Autor: Ana Luísa Pereira

  • Um gentleman caribenho a sair do armário

    Um gentleman caribenho a sair do armário

    Título

    Mr. Loverman

    Autora

    BERNARDINE EVARISTO (tradução: Miguel Romeira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Junho de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Filha de pai nigeriano e mãe britânica, Bernardine Evaristo nasceu em Londres, em 1959. Em 2019, foi a primeira mulher negra a ganhar o Booker Prize (ex-aequo com Margaret Atwood), com o romance Rapariga, mulher, outra – editado em Portugal pela Elsinor em 2021, livro do ano do British Book Awards 2020.

    A escritora é presidente da Royal Society of Literature, professora de escrita criativa na Brunel University, em Londres, e é autora de nove livros de ficção e não-ficção, sendo possível ler, ainda, em português, Raízes brancas – também editado pela Elsinor.

    A sua obra retrata algumas das questões socioculturais contemporâneas, nomeadamente, o racismo, o género e a emigração. Temas que se cruzam e misturam temporal e espacialmente na sua obra, transportando o leitor no espaço e no tempo. O seu objetivo, sabemos, é o de desconstruir preconceitos que teimam em persistir e contribuir para a discussão por meio da literatura. Não obstante, é possível que, em alguns momentos, a ironia e a leveza possam ser mal-entendidas por quem lute pelos direitos dos LGBTQ+*.

    Em Mr. Loverman, o local de partida dos emigrantes é a ilha Antígua, antiga colónia do Reino Unido – este, o destino, na década de 1960 de Barrington Jedidiah Walker, Barry, e da sua mulher Carmen. Casado há 50 anos, em 2010, Barry quer, finalmente, sair do armário. Aos 74 anos ainda sente que está aí para as curvas com o seu amante de sempre, Morris, com quem mantém um caso em segredo (mas não muito) desde a adolescência, em Antígua.

    Se Morris se separou décadas antes, e a sua ex-mulher levou o segredo para Antígua, para onde regressou, Barry manteve o seu casamento com Carmen, com quem teve duas filhas.

    Carmen é uma mulher insatisfeita e infeliz por se saber traída, não com outros homens, mas por prostitutas. A religião é o seu subterfúgio, que vive de forma obsessiva em companhia das suas amigas, com quem critica e desfaz tudo e todos pelos seus pecados, em particular e naturalmente, o seu marido. Barry, que além de chegar sempre tarde e a más horas, também fede a álcool e a sexo… com outros homens. Mas isso Carmen não sabe, tampouco, que a tareia à saída do cemitério foi da autoria de homofóbicos.

    Este romance é a duas vozes e em vários tempos. A história é-nos contada por Barry e por Carmen. O tom do primeiro é leve e com humor, conduzindo o leitor a torcer para que Barry se safe de um casamento de aparências. O tom do segundo é pessimista e ressentido – o que não é de estranhar, pois nem as filhas ajudam Carmen a sentir que valeu a pena o sacrifício de viver uma não-vida.

    As duas vozes são bem distintas. A de Barry é num crioulo que o tradutor, Miguel Romeira, captou de forma exímia. A de Carmen remete para o experimentalismo de Rapariga, mulher, outra, cuja pontuação (inexistente) se traduz num contínuo translinear não de palavras, mas de frases, em que a vírgula é a única protagonista.

    Empolgante, assim se pode caracterizar a leitura, com ritmo e peripécias que nos impelem a prosseguir para saber se Barry conseguirá levar avante a decisão de se divorciar.

    Excerto da página 17:

    Não tenho dúvida nenhuma do que digo porque eu, o excelentíssimo Barrington Jedidiah Walker, te conheço, monsieur Morris Courtney de La Roux, desde que éramos dois reguilas de cara lisa e voz de cana rachada porque os tintins ainda não tinham descido (…) Mas aí está uma coisa de que sinto muita saudade: beber, depois andar por aí de carro sem medo de a lei me cair em cima, como toda a gente fazia nos anos 60 e 70. Não havia trezentas câmaras de vigilância escondidas por Londres, de olho em nós pela calada como ciclopes enquanto andávamos por aí a tratar da nossa vida. Hoje em dia, ponho o pé fora de minha casa e já estou a ser vigiado. O Grande Irmão entrou na vida da gente e nenhum de nós se manifesta contra. Nem burrié eu posso tirar do nariz sem que fique gravado para a posteridade”.

    * Esta abreviatura está a crescer de tal modo, que corremos o risco de já estar desatualizada aquando da publicação desta recensão.

  • Em busca (e destruição) do Planeta B

    Em busca (e destruição) do Planeta B

    Título

    O homem ilustrado

    Autor

    RAY BRADBURY (tradução: Paulo Tavares)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Junho de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Ao ler determinado tipo de livro e/ ou autor, fica-se com a sensação de que há pessoas muito à frente do (e no) seu tempo. Como se tivessem acesso a informações a que a generalidade dos mortais não tem, e provavelmente não quer ter e, diríamos até, tem raiva de quem tem.

    Pois bem, este O homem ilustrado é uma espécie de premonição, com tantas histórias passadas em Marte, com tantos cenários apocalípticos e com tantas censuras e restrições ao pensamento e à leitura.  De tal modo assim é que ficamos na dúvida quanto à data da sua publicação.

