lhe disputava os favores da posteridade. Porque já não lhe respondia.

    Assim é com o Papa — e com tantos outros. Enquanto vivos, são obstáculo; depois de mortos, são ornamento. Já não incomodam: emolduram. Transformam-se em bustos, em títulos honoríficos, em temas de conferência. Tornam-se, por fim, matéria moldável: sem voz, sem réplica, sem dissenso. A santidade, como a grandeza, é quase sempre uma construção póstuma com a argamassa da conveniência.

    E a imprensa? Ah, essa escreve com a pena da emoção e o tinteiro da estatística. Porque sabem, os vivos, que a morte é o maior algoritmo. Um Papa morto é mais citado que um Papa vivo. Um poeta morto é mais vendido. Um actor morto é mais ovacionado. A morte, para os vivos, é uma promoção.

    E não penseis que escrevo assim por despeito. Eu próprio, Brás Cubas, só fui plenamente lido depois de morto. Em vida, era apenas um diletante com vaidades. Agora? Agora sou um clássico. E isso, permiti-me dizê-lo com modéstia necrológica, é a minha vingança mais subtil.

    Termino com uma sugestão aos ainda respirantes: escrevei já os obituários dos vossos ídolos, rivais e superiores — quiçá o vosso próprio. Estareis mais descansados no dia em que o coração deles parar, e garantireis as melhores prosas quando vós próprios vos finardes. Mas, sobretudo, ide treinando o choro — pois na hora da morte alheia é necessário parecer triste… e estar discretamente pronto para ocupar o lugar deixado vago. A morte é, para o defunto, o fecho de uma porta; para os vivos, é um átrio iluminado onde cada um corre para ver se chega primeiro ao cadeirão que ficou sem dono.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • ‘Tenham noção’ da hipocrisia do Rodrigo

    ‘Tenham noção’ da hipocrisia do Rodrigo


    Do conforto da eternidade, com a serenidade estoica de quem já não teme as represálias nem a execração pública — essas sanções que ultrajam os vivos mas não alcançam os defuntos —, aprecio observar as deambulações e circunvoluções morais de certos indivíduos que nunca lograram ser coisa alguma, mas aspiram a tudo. E noto sempre, com o pasmo plácido dos desencarnados, um fenómeno digno de ladainha e troça: após temporadas de impudente desonra, eis que ressurgem eles, na praça, como santidades reabilitadas — lavadinhos de alma, enxutos de culpa e trajados com as vestes purificadas de quem se julga isento de mácula, como se fossem virgens do pecado ou, se não o foram, houvessem sido absolvidos por decreto celestial ou esquecidos por conveniência social.

    Mais do que o prazer de ver o demagogo engasgar-se com o próprio sermão, deleita-me contemplar o funcionamento primoroso da lavandaria moral dos inescrupulosos: moderna, eficiente, com centrifugação ideológica, ciclo rápido de penitência mediática e perfume persistente de auto-indulgência. Nada de tinas de zinco nem saponificações de antigamente com cinzas de sobreiro e sebo de boi — trata-se agora de um dispositivo ético-industrial, homologado pela opinião pública, com função de branqueamento imediato e secagem a quente, no calor das palmas.

    Não, minhas dilectas donzelas e estimados cavalheiros — não venho falar-vos de lavadeiras nem de roupas sujas da plebe. Refiro-me, sim, aos escudeiros das supostas boas causas, outrora investidos de microfone na lapela, sobrancelha arqueada e voz de sepulcro, que se armaram, em tempos de peste, em arautos do Apocalipse. Eram os pregadores de um novo evangelho científico — do tipo revelado, não demonstrado — que impunham a vara da virtude sanitária para fustigar os tresmalhados da Verdade instituída.

    Mas agora, passada a borrasca e dissipado o pânico, os mesmos surgem com novo figurino: apóstolos da dúvida, soldados da consciência crítica, paladinos da pluralidade, arautos da rebeldia temperada. São os mesmos rostos, mas com decalque ideológico diferente — os mesmos lábios que ontem decretavam o exílio do herege, hoje murmuram sobre a importância da escuta. Onde antes marchavam com o catecismo da obediência, desfilam agora com os tambores da dissidência.

    Já tereis concluído: mirei nova vítima dos meus dardos epigramáticos. Não me contenho. Sim, confesso: é mais forte do que eu, mais antigo do que as Tábuas da Lei e mais instintivo do que a saliva do moralista. Onde há pose, lanço sátira; onde encontro gravidade postiça, aponto ironia; e onde houver bambu — metafórico ou institucional —, armo a verve e disparo a troça.

    Afinal, para que serve esta eternidade desocupada, senão para exercer o olímpico direito de ridicularizar os vivos que se levam demasiado a sério? Não tenho impostos a pagar, nem pele a salvar, nem imagem a preservar. Abro os olhos da alma (porque os outros já se foram com as traças) e observo. E, quando vislumbro um rosto que outrora ruborizou de escândalo e agora resplandece de candura reabilitada, não há querubim do purgatório que me detenha.

    “Foi uma honra conhecê-lo, Vice-Almirante, pessoa rara e inesquecível. Um dia se perceberá o quanto lhe devemos, e como foi sereno e firme em tempos tão estranhos. Obrigado por tudo”, Rodrigo Guedes de Carvalho (rgcboss) dixit, em 28 de Serembro de 2021.

    Bem sei: há os que pregam a paz, aqueles que discursam sobre a memória, aqueloutros que celebram a reconciliação — e depois há ainda os poucos, como eu, que atiram dardos. Não por crueldade, mas por fidelidade à precisão. Não por ressentimento, mas por zelo da verdade esquecida. Não por gosto de ferir, mas por obrigação moral de rasgar disfarces. Não por nostalgia do escândalo, mas por aversão à impunidade vestida de introspecção. Não por espírito de revanche, mas por resistência ao apagamento cerimonioso do passado recente.. Há figuras que pedem sátira como as paredes sujas pedem cal. E há vaidades que apenas se purificam com vinagre, aplicado com esponja retórica e uma pitada de fel. Portanto, não estranheis. Quando sentirdes o zumbido do sarcasmo e da ironia passando rente ao chapéu da compostura pública e a perfurar o ego dos pavões empoleirados, sabei: por aqui, enquanto houver bambu, lá vai flecha!

    E hoje, bem no centro do alvo, temos Rodrigo Guedes de Carvalho — nome de escriba e pose de cônsul romano. Em tempos pandémicos, empoleirado no púlpito higienista da SIC, fazia das notícias um auto-de-fé, separando o povo entre fiéis e infiéis. Lançava anátemas retóricos contra os que ousavam interrogar os dogmas sanitaristas e, com o tom compungido de um penitente laico, condenava o desvio do pensamento como se fora heresia mortal. O altar não era o Sinai, era o estúdio. E não falava com Deus, mas com o teleponto. Ainda assim, recebia louvores dos deuses — ou, pelo menos, do primeiro-ministro António Costa. E digam-me, em boa fé: que mais pode ambicionar um jornalista supostamente independente do que o elogio público, em prime time, do chefe do Governo que devia escrutinar?

    Rodrigo foi, pelos idos de um passado ainda morno, um sacerdote da Verdade Oficial — com a gravidade moral de quem, na sua superciliosa empáfia, acreditava piamente que salvaria a Humanidade se, entre uma pausa dramática e um franzir de sobrancelha, bradasse um “Tenham noção!”. Para ele, a dúvida era lepra, o contraditório uma heresia, os números — especialmente os do boletim diário dos óbitos e internados em unidades de cuidados intensivos — relíquias sagradas, e as restrições, sacramentos higiénicos rumo à salvação colectiva. A máscara, mais do que barreira viral, era escapulário de fé profiláctica, símbolo de adesão ao novo culto biossanitário. E quem ousasse não comungar da liturgia imposta era logo ungido com o selo infamante de “negacionista” — a mais recente encarnação do pecador moderno, expulso do templo mediático com a fúria dos escribas e a bênção do teleponto.

    Mas agora — ó delícia destes tempos anfíbios — Rodrigo Guedes de Carvalho apresenta-se com indumentária nova. “Desde criança que não me encaixo…”, escreveu ele no Expresso — esse panfleto empertigado que celebra solenemente parcerias com farmacêuticas enquanto faz juras de independência — como quem sai, desajeitado, de um romance de Salinger lido à pressa e com o marcador ainda no prefácio. Notem bem a lírica melanólica deste pós-adolescente iluminado já com idade e calvície de avô:

    Desde criança que não consigo encaixar-me se continuam a garantir-me que nesta vida só há líderes e seguidores. Não tenho pretensões de profeta, mas muito menos vontade de ser ovelha, esmagada entre milhões de cópias, sempre à espera que me indiquem modas. Em breve haverá uma nova tendência. E milhões partilharão seja o que for para fazerem parte. Embora não saibam bem de quê.

    Convenhamos, é comovedor — tão comovedor quanto conveniente para causar aqueles sublimes espasmos afectivos que só a boa encenação proporciona. Proclama-se ele agora alheio às modas, mostra-se crítico dos líderes e dos seguidores, como se tivesse passado os anos pandémicos fechado numa cripta, sem rede, alheado da sua própria voz e do eco das suas homilias. Quer-se agora lobo solitário — depois de ter guiado, com zelo pastoral, o rebanho inteiro até ao curral sanitário.

    Rodrigo lembra-me uma tragédia de Eurípides. Dir-se-ia um Penteu ressuscitado — aquele que, depois de espiar as bacantes, foi por elas despedaçado no auge do delírio dionisíaco — e regressado agora das entranhas do Hades com uma coroa de videira na cabeça e um discurso reciclado sobre liberdade de culto. Ou talvez se aproxime mais de um Torquemada aposentado, a publicar uma elegia à dúvida metódica e à tolerância de pensamento, como se os autos-de-fé fossem simples escorregadelas juvenis, próprias de quem andava a descobrir-se. Melhor ainda: Rodrigo reaparece como quem cai de um cavalo na estrada de Damasco — mas sem a luz divina, apenas com o reflexo de um ring light e o eco amortecido do seu próprio sermão moralizante.

    Se por acaso andasse hoje a passear pelos salões do vosso mundo mediático — não com bengala, mas com sobrancelha arqueada —, Alexis de Tocqueville talvez baptizasse este fenómeno como “a metamorfose democrática do censor em vítima estética”. A reescrita biográfica tornou-se agora uma espécie de epopeia doméstica: cada qual reinventa-se ao sabor da corrente, como um Ulisses sem naufrágio nem saudade, mas com contrato de edição e entrevista marcada no Goucha ou no Daniel Oliveira. Ou em ambos. Arrisco dizer que Foucault, envergando a sua batina crítica, veria no comportamento do rgcboss — como se apresenta Rodrigo nas redes sociais —a elegante circulação de poderes pós-discursivos, talvez um recuo estratégico nos dispositivos de enunciação. Já eu, com menos pedantismo e mais convivência com almas deslavadas, chamo-lhe, com a franqueza que me assiste: pura e simples aldrabice.

    Na verdade, Rodrigo, como Páris de Tróia, fez uma escolha: em tempos que exigiam coragem e assertividade, preferiu a vaidade do reconhecimento público ao incómodo da dúvida honesta. Como Alcibíades, seduziu as massas com retórica lustrada e, como os sofistas de Atenas, adorou o som das próprias palavras mais do que a verdade que lhes deveria caber. Agora, com um gesto estudado e olhar de penitente contemplativo, tenta imitar o silêncio resignado de Antígona — como se nunca tivesse berrado com a convicção inflexível de Creonte.

    Ah, mas o estilo! O seu escrito no Expresso — essa peça de exegese narcisista — é uma mistura pouco homogénea de Genesis (a banda) com génese (a sua), entrelaçada numa prosa de lençóis desdobrados e tendências de meia estação, nostalgias de infância e frases semi-poéticas. Ali, o banal veste-se de profundo com ares de quem frequenta cafés literários; a introspecção exibe-se como epifania, mas funciona sobretudo como detergente moral. A roupa, note-se, não está propriamente limpa — apenas cheira melhor. E é tudo o que parece interessar hoje: não lavar, mas perfumar.

