Brazil under attack, ou A blitz de Donald Trump contra as instituições nacionais

sea waves on brown shore at daytime

Meteoro trumpista

O panorama político e económico brasileiro foi sacudido na segunda semana de Julho por um meteoro oriundo directamente de Washington. Numa “carta” publicada em sua própria rede social (a Truth Social), o presidente norte-americano, Donald Trump, impôs, de forma unilateral e indiscriminada, uma tarifa de 50% sobre todo e qualquer produto exportado pelo Brasil aos Estados Unidos.

Para justificar tão brutal imposição, Trump – cujo bronzeado artificial, associado à pesada maquilhagem, confere à sua pele um curioso aspeto laranja– fez uso de três “argumentos”:

1 – Existiria uma perseguição política ao ex-presidente Jair Bolsonaro, réu no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado. Essa seria uma “caça às bruxas” que deveria parar “IMEDIATAMENTE” (a ênfase da caixa alta é do próprio Trump);

2 – As redes sociais no país, controladas em sua maior parte por Big Techs norte-americanas, estariam a ser alvo de “censura” por parte do STF, o que violaria o direito à “liberdade de expressão dos americanos”;

3 – “Défices comerciais insustentáveis” entre os dois países estariam a pôr em causa a “segurança nacional” dos Estados Unidos.

Autoexilado nos Estados Unidos, o filho mais novo de Bolsonaro, Eduardo, comemorou a medida nas redes sociais. Não satisfeito, o “Filho 03” do ex-presidente chegou a pedir aos brasileiros através de um tweet que “agradecessem” a Trump pelas tarifas impostas aos produtos nacionais.

“Sanções” é o nome do jogo

Quando surge um imbróglio qualquer, seja a nível nacional, seja a nível global, o primeiro passo para compreendê-lo é respeitar o bom vernáculo. Chamando as coisas pelos seus próprios nomes, é mais fácil identificar do que se está a tratar e, a partir daí, começar a pensar em soluções. Por isso mesmo, será erro dar o nome de “aumento de tarifas” ao ataque perpetrado por Donald Trump ao maior país ao sul do Equador. O que houve foi a imposição de sanções.

Para cogitar-se de uma possível guerra comercial, o pressuposto fundamental seria acreditar que verdadeiramente existe uma base factual para as alegações de comércio desigual formuladas pelo Nero dos nossos tempos. É essa disparidade, aliás, que justifica – ao menos em tese – a imposição de tarifas através de ordem executiva do Presidente dos Estados Unidos, de modo a contornar a autoridade constitucional outorgada ao Congresso norte-americano para impor semelhante tributo a importações estrangeiras.

a crowd of people walking down a street

O argumento de “segurança nacional” baseado na suposição de um “imenso défice comercial” – de legalidade duvidosa desde sempre – adquire ares de realismo fantástico no caso brasileiro. Sim, pois enquanto os Estados Unidos mantêm uma balança comercial cronicamente deficitária com o resto do mundo, o Brasil é um dos poucos países com os quais os estadunidenses ostentam superávit nas trocas de bens e serviços. De 2009 para cá, não houve um único ano em que os Estados Unidos tivessem défice comercial com o Brasil. Ao contrário. No acumulado, já são quase US$ 90 mil milhões de saldo favorável aos americanos em quinze anos.

Para além do défice comercial inexistente, o ataque de Trump ao Brasil não pode ser chamado de “guerra comercial” porque ele mesmo enumera dois outros argumentos para justificar a imposição unilateral de tarifas: 1) a suposta “caça às bruxas” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro; 2) a “censura” imposta às Big Techs americanas pelo Supremo Tribunal Federal.

“Caça às bruxas”?

Réu no STF por tentativa de golpe de Estado, Jair Bolsonaro sempre se prestou, mesmo enquanto presidente, à submissão vassalar frente ao seu “ídolo”. Bolsonaro chegou ao cúmulo de dizer, em 2019, I love you para Trump mesmo depois que o presidente norte-americano impusera uma taxação às exportações de aço brasileiras para a terra do Tio Sam. Tudo para receber em troca apenas um embaraçoso Nice to see you again.

