Autor: Brás Cubas

  • (a)Ventura entre hambúrgueres e cidadãos

    (a)Ventura entre hambúrgueres e cidadãos


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Homens políticos há que detêm uma rara particularidade, e nem precisam de ser cowboys de banda desenhada: têm reflexos mais rápidos do que a própria sombra. Mal a luz do acontecimento se projecta na parede, já eles deram um tiro — não importa em quê ou em quem —, e pouco importa também se o tiro é de pólvora seca ou de pólvora de feira.

    É o caso de um certo tribuno lusitano que, no afã de mostrar serviço ao auditório, dispara antes de pensar. E, pensando bem, talvez nem pense de todo. Parece aqueles cães de jardim, que ladram a qualquer folha que voe, não por coragem ou por medo, mas por hábito nervoso. Vê um escândalo onde há protocolo, descobre uma desgraça onde há cerimónia, desvenda uma conspiração onde há uma banalidade internacional.

    O episódio da semana, digno de nota para a posteridade, é, pois, a indignação do Dr. André Ventura — esse Savonarola das redes sociais — com a ida do vosso Presidente da República a um Burgerfest na Alemanha. O Parlamento, imagine-se — clamou ele, incrédulo — autorizou a deslocação de Marcelo, obviamente contra os votos do Chega, para estar presente naquilo que Ventura traduziu livremente como “festival de hambúrgueres”.

    Ai de vós, pobres contribuintes, que pagarão a gasolina do Falcon presidencial para que Sua Excelência vá devorar cheeseburgers e batatas fritas ao som de música bávara, às tantas vestido de Lederhosen. Sim, porque hoje são hambúrgueres e daqui a poucas semanas será o Oktoberfest, onde se verá Marcelo de caneca de litro em punho, em cima da mesa, a entoar Ein Prosit der Gemütlichkeit, para gáudio dos seus assessores que, em trajes tiroleses, dançarão polca com criadas louras, de avental e trança, entre um fornecimento e outro de cerveja e salsichas, tudo ao compasso estridente da fanfarra.

    Eis o disparate levado à sua forma mais gourmet: uma indignação servida em prato de porcelana bávara, com direito a espuma de cerveja e acompanhamento de oom-pah.

    Quem saiba meia dúzia de palavras de alemão — ou que, pelo menos, tenha o bom hábito de consultar um dicionário antes de puxar do megafone digital — sabe que Bürger quer dizer “cidadão” em português. Logo, Bürgerfest é, portanto, uma singela mas relevante festa da cidadania. Mas Ventura, zeloso guardião da moral fiscal, resolveu transformar Goethe em McDonald’s e dar a Portugal a imagem de um Presidente viajando para um arraial de fast food. Eis o que dá misturar patriotismo inflamado com ignorância lexical: sai um hambúrguer malpassado, servido em prato de indignação moral.

    No fundo, esta pressa em transformar tudo em escândalo é o próprio motor do populismo. Não há facto que não possa ser distorcido, palavra que não possa ser malbaratada, tradução que não possa ser retorcida para caber no figurino da revolta permanente — como massa de pizza atirada ao ar por um cozinheiro de taberna, moldada até ficar fina o bastante para tapar qualquer assunto e coberta de molho de furdunço para acicatar o sabor.

    O velho Hobbes talvez chamasse a isto uma guerra de todos contra o bom senso. Assim, agora, já não se discutem ideias, mas memes; já não se debatem conceitos, mas prints de Twitter. E, no meio de tanta pressa, lá se vai a semântica, coitada, reduzida a carne picada.

    Aliás, não é de hoje que a Humanidade tropeça nas palavras — e Ventura que se cuide. Basta lembrar que a palavra “idiota”, na Grécia Antiga, não significava tolo, mas o cidadão prudente que se abstinha de intervir na polis. Com o tempo, o sentido inverteu-se, e hoje chamamos idiota justamente a quem se mete em demasia na vida pública, sem ideias claras nem ditos assertivos, ao ponto de ver caldeirada até onde só há cerimónia protocolar.