    O problema de Rodrigo Guedes de Carvalho não reside em ter mudado de opinião — isso, aliás, é apanágio dos espíritos livres e das mentes em movimento. O busílis está em mudar de pele como a serpente, sem jamais reconhecer o veneno que inoculou com a anterior. Rodrigo, como tantos outros deste tempo líquido, é um homem sem passado: não tem história, apenas sucessivas versões de si próprio, arquivadas como actualizações de software — cada uma incompatível com a anterior, mas todas, curiosamente, destituídas de culpa.

    Dir-me-ão: “Mas ele é sensível, escreve livros, fala de música, chora nos lençóis!” Sim, também Nero tocava lira enquanto Roma ardia. E as lágrimas, como bem sabia Françoise de La Rochefoucauld, esse mestre das epigramas, são por vezes apenas o hipócrito disfarce do vício a render homenagem à virtude. Que Rodrigo sinta, não duvido. Mas os crocodilos também choram — e, no entanto, devoram.

    Se Hobbes viu o homem como lobo do homem, os novi-moralistas são ovelhas com pele de lobo — não para atacar, mas para parecer ferozes quando já ninguém os ameaça. São também os pós-moralistas: não porque erraram, mas porque fingem nunca ter errado. São os novos Pilatos do vosso tempo: lavaram as mãos e passaram álcool-gel diante da multidão, enquanto levavam os outros ao crucifixo.

    Na política, chamam-se a isto transformistas. Na televisão, pivots. Mas, no fundo, são iguais: espelhos que reflectem o gosto da audiência. Ontem foram apóstolos do medo. Hoje são mártires da autenticidade. Amanhã? Amanhã serão outra qualquer coisa, que der mais jeito — mas jurarão que sempre o foram.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • ‘sam-de-kid’, ou 100 maneiras de chamar burro a um asno

    ‘sam-de-kid’, ou 100 maneiras de chamar burro a um asno


    Dizia-me certo velho frade de Santo Agostinho — homem de escassa cabeleira, mas longas latinadas, embora erudito — que a verdadeira ignorância nunca se apresenta sozinha, mas surge sempre com ar grave de sabedoria alheia, qual papagaio em toga. E como as moscas que invadem a casa, os cães que se aventuram pela Igreja e os burros que se embrenham na biblioteca, não pedem licença: mas zumbem, ladram e zurram como se tivessem caiado as paredes, cinzelado os turíbulos e redigido os códices.

    Serve este célere intróito para declarar — com o espanto comedido de quem já viu um bispo tocar maracas numa homilia — que, mesmo sabendo disto, nem nos tempos em que me dava à metafísica da modorra e ao tédio da razão imaginei assistir ao dia em que um vate de microfone, de nome Sam the Kid (o qual, diga-se, soa a detergente juvenil ou a suplemento vitamínico para cérebros anémicos), se proclamaria legislador da língua portuguesa.

    Ou, melhor dizendo, um sintactólatra — termo que aqui crio para designar o sujeito possuído por um fervor gramatical egocêntrico, crente de que a sintaxe se curva à sua própria batida.

    Este cidadão da rima fácil, que julga que o génio se mede em decibéis e que a eloquência se alcança com boné de pala e pose de apóstolo suburbano, resolveu arrogar-se autoridade filológica — só porque encontrou, entre os becos da academia, um professor de Letras, um tal Marco Neves, que julga ser vanguarda dar aulas ao lado de um rapper, numa espécie de catedrático-da-bandalheira.

    Pois veio agora Samuel Mira, o ortónimo do bardo do beat, com ufania digna de um Napoleão de capuz e sneakers, que tem o “direito” de forjicar a sua própria gramática. Disse — pasme-se, leitor já habituado ao circo — que não há mal algum em dizer facar, quando o verbo correcto é esfaquear; que se pode muito bem dizer altivismo, mesmo sabendo que se diz altivez — e fá-lo, presume-se, por um acto de resistência semântica, como quem grafita erros em paredes sintácticas —; e que até o já célebre há-des (esse grito de guerra dos ignorantes com convicção) deve ser aceite como legítimo, pois, segundo o novo cânone do desleixo militante, já é “tão usado, há tanto tempo, por tanta gente”, que já ganhou o direito consuetudinário à parvoíce instituída. Sim, “na boa”. Sim, porque neste novo regime linguístico — uma espécie de República Popular da Prosódia Desviante —, a frequência substitui a correcção, o erro reiterado passa por inovação, e a ignorância, desde que tatuada em rima e projectada por colunas com subwoofer, transforma-se em decreto.

    E com ares de profeta suburbano, misto de seminarista da quebrada e condestável do calão, o Sam ainda avisa — entre trejeitos, poses e meneios coreográficos —: “Respeita a minha gramática”, com o tom ameaçador de quem saca de uma esfaca para te facar caso ouses questionar a vontade soberana do kid.

    Trata-se, pois, não de uma revolução séria — dessas com tochas, tambores e tratados —, mas de uma rebelião gramatical de pantufas, conduzida por um gramaticida doméstico, um lexicofractário de rima solta, um seditionário da sintaxe armado de boné e ego ampliado por reverberação digital. Sam the Kid não ergue barricadas com livros, mas com podcasts; não cita Quintiliano, mas berra punchlines — com fúria e convicção — como quem confunde a ablativa latina com o abanar da cabeça.

    Como profeta do erro consagrado, ergue-se aqui um Moisés do calão, abrindo o Mar Vermelho da ortografia com a tábua do “porque apetece-me”. Acredita ele piamente que o idioma é um plasma moldável, um slime linguístico onde se enfiam os dedos e se inventa, ao sabor do beat, uma nova morfologia: mais flexível que um pronome indefinido, mais líquida que uma preposição num copo de plástico. Ah, se Camões erguesse a cabeça! Tê-lo-íamos a duelar com rimas afiadas como lâminas. E se Vieira ainda soprasse no púlpito da lógica, havia de fulminar tal criatura com sete sermões e oito exorcismos.

    Mas regressemos ao ponto: a língua, senhor Kid, não é uma coutada privada, nem um brinquedo de vaidades momentâneas. A língua é um corpo vivo, sim — mas vivo porque tem ossatura, nervos, coração e memória. E a sua vitalidade não provém de abastardar-se com “há-des” e “altivismos”, mas de se reinventar a partir do que é nobre, fecundo e belo. Só um néscio com pretensões a doutrinador popular é capaz de confundir plasticidade com palermice.

    Ainda ousas perguntar quem é o dono da palavra, sugerindo que como pertence ao povo, és o seu representante – logo, tens carta branca. Pois escutai agora, em nome do mais finado e ressuscitado dos prosadores: a palavra, meu caro trovador de calão e beatbox, não tem dono, é certo — mas tem tutela. Está sob a guarda severa da razão, da tradição e do bom senso, esses velhos juristas do vernáculo que zelam pela dignidade da língua como um mordomo inglês vela por uma prataria centenária. Não se lhe chega de boné ao contrário, nem se lhe transmuta a ortografia como quem troca de sapatilhas — sob pena de a converteres, não em arte, mas em charada.

    Queres ‘gramaticalizar’ o mundo à tua maneira? Muito bem — também o lunático na enfermaria desenha mapas novos da Terra com feijões e cotão, mas ninguém por isso lhe encomenda um atlas.

    Dir-me-ás talvez que a língua é viva, que se reinventa, que floresce nas ruas como erva daninha. Concedo. Mas mesmo a erva daninha tem nome botânico e regras de poda. O latim deixou-nos raízes, declinações e ordem — não para nos tolher a alma, mas para nos evitar a vergonha de dizer “há-des” em pleno Senado da lógica.

    Queres inventar palavras, substituir vocábulos existentes por gírias ocas, julgando que descobres a pólvora linguística? Pois te digo: a língua, como o amor, não precisa de novas posições a cada minuto para provar que é criativa. Às vezes basta declinar bem o verbo ‘respeitar’ — sobretudo quando se fala de palavras que vêm de Homero, de Camões ou de Vieira.

    Queres ser dono da palavra? Merece antes ser servo dela, pois só quem a serve com rigor, com humildade e com leitura é que pode, um dia, quiçá, ser admitido à sua mesa — e talvez, só talvez, autorizado a pôr-lhe um novo talher.

    Não queiras cair no ridículo de inventar vocábulos numa língua que possui mais de um milhão — sim, mais de um milhão! — de termos já cunhados, polidos, declinados e redimidos por séculos de uso, abuso e génio. Uma língua que foi cultivada por Camões, lavrada por Vieira, ordenada por Bluteau, enobrecida por Garrett, tresvariada por Pessoa e reinventada — quando necessário, e só quando necessário — por mestres que sabiam a diferença entre neologismo e narcisismo. Antes de presumires que falta à língua uma palavra, considera se não será a tua cabeça que tem vocábulos a mais e leitura a menos.

    Contempla a elasticidade, plasticidade e riqueza desta língua de séculos, caro Samuel. Vede, por exemplo, para burro — esse monumento à teimosia encadernada —, consigo dizer-te noventa e nove, bem contados, vocábulos:

    abécula, abobado, abestado, abombado, acéfalo, alarve, anta, aparvalhado, asinino, asno, atabalhoado, atrasado, atoleimado, avantesma, aselha, babaca, babão, bacoco, balordo, baralhado, baré, barranqueiro, basbaque, basofo, badano, beócio, boçal, bobinho, bobo, bocó, bodó, bronco, bruto, cabeçudo, calhau, canhestro, carolo, choné, chucro, cromo, desassisado, desmiolado, desorientado, desprovido, destrambelhado, energúmeno, entaramelado, estólido, estorvo, estroina, estúpido, estulto, fátuo, gagá, galfarro, ignaro, idiota, imbecil, inapto, inepto, insensato, inútil, jegue, labrego, lerdaço, lerdo, lorpa, matóide, mentecapto, néscio, obtuso, pacóvio, palerma, papalvo, panaca, panhonha, parvo, pascácio, paspalhão, paspalho, pateta, patego, pachola, simplório, sandeu, tapado, tanso, toleirão, tolinho, tolo, tonto, trambolho, trengo, zarolho; zurrador.

    Não queiras tu, com diatribes linguísticas — meio freestyle, meio fricassé —, que o teu pseudónimo enriqueça, sob forma etimológica e fanhosa, a língua portuguesa. Porque se insistes muito, ainda verás, em futura edição do vocabulário, uma entrada assim grafada:

    sam-de-kid, s. 2g. Indivíduo compelido a paroxismos de jactância analfabeta, fenómeno linguístico em que, munido de rimas pobres e confiança desmedida, este se proclama guardião da língua enquanto a espanca em praça pública. Designa também o acto de misturar ignorância gramatical com convicção artística, quando se acredita que o solecismo, se berrado ao microfone, se transforma em estilo. Frequentemente associado a declarações de amor à língua portuguesa que envolvem a omissão do sujeito, a morte do predicado e um enterro do clítico com beat de fundo.

    E o verbete figurará entre “asinice” e “atrocidade”, como quem ocupa o lugar do meio numa ceia de equídeos. Tem dó, Samuel: não bastava à pobre mula já carregar sobre o lombo o peso da ignorância humana — agora arrisca suportar também o teu ego sem dicionário. Cuida de ti: e não te esforces em demasia, porque se insistes em revolver a gramática com as patas do capricho fonético, és capaz até de destronar o próprio burro, relegando-o a um simples quadrúpede sensato, ao pé da tua acéfala arrogância de bípede com manias de poeta e legislador. E então aí, burro passará a ser somente o centésimo sinónimo possível de sam-de-kid.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • Francisco Louçã quis ‘slay’; saiu ‘cringe’

    Francisco Louçã quis ‘slay’; saiu ‘cringe’


    Mostra-se infalível: sempre chega o instante na vida de um ideólogo – sobretudo se esquerda, amiúde sofredor de uma hiperactividade doutrinária crónica – em que o espírito, esse traidor de causas maiores, deixa de clamar por revoluções e passa a sussurrar por relevância. Tal como os alquimistas do século XVII que, fracassando na transmutação do chumbo em ouro, acabaram por se consagrar à nobre arte de fabricar poções para a virilidade — entre elas o infame pó de cantárida e o elixir de testículos de cabra pulverizados em vinho da Dalmácia —, também os revolucionários em fim de ciclo se entregam às sublimações do ego, buscando nas fórmulas da juventude uma espécie de tisanas para a longevidade política.