Bolsonaro não é vítima de perseguição política. É um criminoso que está a ser julgado por tentar impedir a posse de um presidente legitimamente eleito. Trata-se de um julgamento limpo, no qual já se carreou um caminhão de provas, inclusive os depoimentos do ex-comandante do Exército e do ex-comandante da Aeronáutica, a confirmar que o ex-presidente e parte de seus generais pretendiam usar as Forças Armadas para permanecer ilegalmente no poder. Bolsonaro recebe da democracia toda a cortesia que a garantia de um devido processo legal pode conferir. A mesma cortesia que foi negada aos presos políticos da ditadura que ele tanto exaltou durante toda a sua carreira política.

wide road with vehicle traveling with white dome building

O nó da questão

O segundo ponto levantado por Donald Trump diz respeito à suposta “censura” aplicada pelo Supremo Tribunal Federal às redes sociais norte-americanas. Trata-se de assunto já abordado aqui nesta coluna (https://www.paginaum.pt/2024/09/19/elon-musk-vs-alexandre-de-moraes-uma-visao-brasileira). Não existe censura. O que existe é uma tentativa tímida de responsabilizá-las pelo conteúdo que veiculam.

Fora isso, revela-se formidável hipocrisia ver o Nero Laranja falar em “liberdade de expressão” quando seu governo revogou o visto de 300 estudantes que se manifestaram em universidades a favor da causa palestina; cassou as credenciais da Associated Press por recusar-se a chamar o Golfo do México de “Golfo da América”; e, agora, ameaça tirar a cidadania da jornalista Rosie O’Donnel (nascida em Nova Iorque) por criticar sua agenda ambiental. So much for free speech defense.

Um ataque sem precedentes

Do ponto de vista histórico e diplomático, o ataque de Donald Trump às instituições brasileiras é sem precedentes. Nunca houve nada sequer semelhante ao que se está a passar agora. É verdade que, durante o governo do general Ernesto Geisel, o Brasil sofreu pressão do governo Jimmy Carter pela abertura do regime. Já havia mais de dez anos do golpe de 1964 e as denúncias de violações aos direitos humanos tinham atingido patamar insustentável. Tais pressões, porém, deram-se nos bastidores e em momento algum o governo Carter publicou uma nota desaforada para contestar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura.

O máximo de constrangimento imposto por Carter ao governo brasileiro foi obrigar Geisel a receber sua mulher, Rosalynn. Geisel entendia que, como presidente, só lhe competia discutir questões de Estado com seu par americano, não com a primeira-dama, que não fora eleita para coisa alguma. O episódio calou tão fundo na alma do general que, anos depois, já com ambos fora dos respetivos cargos, Geisel negou-se a receber Carter em sua residência. A questão “resolveu-se” depois que o Brasil denunciou o acordo de cooperação técnico-militar com o exército dos Estados Unidos.

red and blue crane under blue sky during daytime

O sequestro e o resgate

Do ponto de vista jurídico e político, a “carta” enviada pelo Nero Laranja não faz o menor sentido. A começar pelo facto de que seu destinatário, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, não dispõe de qualquer autoridade para fazer o que Trump exige. Por mais que o país seja desconhecido em grande parte das redes de poder em Washington – por vezes referenciado de forma jocosa como “México do Sul”, cuja capital é a cidade de Buenos Aires –, mesmo um governo de ignorantes como o de Trump é capaz de saber o Brasil não é uma Banana Republic, onde o Presidente manda suspender um processo da Suprema Corte (contra Bolsonaro) ou desfazer-lhe um julgamento (contra as Big Techs).

