Limpeza étnica: mesmo aqui ao nosso lado


[13,1-18]1Vi, então, uma Besta que subia do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças. Em cima dos chifres havia dez diademas, e nomes blasfemos sobre as cabeças. 2A Besta que eu vi parecia uma pantera. Os pés eram de urso, e a boca era de leão. O Dragão entregou â Besta o seu poder, o seu trono, e uma grande autoridade. 3Uma das cabeças da Besta parecia ferida de morte, mas a ferida mortal foi curada. A terra inteira se encheu de admiração e seguiu a Besta, 4e adorou o Dragão por ter entregue a autoridade à Besta. E adoraram também a Besta, dizendo: “Quem é como a Besta? E quem pode lutar contra ela?”[1-4]5A Besta recebeu uma boca para dizer insolências e blasfémias. Recebeu também poder para agir durante quarenta e dois meses. 6Então a Besta abriu a boca em blasfémias contra Deus, blasfemando contra o seu Nome e a sua morada santa, e contra os que moram no céu. 7Foi-lhe permitido guerrear contra os santos e vencer. Recebeu autoridade sobre todas as tribo, povos, línguas e nações. 8Então todos os habitantes da terra adoraram a Besta. Mas o nome deles não está escrito desde a criação do mundo no livro da vida do Cordeiro imolado.[5-8]

Novo Testamento, Apocalipse de São João, capítulo 13



Por toda a parte se fala de genocídio com grande angústia e em voz de protesto mais ou menos aguerrida, e penso que toda a gente, até o André Ventura, concorda que não é caso para menos. Vivemos num tempo em que o Mal campeia, de forma tão arrepiante que faz lembrar uma das visões mais psicadélicas que São João descreve no Livro do Apocalipse[1]: é exactamente quando por mil anos o Bem se retira e o Mal se instala, e então a Besta que o personifica liberta as nações de Gog e Magog, “cujo número é como as areias do mar”. Ninguém sabe quem é esta gente, mas em tempos como o nosso pressente-se tão bem que a clarividência do velho evangelista até dói. Ah-ah, então, afinal, põe-se a hipótese de o senhor não ter apenas descoberto uns cogumelos especiais na Ilha de Patmos, onde passou a velhice a escrever este seu último livro. Sendo assim, agora põe-se a hipótese de, já na antecâmara da morte, São João ter alcançado um nível de sabedoria em relação ao mundo e à natureza humana que nós só estamos a entrever agora – e é porque somos obrigados. Se Gog e Magog, números incontáveis desta maldita raça, forem todos os esbirros dos grandes Demónios instalados no mundo conquistado pela Besta, isto hoje cobre todos os MOSSADs, todos os mercenários, todos os norte-coreanos a soldo que se suicidam para não serem apanhados, todos os passadores de migrantes para a Europa que lhes prometem mundos e fundos e depois os abandonam em alto-mar num barquinho de borracha, basicamente todas as pessoas que já provaram o sabor do sangue, gostaram deveras da experiência[2], e agora, como qualquer zombie ou qualquer vampiro dignos desse nome[3], não descansam enquanto não a repetirem, e repetirem, e repetirem, até o sangue dos outros[4] ser o único sabor que os alimenta. Acima deles estão os Demónios propriamente ditos, todos no activo em obediência sórdida à Besta, todos eles emaranhados nos genocídios selvagens uns dos outros, e tudo isto é horrível de ver para nós, nós que estamos aqui tão longe e que vá lá que podemos de vez em quando fazer umas doações para umas ONGs que nos pareçam mais adequadas[5], mas tirando isso, e se não formos médicos ou enfermeiros ou pessoal dos Comandos[6], não podemos fazer absolutamente nada para ajudar ninguém e ficamos extremamente frustrados enquanto o genocídio distante continua.

Mas esperem lá, isto é verdade?

Alguém acredita que não se passa qualquer espécie de genocídio selvagem aqui em Portugal, aqui mesmo ao nosso lado?

Por favor, abram os olhos só por um momento.   


Estudando rapidamente a hierarquia deste milénio maligno, e para que ninguém se perca, vamos começar por cima. Quem é a personificação do Mal, a quem São João chamou a Besta?