    Já nem se trata de instaurar o comunismo ou outra utopia de catálogo, mas de assegurar uns míseros quinze segundos de atenção — com música de fundo, legendas a piscar e, se possível, um filtro de Instagram ou do X que amacie as rugas ideológicas. Nem que, para isso, se troque o Manifesto Comunista — ou outra relíquia do arsenal panfletário — pelo manual do bom criador de conteúdos virais, numa transição tão abjecta que faria corar o próprio Conde de Saint-Simon… ou ao menos levá-lo a pedir moderação em francês clássico.

    Nessa travessia do ideal para o idoso e daí para o odioso — que é, no fundo, uma forma trágica de dialéctica —, grandes nomes da esquerda contemporânea reinventaram-se e tornam-se agora figuras burlescas de um teatro que já não se representa nas praças, mas nos ecrãs verticais dos telemóveis. Onde outrora se discutia a luta de classes e a mais-valia, discute-se o alcance, o engajamento, o timing de publicação e a correcta conjugação de expressões anglo-lusitanas com apelos ao proletariado, embora a malta nova já ignore do que se trata. Não admira, pois, que, em certos corredores da política nacional, se oiça já um sussurro anacrónico: “X ou morte!” — parafraseando, com os devidos ajustes de época e de ridículo, a velha consigna dos radicais do século passado.

    E eis que surge, neste contexto, apanhado nas redes sociais, em campanha eleitoral, o ressuscitado trotskista e economista Francisco Louçã — já curricularizado com o cargo de conselheiro de Estado e de conselheiro do capitalista Banco de Portugal — sentado numa poltrona de couro, como um reformado que aguarda o boletim meteorológico, debitando com fôlego declinante frases em catadupa que parecem saídas de uma sinapse entre a Avenida Almirante Reis e o Urban Dictionary: “Late stage capitalism está giving…”, ouvi-o, por exemplo. O que está giving, ninguém sabe. Mas o que está suffering, disso tenho a certeza: a dignidade da linguagem política e a memória de Karl Marx.

    A seu lado, ou em plano de fundo, em momices e memices, oferece-se um Che Guevara de gafas em estágio Erasmus, de camisa de militante vintage, encarnando o revolucionário de subscrição mensal no Spotify, em busca de luz própria. Sem o conhecer, arrisco que, ideologicamente, balanceia entre o trotskismo artesanal e o romantismo guevarista de café, onde o socialismo se serve, agora, com espuma de aveia. Sorri, ri e baba-se, com água na boca, e parece crer estar a protagonizar uma revolução. Talvez estética. Talvez apenas salivar.

    Que diriam Engels e Marx perante este teatro de pose e pastiche? Talvez recordassem, com melancolia, o tempo em que escrever exigia pensamento — e não apenas um microfone, uma câmara frontal e uma fluência básica em slang para slay, mesmo que se seja cringe. Em vez das “condições materiais de existência”, temos hoje “ondas de vergonha performativa”; em lugar do “modo de produção”, o omnipresente “conteúdo de campanha”; em substituição da “consciência de classe”, floresce a “auto-narrativa de marca pessoal”; onde se lia “alienação do trabalho”, lê-se agora “colapso emocional em regime de auto-superação”; e onde se gritava “proletários de todo o mundo, uni-vos!”, sussurra-se hoje “subscreve e partilha, se gostaste”.

    Tudo isto enunciado num português de retalhos, pespontado por anglicismos de segunda mão, como se o proletariado já não habitasse a fábrica, mas o feed; já não empunhasse a foice, mas o filtro; e já não marchasse em greves, mas dançasse reels com indignação coreografada.

    A justificação para esta deriva é sempre a mesma: “Temos de falar a linguagem dos jovens.” Mas a linguagem dos jovens, como a dos deuses gregos, exige um certo tipo de sacralidade. Não se improvisa um Hermes calçado com mocassins nem se encarna um Dioniso com articulações emperradas. Há, portanto, uma fronteira subtil e fina entre dialogar com a juventude e fazer figura de avô a dançar breakdance em casamentos. E Louçã cruzou essa linha com o mesmo vigor com que um idoso atravessa uma passadeira mal sinalizada: de forma trôpega, inconsciente e sob risco de atropelamento moral. Ou mesmo mortal.

    Francisco Louçã durante a sua ‘perfomance’…

    A tragicomédia de Francisco Louçã é que já não pretende ser jovem por dentro — isso requer vitalidade real —, contentando-se apenas em parecer jovem da boca para fora. Eis o socialismo com autotune; o marxismo com stickers; o trotskismo com merch; a revolução com filters. E no centro da encenação está um senhor que, em vez de se retirar com a altivez de um velho leão político, decide permanecer na ribalta como um gato de TikTok: inofensivo, repetitivo, e agora à espera da próxima palhaçada. Perdão — da próxima “intervenção estética de engajamento lúdico e participativo”.

    Não se pense, no entanto, que isto se trata somente de mera decadência pessoal. Não: isto é sintoma de uma esquerda que, órfã de causas robustas, aderiu ao delírio do espectáculo, da juventude eterna, da política tornada entretenimento para massas distraídas. Trótski foi expulso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, acabando com uma picareta na cabeça, por conspiração contra o Partido. Hoje seria expulso do Insta apenas por não usar hashtags.

    Por isso, a questão que se impõe — e escrevo com certa amargura socrática de quem já viu tudo, e até isto — é a seguinte: desde quando a política de ideias se rendeu à estética do ridículo? Quando se passou a crer que o caminho para o poder passaria pela capacidade de dizer slay com um cartaz da Liga Comunista Internacionalista ao fundo? Quando foi que a análise materialista se substituiu por coreografias palermas?

    Talvez, no fundo, seja esse o verdadeiro late stage capitalism, invocado por Louçã na sua palhaçada para o suposto eleitorado jovem: um estado em que até os seus críticos mais ferozes se transformam em caricaturas vendáveis, em velhos profetas convertidos em influencers da decadência. Aliás, nestes meus anos de eternidade, constato que o capital venceu não ao oprimir os seus inimigos, mas ao torná-los ridículos. A revolução, a existir, já nem será televisionada — no máximo, será partilhada em stories, com emoji de punho erguido e trilha sonora de trap.

    Louçã, outrora marxista de gabinete e chicote retórico, exibiu-se como uma caricatura de revolucionário de feira, vendendo engajamento com a mestria de um vendedor de figos secos nos antigos armazéns do Chiado. Mas aquilo que me espanta nem é o desvio — quem nunca tergiversou na vida que atire a primeira selfie. Aquilo que ofende, a mim, ao Camões, ao Padre Vieira e até ao Marx e ao Trótski (que se encolheram de vergonha, daqui do Além), é a tentativa de parecer jovem de ideias por fora quando, pelas mostras de idiotice, já se apodreceu por dentro.

    E, quando o Alzheimer vier — porque virá, e a todos apanhará, se não lhes aparecer a “minha” pneumonia ou outras maleitas fatais —, levará não só as memórias das lutas verdadeiras, mas também este último episódio de farsa. E, nesse dia, Louçã talvez olhe para o vazio e pergunte: “O que é que estava mesmo giving?”. Ao que Marx, do além, responderá: “Nada, camarada; apenas estavas a passar vergonha.”

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • De bigode e cartola, todos os escritores são pardos

    De bigode e cartola, todos os escritores são pardos


    A Posteridade, essa velha senhora distraída que tropeça nos seus próprios degraus de mármore, tem por hábito confundir nomes, feitos e narizes. Já a vi — juro-o sobre os bigodes do meu avô — confundir um busto de mármore com um urinol de faiança, a máscara mortuária de um filósofo com uma forma de pudim, e a primeira edição de um tratado político com um livro de fiado do taberneiro. Nada me espanta, portanto. Já passei por coisa pior: por exemplo, já me vi enterrado em papel impresso com elogios desnecessários ou ser ressuscitado por um pasquineiro digital.

    Mas aquilo que agora se deu é um novo capítulo na epopeia lusitana da confusão — essa arte tão portuguesa de baralhar, dar de novo, e chamar Cultura ao engano.

    Primeira página da edição 1420 do Jornal de Letras

    Soube, por murmúrios e cartazes, que o Jornal de Letras, em número dedicado ao bicentenário da vinda ao mundo de Camilo Castelo Branco, ilustrou a ocasião, em frontispício, com o retrato — vejam só! — de Eça de Queirós, farfalhudo bigode e cartola a preceito. Ora, para quem sabe, confundir Camilo com Eça é como brindar à saúde do Papa com um cálice de absinto; é como oferecer a São Jerónimo um exemplar da Playboy; é como convidar o Diabo para crismar crianças em Fátima. Há erros, há desleixos e há heresias — e este do Jornal de Letras é um pouco dos três, o que se mostra pior do que um multiplicado por três.

    Disse-se, num gesto de benevolência, que o erro é “humano”, como se o humano justificasse tudo, até confundir um prosélito da misantropia com um partidário da polilogia. Ora, entre Camilo e Eça há mais diferença do que entre o vinho verde e o conhaque. Um foi azedo de nascença; o outro foi espirituoso por destilação.

    Camilo, se bem o recordo, era homem de pasmoso fel, de penas ensopadas em ácido, de ironia que feria como navalha enferrujada — fazia cócegas com lâmina. Eça, por seu lado, era um homem do sorriso oblíquo, do florete perfumado, do insulto em latim florido. E juntos só se encontraram nas livrarias e nos mal-entendidos.

    Não admira, portanto, que uma pobre alma na redacção do Jornal de Letras, ao vasculhar imagens para decorar a efeméride, tenha tomado o bigode de um pelo do outro. Mas uma coisa é o equívoco, e outra a inépcia revestida de hábito.

    Camilo Castelo Branco… acho eu.

    E aqui permitam-me um desvio — pois o meu espírito, sempre dado a viajar por entre páginas e panteões, relembrou uma carta. Não qualquer bilhete de amor, mas uma carta de Eça a Camilo, escrita nos tempos em que os escritores se esfaqueavam com pensamentos ou palavras e assinavam as cicatrizes com estilo.

    Consta que, em 1887, um ferido Camilo dera um urro público — achara-se alvo de uma crítica velada. E Eça respondeu em carta, embora sem a enviar, com a pena embebida em mel e veneno, dizendo mais ou menos assim:

    Suponha que um dia, numa novela, V. Ex.ª descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas… E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: ‘Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada… É comigo!’ Que diria V. Ex.ª, meu prezado confrade?

    V. Ex.ª balbuciaria aturdido: ‘Eu não sei, eu vivo longe… Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância… Mas, na verdade, creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais tênue, remota intenção…’ Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Ex.ª. E assim eu digo.

    V. Ex.ª deve conhecer melhor do que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos meus livros; se V. Ex.ª, para atrair a multidão, nelas colou, ou consentiu que os seus editores colassem, esse rótulo: romance realista — por não poderem legalmente adorná-las com esse outro mais cativante: romance obsceno — então decerto aquilo é consigo.

    Mas a intransigente verdade força-me a confessar que, escrevendo esse período da carta a Bernardo Pindela, eu não pensava no autor da Corja. Se eu quisesse acusar dessa abjecta concessão, às exigências da venda, um homem que há trinta anos é ilustre na literatura portuguesa — teria escrito o nome todo de V. Ex.ª, sem omitir um só título. Há personalidades a quem, por isso mesmo que são fortes, não se alude timoratamente e de longe. Já deste modo se pensava na corte de El-Rei Artur. ‘Se queres falar de Percival, dize bem alto: Percival, e tira a espada.’ Assim gritava esse cavaleiro, flor dos bons, na velha cidade de Camerlon, uma tarde em que havia algazarra e ciúmes junto à Távola Redonda.

    Não se trata, decerto, aqui, de compridas espadas a desembainhar. Mas não deixa de ficar bem a um débil homem de letras, como eu, o seguir essa lição de lealdade e valor dada pelo possante homem de armas Percival.

    E continua, neste estilo, até ao fim, que eu resumo assim: “Meu caro, se descrevo um burro, e se o senhor se reconhece no animal, a culpa não é minha.” Eis aqui a lusitana arte da bofetada com luva de culta renda.