    Em todo o caso, o populismo adora a confusão lexical. Por exemplo, transforma imposto em roubo, subsídio em esmola, parlamento em covil — e, agora, cidadania em festa de hambúrgueres. E notem que é uma estratégia tão velha quanto eficaz: se a realidade não cabe no discurso, amassa-se a realidade até caber. E o povo, entretido, morde a isca, como quem morde uma sandes — ou uma bifana, mais apropriadamente.

    Não nego que há ocasiões em que os governantes lusitanos gastam em viagens aquilo que falta aos hospitais e às escolas. Porém, uma indignação por Marcelo ir a Berlim celebrar a cidadania talvez seja exagerada. Indignem-se, sim, se ele ficasse em Belém, alheio ao mundo, enquanto lá fora se celebra o valor que ainda permite votar num sistema democrático onde até André Ventura pode ir a votos — mesmo se ele confundir um convite para a Festa della Befana em Roma com um banquete de bifanas, ou uma visita oficial aos Camarões com uma foliada de marisco.

    Imagine-se, assim, o efeito cómico se Ventura fosse convidado ao tal Burgerfest: entraria desconfiado, olharia para o lado à procura do food truck, e ao ver uma conferência sobre direitos humanos, gritaria ao microfone: “Isto é uma vergonha! Eu vim para comer hambúrgueres e vocês estão a falar de Constituição!”. E talvez, no fim, posasse para a fotografia com ar grave, denunciando ao país a cabala internacional que lhe roubou o almoço.

    Mas deixemo-nos de coisas. O episódio é menor, mas revela algo maior: a facilidade com que se gera espuma. O populista vive de transformar uma gota de leite em maré de espuma, um convívio protocolar em orgia de desperdício, um conceito em caricatura. Não é uma técnica de sobrevivência política, mas de crescimento: gritar sempre mais alto que a razão, para que a razão não se faça ouvir.

    Festa della Befana com bifanas…

    E o que resta disto para vós, serenas donzelas e tolerantes cavaleiros? Esperar que Marcelo organize o Präsidentielles Bifana-Fest e que Ventura denuncie ao país mais este ataque à moral e ao erário público? Ou rir? Rir como ria Voltaire dos pedantes, rir como ria Eça dos bacharéis, rir como ria o meu pai Machado de Assis dos Quincas Borbas deste mundo. Porque, no fim, nem sequer é um hambúrguer que está em causa, nem uma viagem presidencial, mas a capacidade de não se ser arrastado pela enxurrada da ignorância barulhenta.

    E, posto isto, se é verdade que a cidadania se celebra, então brinde-se — não com Coca-Cola, mas com um bom vinho tinto, daqueles que dão paciência para aguentar tanta idiotice. Saúde, minhas confreiras e meus confrades, que a festa continua — e é bom que continue, mesmo que alguns insistam em confundi-la com a fila do McDrive.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Portugal: este país não é para vivos

    Portugal: este país não é para vivos


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS (até 10 de Setembro)

    (não inclui esta crónica inédita; para ler o prólogo e três crónicas do livro, veja aqui)

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    Há em Portugal uma escola de prantear tragédias que faria inveja às carpideiras de Tebas, às viúvas de Jerusalém e, ouso dizer, ao próprio São Roberto Belarmino – sim!, esse mesmo, o cardeal jesuíta que quis tratar da saúde a Galileu Galilei –, que em De Arte Bene Moriendi ensinava que a boa morte é a consumação de uma vida virtuosa, e não o coroamento de uma existência de incúrias e descuidos.

    Pois, sim. Mas se é verdade que Belarmino pregava o arrependimento como chave para o bem morrer, Portugal prefere só o espectáculo: não se arrepende, antes decreta luto e soleniza. Por isso, neste Estado luso – e no estado em que andais –, asseguro-vos, discretas donzelas e circunspectos cavalheiros: mesmo que pequeis à vontade, que vivais na incúria, na preguiça, no desleixo, no comodismo, na desatenção, na negligência, na imperícia, na omissão, no descuido e até no dolo mais descarado, no momento da vossa morte — se ela se der com estrondo e sobretudo com culpa pública — sereis guindados à glória dos altares cívicos, com missa de corpo presente, luto nacional, coroas de flores e lágrimas televisivas que fariam corar as bem-aventuranças.