    O autor de Fahrenheit 451 e de Crónicas marcianas vai remetendo alguns episódios de O homem ilustrado para essas obras, sendo que a ideia dos livros a banir perpassa uma série de capítulos.

    Também a fuga e a busca por planetas alternativos são uma constante, daí que nos interroguemos acerca da intensidade e amplitude de tal criatividade, se é que se pode dizer isto. Como se o autor tivesse escutado vozes e as tivesse transcrito… quem sabe seja mesmo o caso.

    Na verdade, o autor não está sozinho, convoca outros tantos génios e/ ou “hereges”, como Huxley, Orwell, Dickens e até Hitchcock para nos demonstrar que estamos a perder hábitos de leitura. Pior do que isso, o autor como que nos alerta para o perigo de “vida” dessas obras que são consideradas, tal como em Fahrenheit 451, obstáculos ao bom funcionamento e ordem da “paz” social.

    Não obstante, é a guerra, a escassez, o caos e a ausência de “humanidade” que pintam um cenário num futuro que, infelizmente, parece mais próximo e real do que o género de ficção científica, no qual este livro se integra.
    Original de 1951, nesta obra, agora, reeditada pela Cavalo de Ferro, Ray Bradbury recorre ao artifício de um homem todo tatuado para nos contar uma série de pequenas narrativas, que só na aparência o são.

    Até nisso o escritor foi audaz, uma vez que, no fundo, o conjunto se pode compreender como uma grande narrativa – a da fuga da humanidade de si própria…

    Para quem se quer distanciar das teorias da conspiração fica a questão: qual o propósito desta reedição? Preparar-nos para um futuro (quase presente) ou provocar-nos e incitar-nos para que revisitemos a História?

    Bom, está visto que a Humanidade não consegue aprender com o passado, pois os tempos em que vivemos só nos demostram que somos cada vez mais idiotas – e quando dizemos idiotas é mesmo isso, imbecis. Só tanta imbecilidade e falta de reflexão justifica a hipótese de se prolongar uma guerra como a que está a decorrer (mesmo que haja uns poucos a lucrar com isso), e de se acreditar que há vida em Marte e que vamos ser muito mais felizes lá, depois de destruirmos o que cada vez menos resta da Terra.

    Se o leitor está a fechar o dispositivo ou a clicar para mudar de página depois de tanto pessimismo, fica o desafio: leia O homem ilustrado e descubra as diferenças de mentalidades, desejos e esperanças (vãs) de alguns dos personagens.

  • Da ditadura à democracia: a revolução necessária

    Da ditadura à democracia: a revolução necessária

    Título

    Revolução portuguesa: 1974-1975

    Autores

    VÁRIOS (AAVV) – Coordenação: Fernando Rosas

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Maio de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A publicação e edição do livro Revolução Portuguesa – 1974-1975, pela Tinta da China neste ano de 2022, vem na sequência do Seminário de História Contemporânea – 2021, organizado pelo Instituto com a mesma designação, sob a coordenação de Fernando Rosas, professor emérito da Universidade Nova e catedrático jubilado pela FSCH/Nova.

    No ano em que se iniciam as comemorações dos 50 anos do fim da ditadura, o coletivo de nove autores que a obra congrega assegura, desde logo, enorme qualidade e grande rigor aos textos incluídos.

    O texto de Fernando Rosas, coordenador do seminário e da sua publicação, “Do golpe militar à revolução”, ajuda-nos a identificar e a compreender os principais acontecimentos que terão dado origem ao golpe militar de 1974.

    Maria Inácia Rezola, professora adjunta da Escola Superior de Comunicação Social e investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC), foi recentemente nomeada Comissária Executiva da Estrutura de Missão do 50.º aniversário da Revolução do 25 de Abril de 1974, em substituição do actual ministro da Cultura (Pedro Adão e Silva), é a autora do segundo capítulo. Com o texto, “Definindo o poder político-militar (do 25 de Abril ao 11 de Março)”, a autora procurou retratar as estruturas e centros de poder dos primeiros meses depois da Revolução, ajudando-nos, assim, a entender a importância e papel das Forças Armadas nas primeiras etapas da revolução.

    Com Manuel Loff, professor associado do Departamento de História e Estudos Políticos Internacionais da FLUP e investigador/coordenador do IHC, e o seu contributo, “A Revolução, do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975: Impulso, Auge e Refluxo”, compreendemos a notoriedade e a importância da revolução portuguesa no contexto internacional. Com efeito, o tardio colapso da colonização portuguesa era um estudo de caso para os cientistas políticos (do mundo ocidental), estando sob forte vigilância por parte de países como Estados Unidos e Rússia, devido às questões do armamento e da Guerra Fria.

    Albérico Afonso Costa, professor coordenador no Instituto Politécnico de Setúbal, reporta-se ao caso particular de Setúbal para discutir a “Disputa política-ideológica nas Comissões de Moradores e Trabalhadores”.

    Quem melhor para nos situar em relação à “Política Agrícola e Reforma Agrária, 1975”, do que Fernando Oliveira Baptista, então ministro da Agricultura e Pescas (IV e V Governos Provisórios, de 26 de Março a 19 de Setembro de 1975) e professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia/Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural?

    Com o capítulo, “Economia e Socialismo: o antiplano de Mário Murteira”, Ricardo Noronha, investigador do IHC, procura analisar as intervenções de diversos protagonistas no âmbito da construção de um novo modelo de desenvolvimento económico no Portugal pós-25 de Abril, “do qual ‘socialismo’ foi o nome mais frequente”.