Parece-me indiscutível que a Besta nunca mexe um único músculo da cara, não fala com os seus visitantes à frente de terceiros, nunca sorri, tem sempre as pálpebras descaídas ocultando o seu verdadeiro olhar, possui vários palácios mas onde gosta mesmo de ser visto é naquele que considera ser dos seus antepassados possuidores do poder absoluto como ele, um palácio cheio de portas douradas guardadas por rapazinhos fardados de gala que as vão abrindo à medida que o Grande Irmão passa, dentro de casa anda sempre engravatado mas no exterior gosta de se pôr em tronco nu em cima de um dos seus cavalos, vive rodeado de homens malévolos que executam com prazer todas as suas ordens assassinas – e não, isto não é um cartoon para adultos desorientados, isto é obviamente a vida de Vladimir Putin, que um belo dia demite um dos seus ministros[7], duas horas depois manda baleá-lo, e seguidamente faz circular pelo mundo a foto de mais um pobre homem a escorrer sangue dentro de um automóvel, com a explicação pérfida de que este ministro se “suicidou”.

O homem sem expressão mete medo. É o herdeiro directo de José Estaline, para quem cinco mortos eram um assassínio mas cinco mil mortos eram apenas uma estatística, o novo prosélito da inegável superioridade russa que levou a União Soviética a erros de limpeza étnica tão graves como invadir o Afeganistão, ou mais tarde invadir a Chechénia, e agora o levam a ele a entrar pela Ucrânia dentro como quem de direito – e, no seu caminho, sempre que encontra um opositor pela frente reúne de novo o seu exército das sombras e assassina-o à queima-roupa por interposta pessoa com toda a pessoa no momento mais certo. O mundo de hoje está cheio de gente horrível, mas tão horrível como Putin não há mais ninguém.

O que há é todos aqueles destruidores sem alma que em tempos já apostaram todas as suas fichas na Besta, embora hoje não lhes reste outra opção senão cortar todos esses laços. Esses serão aqueles a quem São João chama os Dragões.

Os Dragões são aqueles que positivamente idolatram Putin, como Donald Trump. São todos aqueles que admiram em Putin a forma descarada como se alçou paulatinamente a ditador sem nunca mexer um único músculo da cara, e mais ainda a forma como, de caminho, enriqueceu imensamente à custa do sangue, suor, e lágrimas do seu povo que vive na miséria[8]. São os que bem gostariam de ter o seu pulso de ferro e possuir a sua falta de escrúpulos para expulsarem dos seus respectivos países todos os “estrangeiros” que ocupam lugar, fazem peso, dão mau aspecto, e impedem a construção de resorts de luxo, sejam eles “mexicanos” e outros “hispânicos” a quem até se destroem as famílias para tentar solucionar o caso mais depressa, os índios da Amazónia que Bolsonaro bem teria gostado de ver sumariamente eliminados no que contava com a ajuda de Trump, ou os palestinianos que Benjamin Netanyahu quer que sejam suficientemente estúpidos para aceitarem abandonar os seus lares em Gaza e ir viver para uns prédios de confinamento alarve que Israel iria construir já fora do território deles. O que eles têm bajulado o Putin, vejam bem o Trump. O que eles têm tentado agarrar-se bem à Grande Besta. Mas, às tantas, ao fim de algum tempo, até o Trump desiste. A Grande Besta é o símbolo mais acabado do Mal incrível em que mergulhámos, mas não é compatível com a nossa vida. Os Dragões ficam-se então por figuras lamentáveis como aquela de Netanyahu na Casa Branca a bradar aos Céus por um Nobel da Paz para Trump. A pessoa até se sente corar de vergonha.

E pronto, muito abaixo desta grande escala andam a esvoaçar uns espíritos malvados que nunca se calam e nos vencem pelo cansaço, personagens que há em toda a parte e das quais nós temos, por exemplo, o não tão engenheiro como isso José Sócrates.

Ah, mas isso não é limpeza étnica.

Então os portugueses, sempre muito amigos de todas as raças e todas as cores, nunca fazem nenhuma?

Vão-se lixar, então e o que é que a Câmara de Loures está a fazer aos são-tomenses neste preciso momento?

Não é correr os pretos equatoriais daqui para fora a pontapé, perante a indiferença generalizada de dez milhões de Portugueses que de certeza que sabem disto, porque as imagens são tão vistosas que passaram em todos os canais da televisão?

Os são-tomenses são uma população de língua portuguesa muito precisa, exígua em número, imediatamente reconhecível na linguagem, com aquela pele de um preto de ébano quase azul característico das populações que vivem mesmo em cima do equador. Distinguem-se bem. E, se o que a Câmara de Loures está a fazer-lhes não é uma limpeza, então francamente já não sei o que é.

Eles foram avisados

Estes cidadãos de um país de língua oficial portuguesa costumam vir para Portugal às golfadas, sobretudo aquando da visita de um chefe de Estado. Foi o próprio governo de São Tomé que lhes concedeu estes vistos de trabalho em Portugal, para que pudessem arranjar uma vida melhor e mandar dinheiro para a ilha. Ali, se não for nos hotéis dos estrangeiros é impossível trabalhar – e os hotéis não empregam assim tanta gente como isso, por muito que abusem da mão-de-obra barata, analfabeta, menor, descalça, e assim por diante. Aquele pedacinho luxuriante de equador com águas temperadas de um azul-turquesa perfeito é um verdadeiro paraíso, mas está cheio de mosquitos Anopheles, nunca se sabe quando é que escorrerá alguma água das torneiras, e todas as suas outras infra-estruturas estremecem na base, num ecossistema gerador de pobreza até hoje fora de controlo. Um homem que não tenha pelo menos vinte filhos não é considerado um verdadeiro homem, e estes filhos têm de vir de quatro mulheres diferentes.

Estas populações marginais abrigam-se em linhas contínuas de barracas sem qualquer saneamento básico. Nem vale a pena vituperar sobre as antigas roças de cacau, ou de café, que eram tão produtivas antes da independência: manter essas roças a funcionar nos nossos dias é uma aposta impossível, dado que na sua origem os Portugueses empregavam aqui escravos a quem podiam infligir toda a espécie de maus tratos[9], e mais tarde passaram a empregar “nativos” que não tratavam muito melhor do que os escravos, e que gostavam de tratar diante de toda a gente como se eles fossem atrasados mentais[10].

Nos nossos dias, há muito poucas esperanças de se encontrar qualquer espécie de “carreira gratificante” em São Tomé e Príncipe – sobretudo para um homem, porque a velha história é sempre a mesma, as mulheres sempre trabalham na costura, na roupa dos outros lavada à mão, na roupa dos outros passada a ferro, na travessia da ilha ponta a ponta para ir entregar encomendas de cestos com fruta aos turistas noruegueses que pagam bem – e claro, as raparigas entre os catorze e os dezoito anos, com os sorrisos mais ternos do mundo, que se passeiam sem pressa pelos corredores dos hotéis, passam de boa vontade uma tarde inteira a soltar risadinhas nos braços de um hóspede, e podem perfeitamente não cobrar mais do que dez euros.

E várias pessoas como eu, estupidamente sobrequalificadas, que queiram ir para lá “ajudar” a convite do governo, ou aceitam em paz que vão dar o litro como voluntárias ou não vão, ou pelo menos nunca têm paz.

Vi um médico sueco desatar a chorar por causa da constante escassez de ligaduras, que o impedia de isolar como deve ser as feridas horrorosas que as processionárias fazem nos braços dos meninos.

Não sei falar sueco mas fui ter com ele, toquei-lhe no braço, sorri-lhe, e comecei a rasgar a camisa até já estar mesmo ao nível da parte de cima do biquíni.

Deu imenso pano branco muito limpinho, e quando as outras viram também rasgaram a roupa delas, e nessa tarde toda a gente rasgou roupa e riu e o médico ficou com imensas ligaduras, mas claro que improvisar assim não é sistema.

Isto é a pura da pobreza.

A pessoa tem de se descontrair, respirar fundo, e aceitar as coisas como elas são, senão nem sequer consegue ser feliz, não consegue nem gozar-se deste mar precioso, não é capaz nem de apreciar nem o calor e a generosidade destas pessoas pobres.

Reatando aqui, se o nosso Presidente da República visitar o Presidente da República de São Tomé, é muito provável que estes dois homens já tenham combinado entre eles quantos vistos de trabalho vão ser concedidos a cidadãos são-tomenses para virem procurar uma vida melhor em Portugal, porem os filhos a estudar, e injectarem dinheiro na economia local. O que quer dizer que o nosso PR sabe disto tudo, mas o que é que ele vai fazer? Comprometer-se a receber este microcosmos em Belém caso todas as boas vontades descarrilem? Se calhar devia. Porque o projecto bem-intencionado descarrilou mesmo, e desta vez o facínora eugénico disposto a varrer do seu solo aquela minoria étnica tão trémula é a Câmara de Loures.

Eles foram avisados com 48 horas de antecedência,” diz para as câmaras da televisão a senhora autarca que teve a formidável honra de mandar avançar os bulldozers do município contra os casinhotos frágeis dos pretos escuros do equador ontem, segunda-feira, dia 14 de Julho de 2025.

E nem um único Português se revoltou com o que viu e ouviu.

Olhe, minha senhora

Como é que os são-tomenses abençoados por Marcelo Rebelo de Sousa e pelo seu próprio governo vieram parar a um bairro da lata nas traseiras de Loures, tão escondido quanto possível debaixo da vegetação mas já com um bar instalado a confortar os espíritos todos os sábados à noite e domingos de ressaca?