Ao contrário do que Trump expôs em sua missiva, no Brasil não vigora qualquer regime de exceção. Na verdade, pela primeira vez em sua história, o país tem a oportunidade de consolidar à vera a sua democracia, levando ao banco dos réus civis e militares que conspiraram pela derrubada do regime democrático. Bolsonaro não é vítima de uma “caça às bruxas”. É um liberticida mimado, que passou a vida inteira sem responder pelos seus atos. Agora, com a perspetiva de enfim ser preso, resolveu “sequestrar” o país com a ajuda de uma potência estrangeira para tentar livrar-se do cárcere.

Bolsonaro, de facto, importa?

Mas até que ponto Bolsonaro, de facto, importa nessa equação?

Na mesma carta em que ataca as instituições brasileiras, Trump afirma que, caso as empresas brasileiras decidam “construir ou fabricar produtos dentro dos Estados Unidos”, a tarifa não será implementada. O presidente norte-americano dispõe-se até a fazer o serviço de despachante “para aprovar rapidamente” os investimentos brasileiros. A gentileza é tamanha que ele se propõe a aprovar “em questão de semanas” o desembaraço burocrático. É dizer: se os empresários nacionais resolverem investir nos Estados Unidos, dane-se Jair Bolsonaro.

a person holding a flag

A ser verdade que Bolsonaro seria elemento-chave dessa medida, por que ele mesmo não veio a público pedir a revogação da medida? Dado o imenso prejuízo causado à economia brasileira, Bolsonaro poderia capitalizar politicamente a questão, “sacrificando-se” pelo bem da Nação e apresentando-se como “salvador da pátria”.

Das duas, uma: ou Bolsonaro não dispõe qualquer poder de ingerência para pedir a revogação das tarifas a Donald Trump; ou ele não foi o principal motivo para que elas fossem impostas. Não há como entender que ele tenha sido a principal motivação do troço e, ao mesmo tempo, não seja capaz de pelo menos advogar pela revogação da medida.

Freud explica?

Há sempre o risco de que tudo isso não tenha passado de um TACO Trade. O acrónimo Trump Always Chickens Out (“Trump sempre amarela”), formulado jocosamente por alguns operadores financeiros de Wall Street, indica uma fórmula através da qual, toda vez que o Nero Laranja apresenta alguma medida estapafúrdia, ele termina por recuar depois de algumas semanas. Seja por conta das pressões dos setores envolvidos, seja por conta da repercussão negativa, Trump acaba por dar o dito pelo não dito e ainda sai por aí a anunciar vitória. Esse, porém, pode não ser o caso das sanções aplicadas ao Brasil.

Como toda a gente sabe, Donald Trump foi processado por sedição depois do infame episódio do 6 de Janeiro. Uma multidão ensandecida, incensada por um comício incendiário do próprio Nero dos nossos tempos, tentou impedir a certificação da vitória de seu oponente democrata, Joe Biden. A alegação? “Fraude” nas eleições. Graças à incapacidade do sistema judicial norte-americano de levar a cabo a denúncia por golpe de Estado, Donald Trump pôde concorrer e vencer novamente a corrida para a Casa Branca.

Durante todo o tempo em que foi processado, Trump alegou ser vítima de uma “caça às bruxas”. A mesma “caça às bruxas” que ele agora acusa o governo brasileiro e o STF de praticarem contra Jair Bolsonaro. Ninguém sabe até que ponto o caso de Bolsonaro detona algum “gatilho” mental na cabeça do Nero Laranja. O mais provável, porém, é que a pressão exercida por ele seja motivada não por qualquer espécie de sentimento de solidariedade, mas, sim, para evitar o “exemplo” contra pretendentes a autocratas que a Justiça brasileira está a dar. Não será mera coincidência, portanto, que Trump tenha feito ameaça semelhante a Israel pela “perseguição” a Benjamin Netanyahu, réu em um rumoroso caso de corrupção.

a flag flying in the air

Não é por acaso, portanto, que o Brasil foi “premiado” com o maior percentual dessa nova rodada de tarifações imposta por Donald Trump. Há, sem sombra de dúvida, uma componente política nesse ato.