    Hugo Castro, investigador do Instituto de Etno-Musicologia, com o texto intitulado “A canção de protesto na Revolução dos Cravos”, além de trazer uma dimensão cultural à obra, analisa a importância instrumental e repercussão de “Grândola, Vila Morena”, que lhe valeu diversos atributos, entre os quais: “senha da liberdade”, “canção da liberdade” e “hino da revolução”. A sua importância é de tal ordem, que continua a ser uma canção emotiva para a generalidade dos portugueses (com mais de 47 anos, pelos menos).

    “Descolonização: o colapso do Império” é o título da intervenção de Pezarat Correia, oficial general reformado que se doutorou aos 85 anos, com uma dissertação sobre a descolonização. A sua experiência e a sua tese de 500 páginas dão-lhe autoridade para se dedicar aos designados três ciclos do império português, focando-se, aqui, no derradeiro ciclo africano, aquele que encerraria “o próprio projeto colonial”.

    Finalmente, Pedro Aires Oliveira, professor associado no Departamento de História da FSCH/Nova e investigador integrado do IHC, fecha com o desejo de mudança veiculado à Revolução, com o texto: “A esfera do possível: política externa e diplomacia na transição para a democracia (1974-1976)”. O livro termina, assim, com a relevância e influência do contexto internacional, nas suas lutas políticas e sociais do período, na política externa do Estado democrático emergente em Portugal.

    Pelo exposto, podemos perceber a dimensão e importância que esta obra detém na compreensão da História recente de Portugal. Quase 50 anos volvidos, é possível ter um olhar um pouco mais distante e quase objectivo sobre o 25 de Abril, que, como refere Maria Inácia Rezola, recorrendo a José Medeiros Ferreira, é um acontecimento que “marca uma era e divide a sociedade em antes e depois”.

  • Um manual de influência e persuasão

    Um manual de influência e persuasão

    Título

    Aprenda a influenciar pessoas

    Autor

    JOÃO FERNANDO MARTINS

    Editora (Edição)

    Manuscrito (Maio de 2022)

    Editora (Edição)

    14/20

    Recensão

    Psicólogo de formação, com licenciatura no ISMAI, em 2008, e especialista em Análise Comportamental, João Fernando Martins tem dedicado a sua vida ao estudo – continua a sua formação como doutorando na Universidade de Santiago de Compostela, depois do mestrado em Medicina Legal no Instituto Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS).

    Não é estranho, portanto, que a sua vontade em escrever e partilhar a sua experiência como psicólogo e como formador e especialista (implicando actualização e estudo constantes) tenha vindo à tona aquando dos confinamentos resultantes da situação pandémica provocada pela covid-19.

    Não foi o único a aproveitar esse recolhimento, conforme outros livros aqui comentados, como este e este. É possível que muitos outros estejam prestes a surgir.

    Quanto ao livro agora publicado pela Manuscrito, Aprenda a influenciar pessoas, está enquadrado nas prateleiras de auto-ajuda em diversas livrarias, sendo, com efeito, mais um manual com ferramentas e estratégias para melhor lidar com as pessoas.

    Os contextos são diversos, como variadas são as dimensões em que nos movemos no palco da vida, como diria Erving Goffman. O representante do interacionismo simbólico foi um dos primeiros estudiosos da interação social, comparando-a com papéis interpretados consoante o palco em que actuamos.

    Dizemos mais um manual, dado que este livro está na mesma linha de outro recentemente recenseado no PÁGINA UM – Aprenda a ser carismático –, ainda que tentando ser mais específico. Neste que tratamos, o autor dedica-se, sobretudo, às técnicas de persuasão, enquanto técnicas que podem ser aprendidas, como um papel que pode ser estudado por um actor.

    Para isso, contextualiza e esclarece o leitor quanto às dimensões implicadas na comunicação, designadamente, a sua componente fisiológica, psicológica, espácio-temporal, não verbal e verbal. A sua divisão tem a ver com a necessidade que temos em categorizar e classificar, para mais rapidamente apreendermos a realidade. O que, na verdade, está associado ao modo como impressionamos as pessoas num primeiro momento (ou somos impressionados). Razão pela qual este e outros livros têm tido algum sucesso. Numa sociedade tão preocupada com as aparências, o impacto da primeira impressão ganha cada vez mais importância.

    Por essa razão, este é um livro interessante para aqueles que têm curiosidade por temas como o modo como os gestos e posturas corporais podem auxiliar, ou, pelo contrário, dificultar ou mesmo impedir primeiros contactos frente-a-frente. Também pode ser bem acolhido pelas pessoas que querem aprender a influenciar, persuadindo o seu público-alvo a obter os seus produtos e/ou serviços.

    A redacção é simples e acessível (ainda que a revisão pudesse ser mais cuidada quanto à repetição de determinados termos), podendo, no entanto, ser mais sucinta em alguns momentos, nomeadamente em finais de capítulo, enunciando de forma mais sistematizada as “Ideias a reter”.