    Eça de Queirós… assim consta.

    Ora, esta carta tem tudo que ver com o retrato trocado. Porque, se Camilo ficou ofendido por palavras de Eça que talvez nem fossem para si, que dirá agora que lhe roubaram a face e lhe impuseram o busto do seu mais arguto rival?

    Dir-se-á que o espírito do Jornal de Letras foi possuído pelo mesmo demónio que inspirou os discípulos do romantismo tardio: a pressa, a falta de leitura, o revisor em teletrabalho e o estagiário multitarefa. Ou então — e talvez seja pior, e ainda mais provável — dir-se-á que já ninguém distingue Eça de Camilo porque ninguém os lê.

    Este engano, respeitáveis leitoras e condignos leitores, não é somente um erro de legenda; é uma metáfora visual do estado da Cultura lusitana: confunde-se o que é oposto, nivela-se pelo ruído, concede-se palmas ao eco. E depois, admiram-se que os deuses da Literatura — esses malandros velhacos — vos virem as costas.

    É que há erros e há erros. Mas há também os enganos que revelam verdades. E aqui está uma: o Jornal de Letras troca Camilo por Eça como Portugal troca erudição por aparência, verdade por rótulo, pensamento por pressa. Eça escreveu que a guerra entre idealistas e realistas era já tão enfadonha como a dos gregos diante de Tróia; pois o Jornal de Letras conseguiu dar-lhe nova vida — e com um retrato errado, ainda por cima.

    Ah, a ignorância, doce mãe de tantos estagiários e directores apressados! És tu quem sopra ao ouvido do designer gráfico que todos os escritores com bigode e cartola são a mesma entidade etérea: uma espécie de Santo Antão da literatura portuguesa. És tu quem faz com que o revisor não leia, o editor não pense, o coordenador gráfico não confirme. És, enfim, a deusa tutelar de muito jornalismo moderno — não o jornalismo de investigação, mas o de “encaixe rápido”, “fecho da edição” e “manda assim que já são sete”.

    E, no entanto, como não rir? Camilo, esse vulto trágico, que se cegou de tanto ver, acabou eclipsado por Eça, que via longe demais. Camilo, que escrevia como se escrevesse com sangue; Eça, que escrevia como quem mistura perfume francês com vinagre do Douro. Serem opostos — estéticos, espirituais, conjugais — torna o engano mais saboroso, embora estejamos mais perante uma minhota broa de milho de São Miguel de Seide barrada com o chantilly de François Vatel.

    Mas nem tudo é desatino: há aqui um retrato fiel da Pátria Lusitana, dessa entidade sebastiânica onde tudo se confunde, tudo se adia, tudo se baralha. E, nesta barafunda, Camilo e Eça tornaram-se, assim, cá pela vigésima primeira centúria após Cristo, em irmãos siameses, gémeos univitelinos do eruditismo ilustrado: quando não há dinheiro nem tempo nem leituras, a Cultura vira sopa instantânea — basta juntar água morna e uma ilustração errada.

    Na Antiga Grécia, confundiam-se deuses com mortais. Na Idade Média, santos com heréticos. Agora, em Portugal, Camilo com Eça. É o que chamo de metempsicose gráfica — a alma de um escritor no corpo do outro, graças a um estagiário apressado e a um director sonolento.

    Mas não sejamos cruéis. Já dizia Confúcio — ou seria outro? — que é mais fácil confundir homens do que corrigir sistemas. A imprensa já só vive do improviso, da urgência, do copianço elegante. E hoje, mais do que nunca, vive também da escassez: escassez de dinheiro, de leitores, de rigor. O erro do Jornal de Letras é sintoma, não doença; é tosse, não tuberculose — embora seja uma tosse com escarro.

    Que venha o próximo número do Jornal de Letras — talvez celebrando uma qualquer efeméride do Fernando Pessoa com a foto do Fernando Pessa, esse grande cançonetista que adoptou o pseudónimo de Tony Carreira.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • A verdade bem instruída no divã da Ordem dos Psicólogos

    A verdade bem instruída no divã da Ordem dos Psicólogos


    Há quem proclame — e eu concedo, com o desapego próprio de quem já não teme o contraditório, nem a opinião das gentes vivas — que a Verdade é uma flor tenra e delicada, cujo perfume, exsudante e ambaríneo, todos julgam conhecer, embora poucos sejam os que a cultivaram sem lhe pisar as pétalas à primeira conveniência, ou inconveniência. Sempre me pareceu, além disso — ou por isso — que essa tal flor tem menos de rosa e mais de erva daninha: nasce onde menos se espera, prolifera entre escombros e, quando arranca elogios, é porque servirá para algum jardineiro de ocasião.

    A Verdade, melífluas donzelas e lignosos cavalheiros, não é propriamente uma virtude; é um instrumento. Desde tempos imemoriais que a Verdade não mora no mesmo lugarejo da razão, mas onde repousa o poder. É preciso ser muito filósofo ou muito ingénuo — circunstâncias que, na prática, são quase similares — para crer que a Verdade resplandece na neutralidade de um axioma ou brilha no gume da lógica, ou cintila no compasso geométrico de um silogismo bem traçado.

    Não. A Verdade é aquilo que, por norma e raras excepções, o Poder decide chamar verdade. A Verdade, por vezes, coincide com a verdade. Acasos da vida. Efémeros. Transitórios. E é quando esse mesmo Poder começa a rotular de Mentira, e demais anatemas — como sejam: inverdades de impostores, boatos de intriguistas, balelas de embusteiros, mexericos de coscuvilheiros, calúnias de difamadores, heresias de renegados e desinformação de hipnotizadores de otários — tudo aquilo que dele não provém ou não acomoda, é porque, muito provavelmente, a verdade já lhe fugiu pelas frinchas da toga.

    Estas reflexões assaltaram-me — ou, para sermos mais precisos, instilaram-se-me no espírito como vapores de uma lucubração tardia — enquanto me encontrava entregue à modorra sublime do meu jazigo de mármore, bocejando da eternidade como quem observa, com olímpico desdém, o tropel dos vivos. Foi então que me chegou às mãos espectrais um opúsculo vindo desses mesmos reinos terrenos: um livrinho lavrado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, baptizado com ternura pedagógica Vamos falar sobre desinformação. Um título tão acolhedor, convenhamos, como um divã de consultório decorado em bege terapêutico, onde se oferece chá de camomila ao paciente enquanto, com cortesia clínica, se lhe vão serrando as ideias.

    Li o documento, crente — num primeiro e indulgente impulso — tratar-se de uma patranha do tradicional Primeiro de Abril, talvez um exercício lúdico de psicoterapia narrativa. Mas rapidamente suspendi o meu cepticismo festivo e adoptei atitude de severa atenção — não por virtude da leitura, mas por efeito colateral da televisão — quando deparei com a bastonária da augusta Ordem, uma certa Sofia Ramalho, a anunciar na CNN Portugal que a desinformação pode provocar “problemas de saúde mental”, sobretudo se alguém ousar acreditar que quatro tabletes de chocolate reforçam a memória.

    Endireitei-me no meu túmulo — tão altaneiro quanto os mármores consentem — e corri a folhear o guia, imbuído do mesmo espírito circunspecto e lúdico com que, em vida, costumava ler as bulas papais: não esperando nelas encontrar o Céu, mas deliciando-me com a arte de quem finge possuir-lhe o mapa, traçado com tinta de dogma e caligrafia de equívoco.

    Logo nas primeiras páginas, a desinformação é apresentada com gravidade inquisitorial, como um pecado moderno, um contágio sem micróbio, uma peste do intelecto, garantindo-se, de forma solene, que “ninguém, independentemente do seu nível de escolaridade, idade, género ou experiência digital, está a salvo da exposição”. Só esta proclamação já infunde temor — quase tanto como um édito da Inquisição espanhola na véspera de um auto-de-fé.

    Dizem então os psicólogos, neste pequeno breviário secular, que a desinformação se afigura — com ares de coisa demoníaca, saída das furnas de Belzebu — como “qualquer conteúdo ou prática que contribua para o aumento de informação falsa, não validada, pouco clara e/ou que tenha a intenção de afastar as pessoas dos factos e da verdade”. Torquemada, creio piamente, disse algo semelhante — e se não o disse, então estarei já, ai de mim, a desinformar-vos, minhas amigas e meus amigos, pecado do qual me penitencio com a solenidade possível a um espectro, e prometo, de ora em diante, só errar se com maior elegância.

    Em todo o caso, atentem nas palavras do catequismo: factos e verdade — substantivos com maiúscula invisível. Não se explicam, não se discutem. São dados como certos, como se tivessem descido do Monte Sinai em PDF validado por uma comissão científica. Ora, esta ânsia de definir o real por decreto psicológico seria apenas cómica, se não fosse também sintomática. Os psicólogos — ou pelo menos os desta Ordem, novos senadores da República do Bom Senso — julgam agora poder decidir o que é falso, o que é erróneo, o que é pernicioso, e quem deve ser gentilmente corrigido, com empatia e literacia mediática, para que regresse à Santa Igreja da Informação Credível.

    O método, devo dizê-lo, é engenhoso: em vez de fogueiras, usam fact-checkers; em vez de exorcismos, sessões de esclarecimento; e, em lugar de castigos, um manto de mansidão cívica, como quem consola uma criança que acredita no Pai Natal. Recomenda-se que não se diga a palavra desinformação a quem dela padece, pois isso pode ser rude. Deve antes usar-se boatos, confusão, ou, quem sabe, erro emocionalmente compreensível. E acrescenta-se que se deve escutar com atenção, sorrir com indulgência, e partilhar fontes “de confiança” — essas fontes que, por coincidência mística, são sempre as mesmas que aprovam relatórios públicos e justificam medidas que, em certo dia, a História há-de rir de barriga cheia.

    Confesso que não resisti ao encanto do acrónimo CONSPIRE, uma invenção deliciosamente pueril para explicar o pensamento conspirativo. Cada letra representa um sintoma da doença mental que acomete todos os que ousem desconfiar do discurso oficial: contradição (cruz credo!), suspeição extrema (abrenúncio!), intenção nefasta (Vade retro, Satana!), desconfiança pertinaz (Jesus, Maria, José!), manias da perseguição (Santa Madre de Deus!), fugídio da evidência (ai Belzebu!) e reinterpretação da aleatoriedade (Fuge, daemon incantatus!) — e outras excentricidades que, em tempos idos, faziam a glória dos exegetas, filósofos, cronistas e inquisidores.

    Em tempos, estas doenças mentais teriam consequências. Diógenes, por exemplo, seria internado com urgência; Heraclito seria forçado a frequentar oficinas de pensamento positivo, por insistir na impermanência das coisas e arruinar o bem-estar emocional dos jovens filósofos; Sócrates seria sujeito a uma medida de coacção epistemológica: proibido de fazer perguntas em espaços públicos sem prévia validação pedagógica, em vez da toma da cicuta; Platão, se ousasse propor a existência de um mundo das ideias, seria encaminhado para acompanhamento cognitivo-comportamental por evidências de dissociação da realidade empírica; e então Nietzsche, coitado, esse acabaria sob vigilância algorítmica por discurso potencialmente desestabilizador, enquanto especialistas da Ordem dos Psicólogos explicariam ao público que essa estória do “Deus está morto” é apenas uma metáfora perigosa, susceptível de, se levada a sério como verdade, causar danos irreparáveis na espiritualidade do cidadão mediano.

    Ah! A alegria que me deu o acrónimo CONSPIRE somente foi suplantada pela leitura das sugestões pedagógicas para salvar amigos e parentes contaminados pelo vírus da mentira. Sim, vírus — porque, para a Ordem dos Psicólogos, a desinformação é um patógeno mental que se espalha de feed em feed, provocando erupções de cepticismo e febres de desconfiança. Para tratar o infectado, não há antídoto, mas diálogo construtivo: escutar com empatia, fazer boas perguntas, nunca discutir (porque discutir reforça a crença), e usar ‘o tom certo’. Se possível, jogar com o ‘leproso’ um jogo digital chamado Bad News, onde se aprende a criar fake news para não cair nelas. Eis no que os psicólogos se tornaram: pedagogos do delírio performativo.