    Foi assim na queda da ponte de Entre-os-Rios em 2001, quando a engenharia lusitana, num acto de fé pascaliana, apostou que a ponte se manteria de pé sem manutenção — e perdeu a aposta. Foi assim nas chamas de 2017, quando mais de cem almas se transformaram em holocausto rodoviário, encerradas em estradas sem escape, como se o Leviatã hobbesiano tivesse decidido cobrar tributo. E é assim agora, com o funicular da Glória — que ironia nominal! — que se despencou, depois de uma vistoria feita poucas horas antes, certificada com a mesma solenidade de um sacramento, garantindo que estava apto a durar. Durou, sim: mais umas horas até à derradeira viagem, quando se fez do trilho catre e da cabine esquife, para lamento das famílias e gáudio das estatísticas da criminalidade travestida de acidente.

    Eu, Brás Cubas, que expirei na minha chácara de Catumbi com onze amigos à beira do meu buraco, sem coroas de flores nem discursos de Estado, confesso que às vezes invejo este vosso país. Não tive luto nacional, não tive trombetas nem orquestra, e tampouco um imperador que me enviasse condolências. Mas Portugal, esse país que me poderia ter mantido súbdito se tivesse deixado a Inglaterra ficar com o apêndice cecal da Europa que Napoleão tanto ambicionou, sabe fazer funerais. Portugal é, em pleno, um país que não se governa, mas que se enterra com magnificência.

    Olhem o ritual: primeiro, a comoção mediática, de três ou quatro dias, com luto oficial, envio de condolências, directos televisivos junto aos destroços e coroas de flores à farta. Depois, a romaria política aos velórios e homenagens, como o da Igreja de São Domingos com a presença simultânea dos contritos 3M — Marcelo, Montenegro e Moedas —, gravata preta, desempenhando o seu papel num evangelho cívico.

    Seguir-se-ão missas de sufrágio, televisionadas, com homilias que citam o Livro de Jó (“O Senhor o deu, o Senhor o tirou”) e a Carta aos Coríntios (“A morte foi tragada pela vitória”), misturadas com um pouco de Rousseau para temperar o caldo. Tudo para que o povo chore em uníssono e a catarse colectiva seja integral.

    Enquanto isso, havia um ortopedista de plantão nos serviços de urgência de toda a cidade de Lisboa e o pomposo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Ferroviários, esse Sísifo lusitano, tem menos inspectores do que palavras na nominata, contando somente um investigador ferroviário para carregar a pedra da responsabilidade até ao topo do monte burocrático, de onde ela invariavelmente rolará para o esquecimento. Mas o que importa isso? Importante é um país decretar luto nacional sem saber ainda quantos mortos há, mobilizar quinze médicos legistas para imediatas autópsias nocturnas — enquanto nas urgências os vivos esperam sem médicos — e garantir que as lágrimas e as palavras sugeridas por spin doctors sejam devidamente transmitidas em directo.

    Portugal não sabe prevenir, mas sabe lamentar: é um país que, como disse Santo Agostinho, “ama a cidade dos homens mais que a Cidade de Deus”, e por isso celebra a morte com solenidade, como se fosse um sacramento cívico. Recordo-me do Eclesiastes — “há tempo de nascer e tempo de morrer” —, mas em Portugal há sobretudo tempo para decretar luto, tempo para discursar, tempo para mandar coroas de flores.

    E aqui entra a parte mais sublime da liturgia: desde 2022, fazendo jus a um país funesto, o vosso Presidente da República já encomendou 190 mil euros em coroas fúnebres. Sim, noves fora, é muita flor – e muito dinheiro. Seria dinheiro suficiente para arranjar os cabos do funicular da Glória? Ou seria preferível que a Carris não gastasse 600 mil euros por ano em jardineiros? Não sei: afinal, para quê prevenir se é tão mais edificante carpir depois?