  • Ferramentas para cativar, brilhar e vencer

    Ferramentas para cativar, brilhar e vencer

    Título

    Aprenda a ser carismático

    Autora

    OLIVIA FOX CABANE (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascida em Paris, filha de pai francês e mãe norte-americana, Olivia Fox Cabane é de origem judaica. Esta circunstância, aliada à eventual inépcia social, fez com que fosse discriminada, estimulando a estudar e a provar as suas valias. As duas licenciaturas em universidades internacionalmente reconhecidas – Pantheon-Sorbonne e Ludwig Maximilian de Munique –  assim o comprovam. Entretanto, foi directora de liderança numa startup inovadora de Stanford, tendo-se tornado conferencista e assessora de muitos líderes de empresas da Fortune 500 — como a Google, a MGM e a Deloitte —, bem como professora em Harvard, Yale, no MIT e nas Nações Unidas.

    É autora do livro The net and the butterfly (editado pela Penguin em 2017), estando actualmente a escrever The genius myth: how anyone can learn to access their inner Einstein.

    Pelo seu currículo, desde logo se percebe que a autora tem experiência comprovada sobre o tema deste livro, Aprenda a ser carismático, agora publicado pela Casa das Letras. De facto, os seus exemplos decorrem da sua própria experiência adquirida na assessoria a muitos e reconhecidos empresários de sucesso.

    Neste livro, o leitor encontrará uma série de ferramentas e exercícios para aprender e aperfeiçoar técnicas com o objectivo de se tornar uma pessoa e /ou líder carismático.

    A primeira coisa que podemos desconstruir é a ideia de que o carisma é algo inato. Pelo contrário, o que a autora nos mostra é que, na verdade, podemos aprender a desenvolver uma série de comportamentos que nos conduzirão a adquirir uma personalidade carismática.

    Além de providenciar exercícios meditativos para nos tornarmos mais conscientes do momento que vivemos, ajuda-nos a focar na situação e nas pessoas com que nos defrontamos em cada momento.

    Os leitores familiarizados com as técnicas de meditação Vipassana (desenvolvida por S. N. Goenka, a partir dos princípios do Budismo) e Mindfulness (baseada na atenção plena) reconhecerão os exercícios de meditação sugeridos. Note-se, porém, que estes exercícios podem ser altamente profícuos não apenas para desenvolver uma personalidade ou comportamentos carismáticos, mas também para melhorar a concentração e o foco no essencial – algo tão importante nesta era dos dispositivos electrónicos e das notificações e distrações contínuas.

    Depois de percebermos que podemos desenvolver comportamentos e práticas – para ultrapassar os obstáculos, bem como a criar estados mentais mais adequados ao carisma –, a autora apresenta quatro tipos de personalidade carismática. Deste modo, podemos adquirir e aperfeiçoar as estratégias conforme o contexto.

    Com efeito, daqui podemos reter dois ensinamentos: o de que os tipos de personalidade não são estanques, e de que cada pessoa pode aprender e aplicar cada um deles em função dos desafios a superar.

    A ideia de que está nas mãos do leitor essa mesma aprendizagem perpassa toda a obra, sendo, por isso, um livro com um potencial enorme para quem quer ser bem-sucedido no mundo dos negócios.

    Mas não só. A empatia, a linguagem corporal e a afectividade (q.b.) podem ser ‘armas’ infalíveis para alcançar objectivos pessoais e profissionais que dependam de alianças, cooperação e coparticipação – formas de viver e trabalhar no mundo contemporâneo.

    Pelo exposto, é possível afirmar que todos têm a ganhar em ler este livro que nos ajuda a estabelecer relações pessoais e profissionais de forma mais consciente, harmoniosa e, até, calorosa.

    Atrevemo-nos a dizer que este livro é essencial para pessoas que têm ocupações como a de ‘influencer’ ou ‘lobista’, no qual encontrarão inúmeras ferramentas para se tornarem mais influentes e inspiradores. Mas, como referido, este livro pode e deve ser lido por todos aqueles que cuidam e lidam com muita gente, pois, nele encontrarão, por exemplo, formas para gerir o desconforto e situações difíceis.

    Excerto (página 56): “Lidar habilmente com qualquer experiência difícil é um processo em três etapas: afastar o estigma associado ao desconforto que essa experiência provoca, neutralizar e reinventar a realidade”.

  • De Cuba para o mundo, sem filtros

    De Cuba para o mundo, sem filtros

    Título

    Como poeira ao vento

    Autor

    LEONARDO PADURA (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Cubano de Havana, nascido em 1955, Leonardo Padura, além de escritor, tem trabalhado como guionista e jornalista. O detective Mário Conde é uma personagem sobejamente conhecida dos seus romances policiais, que, além de estarem traduzidos para muitas línguas, são vencedores de importantes prémios literários, como o Prémio Café Gijón 1995, o Prémio Hammett em 1997, 1998 e 2005, o Prémio do Livro Insular 2000, em França, ou o Brigada 21 para o melhor romance do ano.  

    Em 1993, Leonardo Padura recebeu o Prémio Nacional de Romance em Cuba, e em 2012 arrecadou o Prémio Nacional de Literatura pelo conjunto da sua obra. Em 2015 foi ainda galardoado com o Prémio Princesa das Astúrias das Letras.

    Em Portugal, podemos encontrar vários livros deste autor, entre os quais O Homem que gostava de cães, Hereges, A transparência do tempo, Quarteto de Havana I e Quarteto de Havana II, editados pela Porto Editora, que agora nos traz este Como poeira ao vento.

    Este é um daqueles livros que nos causa várias emoções e sensações. Desde logo, uma certa hesitação em avançar rapidamente na leitura. É que, com efeito, a urgência em prosseguir para conhecer e apreender mais acerca das personagens, e das ligações que as envolvem, não é compatível com a densidade e profundidade do enredo.

    Ler devagar é quase uma imposição para, desse modo, atentarmos e guardarmos cada pormenor dos contextos, das épocas, das personagens, das diferentes vias que se cruzam e teias que se entrelaçam.

    O equilíbrio é o que nos ajuda a avançar, com moderação, e assim desfrutar das mais de 600 páginas com que Padura nos presenteia, neste romance épico – creio que este adjetivo tão na moda se adequa a este romance cuidadosamente escrito.

    Sim, cuidado é um termo que se aplica na perfeição: somos encaminhados ao longo de várias décadas da História de Cuba por meio de personagens construídas de forma detalhada e escrupulosa, baseadas em pessoas, locais e situações reais – também, por isso, tão intenso.

    Contrariamente ao título, esta obra permanecerá e reverberará em cada leitor que seja apaixonado por Cuba, pela sua História, pelas suas geografias (afinal os cubanos alargaram as suas fronteiras) e, sobretudo, pelas suas gentes, ora mais conformadas, ora mais inconformadas, ora mais inquietas, ora mais revoltadas com tudo o que aconteceu desde o embargo dos Estados Unidos, em particular, durante o ‘Período Especial em Tempos de Paz’, ocorrido entre 1989 e metade da década de 1990.

    Uma época de restrições, de todo o tipo de restrições, em que até o livro ‘1984’, de George Orwell, é invocado. Não sem uma certa ambivalência, uma vez que para que para a maioria dos cubanos, de entre os quais, algumas das personagens, era inconcebível que o Estado fosse tão longe no seu regime totalitário e controlador.

    É, então, a história de um grupo de jovens – o Clã – que cresce em conjunto, desde a juventude até ao derradeiro desaparecimento de vários elementos. Jovens apaixonados pela vida, cuja evolução e prática profissional se torna cada vez mais difícil em face de tantos obstáculos e de tantas limitações. A busca pelo exílio, seja de forma legal, seja como fuga à incerteza, seja ainda pela infeliz constatação de que a liberdade para se ser é só uma palavra.

    O livro descreve de dentro, mas com um olhar limpo, sem ressentimento e quase factual, o sofrimento vívido de quem perde, um a um, os seus referentes mais íntimos.

    Em 2014, dois jovens de origem cubana apaixonam-se. Adela e Marcos conhecem-se em Miami sem saberem que as suas origens são as mesmas e que as suas mães haviam sido amigas íntimas, Elisa e Clara, respetivamente – as mulheres do Clã.

    Clara, a matriarca que segura e mantém o grupo, uma das personagens que nos comove pela resistência, pela força e pela coragem – aquela que não se rende; a última a deixar Cuba.

    Elisa, a british, filha de um diplomata que viveu em Inglaterra até ao fim da adolescência. Diferente, portanto, vivida, com uma visão mais ampla do mundo, além de Cuba. Algo que fascinava os amigos e a tornava quase idolatrada, não fora as suas atitudes a roçar a manipulação e “quase” mentiras.

    Darío, o primeiro a partir, deixa para trás a mulher (Clara) e dois filhos, com o intuito de prosseguir a sua carreira de médico e académico em Espanha, sem a limitação de um salário de três dólares. 

    Irving, o homossexual que vive no medo e que com medo não vive. Depois de torturado pela polícia durante vários dias, foge para Espanha, onde mais tarde se juntará o seu companheiro, Joel.

    Estas e outras personagens com vidas únicas e interligadas são ingredientes que nos mantêm e nos retêm em cada página folheada, numa escrita encantatória, que nos recorda Gabriel Garcia Márquez e que faz antever a atribuição do Prémio Nobel da Literatura.

    Destaco, por fim, um excerto (página 103): “A clausura física e mental de que sofriam, sem terem consciência até que ponto sofriam (exceto Elisa, a british), fazia-os ver o mundo exterior como um mapa de duas cores antagónicas: países socialistas (bons) e países capitalistas (maus). Nos países socialistas (para onde se podia viajar) construía-se arduamente o futuro perfeito (…) de igualde e justa democracia da ditadura proletária, atribuída à vanguarda política do Partido na fase de construção do comunismo, com cuja chegada se atingiria o apogeu da História, o mundo feliz”.

  • Um maestro guiado por um sol maior

    Um maestro guiado por um sol maior

    Título

    Música, só música

    Autor

    HARUKI MURAKAMI e SEIJI OZAWA (tradução: Maria João Lourenço)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Nascido em 1949, na cidade de Quioto, Haruki Murakami já esteve várias vezes na lista de putativos vencedores do Prémio Nobel da Literatura. Mas, como alguns ironicamente referem, o japonês tem sido estranhamente esquecido. Talvez por isso, escreva cada vez mais sobre o que bem entender e sobre o que mais gosta: música… só música.

    Durante o curso em estudos teatrais, em Tóquio, Haruki Murakami abriu um bar de música jazz, The Cat, que manteve durante cerca de sete anos. A música jazz é, aliás, um cenário musical recorrente na sua obra, sendo, inclusivamente, uma forma de dar ritmo aos seus romances – uma das características mais prementes da sua obra, ainda que nem sempre visível na tradução portuguesa – provavelmente por ser efectuada indirectamente, a partir do inglês.