Isso explica, ademais, por que ambos os argumentos – “perseguição” a Bolsonaro e “censura” às Big Techs – estão situados topograficamente acima do “argumento comercial” na malcriada “carta” enviada pelo Nero da nova Roma. Esse trecho, a propósito, reproduz na base do “Ctrl+C – Ctrl+V” o conteúdo de cartas enviadas a outros países por Trump. Isso indica não só a aparente preguiça dos redatores na revisão do texto, como também a irrelevância do “argumento comercial” para a imposição indiscriminada de uma tarifa de 50% sobre toda a pauta de exportação brasileira ao país.

E agora?

Ainda que o Brasil fosse uma República de Bananas, qualquer criatura minimamente familiarizada com relações diplomáticas sabe que um país não pode ceder a tais termos sob chantagem. Seria um desastre político a nível interno e uma humilhação vexatória a nível internacional. Churchill ensinava que não se pode negociar com um tigre quando sua cabeça está dentro da boca dele. O que Trump está a pedir, em suma, é que, para não serem assassinados, Lula e o STF cometam suicídio. Parece óbvio que nenhum dos dois cometerá tal despautério.

O ataque deliberado do Nero Laranja às instituições brasileiras detonou uma onda de nacionalismo poucas vezes vista no território brasileiro. Mesmo quem não morre de amores pela esquerda sabe identificar quando seu país está a ser injustamente atacado por uma nação estrangeira. Sequestrada pelo bolsonarismo desde 2018, a bandeira do patriotismo foi transferida de mão beijada para Lula. Com a popularidade em baixa e uma gestão questionada até mesmo por aliados, o babalorixá petista conseguiu tirar seu governo das cordas e parece reenergizado para uma disputa presidencial que promete ser renhida ano que vem.

a long row of flags in front of a building

Danos colaterais

Como se isso não bastasse, a tarifação indiscriminada dos produtos brasileiros abortou o projecto de amnistia aos golpistas de 8 de Janeiro. Ambicionado por Bolsonaro e seus generais golpistas, o projecto tramitava na surdina no Congresso Nacional. Embora nada do texto tenha vindo a público, havia lideranças que defendiam até que se votasse a amnistia antes do recesso parlamentar, em 17 de Julho. Agora, toda essa programação foi por água abaixo.

Para piorar, a péssima repercussão do tarifaço trumpista atingiu a base económica do bolsonarismo, como o agronegócio e alguns setores industriais. Fortemente exportadores, esses setores estão entre os mais prejudicados pelas tarifas de Donald Trump. Sem saber de que lado se posicionar, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas – encarnação daquilo que parte do mainstream mediático alcunha de “bolsonarismo moderado” (como se tal coisa pudesse existir) – ficou na linha de tiro.

Preferido do chamado “Centrão” e do mercado financeiro para substituir o inelegível Bolsonaro na próxima contenda presidencial, Tarcísio de Freitas deparou-se com uma encruzilhada. Se defendesse os empresários atingidos pela medida, compraria briga com seu padrinho político. Se defendesse Bolsonaro, compraria briga com os potenciais patrocinadores de sua campanha. Resultado: Tarcísio não defendeu nem um nem outro. Acabou, assim, por apanhar dos dois lados.

silhouette of road signage during golden hour

Em resumo:

O episódio das tarifas contra os produtos brasileiros, portanto, é um caso a ser estudado no futuro. Numa só tacada, Donald Trump conseguiu: 1) enterrar o projecto de amnistia aos golpistas de 8 de Janeiro; 2) enfraquecer politicamente seu protégé; 3) alvejar gravemente seu potencial substituto na corrida;e, finalmente, 4) encorajar o atual presidente para as próximas eleições.

Quanto ao Supremo, a ameaça de Trump de nada adiantará para suspender o processo contra Bolsonaro. Na verdade, deve resultar no exato oposto: seu julgamento deve ser acelerado. Quem não conhecesse as personagens, seria capaz de jurar que Trump é lulista de carteirinha.

Diante de tudo isso, resta apenas concluir ironicamente: “Parabéns aos envolvidos”.

Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa