Sérgio Sousa Pinto (SSP), em tempos que já lá vão, um jotinha destacado e bem-comportado, está hoje para o PS como o Pacheco Pereira está para o PSD: é a oposição interna. É ele hoje o liberal rebelde que se incomoda com políticas de esquerda, mas que por lá vai ficando, no PS, provando o que há muito já sabemos: aquele S deixou de ser socialista desde que Mário Soares se reformou.
Fez ele, o Sérgio, na semana passada, um discurso de 12 minutos na Assembleia da República de encher a alma, daqueles que puxam às lições da História para nos alertar sobre o caminho a seguir.
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Vivemos em 1938, segundo SSP, o ano em que França e Inglaterra se acobardaram quando Hitler anexou uma parte da Checoslováquia, onde vivia uma fatia considerável de alemães. Chamberlain, primeiro-ministro inglês de então, assinou o pacto de Munique que garantia a Hitler aquele território sem guerra ou grandes gritarias. Hitler jurava que, depois daquele problema fronteiriço resolvido, estariam concluídas as disputas territoriais da Alemanha nazi na Europa. O continente mantinha-se assim no rumo da paz, sacrificando os cordeiros checos.
O Donbass – era aqui que SSP queria chegar. O Donbass é a nova Checoslováquia, Putin o novo Hitler, e nós, a comunidade internacional, não devemos ser o novo Chamberlain.
SSP esqueceu-se de alguns detalhes dessa história relativamente importantes. Por exemplo, que não foi só a Alemanha nazi a trinchar o peru. Polónia e Hungria foram convidadas a retirar umas fatias de território, onde viviam comunidades polacas e húngaras. E não se fizeram rogados. A Roménia também foi convidada, mas recusou por ser uma aliada antiga da Checoslováquia. Os checos perderam território entre três vizinhos, e o que lhes sobrou passou a ser administrado por um governo-fantoche à ordem dos nazis. O Putin de 1938 não estava sozinho nas intenções expansionistas…
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Esta é uma primeira diferença que não é propriamente um detalhe.
Contudo, de facto Chamberlain foi enrolado, e Hitler, uns meses mais tarde, começou a fazer olhos ao norte da Polónia (Gdansk) e a exigir o seu regresso ao território alemão. Como sabemos, foi essa invasão que ditou o início da II Grande Guerra, e não só Hitler mentira descaradamente no tratado de Munique como, hoje sabemos, mais do que resolver problemas de fronteira, queria controlar todo o continente europeu.
Voltemos ao “erro de Chamberlain” – e também de Daladier, primeiro-ministro francês em 1938 que, juntamente com Mussolini e Hitler assinaram o tratado de Munique. O que poderiam eles fazer? Enfrentar Hitler? Como? Em 1938, o exército alemão era, de longe, o melhor, mais bem armado e mais tecnologicamente avançado exército do Mundo. Uns meses depois, em 1939, “varreram” a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo e a França em apenas seis semanas.
Portanto, diz-me Sérgio Sousa Pinto, o que devia Chamberlain ter feito? Ou o pobre francês que em pouco mais de um mês perdeu o controlo de um dos maiores países da Europa. Deviam ter-se atirado para a frente do rolo compressor e começado a guerra um ano antes?
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Eu acho sempre piada a conversas de heróis com o couro dos outros.
Não fosse o inverno russo e os disparates de Mussolini na Grécia, e queria ver quem é que tinha parado a máquina nazi.
Voltando ao Donbass e ao argumento de que se Putin não for parado agora, virá desfilar tanques até Paris como Hitler. Permitam-me discordar. O exército russo anda há semanas, senão meses, com mercenários e tudo o que vão arranjando pelo caminho, a tentar tomar Bakhmut, uma pequena cidade com metade do tamanho do Seixal e 70 mil habitantes (antes da guerra).
Não é gente que eu queira ter por perto, concordo, mas não me parece aquele tipo de pessoal que acaba a obra na Ucrânia e desata a limpar países até chegar a Madrid.
Aliás, Sérgio, tu próprio não deves acreditar no que disseste porque, eu bem te ouço, ao lado do amigo Sebastião na CNN, a dizer há meses que o Putin está a perder a guerra, que os ucranianos são uns espartanos e que o exército russo é formado por um grupo de bêbados malvestidos e mais mal liderados.
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Portanto, em que ficamos? A Rússia é um gigante com pés de barro, como andas a vender em horário nobre há meses, ou estamos em 1938 e esta versão do exército vermelho, depois do aquecimento na Ucrânia, vai bombardear tudo o que mexe entre Berlim e Lisboa?
Ao contrário de Hitler, Putin não parece muito interessado em fazer bluffs. O homem já disse que quer o Donbass, a Crimeia, um bocadinho da Moldávia e algumas fronteiras históricas da União Soviética. Compreendes? Ele disse mesmo ao que vai. Nós é que andamos entretidos a discutir o sexo dos anjos e não ouvimos. Ele não quer confrontação directa com a NATO (não é idiota), não quer invadir Bruxelas nem Amsterdão, e já percebeu que se vê grego só contra ucranianos armados pelos americanos. Portanto, o homem não só sabe os seus limites como já nos informou. Ele quer esticar um bocado os pés, arranjar ali uns quintais e meter os vizinhos em sentido.
É chato? Epá… é. É mais ou menos como os israelitas que foram sacando território na Palestina, no Líbano e no Egipto sem avisar. Também é chato. Mas ninguém pensou que eles, mesmo com as costas quentes, fossem começar a desancar em todos até à Tailândia.
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Mudará a correlacão de poderes se o Ocidente deixar a Ucrânia e a Moldávia caírem? Claro que sim. Os blocos estão a formar-se. Europa e americanos para um lado, enquanto a China, Índia e Rússia estão para outro. África e Ásia pobre com eles, enquanto o Japão, Coreia do Sul, Canadá e Austrália “connosco”. Está a acontecer, Sérgio.
Agora… estamos a viver 1938? Corremos um risco de guerra global contra o exército mais poderoso do Mundo? Não me parece.
Ao contrário de 1938, não só as intenções do invasor não estão escondidas como, já percebemos, Putin não quer controlar a Europa, mas sim voltar a ser um dos decisores no Mundo. Tarefa que ficou mais facilitada com a aliança assumida pela China. Estamos mais perto da Guerra Fria do que de uma nova invasão de Gdansk e um conflito global.
Honestamente, pelo que vou vendo, as hipóteses de uma escalada no conflito (com armas nucleares, NATO, etc.) aumentam, isso sim, enquanto fizermos questão de ir alimentando este conflito.
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Era essa a conclusão do discurso de SSP. Um apelo para não repetir o erro de Chamberlain e “enfrentarmos” o mal, em nome da liberdade das gerações futuras. “Enfrentarmos”, Sérgio? Também vais vestir o kevlar e meter o capacete?
Por favor, Sérgio Sousa Pinto e demais políticos com direito a palanque. Pelas alminhas, poupem-me a discursos inflamados e heróicos a exigir a luta armada, feita por outros, como resolução dos problemas criados por vocês. Andaram 20 anos a comer na mão de Putin, a fazer negócios, a vender-lhe armas a troco de gás. Agora queres enfrentá-lo? Como? Com a NATO? Com arsenal nuclear?
Se há coisa em que a História, de facto, se repete é na origem de todas as guerras. Políticos e governantes combinam a chacina onde as elites enriquecem e os pobres vão morrer. Aí sim, talvez estejamos a viver 1938.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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