    A música clássica, tema da obra agora em análise, também já se sentira de forma implícita em diversos romances, nomeadamente nos dois volumes de A morte do comendador.

    Das viagens surrealistas, através das quais nos deixamos enlevar em quase todos os seus romances, Haruki Murakami viajou, desta vez, pelo mundo da música clássica e acompanhado pelo famoso maestro Seiji Ozawa, nascido em 1935.

    A paragem compulsiva do maestro, provocada pela descoberta e recuperação de um cancro, em 2009, permitiu uma série de encontros entre estes dois homens excepcionais, dos quais resultaria um conjunto de seis conversas, agora editada, em Portugal, pela Casa das Letras.

    Para os leitores aficcionados por Haruki Murakami, este livro não será propriamente uma surpresa, uma vez que já estamos habituados a ter a música como personagem-sombra ou como elemento primordial da cena – de tal modo, que somos convidados a escutar a música referenciada. Como afirmou algures o autor, ao escutar uma determinada música, o leitor é impelido a ler com determinado ritmo.

    Este Música, só música não é, assim, apenas para os amantes do género ficcional surrealista, mas sobretudo para os melómanos, em particular para os amantes da música clássica que sintam curiosidade pelos meandros das orquestras e respectivos maestros.

    Director musical da Orquestra Sinfónica de Boston durante quase 30 anos, Seiji Ozawa assumiu o mesmo cargo nas Orquestras de Chicago e de Toronto e na Ópera Estatal de Viena – a qual dirigiu até 2010. Um maestro genial, cuja origem nipónica terá desconcertado muitos públicos, entre os quais os de Itália, onde terá sido apupado, aquando da direcção da ópera Tosca, de Puccini.

    Este é um de muitos episódios descritos e partilhados pelo maestro, que, certamente, encantará os curiosos e apaixonados pela música clássica. Tanto mais que a mencionada intertextualidade musical que perpassa toda a obra de Murakami se torna, aqui, ainda mais óbvia.

    Ao convidar o maestro a escutar os concertos para piano de Beethoven, a Sinfonia Fantástica de Berlioz, entre várias outras sinfonias, momentos e interlúdios, para iniciar e guiar as conversas, Haruki Murakami também está a incitar o leitor a entrar na conversa de forma activa.

    A história das interpretações de Gustav Mahler é um dos exemplos e se, em simultâneo, escutarmos os 3º e 4º movimentos da 1ª sinfonia de Mahler – a grande paixão do maestro –, teremos a sensação de estarmos na mesma sala que os interlocutores.

    Além de Seiji Ozawa, ficamos a conhecer outros maestros, em particular Leonard Bernstein, de quem Ozawa foi assistente durante duas temporadas, ou o seu mentor, Saitō Kinen, em homenagem a quem criou uma Fundação e respectiva orquestra, organizando um festival anual em Matsumoto, em honra do mesmo maestro japonês.

    Num dos encontros, Seiji Ozawa admite que as conversas (guiadas – uma espécie de entrevista aberta) o terão ajudado a organizar as suas memórias, e a perceber o quão terá mudado e mesmo evoluído ao longo do tempo.

    Este é, na realidade, um dos grandes feitos das entrevistas para a construção de “histórias de vida”, a partir das quais não só os leitores ganham, e muito, mas também os próprios entrevistados, que têm oportunidade de se sentar numa plateia fictícia e olhar para o palco que foi a sua vida. Neste caso, isto não é sequer uma metáfora. Efectivamente, foi o que sucedeu, graças à preparação magistral de Murakami e à sua erudição musical.

    Uma curiosidade: os parágrafos estão alinhados à esquerda, para gerar uma leitura mais agradável. Se é verdade que essa estratégia ajuda, também o é o teor do livro, cujo prefácio de Martim Sousa Tavares nos acirra ainda mais a vontade de ler, conhecer, aprender e escutar música – a personagem principal.

    Por isso, sim: Música, só música para nos encantar.

  • Um encontro musical na corte de D. João V

    Um encontro musical na corte de D. João V

    Título

    O maestro e a infanta

    Autor

    ALBERTO RIVA (tradução: José Colaço Barreiros)

    Editora

    Porto Editora (Março de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascido em 1970 e a viver em Milão, Alberto Riva é um escritor e jornalista italiano, que desde há muitos anos escreve sobre literatura e música para a revista semanal do jornal La Repubblica (Il Venerdí).

    Entre outros livros, é autor de Sete (Mondadori 2011) e Tristezza per favore vai via (Il Saggiatore 2014). Com o trompetista de jazz italiano, Enrico Rava, escreveu Note Necessarie (Fax mínimo, 2004) e com o pianista de jazz, Stefano Bollani, escreveu Parliamo di musica (Mondadori 2013) e Il monello, il guru, l’alchimista e altre storie di musicisti (Mondadori 2015). Publicou ainda a edição de Il mondo è ingiusto, de Oscar Niemeyer (Mondadori, 2012).

    No ano passado publicou O maestro e a infanta, um do género histórico agora chegado a Portugal, mas que retrata o nosso país em Setecentos.

    Romance leve, mas cativante e empolgante, O maestro e a infanta  conta-nos a história da amizade entre a Infanta Maria Bárbara de Bragança, filha do rei D. João V, e o maestro Domenico Scarlatti – um jovem compositor italiano, filho do reconhecido compositor Alessandro Scarlatti, e que muitos leitores “reconhecerão” como um personagem de Memorial do convento, de José Saramago –, convidado para a luxuosa corte portuguesa do século XVIII, a fim de instruir musicalmente o filho mais novo do Rei de Portugal.