    E como não rir do fervor com que a Ordem dos Psicólogos indica os mecanismos de denúncia? O seu guia disponibiliza até ligações para denunciar posts, vídeos, comentários — tudo aquilo que possa ferir a sensibilidade epistémica das almas frágeis. A censura, que antes vinha de botins, chega agora por interface, com instruções passo-a-passo. O novo delator é um cidadão exemplar com acesso à internet e aversão ao contraditório.

    Mas nada me divertiu tanto quanto a beatificação dos fact-checkers. São apresentados como monges copistas da era digital, sempre diligentes a desmentir as heresias com rigor, imparcialidade e aquele leve perfume ideológico que apenas os ingénuos não reconhecem. Polígrafo, Prova dos Factos, Observador — cada qual com a sua bula, a sua régua moral e a sua missão redentora.

    É claro que toda esta cruzada contra a desinformação se apresenta como científica, neutra, sanitária. Mas não há nada mais dogmático do que quem crê que a Verdade surge no bolso do colete. A própria Psicologia, ciência das hesitações humanas, torna-se neste folheto um instrumento de ordenamento espiritual: uma máquina de doutrinar com voz doce e design colorido.

    Antigamente, os psicólogos limitavam-se a estudar a mente e a compreender os vivos — agora desejam moldá-la, mas já nem é com a subtileza de um Freud, é com a sanha de um funcionário da Direcção-Geral da Saúde. O paciente já não é aquele que sofre, mas alguém que crê no que não deve. E o psicólogo, longe de o escutar, passa a reeducá-lo, suavemente, com jogos didácticos e denúncias preventivas. Vejam bem: uma pedagogia do consentimento revestida de verniz clínico.

    Ah, minhas equilibradas donzelas e firmes cavalheiros! Se me dissessem que esta Ordem dos Psicólogos era, em Portugal, apenas uma corporação zelosa a produzir materiais de sensibilização para as escolas, eu consentiria com um encolher de ombros. Mas não. Estes senhores e estas senhoras querem mais: querem policiar o imaginário, classificar opiniões, doutrinar pais e professores, ensinar às criancinhas que verdade é o que passa nas televisões e que dúvida é coisa de gente malformada.

    Eis, pois, o retrato hodierno do vosso mundo. De um lado, a verdade como instrumento do poder. Do outro, a mentira como disfarce da dúvida. No meio, os psicólogos com brochuras e jogos online, tentando convencer-vos de que, entre acreditar e pensar, o mais seguro é sempre acreditar — desde que seja na fonte certa, no fidedigno fontanário do Poder.

    O zelo profiláctico da Ordem dos Psicólogos faz-me lembrar o meu ‘irmão’ Simão Bacamarte, mas agora o alienista traja jaleco clínico e interface digital, e está com ganas de tratar preventivamente todo o país, não da insanidade, mas dos pensamentos impróprios. Como em Itaguaí, também entre vós a razão passou a ser monopólio daqueles que se acham sãos e verdadeiros. E se a desinformação é hoje o novo delírio, o novo pecado, a nova peste, então todos — cedo ou tarde — serão diagnosticados.

    Não tarda, haverá um consultório nacional do juízo, com ficha individual, escala de perigosidade epistémica e lugar marcado numa nova Casa Verde — desta feita, pintada com as cores suaves da empatia e da saúde pública, mas com as janelas bem trancadas, não apareça algum cidadão duvidando do boletim informativo.

    E lembrem-se, por fim, das palavras do Bacamarte — ou se não o disse, o Polígrafo, essa publicação independente financiada pelo Zuckerberg, tratará de me meter pimenta na língua, mas que seja a dedo-de-moça:“Entre loucos e sãos, quem primeiro grita Verdade é, quase sempre, o que traz o manicómio no bolso.”


    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • No fim, já cá não andarás, Moedas

    No fim, já cá não andarás, Moedas


    Escrevo-vos não da vida, mas da morte; não da eternidade dos ideais, mas da transitoriedade das vontades políticas. Digo-vos isto como quem já viu a glória e o esgoto, o templo e o Parlamento, o busto de bronze e o excremento de pombo – e de tudo isto fica o limo, e do homem, um decreto. Foi assim que soube, entre vapores de éter e suspiros da eternidade, que Carlos Moedas, esse sátrapa bem-penteado da capital lusitana, autorizou o corte do arvoredo da Avenida 5 de Outubro para ali fazer — não, não uma ágora, não um jardim filosófico, não um templo de contemplação estoica — mas um parque de estacionamento.

    Sim, minhas floridas donzelas e frondosos cavalheiros, todos vós de ramos aparados e sombras generosas: um parque de betão e aço. Nada mais prosaico, nada mais carbonífero, nada mais virado à catedral do tubo de escape. E, para cúmulo da ironia, tal desflorestação ocorre sob o pretexto de preparar a cidade para um futuro mais verde, mais ecológico, mais sustentável. Como se a clorofila brotasse do alcatrão e a sombra crescesse nas franjas de um pilarete. Como se um Nero reciclasse as cinzas de Roma para plantar papoilas saltitantes.

    Ah, e lá se decepam uns jacarandás! Jacarandás! Que árvores de nome sonoro, flores de lilás melancólico, sombra de poeta reumático! Se me tivesse dado queda para a poesia, que poderia dizer desta minha vizinha enraizada de Pindorama, com raízes mais antigas que muitos mandatos? Que contam estas sentinelas de pétala em riste por penhor à plêiade Maia, memórias pegajosas na calçada, testemunhas mudas de Primaveras repetidas e revoluções esquecidas. Ninguém lhes ensinou jamais a falar, mas calam com elegância: no estio, murmuram brisas de consolo; no Inverno, vertem silêncios densos.

    Oh! jacarandás, mas vós que tingíeis as avenidas de púrpura crepuscular, sereis cortados como se fôsseis hérnias no plano urbanístico, espinhas dorsais no raio X de um arquitecto sem alma, verrugas transverais no queixo tecnocrático de um alcaide. E a vossa madeira nem servirá sequer para banco de jardim — será esfarelada em pó de esquecimento, talvez para alimentar algum canteiro estéril de compensação ecológica. A cada queda vossa, não ressoará apenas o estalido da madeira — ecoará o fracasso de uma civilização que troca a sombra pela vigilância, o perfume pela eficiência, o mistério pelo manual de normas técnicas.

    Deixemo-nos de lirismo, e sigamos o pragmatismo de Carlos Moedas. Nada disto é novo. Desde os jardins suspensos da Babilónia que os poderosos erguem e derrubam flora ao sabor de caprichos, mas sempre com argumentos de futuro ou de eficácia. Nabucodonosor ergueu para uma esposa melancólica o que Moedas destruiria por um arruamento em espinha de peixe. É essa a diferença entre os tiranos de outrora e os gestores de agora: os primeiros decepavam por amor, os segundos por mobilidade.

    Luís XIV, por exemplo, não hesitou em mandar abater tílias e faias centenárias nos jardins de Versalhes sempre que a geometria barroca lhe parecia bem, ou mal— uma árvore, para o Rei-Sol, não era mais do que uma sombra desobediente em plano deslocado. Napoleão, esse pequeno César com pressa, devastava clareiras para as suas tropas avançarem com cadência imperial, cortando vegetação como quem abre linhas de infantaria. Mao Tsé-Tung, no seu zelo pela pureza socialista, ordenou a destruição de zonas arborizadas na campanha contra os “quatro males” — o rato, a mosca, o mosquito e o pardal, todos contra-revolucionários.

    Estaline, por sua vez, fiel ao seu ideal de grandeza geométrica, converteu laranjais e pomares uzbeques em desertos brancos de algodão — não por alergia ao cítrico, mas por fé na planificação. E no Egipto do século XIX, o Khedive Ismail, ansioso por transformar o Cairo numa Paris do deserto, mandou arrasar palmeirais ancestrais para abrir avenidas com nomes franceses, apagando a sombra e a história em nome do estilo.

    Relativizemos na dimensão, mas consideremos relevante a ironia cósmica em se arrancar jacarandás na 5 de Outubro — data que celebra a implantação da República, essa madrinha das promessas não cumpridas. Acredito que haja, aqui, um gesto litúrgico de Moedas: o sacrifício simbólico da natureza perante o altar da tecnocracia.

    Que diria Epicuro, que procurava nos jardins a felicidade moderada, ao ver que até os jardins são agora planificados por engenheiros de tráfego e asfaltados por tratados de urbanismo sem alma? Onde antes florescia a contemplação, ergue-se agora a buzina; a orquídea substituída pela rotunda; a sombra, pela iluminação LED de vigilância inteligente; o banco de pedra, pela estação de carregamento; o chilrear dos pardais, pelo bip da validação do passe. Substitui-se o belo pelo útil, o lento pelo mensurável, o vivo pelo funcional. Os jacarandás, esses, jamais cabem nesse plano — nem nas vagas do parque, nem no horizonte de Moedas. Porque em vez de florir todos os dias, só sabem estar. E isso, hoje, é imperdoável.

    Calma — alguém me diz: Carlos Moedas, com o seu sorriso de algoritmo e voz de café de cápsula a quem injectaram hélio, promete plantar outras árvores. Duas centenas a troco de 20 cortes. Sempre prometem. E, curiosamente, dizem a verdade. Só que o problema da política já nem é a mentira — é a postergação. Há sempre um plano de reflorestação algures numa penúltima página, um compromisso firmado com 2030 (ano cabalístico que serve para tudo) no horizonte, uma neutralidade carbónica prometida com ar de oração laica, mas que ninguém verá. Ou verá, talvez, de forma diferente — no PowerPoint ou na realidade aumentada da Web Summit.

    Os jacarandás cortados, esses, já cá não andarão. E quem os viu em Maio do ano passado, desabrochados como pensamentos lilases no meio da cidade, não os verá este ano, nem no próximo, nem naquele a seguir ao próximo. Porque o plano de plantio fica, primeiro, a aguardar parecer da Direcção-Geral dos Registos de Canteiros e Paisagens. Depois há um atraso no viveiro florestal — culpa de um fungo exótico ou de uma greve de escaravelhos. A seguir descobre-se que os canteiros previstos coincidem com o traçado de um novo corredor ciclável, ainda por aprovar em consulta pública. Mais tarde, o jardineiro municipal é deslocado para uma missão urgente: regar palmeiras numa rotunda em Alvalade por causa da visita do embaixador da Papua Nova-Guiné.

    E como se não bastasse, surgem três ou quatro variações climáticas ou intempéries meteorológicas — uma seca, uma chuvada e um tornado de nome Ezequiel ou um furação de nominata Zedequias — e, ao fim de uma década, o legado verde resume-se a meia dúzia de arvorezinhas esquálidas, com o tronco torto, folhas tímidas e ar de quem pede desculpa por existir. À volta delas, uma placa oficial, novinha em folha, proclama com orgulho que “Lisboa está mais verde!” — e está: verde de raiva.

    Dir-me-ão que exagero, que Lisboa tem outras árvores, outras avenidas. Sim, como Roma tinha outros mártires. Mas não é de quantidade que falo: é de símbolo. Os jacarandás não são apenas árvores: são um calendário natural que marca a chegada de dias mais longos, mais lentos, mais líricos. São a resistência à lógica do imediato. Arrancá-los para fazer caber mais automóveis é como substituir o fado por sirenes.

    Dizem-me que o futuro é eléctrico. Mas que adiantam carros a hidrogénio se o espírito é a carvão? Que importa a energia verde se a alma é cinzenta? E por que razão se acredita, com tão olímpica convicção, que uma cidade precisa mais de um estacionamento do que de uma árvore? Mas Carlos Moedas não governa corações — governa fluxos; não governa afectos — governa algoritmos; não governa silêncios — governa mobilidade. A cidade de Moedas não respira — circula. Não contempla — optimiza. E quando uma árvore se interpõe entre um automóvel e o seu destino, não é sombra que oferece, mas resistência aerodinâmica.

    Sinto que neste corte dos jacarandás ecoa o velho conflito de Antígona. Não, não há cadáveres humanos — mas há irmãos vegetais, tombados sem honra, privados de sepultura digna, esquecidos por entre actas de vereação e relatórios ambientais forjicados. Os jacarandás são os vossos Polinices lilases, abatidos por decreto. E vós — vós que passais indiferentes, que aceitais em silêncio a substituição da sombra pela faixa de rodagem — sois o coro trágico desta cidade, que tudo observa e nada impede.