    Dir-me-ão que sou cáustico, que exagero, que o país não é só lágrimas nem cerimónias fúnebres, que também faz leis, governa, constrói estradas, gere hospitais – nem sempre bem e a custos módicos, é certo. Concedo. Mas há aqui uma estética da morte que em Portugal é cultivada como um jardim barroco: as bandeiras a meia-haste, as notas de pesar, os retratos das vítimas em montagem audiovisual ao som de Samuel Barber, tudo é preparado para a fotografia, para o directo, para o lamento partilhado nas redes sociais.

    Enquanto os vivos esperam anos por justiça, os mortos são velados em altares de veludo. Enquanto os vivos padecem nas listas de espera, os defuntos têm prioridade de autópsia e honras de corpo presente. Mas não se diga que isto é pouca coisa. Certos países nada têm disto que o Estado vos concede: um consolo colectivo, uma espécie de purgatório antecipado: já que se falhou em garantir a segurança dos vivos, ao menos se canonizam os mortos. Mesmo se, convenhamos, se trate de uma economia moral curiosa: o Estado falha em zelar pela vida, mas compensa com pompa na morte, como se a bandeira a meia-haste fosse indulgência plenária para os pecados de omissão.

    Eis o triunfo da liturgia sobre a prudência, da estética sobre a ética. Pascal diria que é a grandeza e a miséria do homem: falhar na vida, redimir-se na morte — em Portugal, os políticos assim procedem, embora para tratar da vida deles e cuidar do funeral dos outros – e com fundos do Orçamento de Estado.

    E, assim, o vosso país continuará, entre lágrimas e velas, seguindo os passos do seu fatídico destino, paradoxalmente à espera da próxima tragédia para logo depois repetir o rito. De certo modo, é comovente. De outro, é aterrador – grotesco, mesmo. Como defunto que sou, ouso porém aconselhar: vivei com prudência perante as obras e feitos dos políticos, para que não preciseis de ser carpidos com tanto esmero, mas se morrerdes por negligência, incúria ou omissão do Estado, tende ao menos a consolação de que tereis missa de homenagem, transmissão em directo e, com sorte, uma coroa de flores presidencial. Talvez até duas, se o orçamento permitir.

    E, no fim, Marcelo vos elogiará do púlpito, Moedas soluçará de emoção, Montenegro jurará que ‘jamais’ — e se não forem estes, serão outros —, de sorte que a Nação sentirá que cumpriu a sua parte. O resto — o resto é silêncio, e o crepe fúnebre cai.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • Montenegro, Ventura e o Plano Nacional de Leitura: tragédia em dois actos e nenhum livro

    Montenegro, Ventura e o Plano Nacional de Leitura: tragédia em dois actos e nenhum livro


    PRÉ-VENDA na LOJA DO PÁGINA UM da obra CORREIO MERCANTIL DE BRÁS CUBAS (até 10 de Setembro)

    (não inclui esta crónica; para ler o prólogo e três crónicas, veja aqui)

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    Sou um defunto autor – digo-o sem modéstia, mas também sem vanglória, pois já não me resta carne para ser modesto nem vaidade para me gabar. A morte, ao contrário do que se supõe, não vos roubará o vício de observar os vivos: apenas vos concederá a deliciosa distância que permite rir dos seus desatinos sem remorso.

    E que grande circo me cabe agora assistir, entre Fogos e Férias, neste país que há muito vive condenado a três letras fatigadas – Fado, Fátima e Futebol. Pois é: eis-me aqui a falar de uma nação que teve Camões a cegar para ver mais fundo, Sophia a dar voz ao mar, mas que agora, por perverso sortilégio democrático, se vê representada por um primeiro-ministro que, tendo escalado alto nos degraus da política, não logrou, todavia, elevar o espírito além da soleira da taberna. É um Ulisses sem Ítaca, um Édipo sem tragédia, um Salomão sem provérbios: chegou longe, sim, mas apenas na geografia dos cargos, enquanto na cartografia da inteligência permanece fiel a uma província desolada, onde as letras são ornamento supérfluo e a cultura um incómodo que convém confundir.