    Após a apreciação do maestro Scarlatti, os planos do rei ficam defraudados e é à infanta que o italiano dedicará o seu tempo. A infanta, em honra de quem foi mandado construir o convento de Mafra, é uma discípula empenhada que, além da aptidão para os idiomas – domina vários –, se dedica de corpo e alma à educação musical empreendida pelo maestro, cuja composição insegura é, afinal, a de um génio.

    O primeiro encontro acontece em 1720 e desde então a sua amizade cresce e mantém-se até ao final da vida do maestro, que acompanha a infanta para a corte de Espanha, aquando do seu casamento com D. Fernando de Borbón, herdeiro do trono espanhol. A infanta tornar-se-ia então Princesa das Astúrias e posteriormente Rainha de Espanha. 

    As histórias das duas cortes cruzam-se com descrições que nos transportam para os tempos áureos da monarquia portuguesa e das suas relações com outros Estados.

    A descrição fluida, com alguma ironia à mistura, é o motor para uma leitura fácil e envolvente e, ao mesmo, tempo instrutiva – como é usual nos romances históricos.

    A forma como o autor retrata a infanta, e a coloca no centro deste romance, partilhando o protagonismo com o maestro, é original. Ao alternar o realismo histórico com as teias de um enredo ficcional, o leitor mergulha numa outra época repleta de um luxo imperialista e intrigas palacianas, bem como nos meandros da diplomacia europeia da época, em que se jogavam peças e cartas muito altas, para obter o domínio das colónias e das suas riquezas.

    As personagens principais, a infanta e o maestro, são quase opostas em termos de personalidade e temperamento. A infanta extravasa a sua alegria e boa disposição através de um sorriso fácil e genuíno, enquanto aprende a lidar com as tramas da sua sogra – a então Rainha de Espanha, que passa para segundo plano quando a Princesa das Astúrias assume o lugar –, o maestro é a melancolia e seriedade em pessoa.

    A sua discrição só é quebrada quando se vê no meio de uma nova sonoridade, que o encanta de tal modo que quase o faz perder o seu lugar. É da musicalidade da guitarra cigana que se trata, uma etnia que já na época é ostracizada e quase silenciada, através da perseguição e aprisionamento.

    A amizade entre Domenico Scarlatti e Maria Bárbara perdura ao longo de 38 anos, sendo a rainha de Espanha a responsável pelo registo e divulgação das célebres Sonatas do maestro: 555 exercícios compostos pelo italiano para a sua discípula.  

    O que são exatamente estas coisas que compõe, Mestre?

    – Exercícios.

    – Tudo bem, mas onde está a música?

    – A música está dentro de vós, Majestade.

  • Em busca do sol, numa noite de Verão

    Em busca do sol, numa noite de Verão

    Título

    É tempo de reacender as estrelas

    Autora

    VIRGINIE GRIMALDI (tradução: Carmo Vasconcelos Romão)

    Editora (Edição)

    Marcador (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascida em Bórdéus em 1977, a francesa Virginie Grimaldi publicou o seu primeiro romance, Le premier jour du reste de ma vie, em 2015, e desde  aí não mais parou, tendo-se tornado, em 2020 a escritora mais lida no seu país.

    O sucesso tem sido internacional: já com sete romances – o último dos quais, Les Possibles, publicado no ano passado –, tem edições em duas dezenas de línguas. No entanto, este é o primeiro livro publicado em Portugal.

    Não será estranho comprender, pela leitura de É tempo de reacender as estrelas, que já tenha vendido mais de um milhão de exemplares em todo o Mundo. Com efeito, a leveza e humor com que a autora permeia e premeia o romance provoca, no leitor, uma vontade inexplicável de avidamente prosseguir até à última página.

    É o livro ideal para uma escapadinha num local tranquilo, onde o silêncio seja cúmplice para desfrutar de uma viagem ao Cabo do Norte e, assim, contemplar as auroras boreais e outras paisagens melodiosas, onde o sol da meia-noite é um dos protagonistas.

    O romance aborda uma história contada em três versões – por uma mãe e as suas duas filhas. Cada versão tem uma voz e um registo distintos.

    A versão da mãe, Anna, na primeira pessoa, é a história de uma vida difícil, de uma mulher divorciada, com 37 anos, e das suas vicissitudes e dificuldades para conseguir pagar (sem sucesso) todas as despesas sozinha. As dívidas acumulam-se sem que saiba como se desenvencilhar dos credores. Para piorar ainda mais a situação, ela é convidada a despedir-se de um emprego desgastante, cujo horário não lhe permite passar tempo útil com as filhas, uma de 17 anos, Chloé, e outra de 12, Lily.

    A indemnização, que serviria para pagar todas as dívidas e relaxar durante algum tempo, é usada para viver uma longa viagem de autocaravana com as filhas até ao Cabo Norte. A decisão é acelerada, e posta em prática no dia em que Anna vê um homem nu na casa de banho de sua casa. 

    O registo de Chloé, uma jovem angustiada e sem auto-estima, é conhecido através do seu blogue pessoal, no qual a personagem partilha com quem quiser ler tudo o que se passa na sua vida, desde as discussões com a mãe por causa do pai, com quem não está há anos, às suas dúvidas relativas à sua activa vida pouco amorosa e sexual.