    A modernidade alfacinha é o novo Creonte: racional, eficiente, burocrático… e cruel. Não mata por ódio, mas por cálculo. Não proíbe enterros, apenas adia plantações. E nesse compasso de espera entre o corte e a promessa, entre a árvore e a maqueta, consuma-se a tragédia urbana — sem lágrimas, sem hinos, sem memória. E tudo assim se conjugará numa catástrofe inevitável, apesar de um edil confiante nas promessas e na visão de que a ‘sua’ ordem, na ‘sua’ cidade, está acima dos afectos e da beleza. Pode até ser que os lisboetas se soergam deste sono letárgico embalado pelas moto-serras do progresso — mas acho que, nesse dia, tal como o último cortado jacarandá, quando quiserem culpar Moedas, ele já cá não andará

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • LIVRE para ser obediente

    LIVRE para ser obediente


    Fui, em vida, livre. Um homem livre.

    Digo-o sem arrogância, mas também sem demasiado orgulho, com a compostura serena de quem já se finou e, por isso mesmo, não mendiga votos nem carpideia por cargos. Vivi, pois, nos meus tempos de Oitocentos, a liberdade como quem vive um velho amor: com entusiasmo juvenil, algumas juras eternas e sucessivas desilusões. Mas devo, antes de tudo, declarar com franqueza aquilo que muitos dos meus contemporâneos preferiam varrer para debaixo do tapete adamascado da moralidade colonial: fui um homem livre… numa sociedade de escravos.

    Morrido que fui em 1869, muitos antes da Lei Áurea, conheci de perto a comédia grotesca dos senhores que proclamavam princípios de Humanidade com a mesma mão que segurava o chicote. Assisti, de vivos olhos e ouvidos aguçados, às tertúlias sobre o bem comum, emolduradas pelo som oco das correntes a tilintar discretamente no alpendre. Naquela época, dizia-se que o Brasil marchava rumo à civilização, embora o passo fosse sempre travado por quem ainda julgava que liberdade dependia do uso de sapatos ou do domínio do latim.

    A palavra “liberdade” era já então um colar vistoso ao pescoço da hipocrisia: cintilava nos discursos, mas faltava-lhe consistência na prática. Foi assim que aprendi cedo a desconfiar dos que declaram “todos são bem-vindos”, sobretudo quando o “todos” traz asteriscos, rodapés e condições em letra miúda. Essa desconfiança — fermentada na tumba, entre silêncios filosóficos e reminiscências de virtudes proclamadas em praça e negadas à mesa — reencontro-a agora, neste século apressado e digital, no seio do Partido LIVRE.

    Sim, o LIVRE, que ostenta no nome a mesma candura de um bordel baptizado “Virtude”, e que concebeu, com zelo quase sacramental, um Regulamento das Primárias Abertas para escolher os seus candidatos ao Parlamento. Aviso já: estais perante um documento enxuto como um catecismo e tão modesto quanto um tratado constitucional: quarenta artigos, dois anexos e uma fé inabalável no poder das regras sobre o espírito.

    Nunca, repito, nunca imaginei ver a liberdade transformada em manual de acesso condicionado à cidadania activa, onde cada etapa é uma prova de obstáculos com barreiras invisíveis. Aquilo que se diz “aberto” revela-se fechado com fecho éclair, e o que se apregoa como “participação cidadã” mais parece um baile de máscaras: entra apenas quem trouxer o disfarce com costura ideológica aprovada.

    O regulamento, de sorriso casto e pena progressista, proclama (Artigo 2.º) que as primárias se regem pelos princípios da democraticidade, da igualdade de oportunidades e da transparência. É bonito. Mas logo no Artigo 22.º, o verniz estala: surge um Colégio de Validação, composto apenas por membros com mais de noventa dias de inscrição. Eis a democracia condicional — espécie de clube de golfe da política, onde o povo pode espreitar pela janela, mas sentar-se à mesa exige cartão dourado e saudação discreta ao mordomo ideológico. Logo na fase prévia, que serve para não alimentar lirismos.

    Como dizia o cardeal de Richelieu — mestre das sombras e das epístolas venenosas — “dêem-me seis linhas escritas pelo mais honesto dos homens, e encontrarei nelas motivo para enforcá-lo”. No LIVRE, basta meia dúzia de votos rejeitados e uma abstenção com perfume táctico para aniquilar uma candidatura. E a isso chamam “processo aberto”.

    Nada disto me espanta. Já vi, no meu tempo, senhores defenderem a abolição da escravatura enquanto discutiam, entre goles de vinho do Porto, quantos negros poderiam levar consigo como “bagagem sentimental”. A diferença? No século XIX ainda havia vergonha. Hoje, há regulamentos.

    E de regulamentos sabe o LIVRE. Elevou a arte da domesticação do voto a um patamar quase litúrgico. O seu método de votação preferencial (Artigo 31.º) distribui pontuações aos candidatos como se estivéssemos não num plebiscito democrático, mas num campeonato soviético de ginástica rítmica. O primeiro lugar vale 10 pontos, o segundo 7,5, o terceiro 5,63, o quarto 4,22, o quinto 3,16 e o sexto 2,37 — números tão cirurgicamente decimais que parecem saídos do compêndio de um contabilista esteta.

    Sejamos justos: há uma beleza singular neste apego à Matemática. A democracia, no LIVRE, não é “um homem, um voto”; é “um homem (ou mulher, ou qualquer identitário registado), milhentos votos” — desde que saiba usar uma progressão geométrica com razão de 0,75 e tenha prática em formatar células no Google Sheets. A aritmética como expressão de justiça, ou, se preferirdes, a esperança democrática reduzida a uma fórmula com função condicional.

    Essa sequência limpa, racional, quase poética, lembra as grelhas salariais da função pública, os escalões do IRS ou, vá lá, a classificação dos melhores amigos de um comité central algo carente. É a ilusão de mérito traduzida em escala descendente — onde todos são dignos, mas uns são mais dignos do que outros, e os últimos só entram se trouxerem flores para o camarada da recepção.

    Aliás, escalonar candidatos por ordenação ordinal — primeiro, segundo, terceiro — é expediente de espíritos previsíveis, mais afeitos a tabelas do que a ideias. Muito mais nobre, filosoficamente robusto e literariamente sedutor será adoptar uma ordenação cardinal, que não se limite a indicar o degrau da escada, mas procure medir o fulgor existencial da ambição (ou a languidez resignada da sua ausência) que cada candidato exala, como perfume velho a denunciar intenções novas.

    Assim, um 10 representa o eleito com perfume ministerial e olhar presidencial. Um 7,5 já o remete àquelas secretarias de Estado que tratam de “inovação em sustentabilidade arco-íris”, com pasta irrelevante, mas pose de quem lê Os Ensaios de Montaigne ao pequeno-almoço. O 5,63 confere ao visado mérito suficiente para presidir uma câmara de concelho médio, onde ainda há rotundas por baptizar e estátuas de figuras locais por inventar. Descendo na escala da glória, temos os vereadores sem pelouro definido (4,22), seguidos dos assessores encarregados de gerir a agenda dos ditos vereadores (3,16), e dos motoristas que, além de conduzir, também entregam flores no Dia da Mulher e sabem sorrir para selfies (2,37).

    Mais abaixo, surge o militante fiel que aparece em todas as fotografias de campanha, aplaudindo com entusiasmo sinceramente forçado (1,78) — muitas vezes sem saber exactamente quem está a aplaudir, mas com o coração no lugar certo: à esquerda do peito e à direita do cacique. Na elite das franjas políticas, encontramos os seguradores de faixas em eventos públicos (1,34), os coladores de cartazes com cola fora de prazo (1,01), os contadores de palmas para ensaios da arruada (0,76), e, por fim, o épico distribuidor de canetas em feiras locais, que anseia por uma selfie fortuita com um vice-candidato suplente (0,57).

    Qualquer valor abaixo de 0,43 é puramente cerimonial, reservado a parentes envergonhados que, embora tenham jurado nunca se entranharem em urnas, se comprazem em comparecer ao sarapatel das cruzinhas para dar “aquela força” e recebem como retribuição um abraço institucional e um folheto mal dobrado. Eis, pois, a aritmética da participação: uma espécie de meritocracia centesimal onde os sonhos se resumem a casas decimais e a esperança cabe — com estilo e fórmulas condicionais — numa célula formatada em Arial 10, alinhada à esquerda.

    E, como se não bastasse, a cereja do Excel está no facto de que, se fordes apenas um cidadão simpático, que subscreveu um manifesto, e não um membro ou apoiante registado, então o voto será de menor valia. Assim sentencia o regulamento: “A soma das pontuações atribuídas a cada candidatura pelos subscritores não pode exceder 50% da soma das pontuações de todos os Membros e Apoiantes do LIVRE.” Traduzindo: um homem, um voto — desde que seja nosso homem. Eis o sufrágio censitário do século XXI: já não se exige propriedade ou alfabetização, basta fidelidade ideológica regulamentada.

    Lembra-me os Estados Unidos pós-escravidão, que inventaram testes de literacia e taxas de voto para os negros, tudo em nome da ordem e da democracia. Também me vem à memória a gloriosa União Soviética, onde o voto era livre, desde que se escolhesse o candidato único indicado pelo comité central. A liberdade, dir-me-ão, é sempre relativa. Mas há relatividade… e há relativismo com papel timbrado.

    E depois vem o Acordo de Compromisso, no Anexo II. Uma peça jurídica de afecto condicionado, onde o candidato promete respeitar a linha do partido, consultar os órgãos internos antes de exercer pensamento e, caso discorde, submeter-se com elegância. A autonomia, aqui, é um pássaro com coleira.

    Resta-me falar-vos, minhas queridíssimas eleitoras e meus caríssimos eleitores, do Sumo Sacerdote desta liturgia regulamentar, o erudito das certezas suaves, o Dr. Rui Tavares, fustigado pelos fantasmas da Dra. Katar e do Dr. Paupério. Homem de biblioteca arejada e alma encadernada, que cita filósofos em três línguas e escreve como quem medita com a mão, ele é o tipo de dirigente que acredita, e honestamente, que o poder jamais o corromperá porque o exerce com verniz ilustrado. Mas já vi padres pregarem o jejum com o prato cheio de doces — e não é a citação de Rousseau que elimina o pecado da gula política.

    Tavares, com sua brandura iluminista e olhar de catedrático fatigado, tem dirigido o LIVRE, depois de se ter chamuscado com liberalidades democráticas, como se fosse uma república de seminário, onde todos podem entrar… desde que comunguem da doutrina e não levantem muito a voz durante a missa. A divergência, aqui e agora, é tratada com incenso e exclusão discreta. E o pensamento livre? Ora, esse cabe num parêntesis no rodapé do programa.

    Não posso, por isso, deixar de recordar outro Rui, mas Barbosa: “A pior ditadura é a do poder invisível.” Porque nesta democracia tão “aberta” do LIVRE — entre aspas e com senha —, aquilo que mais impressiona nem é o controlo explícito, mas o zelo com que se disfarça a mordaça com fita colorida.

    A liberdade, no LIVRE, é um salão nobre com porta aberta e segurança à entrada. Podeis entrar, desde que vos apresenteis com o regulamento na mão e a cabeça baixa. E nunca vos esqueçais: para o LIVRE, levai convosco lupa, calculadora, cartão de sócio e a certeza de que ser livre, ali, é um privilégio concedido — não um direito inato. Ali sereis livre para ser obediente.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

    As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

  • O princípio da osmose em Sebastião Bugalho

    O princípio da osmose em Sebastião Bugalho


    A juventude, esse estado paradoxal de graça e de tristeza, em sincronia, constitui, desde Hipócrates de Cós, com confirmação por Galeno e validação por Avicena, uma enfermidade natural irregressível mesmo com cataplasmas, unguentos, mezinhas ou benzeduras, e que somente o tempo consegue sanar e sarar – ou, nos casos mais pertinazes, um punhado de desilusões com similar efeito ao de uma sangria medieval aplicada a um doente febril: não mata mas fragiliza.

    Esta é a idade do homem – e da mulher, convenhamos, embora nas donzelas tal maleita pareça menos maligna – em que se crê destinado a reinventar a pólvora, a moral e a roda, tudo pela manhãzinha, antes mesmo do primeiro café da manhã. É a fase da vida em que o imberbe se crê Prometeu, sem suspeitar que as fogueiras que acende iluminarão sobretudo a sua própria vaidade.

    Se Aristóteles já dizia, na sua sabedoria e ironia gregas, que a juventude não é um defeito mas feitio; não devo eu – com a proverbial modéstia que me caracteriza – acrescer mais do que ser esta também uma fase marcada por uma profunda e involuntária presunção. Não é por sua malícia, mas pelo simples excesso de confiança na firmeza das próprias pernas, antes sequer de se ter consciência da forte possibilidade de tremideira. Assim, a juventude sempre avançará desabrida e destemida como cavalo sem freio, ignorando que, cedo ou tarde, esbarrará contra a muralha da realidade – essa fortificação verdadeiramente inexpugnável.

    Nesta época do homem (e menos das donzelas, convém reiterar, pois estas, por instinto ou sabedoria ancestral, mantêm-se ainda capazes de duvidar), abandonam-se as perguntas humildes da infância — esses ternos “porquê, papá?” que outrora faziam suspirar filósofos e educadores — para se adoptar a arrogante certeza juvenil, verbalizada com aquele timbre seguro sobre aquilo de que não se sabe: “Deixem estar, eu já sei como se faz!”. E assim se iniciam os magnânimos e empolados desfiles, amiúde asininos, de sapiência instantânea.

    O jovem moderno, armado de convicções frágeis, mas sempre de voz firme, passa a distribuir certezas como quem oferece panfletos à saída do metro: ninguém pediu, ninguém quer, mas mesmo assim lá estão eles, os axiomas de bolso, com ele, oferecidos com entusiasmo e um ligeiro hálito a energético. Este é um tempo glorioso, concedo, em que se reconfirma a confirmação — prática de repetições solenes daquilo que já se dissera com presunção, apenas para garantir que o eco também subscreve a frase original. Nesse espírito, chega-se a proclamar, com pose digital, que se compreendeu Nietzsche na sua essência através de um vídeo no TikTok convenientemente legendado e, por vezes, com ditos apócrifos.

    Sebastião Bugalho em campanha eleitoral em 2024.

    Neste ponto, entra em cena o jovem Sebastião Bugalho, eurodeputado precoce, jornalista de voz firme, ambição ostensiva e ar de quem já se fartou de trabalhar na vida — apesar de não ter conhecido os tempos de Dickens, nem muito menos ter andado a vender fósforos na infância como a pobre menina do conto de Andersen. Pelo contrário: sem calos nem pele curtida pela fuligem, aos 29 anos foi catapultado dos reluzentes estúdios de televisão para as salas aquecidas de Estrasburgo, onde agora exercita o seu olhar sério e as sobrancelhas opinativas, com alguma dose de superciliosa empáfia, sob os lustres da democracia europeia.

    Sebastião, nem de propósito: vejam bem o nome! Que fina ironia da História lusa, oferecer-vos um jovem político em pleno século XXI que, num impulso iminente de eminência sebastianista, ambiciona governar o país antes mesmo de ter aprendido a governar as suas próprias expectativas. Ao contrário do rei desaparecido em Alcácer-Quibir, este Sebastião ressurge não numa manhã de nevoeiro, mas num estúdio iluminado de televisão, diante das câmaras e microfones a anunciar sempre coisas.

    E, desta vez, veio Sebastião Bugalho anunciar com toda a solenidade juvenil que a sua maior ambição, neste momento, é “cumprir o mandato e entregar o programa eleitoral” – como quem anuncia um feito heróico digno das mais épicas epopeias onde todos naufragaram. Ora, bem sabemos que programas eleitorais são como testamentos dos velhos nobres: prometem muito, garantem distribuir por todos e no fim só sobra um anel enferrujado e um móvel carunchoso. Contudo, para o nosso jovem Aquiles, que se arrisca a ser um Teseu, cumprir o programa parece garantia suficiente para se eternizar no poder. Convenhamos: um raciocínio tão ingénuo quanto enternecedor, que ignora que, em Política, aqueles que cumprem com escrúpulo as promessas dificilmente são reeleitos, porquanto os beneficiados esquecem depressa, e os prejudicados lembram-se para sempre.

    Porém, onde me deleitei mais com Sebastião Bugalho foi na recente sugestão de se considerar já especialmente dotado para enfrentar os doze trabalhos de Héracles na arena política, empunhando a astúcia de Odisseu e o vigor de Aquiles, e dar ainda uns tabefes, por desfastio, num Minotauro nos labirintos de Creta. Ou uma incumbência mais árdua como seja a de primeiro-ministro da República Portuguesa.

    E como se preparou? Ora, ao entrevistar, na qualidade de jornalista, cinco primeiros-ministros. Sim, cinco! Não um ou dois, nem sequer quatro – cinco! Sebastião acredita, portanto, que adquiriu a arte de governar por osmose, tal como alguém se tornaria um exímio cirurgião após cinco aulas de anatomia, ou que alguém pudesse pilotar um avião depois de cinco colóquios com hospedeiras de bordo ou mecânicos de aeronáutico, acrescido de um conhaque com o presidente da TAP. Quem sabe, então, se não será assim que o jovem Sebastião crê também aprende ballet – entrevistando bailarinas –, ou se dominar a física quântica – dialogando com cinco físicos – ou se faz um fato – tagarelando com cinco modistas. Esta crença na transmissão directa de talento e do saber através de simples paleio revela uma fé na permeação intelectual tão encantadora quanto perigosa.

    ​A História política é pródiga em exemplos de ímpetos juvenis desmedidos. Alcibíades, o audacioso político ateniense, brilhou intensamente, mas sua impetuosidade conduziu Atenas ao desastre na Sicília. Robespierre, imbuído do fervor revolucionário juvenil, procurou salvar a França com ideais intransigentes, apenas para ver sua cabeça separada do corpo pela mesma guilhotina que tanto promoveu. Gavrilo Princip, um jovem estudante sérvio-bósnio, acreditou que um único disparo poderia redefinir os destinos dos Balcãs; acabou por desencadear a Primeira Guerra Mundial. E não esqueçamos os estudantes de Maio de 68, que, munidos de certezas absolutas, julgavam que bastava demolir o antigo para erguer instantaneamente um mundo perfeito.​

    Hoje, já não se assaltam bastilhas nem se arremessam pedras; prefere-se ascender aos palcos televisivos e aos auditórios de Bruxelas, onde o maior perigo talvez seja uma tradução simultânea mal-executada. No entanto, a audácia juvenil persiste, embora adornada com gravatas berrantes e discursos eloquentes, desacompanhada da prudência, da experiência, da sensatez e da temperança.

    Sebastião Bugalho, na verdade, jamais fugirá às regras universais. Acha-se excepção, mas é somente mais um exemplar de uma longa linhagem de idealistas convencidos de que mudam o mundo ao mudar de penteado ou ao escolher nova fatiota. Ele vê o mundo como uma tela branca onde julga poder pintar com originalidade, sem perceber que esse quadro já foi tantas vezes rabiscado e apagado que há zonas onde a tinta já nem agarra.

    Eis que, quando a realidade finalmente se impuser – e ela impõe-se sempre –, Sebastião descobrirá, como outros bugalhos antes dele, que a política é mais do que alhos e não se resume a entrevistas nem se ensina em conversas amenas, mas com golpes profundos de realidade, alianças inesperadas, e muitas desilusões acumuladas. Talvez para esbarrar na realidade, compreenda aquilo que Tácito dizia sobre o imperador Tibério: pode-se conquistar tudo, menos o sossego. Perceberá também que entrevistar cinco primeiros-ministros não o preparou para ser um deles; apenas para entender como também eles falharam, um após o outro.

    No fundo, o ciclo da juventude sempre foi aquele que Sebastião Bugalho completará: da excitação inicial ao cansaço, da esperança ao pragmatismo, das promessas feitas às promessas quebradas, do jovem turco a transformar-se num velho janízaro. O jovem Sebastião, como tantos outros antes dele, ainda não sabe que a roda que ele quer inventar, já foi inventada; e que o mundo que ele quer salvar, esse, já está perdido há muito.

    Um dia destes compreenderá a mais dura e decisiva das lições: ninguém governa um país sem antes ter sido governado — ao menos uma vez — pelas suas próprias ilusões juvenis; e só depois de ser vencido pela juventude se pode almejar vencer com maturidade. Sem entrevistas; antes com as vistas bem abertas.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Uma estória dos ditadores, segundo o populista Gouveia ‘Hermano Saraiva’ e Melo

    Uma estória dos ditadores, segundo o populista Gouveia ‘Hermano Saraiva’ e Melo


    Minhas ilustres leitoras, ornamento dos salões e das boas letras – sempre justas nas opiniões e, dizem, ainda mais nas silhuetas –, e meus esclarecidos leitores, esses decantados campeões do bom senso e da gravidade – ao menos quando não se deixam trair pelo apetite ou pela política de café –, escutai-me por um momento. Sabei que, quanto maior aparenta ser a severidade do verbo que assiste a um homem, tanto mais elástica se revela, por regra infalível – e permiti-me que o diga, confiado no vosso tino sagaz –, a natureza do seu acto. Eis o homem que, com a mão esquerda, aponta o dedo da moral aos astros, erguido em gesto solene, enquanto, com a direita, alarga a corda para melhor ajeitar o laço que lhe serve a própria conveniência. A moral, nestes casos, quando se ostenta de espada em riste e sob a farda alva da rectidão, costuma dobrar-se, lesta e flexuosa, como junco à beira do charco ao primeiro sopro do interesse.

    Por isso, desconfiem sempre daqueles que, à semelhança dos antigos censores romanos, prezam tanto a austeridade das palavras que, ao proferi-las, parecem comandar uma trirreme em pleno mar de salvação, chicoteando galeotes com o zelo digno de um Catão. Ainda que, passada a tormenta e dada a folga, se lhes ache mansamente ao leme de um bote a vapor, confortável e sem pressas, onde remos e chicotes já ninguém os vê… salvo talvez o barqueiro Caronte, se o acaso lhes indicar a última travessia. Não me acusem de má-fé, que não padeço de tal moléstia. Recomendo-me antes ao vosso juízo como quem apenas observa com o olho desencantado de quem já percorreu este e aquele mundo — e vos confesso que, no fundo, são ambos feitos da mesma matéria corruptível.

    Desta sorte, sempre que me deparo com um marechal da pureza (não no posto, mas na pose), bradando às massas com a prosápia de quem leva a reboque um esquadrão de princípios imaculados, ocorre-me sempre Frei Tomás: homem de missa à dominica e traficante de bulas à segunda-feira. Em rigor, não se trata apenas de fazer o que Frei Tomás diz e depois imitar o que Frei Tomás faz; trata-se antes de seguir-lhe as palavras enquanto há quem as escute — e, logo que o pano desce, executar aquilo que só Deus, os santos da casa e a cozinheira escutam entre um lavar de pratos e um mexer de tachos. Ora, e como reza o rifão, santo da casa não faz milagre. Por isso, acautelai-vos dos homens de verbo severo: onde a língua é chicote, o corpo costuma ser serpente.

    A História é fértil em exemplos desses senhores que, da tribuna, apregoam virtudes republicanas com tamanho fervor que seria de supor terem sido Cícero reencarnado, ou pelo menos afilhado de Brutus — só para, na primeira esquina escura do foro, venderem a alma. E não por trinta dinheiros, que seria preço de apóstolo, mas por um vintém ou um bastão de comando. Contudo, nem vale o peso de um compêndio de calígrafos bizantinos ou de um breviário de doutores escolásticos a buscar tais espécimes em bibliotecas bolorentas, quando os podeis encontrar por aí… a cada esquina e a cada discurso.