    Falo-vos, claro, minhas argutas donzelas e perspicazes leitores, de Luís Montenegro, o homem que governa Portugal desde 2024, e que há semanas subiu ao Parlamento para encerrar um discurso com uma citação erudita. Ah, o velho truque da retórica: “como diz Sophia”, proclamou ele, e recitou a frase “Nós somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos”. Bonito, não fosse um pormenor: a frase era de Saramago, nos Cadernos de Lanzarote. Sophia quedou-se muda no jazigo em Carnide, as cinzas de Saramago gargalharam em Lanzarote, e Montenegro saiu como um novo Édipo de São Bento, furando os olhos da cultura sem sequer saber onde estava a faca.

    Fácil se percebeu, por esta amostra risível, porque não há Ministério da Cultura neste governo. Para quê, se o próprio chefe não distingue a socialista Sophia do comunista Saramago? Já se mostrou temerário nomear um ministro da Agricultura que poderia confundir trigo com tremoço, ou uma ministra da Saúde que, mesmo com diploma de farmácia, prescreveu o encerramento de urgências para salvar vidas.

    Montenegro, porém, supera essas caricaturas, fazendo da ignorância não uma falha, mas um princípio doutrinário. Naquele instante parlamentar, o país compreendeu: a confusão não é lapso, é método; a ignorância não é acidente, é programa; e a cultura, se resistir, será apenas por obra e graça do Espírito Santo – e nem sempre Ele está disponível para milagres tão repetitivos.

    Aliás, Montenegro quer, à sua maneira, deixar marco na Cultura portuguesa. É verdade que outros governantes, em tempos idos, o fizeram erguendo, fundando, protegendo: D. Dinis criou a Universidade em 1290, legando ao reino um farol de saber; D. Manuel I mandou imprimir as primeiras grandes edições régias, introduzindo a tipografia como instrumento de poder e de conhecimento; D. João V, mesmo estroina, engrandeceu a memória nacional com a monumental biblioteca da Universidade de Coimbra, templo barroco do livro; e a rainha D. Maria II patrocinou a criação do Conservatório Real de Lisboa, que formou gerações de músicos e actores.

    Montenegro, porém, não se inscreve nessa galeria de benfeitores: prefere a linhagem dos iconoclastas domésticos. Aproxima-se mais de Pombal quando, ao expulsar os Jesuítas em 1759, entregou a pilhagem das suas bibliotecas à voragem dos ratos e dos alfarrabistas; dos liberais de 1834 que, sob pretexto de modernidade, extinguiram conventos e dispersaram tesouros monásticos inteiros, vendendo incunábulos a peso de papel; dos republicanos iconoclastas de 1910 que, em nome da laicidade, serraram retábulos, destruíram imagens sacras e transformaram claustros seculares em armazéns ministeriais; ou ainda dos censores do Estado Novo, que fizeram da tesoura uma arma contra qualquer ideia demasiado alta. Para cúmulo, não esqueçamos os zelosos burocratas do século XIX que, com diligência de almoxarife, desfizeram códices e pergaminhos medievais como se fossem trastes inúteis, nem a voragem municipal do século XX que, no afã de “progresso”, deixou perder livrarias inteiras dos antigos colégios jesuítas de Coimbra.

    É essa a marca que Montenegro deseja deixar: não a construção, mas a extinção; não o fomento, mas a erradicação; não a memória, mas o esquecimento. Assim ficará inscrito no panteão da vossa história cultural: não ao lado dos que edificaram universidades, bibliotecas e conservatórios, mas na fileira dos que, por cálculo ou tacanhez, reduziram a pó o património que lhes coube guardar.