    Lily encontra num diário, que nomeia de Marcel, o seu amigo confidente a quem relata, com a ingenuidade típica de uma adolescente, os acontecimentos do seu dia-a-dia, incluindo o que os adultos denominam de bullying.

    O tom da narrativa varia, por isso, em cada capítulo – geralmente curtos – sendo mais intimista e revelador na versão adulta, a de Anna.

    A voz da jovem é tão banal quanto assustadora em termos de teor. Com efeito, os dilemas, angústias e dúvidas reveladas através do blogue de Chloé são, provavelmente, os de muitas outras jovens. Sendo, por esta razão, uma excelente oportunidade para as leitoras com filhas nesta faixa etária. De facto, ainda que seja um romance levezinho e algo superficial, os temas aqui abordados são, certamente, as questões que geram rupturas entre gerações, entre mães e filhas (no caso deste romance).

    A escrita diarística é marcada pelo humor ingénuo e jovial, típico de uma adolescente observadora e atenta.

    No conjunto, as três personagens entrelaçam as suas vidas como um jogo do gato e do rato, onde quem fica a ganhar é o leitor apreciador de romances de Verão.

    É, também, o relato de uma viagem inspiradora, em que o cenário de algumas cidades escandinavas se torna, em certos momentos, mais um protagonista.

    A aprendizagem da mãe é uma constante e o modo como lida e gera com os problemas das filhas pode ajudar outras mães a encontrar outras perspectivas com humor.

  • O cão, a lágrima e outros sentimentalismos

    O cão, a lágrima e outros sentimentalismos

    Título

    Cuidado com o cão

    Autor

    RODRIGO GUEDES DE CARVALHO

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Jornalista e romancista, Rodrigo Guedes de Carvalho nasceu no Porto, em 1963. Foi na RTP que se profissionalizou – é licenciado em Comunicação Social – e começou a chegar à casa dos portugueses. Actualmente, é subdirector de Informação da SIC, apresentando o Jornal da noite, de segunda a sexta-feira.

    Paralelamente, desenvolveu a sua carreira como escritor, estreando-se na ficção em 1992 com o romance Daqui a nada – vencedor do Prémio Jovens Talentos das Nações Unidas. Depois de A casa quieta (2005), Mulher em branco (2006) e Canário (2007), ganhou o Prémio Autores SPA – Melhor Livro de Ficção Narrativa 2018, com O pianista de hotel, publicado no ano anterior, tornando-se num autor reconhecido e aclamado pela crítica.

    O argumento é também uma das suas paixões: exemplo disso são os argumentos para os filmes Coisa ruim (2006) e Entre os dedos (2009).

    Cuidado com o cão, agora publicado pela Publicações Dom Quixote, é mais um romance dedicado à profundidade das relações humanas. Como se sabe, a pandemia da covid-19 tem espoletado uma série de romances, e Cuidado com o cão é mais um: neste caso, com o enfoque no isolamento forçado que terá “obrigado” à introspecção e à revisão dos anos e vidas vividas.

    A personagem principal é o antigo cirurgião António Pedro, que, na sua velhice, triste e solitária, se sente ainda mais sozinho durante o confinamento. A visita inesperada de uma desconhecida fá-lo reviver as perdas. Perdas de confiança, de pessoas, como a filha e a mulher.

    O protagonismo desta personagem é partilhado com a vida de duas gémeas trapezistas, cuja separação seria apenas física, uma vez que ambas acabaram por seguir o mesmo caminho académico e profissional, apesar de todas as vicissitudes.

    O título do livro é uma espécie de homenagem ao cão, enquanto melhor amigo do homem – um cliché, diríamos. O primeiro, talvez. Em cada história do livro há pelo menos um cão que ocupa um lugar de relevo na vida das personagens, ora como companheiro, ora como protector.

    O Cuidado com o cão não se restringe ao animal doméstico, mas ao cuidado que devemos ter com cada pessoa que se cruza connosco. Na nossa perspectiva este “deve” é um “senão’” (dos muitos) do livro – uma espécie de moral prosaica perpassa todo o romance, fazendo lembrar o jornalista, que vive no autor, quando nos censurava: “Tenham noção…”, aquando dos confinamentos compulsórios decretados durante os Estados de Emergência.

    A estrutura do romance pode também tornar-se cansativa para alguns leitores. O experimentalismo do autor coloca o leitor numa espiral de impaciência, uma vez que, de forma repetitiva, retoma cada história no início de cada capítulo, como que fazendo um sumário em cada nova entrada – não vá o leitor esquecer o que já aconteceu. Algo que, na verdade, até pode acontecer, tendo em conta que, além destas histórias, o autor conta e reconta os enredos de outras gémeas da literatura, perdendo-se ainda com os Beatles e outras bandas.

    Este cruzamento de histórias poderia ser interessante – e até pode ser enriquecedor para quem aprecia o género; porém, parece-nos que resultaria melhor se fossem entradas mais naturais. Por vezes, dá a sensação de que estamos numa sala de aula, onde o professor explica e volta a explicar o que aconteceu, como se fôssemos crianças de cinco anos.

    De maneira que, pois então, recomendamos o livro apenas a quem gosta de sentir a lágrima no canto do olho e de outros sentimentalismos a que Rodrigo Guedes de Carvalho nos tem habituado.