    Encontrei um espécime destes, por estes dias, no lançamento de um livro titulado Os políticos são todos iguais, da lavra de um ‘fact-chicote’ que responde por Gustavo Sampaio — desses que vergasteiam a realidade com tanto afinco que, coitada, acaba exausta, a confessar ser surreal, quando não se rende já à fantasia do inquisidor. Não, não me refiro ao escriba nem tampouco ao seu objecto de estudo — esse André Ventura, douto vendedor de políticas pomadas milagrosas que se apresenta em feira franca, bradando, gesticulando, prometendo curas sociais e económicas para todos os males, enquanto vende banha de cobra em frascos de ouro de pechisbeque. Nenhum desses. Falo-vos do apresentador do missal sobre populismos: Gouveia e Melo.

    É certo que o Almirante já não se apresenta de dragonas, nem de farda branca de veraneio, nem de colete táctico de campanha; mas enfarda-se agora, em superciliosa empáfia, com verbo de gala: lustroso, aprumado, carregado de medalhas. Fala grosso, e pensa-se, quem o escute, estar ali um Ájax tecelão de justiça e coragem. O bom do povo, crédulo como sempre, ao vê-lo tão hirto e vociferante, acreditará que não há neste homem nem sombra de torcedura — quando, talvez, a torcedura esteja toda nele, bem escondida sob a casaca de Almirante.

    No seu discurso, o Almirante – a quem reconheço a arte do teatro e a gravidade do tom –, abdicando da patente de oficial para se fazer tribuno, num rasgo de zelo constitucional, resolveu dar lições de democracia e liberdade, filosofando como se Atena tivesse por capacete um barrete de marinheiro. Julgou, pois ele, por decente afirmar, com um ar de quem revela um segredo de Estado, que “a maior parte dos ditadores autocráticos da História não era militar, nem ex-militar”. Pasmei. Com o que me resta das mandíbulas, pasmei.

    E perdoe-se-me a franqueza de defunto: não há maior martelo da razão do que o martelo do ridículo. E a afirmação do senhor Almirante cheira a improviso de taberna mais que a lição de historiador. Examinemos o caso, com a paciência de um estudioso e a malícia de quem já não teme retaliações mundanas. Deixai-me, doces donzelas e corteses cavalheiros, que vos leve a passear, de candeia na mão, pelas cavernas do poder autocrático, onde os galões e as espadas sempre tiveram mais préstimo que a pena e o tratado.

    Comecemos pelo princípio — ou quase —, onde a autocracia nunca brotou democratas, e muito menos humanistas de excelsa sensibilidade. Alexandre, dito o Grande, que o foi mais pelo tamanho dos massacres que pelo das virtudes cívicas, era rei e também general, mestre do assalto e do cerco. Dizem-me que deixou atrás de si cidades arrasadas e pilhas de cadáveres para corar os mais modestos carniceiros. César, que cruzou o Rubicão não para trazer paz a Roma, mas para forjar a primeira ditadura militar da história clássica, envergou uma armadura e não a toga quando se fez senhor da República.

    E como esquecer Genghis Khan? Não há nome que baste à brutalidade metódica dos sanguinários exércitos mongóis. O bom do Khan não tinha títulos universitários, mas manejou a espada como ninguém – e construiu um império a cavalo, onde o maior mérito de um homem seria a perícia e rapidez em cortar cabeças. Avancemos um pouco. Os otomanos, senhores de um império fundado e mantido por militares, davam a chefia do Estado ao sultão, que era ao mesmo tempo chefe das forças armadas. Os janízaros, exército de elite, não só impunham a obediência interna como determinavam sucessões imperiais a seu gosto – matando, para o efeito, mais príncipes do que uma peste palaciana.

    Querem reis militares da Idade Média? Do Renascimento? Do Barroco? Querem também papas de armas em punho? Chega-vos o velho Júlio II, Il Papa Terribile, que com a mão direita benzia e com a esquerda manejava o estandarte de batalha, e que fundou a Guarda Suíça não para rezar mas para pelejar. E que tal então Napoleão Bonaparte? Esse corso de baixa estatura, mas altas ambições, que foi general antes de ser imperador, que usou a guerra como argumento e o exército como meio de voto popular. Proclamou-se defensor das ideias revolucionárias e, num repente, estava a erguer o trono forrado a decretos imperiais que manteve a Europa em guerra durante uma década.

    Aliás, o meu século é fértil em tiranos fardados. No México, Antonio López de Santa Anna – generalíssimo e ditador – governou como lhe apeteceu, vestindo tanto a farda como o casaco da tirania, dependendo apenas da meteorologia. No Paraguai, José Gaspar Rodríguez de Francia – o Supremo – foi ditador, mas o seu sucessor, Carlos Antonio López, militarizou o país e iniciou a senda que culminaria com o seu filho, Francisco Solano López, que conduziu o Paraguai à aniquilação total na Guerra da Tríplice Aliança, morrendo fardado e espada em punho.

    Na árvore genealógica das tiranias, os ramos mais robustos mostram-se frequentemente de cepa militar. O senhor Gouveia e Melo, agora militar na reserva, parece querer ignorar que Franco era general, Pinochet era general, Videla era general, e que a América Latina — terras de minha infância tropical — se viu, no século XX, governada por uma plêiade de senhores de farda, bigode e punho de ferro. No meu Brasil, por exemplo, tivemos uma ditadura que durou mais de duas décadas, até 1985, sob o bastão firme de generais sucessivos, cada qual tão amante da Constituição quanto um açougueiro do boi que estripa.

    O argumento do Almirante, se me permitis a imagem, é como um navio que parte sem leme e se crê guiado pela força das ondas: chega, mas ao fundo do mar, a fazer companhia aos galeões de prata, às esperanças afogadas e aos tubarões do costume, que lá em baixo votam sempre a favor da corrente. Esqueceu-se Sua Excelência de que mesmo aqueles ditadores que não envergaram fardas de serviço se armaram de aparato militar e simbologia castrense para consolidar e exibir o poder. Hitler foi apenas cabo da I Guerra Mundial, é certo, mas criou para si mesmo uma farda e insígnias de Feldmarschall. Já Mussolini, um jornalista em origens, deu-se o gosto de se apresentar como comandante das massas, com uniformes que fariam inveja ao guarda-roupa de Júlio César.

    Na verdade, não há tirania sem aparato militar; não há autocracia sem aparato repressivo; não há ditador que não precise de soldados, de generais, de polícias com culatra armada. A política é, afinal, a continuação da guerra por outros meios, como bem disse o prussiano Carl von Clausewitz; mas há quem inverta a sentença e torne a guerra a continuação da política, com sabre, baioneta e discurso constitucional. Nem Portugal fugiu a esta genealogia belicista. O Estado Novo emergiu não da penumbra das assembleias populares, mas do clarão de um golpe militar. A vossa Primeira República foi uma sucessão de pronunciamentos e quarteladas, com mais generais a dar posse a governos do que padres a dar bênçãos aos noivos. Salazar, a quem se atribui o título de professor, só governou porque o general de artilharia Óscar Carmona, o general da aeronáutica Craveiro Lopes e o almirante Américo Tomás lhes asseguraram, décadas a fio, o respaldo das baionetas e a obediência das armas.

    Mas voltemos ao nosso Almirante – não ao Tomás mas ao Melo –, para as suas meditações sobre o populismo. Disse ele ainda que consultou o livro de Gustavo Sampaio para verificar se cumpria ou não os “itens da checklist” de um populista, “para não ficar preocupado”. Ah! Aqui reside o detalhe: um candidato a Presidente que precisa de um manual alheio para saber se é populista é como um cozinheiro que consulta a receita para verificar se o bolo leva açúcar. Se tem dúvidas, e precisou do Gustavo Sampaio, já se meteu na cozinha errada.

    Caro Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, distinto almirante na reserva, ornado ou ornamentado, segundo a página da Wikipédia, de GCC, GCA, ComA, cinco MPSD, três MOSD, MTMM, MSMM, MPMM, MPDN, MPCSJ, MTCN e MOCE: bem sei que arrasta ao peito prataria e ferragens que, não fosse a distinção, dir-se-ia um galeão filipino da Armada Invencível prestes a naufragar com o peso do próprio tesouro… ou a ser resgatado por algum submarino alemão de oportunidade, que bem conhece. Mas sempre lhe atirarei, com a tranquilidade de quem não teme tormentas, que o verdadeiro populismo não reside nem em palavras nem em gestos, mas na apropriação do imaginário das massas, no uso hábil da retórica da pureza e da corrupção alheia, no apelo constante ao “nós”, os magníficos, contra “eles”, os execráveis.

    Permiti-me, ainda, um derradeiro apontamento filosófico. Os militares são, em última instância, os instrumentos organizados da violência legítima, assim defendeu Max Weber. Mesmo não governando, encontram-se na retaguarda do poder – e a paz, sabem eles bem, é somente um intervalo entre batalhas, e a democracia uma suspensão precária da força, à espera que os uniformes se aborreçam da espera.

    Por isso, a sua postura hierática e o seu ar de comandante prudente encarnam bem o dilema dos militares que sempre estiveram de mãos dadas com a política: querem ser árbitros, mas acabam juízes; querem ser neutros, mas acabam protagonistas. E quando dizem que “a Constituição não está mal feita”, devemos lembrar que o mesmo foi dito de muitas cartas antes de serem rasgadas ao primeiro tropel de cavalaria.

    Percebo, neste momento, o seu dilema existencial –um dilema que, por certo, deixaria Hamlet a coçar a cabeça: ser ou não ser militar? Ser um bravo fardado, de peito estufado, botas de tropa e discurso castrense, ou envergar a limpíssima camisinha e gravata a preceito de civil imaculado? Andará amargurado a perder noites em angústias metafísicas, oscilando entre o papel de soldado da Constituição ou de tribuno da República, entre o herói disciplinado das Forças Armadas ou o candidato messiânico das multidões?

    Sim, porque é caso para dizer que jamais um oficial de Marinha passou por tão angustiante crise identitária. Acredito estar hesitante entre continuar a representar o papel de salvador de Portugal de camuflado e bota cardada na epopeia grandiosa da distribuição de vacinas (que, convenhamos, tinha menos complexidade logística do que gerir um Pingo Doce em fim de semana de promoções de brócolos e nabiças) ou reinventar-se como estratega da política, brandindo um código moral e fingindo que foi moldado na tradição do grego Solón, em vez da de um qualquer chefe de brigada de infantaria.

    Aquilo que o atormentará, certamente, é o paradoxo essencial do militar que ambiciona o voto: precisa do peso simbólico da farda para se apresentar como líder forte e disciplinado, mas teme que o associem demasiado ao arquétipo do bruto das armas, do soldado que obedece mas não pensa, do homem de caserna que sabe manejar a baioneta mas tropeça na gramática. Quer ser visto como o iluminado da Marinha, mas sem que lhe recordem que a Armada, em Portugal, passou meio século sem disparar um tiro e mais de um século a navegar sem grandes feitos, a não ser os de engraxar sapatos e de manter impecáveis os botões dourados do uniforme. Quer ser o homem da ordem e da autoridade, mas sem que o confundam com aqueles coronéis de barbas hirsutas e óculos escuros que governaram a América Latina à bruta.

    Na verdade, quer vender-se como um líder que não é populista, mas não resiste ao espectáculo do populismo. Que outro motivo teria para folhear um livro sobre André Ventura e verificar, qual adolescente ansioso com um teste vocacional, se cumpria os “itens da checklist” de um populista? Fico na dúvida: consultou a “checklist” para saber se era populista ou para ter a certeza de que não era populista o suficiente?

    De um modo ou de outro, o episódio é revelador: um militar que precisa de um manual para perceber se está ou não a fazer populismo é como um cozinheiro que consulta um livro de receitas para descobrir se o seu bolo leva açúcar. Se tem dúvidas, caro Gouveia e Melo, já se meteu na cozinha errada.

    Diverte-me, em todo o caso, a sua inquietação sartreana: se continuar a vestir a farda, acusam-no de ser um candidato militarista; se a despir, perde o único traço distintivo que o separa de qualquer outro político sem ideias. Se se apresenta como homem de armas, denunciam-lhe a rudeza; se tenta passar por intelectual, falta-lhe a credibilidade. Enfim, uma coisa é certa, para seu mal: um Napoleão não pode ser um Voltaire, e um general não pode ser um Rousseau, por mais que tente substituir a espada pela pena – ou pela caneta BIC azul, dessas que assinam autógrafos em feiras do livro e actas em quartéis..

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.