    Por isso, o seu Governo anuncia a extinção do Plano Nacional de Leitura e da Rede de Bibliotecas Escolares. Eis a pedagogia montenegrina: não havendo livros, não há erros de citação; não havendo bibliotecas, não há lapsos de memória; e não havendo leitura, não há risco de pensamento. É um regresso ao Éden, mas sem serpente nem maçã – apenas com a inteligência saloia como árvore da vida.

    Dir-se-á que exagero. Não: este é o retrato fiel de uma pátria que transformou sabedoria em despesa e leitura em luxo. Recordo que Nero, diante do incêndio de Roma, tocava lira; Montenegro, diante da extinção da cultura, cita Sophia enquanto apaga Saramago. E se Átila deixou a Europa em cinzas, Montenegro prefere deixar os liceus em branco – páginas em branco, programas em branco, cabeças em branco. Montenegro prepara um vale branco de ignorância.

    Muitas de vós, leitoras queridas, e muitos de vós, estimados leitores, concordarão comigo. Porém, ainda julgo que há algo para além da ignorância enraizada: há também aqui um cálculo político, uma prudência quase maquiavélica. Porque paira sobre São Bento uma presença larvar ainda mais temível do que a própria ignorância: a fantasmagoria literária de André Ventura.

    Imaginem, senhores, que nas negociações com o Chega, entre a caça aos imigrantes e o fogo das serranias causadas pelos incendiários a condenar à prisão perpétua, Ventura exige que os seus livros, impressos em vanity press, figurem no Plano Nacional de Leitura. Um apocalipse pedagógico! Crianças de tenra idade a estudar A Culpa é do Benfica com a mesma solenidade com que se lê O Meu Pé de Laranja Lima. Adolescentes a sublinhar 50 Razões para Mudar para o Benfica, ilustrado com cartas astrais da Maya, como quem descobre a epopeia de Camões. Professores, de lágrimas nos olhos, a explicar que o herói da nova literatura nacional é um ciclista toxicodependente, seropositivo e ninfomaníaco que, no romance Montenegro, conquista a Volta a Espanha com a mesma bravura com que Ulisses conquistou Ítaca.

    Vede, pois, o drama: adolescentes confundirem o protagonista do romance com o primeiro-ministro em exercício; ou pior, debaterem nas aulas a pérola venturiana intitulada A Última Madrugada do Islão, onde o palestiniano Yasser Arafat surge travestido de personagem gay, numa obra promovida por um académico nigeriano. Perante tais riscos, que faria um estadista prudente? Extinguir o Plano, claro está!

    Notai bem – e convenhamos que lhe ameniza a incultura –, há aqui um gesto de génio disfarçado. Montenegro, ao abolir o Plano Nacional de Leitura, mata a leitura, sim, mas por um fim supostamente superior: salvar a pátria da leitura errada. Torna-se um Ulisses às avessas: finge loucura não para evitar a guerra de Tróia, mas para impedir que o cavalo venturista entre nas bibliotecas. No fim, protege a cultura não através do cultivo, mas arrancando-a, destruindo-a – é como se, para evitar os fogos rurais, a melhor solução fosse cortar todas as árvores, decepar todos os arbustos, ceifar todas as ervas para, em seguida, se alcatroarem montes e vales.

    A História, ironicamente, até lhe dá alguma legitimidade. A Inquisição proibiu livros para salvar almas. Os liberais de 1834 pilharam conventos para “modernizar” a nação. Salazar preferiu estatísticas a poesia para elevar o produto interno bruto e manter súbditos dóceis. Montenegro, mais higiénico, não proíbe nem censura: simplesmente extingue. Assim como Faraó endureceu o coração contra Moisés, Montenegro endurece o espírito contra Sophia e Saramago. Em vez de tábuas da lei, oferece tabelas de Excel; em vez de profetas, relatórios trimestrais com protecção de dados garantida pela Spinumviva.

