IGAS conclui que cirurgião de Faro cometeu infracções graves e propõe suspensão de 40 dias

gray surgical scissors near doctors in operating room

A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) concluiu que o médico cirurgião do Hospital de Faro, Pedro Cavaco Henriques, cometeu infracções disciplinares graves, por violação dos deveres deontológicos e das boas práticas clínicas (leges artis), propondo que seja punido com uma sanção de 40 dias de suspensão, com perda de retribuição e antiguidade.

A decisão no âmbito do processo disciplinar a que o PÁGINA UM teve acesso, com despacho do inscpector-geral Carlos Carapeto em 22 de Agosto passado, resulta de um longo processo disciplinar instaurado pela Unidade Local de Saúde do Algarve (ULSA) na sequência das denúncias da médica interna Diana Pereira, que em 2023 teve a coragem pouco comum de expor directamente à Polícia Judiciária aquilo que considerava ser casos evidentes de negligência na Cirurgia da unidade de saúde algarvia.

Diana Pereira, actualmente a exercer no Hospital de São João, era então orientada no seu internato (fase de estágio após a formação em Medicina) por Pedro Cavaco Henriques, embora a sua queixa na Polícia Judiciaria tivesse incluído também o director de serviços de cirurgia, Martins dos Santos. A médica alegou que não confiava na hierarquia do Hospital de Faro, receando que os casos fossem silenciados.

No final do ano passado, a IGAS tinha arquivado um processo disciplinar similar contra Gildásio Martins dos Santos, então director de serviços de cirurgia do Hospital de Faro, por existirem dúvidas sobre a sua culapbilidade, embora a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, tenha depois decidido suspender a decisão final após o processo penal ainda em curso.

Outro desfecho teve o processo de Pedro Cavaco Henriques. A nota de culpa apurada pela IGAS imputava a Pedro Cavaco Henriques a prática de múltiplas infracções, envolvendo cinco doentes concretos, identificados no processo, em episódios clínicos que, segundo a investigação, configuraram má prática médica. Em cada um dos casos, a IGAS sustenta que houve incumprimento das regras técnicas adequadas, sendo especialmente grave a situação de um dos doentes, que sofreu complicações graves atribuídas a má decisão cirúrgica.

Página das conclusões do processo disciplinar contra o médico Pedro Cavaco Henriques. O PÁGINA UM expurgou os nomes dos cinco doentes referenciados por razões de legítima privacidade e por não ter relevância pública.

No relatório com 59 páginas conduzido pelo inspector Pedro Cordeiro, a IGAS é taxativa: considera provadas as infracções, realça que foram cometidas a título negligente e lembra que o médico Pedro Cavaco Henriques até já tinha sido alvo de uma sanção disciplinar anterior, de repreensão escrita, no mesmo hospital. Essa reincidência pesou na avaliação, tal como a proximidade temporal das infracções, que ocorreram no espaço de apenas três meses. A ocorrência em espaço de tempo reduzido de quatro infracções por violação da leges artis, censuradas pericialmente e de má prática num outro caso foram consideradas “pericialmente gravosas”.

Apesar da gravidade das faltas, a IGAS também reconhece factores atenuantes: refere o bom comportamento geral do médico e destaca a sua postura colaborante durante o inquérito. Particularmente relevante foi a admissão expressa do arguido de que deveria ter adoptado uma conduta diferente no caso de um dos doentes, uma mulher de origem estrangeira, tendo Pedro Cavaco Henrique assumido erros e arrependimento sobre a opção cirúrgica que resultou em complicações/lacerações intestinais

A IGAS sustentou que, atendendo a que a factualidade em causa aconselhava uma adequada proporcionalidade na sanção, se considerava ajustada a aplicação de uma sanção única de 40 dias de suspensão, superior ao que estava previsto na nota de culpa para cada infracção isolada (20 dias). A decisão final cabe agora ao Conselho de Administração da ULSA, que terá três meses para a executar sob pena de caducidade.Mas o processo não acabará aqui porque a decisão formal seguiu agora também para a Ordem dos Médicos, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Tribunal de Faro.

doctor and nurse during operation

Esta conclusão da IGAS é mais um capítulo de um caso que abalou o Hospital de Faro e expôs as fragilidades de uma cultura hospitalar marcada pelo corporativismo. Em Abrilde 2023, Diana Pereira, então médica interna de cirurgia geral, decidiu quebrar o silêncio e reportar directamente à Polícia Judiciária onze casos de alegada negligência ocorridos entre Janeiro e Março desse ano. Três dos doentes acabariam por morrer, dois encontravam-se em estado crítico nos cuidados intermédios e os restantes ficaram com sequelas graves.

O gesto de Diana Pereira foi inédito num meio profissional onde, historicamente, a regra tem sido a protecção mútua entre pares e a ausência de denúncias públicas. O próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos desaconselha críticas entre colegas em actos clínicos, o que contribui para que situações de erro raramente sejam escrutinadas fora dos mecanismos internos. O caso de Faro tornou-se, assim, paradigmático: pela gravidade dos eventos, pela coragem da denunciante e pela forma como as instituições reagiram.

As denúncias de Diana Pereira levaram, face à gravidade, à suspensão preventiva de Pedro Cavaco Henriques e Gildásio Martins dos Santos, uma medida tornada pública através de edital do Conselho Disciplinar da Região Sul da Ordem dos Médicos.

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Em paralelo, a IGAS abriu um processo de inspecção que analisou 12 casos, concluindo, em Setembro de 2024, que seis tinham fundamento. O Ministério Público instaurou inquérito criminal e a Ordem dos Médicos manteve em curso os seus próprios processos disciplinares. Estes dois processos poderem agora aproveitar as provas recolhidas pelo processo disciplinar que não podia ir mais longe do que aplicar, se não houvesse atenuantes, um máximo de 100 dias de suspensão.

Contudo, a médica interna viria a enfrentar um clima hostil no hospital e fora dele: colegas puseram em causa a sua estabilidade emocional, havendo mesmo violação dos seus dados pessoais. E em Julho de 2023, dois jornalistas do Expresso (Vera Lúcia Arreigoso e João Mira Godinho) publicaram uma notícia intitulada “Médica que acusou cirurgiões envolvida em morte”, em que associavam Diana Pereira a um alegado caso de negligência – por supostamente ter dado alta a uma doente que morreu horas depois – citando fontes anónimas de “cirurgiões”.

A notícia do Expresso revelava-se falsa porque os médicos internos não possuem capacidade para conceder alta a doentes sem a supervisão e anuência de um médico de especialidade.

Diana Pereira: a jovem médica teve a coragem em 2023 de denunciar erros graves que estariam a ser silenciados pelas chefias, e sofreu depois represálias, incluindo tentativas de ‘assassinato de carácter’, incluindo uma notícia do Expresso em que se tentava associar a um acto de negligência médica.

Num contexto em que a confiança dos cidadãos nos serviços de saúde é crucial, este caso mostra que a denúncia fundamentada e a investigação independente são instrumentos indispensáveis para a correcção de falhas e para a defesa da dignidade dos doentes. Mas também expõe o preço pago por quem decide romper o silêncio: perseguição pessoal, campanhas de descredibilização e isolamento profissional.

O PÁGINA UM tentou contactar a médica Diana Pereira, actualmente a prestar serviço no Hospital de São João, no Porto, mas ainda não obteve qualquer resposta.