    Portanto, se me perguntarem, direi: Montenegro é coerente. Melhor extinguir planos do que arriscar Ventura ver os seus volumes aprovados para leitura recomendada – ou obrigatória, às tantas. Melhor a desertificação total do que a floresta de papel contaminada pelo populismo. Eis a astúcia: ao matar a leitura, salva-se a inocência das criancinhas e dos adolescentes. É de mestre – mestre ignorante, mas mestre.

    Adeus, e um piparote.

    Brás Cubas

  • ‘Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me’

    ‘Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me’

    Com o espírito irreverente e mordaz de Brás Cubas, esta entrevista imaginária com o Pai Natal é um mergulho numa sátira mordaz ao estado do mundo. Num diálogo que oscila entre o humor ácido e a crítica social, o velho símbolo natalício revela uma visão cada vez mais desanimada sobre o presente e o futuro, mas sem nunca perder a centelha de esperança que carrega no seu mítico saco, excepto a partir de momentos em que lhe falam dos seus conflitos em terras eslavas. A partir de um optimismo, embora cauteloso, garantindo que o seu saco está cheio – nem que seja de esperança –, rapidamente a conversa descamba…. Eis uma conversa que desafia o riso e o desconforto, expondo verdades universais sob o véu da sátira. Uma leitura natalícia para quem ainda acredita – ou quer acreditar – na magia da bondade humana.


    BRÁS CUBASMeu caro Pai Natal, que honra tê-lo comigo. Comecemos pelo básico: o saco ainda vem cheio de presentes este ano, ou as coisas andam escassas por conta da inflação?

    PAI NATAL – O saco está sempre cheio, Brás Cubas, nem que seja de esperança! Ainda há quem acredite que o espírito natalício é mais forte do que qualquer crise. Afinal, há sempre algo que não se compra: amor, saúde, união…

    Amor e saúde? Em 2024? Confesse, não trouxe desses presentes para o pessoal do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, pois não?

    Ah, Brás, eu bem tento, mas a lista de espera para receber saúde é maior do que a minha lista de meninos bons! Mas acredito que com diálogo e boa vontade, as coisas se resolverão.

    Boa vontade? Essa gente na política portuguesa acha que é coisa que se embrulha? Diga-me, no seu trenó, já viu mais promessas não cumpridas do que crianças a dormir à meia-noite, certo?

    Bom, promessas são como flocos de neve: bonitas de longe, mas derretem depressa. Ainda assim, prefiro acreditar que há políticos que querem fazer o bem… Não me peça nomes, que estou cansado de decorar listas.

    Conversa imaginária entre Brás Cubas e o Pai Natal para o PÁGINA UM,

    Passemos a temas internacionais. Tem visitado Israel e a Palestina nestes dois últimos anos? Sei que não haverá muitos cristãos que o acolham. Além disso, não deve haver muitos motivos para as crianças brincarem, não é?

    Ah, Brás, essa é uma das paragens mais difíceis. Levo para lá alguns brinquedos, sim, mas também muitas orações. Infelizmente, cada ano que passa, parece que entrego mais esperanças que se quebram. Já começo a achar que o meu saco anda cheio de ilusões e não de soluções…

    E sobre a guerra na Ucrânia?

    Não me quero pronunciar.

    Ouvi dizer que, nos últimos anos, anda em guerras por terras eslavas com o Ded Moroz, que já conseguiu expulsar de partes da Ucrânia. Tem planos para invadir a Rússia para o expulsar daí também?

    A conversa estava a correr tão bem, Brás…

    Certo. Como estamos em espírito natalício, não abordaremos esses seus pecadilhos beligerantes… Falemos então dos outros políticos que lutam mais pela guerra do que pela paz. Que lhes tem para oferecer?

    Ai, ai… Carvão” E não chegaria para tanta gente. Entre líderes que jogam à roleta com vidas humanas e países que fazem discursos e vendem armas ao mesmo tempo, quem sobra são os inocentes. Aliás, ando com vontade de trocar o trenó por um tanque!

    Vamos então ao ambiente, que é tema quente. O Ártico, a sua casa, continua a derreter? Mas gostava também de lhe perguntar o que sente ao ver os políticos portugueses preocupados com o plástico nos areais, mas esquecidos do betão nas falésias?

    Ah, Brás… Até as renas já me pedem um plano de contingência! Mas a hipocrisia também é muita. Portugal, tal como outros países, gosta de dar umas voltas às políticas ambientais, mas aquilo que gostam é de plantar árvores em conferências e deixar depois as florestas arderem…. Enquanto isso, temo que as minhas renas precisem de aulas de natação nos próximos tempos…

    Pai Natal em luta contra Ded Moroz, algures em terras russas.

    Falta de educação, é o que é… Mas falemos então do ensino em Portugal. Vai entregar livros escolares gratuitos ou não acha que seria mais prioritário ensinar mais ética política às crianças?

    Os livros gratuitos são uma ideia bonita, mas ética política? Ai, Brás, essa é uma utopia que nem eu consigo fabricar na oficina. Entre uma criança que acredita em mim e um deputado que acredita no povo, prefiro a primeira.

    Falando em acreditar: acha que o Almirante Gouveia e Melo faz bem em acreditar que vai ser o novo Presidente da República em 2026?

    Brás, ó pá, estás a querer que eu entre na política portuguesa de vez? Olha, se o Gouveia e Melo quiser ser Presidente, que me leve as renas a tiracolo. Ao menos são honestas e sabem trabalhar em equipa, não se importando com a falta de ética.

    Será ele um Marcelo Rebelo de Sousa ao contrário?

    Credo! Eu não quero chamar o diabo para escolhas. Este tipo pareceu-me sempre um duende hiperactivo: sempre em todo o lado, sempre a apertar mãos, sempre a dar abraços e sempre a distribuir simpatia até à exaustão. Não dele, mas de quem o recebia. Não deve haver português que não tenha uma selfie com ele… Quando o Marcelo sair de Belém, meto-lhe umas barbas e fica a substituir-me.

    E a Justiça? Com tantas operações policiais, mas depois tudo a ficar em banho-maria, não acha que daqui a nada vai haver mais prescrições do que quilos de bacalhau na Consoada?

    Justiça em Portugal? Oh, Brás, aqui vou ser sincero. A justiça portuguesa anda tão lenta que as renas já se oferecem para puxar o sistema judicial. Mas só se for mesmo, mesmo urgente, porque temos as férias judiciais a respeitar, claro.

    Pai Natal, está-me a parecer afinal desanimado. Começou nesta entrevista a falar-me do seu saco estar cheio de esperança… Daqui a nada ainda me diz que os portugueses nem têm espírito natalício, que é tudo negócio

    Brás, o português tem espírito natalício… para sacar o décimo terceiro mês, que é até o décimo quarto salário… e até à fatura da luz de Janeiro. Aí, transforma-se num pequeno Grinch a resmungar sobre subsídios e impostos.

    Agora falemos em aspectos mais prosaicos. Sei que tem sido pressionado por associações de defesa dos animais por causa da exploração das renas. Já equacionou pedir apoio do Estado português para eletrificar o trenó?

    Apoio? Ah, Brás, até parece que não me conhece! Se pedisse apoio ao Estado, ainda estava a preencher formulários quando o Natal de 2030 chegasse.

    Estou a ficar preocupado com o rumo desta entrevista. Acho que será melhor ficarmos por aqui… Mas antes de terminar: se pudesse dar um presente ao Mundo, qual seria?

    Ah, meu caro… Antes eu diria “Paz e Amor”. Agora? Talvez um bom par de chapadas bem dadas em certos líderes mundiais. Que tal?

    Pai Natal, atrevo-me a perguntar: está a ficar com mau feitio?

    E quem não ficaria, Brás? Ano após ano a mesma ladainha: promessas não cumpridas, injustiças que se multiplicam, gente que só quer enganar o outro. Quer saber? Já nem saco trago no próximo ano! Dou-lhes é um… Bom, deixa… Que vá tudo pastar no deserto, incluindo os meus duendes! Raios que partam todos.


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