Então, muito pura e simplesmente todas estas pessoas sofreram com o aumento dos custos da habitação, como todos nós sofremos. Na sua maioria, tinham rendimentos tão baixos, e queriam poupar tanto para por os filhos a estudar, que se limitavam a alugar um quarto. Às vezes tinham que encaixar quatro ou cinco crianças nascidas entretanto dentro desse quarto – nunca, em fase nenhuma do processo, houve alguém que se lembrasse de fazer uma campanha de planeamento familiar junto daquela comunidade, no mínimo elucidar aquelas mulheres sobre a grande diferença que tomar a pílula pode fazer na vida delas, e assim impedir que a pobreza já esteja a rebentar pelas costuras ao fim do primeiro ano de experiência[11].

Mas enfim, sempre eram quartos, E esses quartos davam para um corredor que tinha uma casa de banho ao fundo. Está bem que era só uma casa de banho para seis portas mas sempre era uma verdadeira casa de banho, com banheira para os nenés e com tudo. Os empregos podiam ficar em Lisboa e aquele subúrbio da Margem Sul podia ficar longe de Lisboa, mas sempre existiam transportes e para esses transportes sempre existia o passe social, sempre o mesmo passe social para cada um deles. Desde que existissem quartos baratos, empregos de trabalho escravo para pessoas sem qualificações, e jardins de infância clandestinos para deixar a criançada, a vida levava-se para a frente.

Só que o custo das rendas começou a subir, e o dos quartos também,

E, à medida que se esticavam tanto a guerra na Ucrânia como o governo de Donald Trump, os empregos começaram a rarear – e aquela comunidade de língua oficial portuguesa não era como os ciganos, para dar só um exemplo; não estava protegida por absolutamente nenhum decreto-lei nem coisa nenhuma.

De maneira que a salvação começou a andar de boca em boca, e todos aqueles são-tomenses, um por um, devagarinho, foram aparecendo num sítio chamado QUINTA DO TALUDE, um terreno vago em Loures com uma vegetação crescida que lembrava a de África. Todos compraram paredes de lussatite e telhados de chapa ondulada, todos se ajudaram uns aos outros, todos embelezaram as suas novas casas o mais que puderam, fizeram-se  baixas de água e de electricidade, começaram a aparecer colchões, fogões, estofos, espelhos, sardinheiras, partilhas, enfim – tudo o que a pessoa precisa para não ceder ao desespero. Viver numa barraca nunca foi o sonho de ninguém, mas no Talude, ao menos, graças à política espontânea de interajuda o futuro parecia menos mau: faz hoje exactamente uma semana que se instalou a primeira fossa asséptica, e isto põe fim ao pesadelo dos cocós para dentro de latas de Nescafé e outras humilhações assim.

Entretanto, a disciplina é severa e todas as crianças vão à escola.

Mas de repente chega esta segunda-feira, a senhora autarca sem empatia que fala aos berros traz consigo a Força de Intervenção Rápida[12] para entrar no bairro e ao meio dia começa a destruir sessenta casas. Aquela gente que volte para de onde veio. Não tinha nada de estar ali. Mas esta criatura será do CHEGA? Não se percebe. O que se vê muito bem são os olhos muito grandes de um menino de nove anos. Olhe, minha senhora, já reparou nesse menino? A senhora acaba de derrubar a barraca dele. Destruiu-lhe o estojo dos lápis de cor com que ele estava a fazer os trabalhos de casa. E agora, como vai ser? O que diz este rapaz quando chegar à escola sem o trabalho acabado, “deram-me cabo da barraca e já não posso nem fazer os TPCs, a stora por favor chame a autarca das demolições que ela lhe confirma logo tudo isto aos berros com muito orgulho no que anda a fazer”?

Nessa noite, homens, mulheres, idosos, crianças, todas estas pessoas calmas e crédulas que vieram para Portugal com a bênção do Presidente da República juntaram o que conseguiram reunir e dormiram ao relento.

Sabe uma coisa, minha senhora?

É evidente que a senhora é um perigo público, uma vez que se entende logo, só de ouvir o seu discurso frenético jorrar da sua postura chauvinista, que é de tal forma bruta como as casas que mandou avançar uma polícia especial contra gente séria cujo historial ignora por completo, ao ponto de ignorar mesmo a questão dos escravos, dos “nativos” maltratados que trabalharam depois deles nas roças do cacau, da pobreza profunda e analfabeta, sem antenas de TVCabo e muito menos antenas de wireless para a internet, que até hoje se seguiu à independência, da sua vinda a Portugal com a maios das legalidades que depois deles se seguiu à independência da ilha. Aliás, é evidente que a senhora não quis nem perceber que estas pessoas a quem, depois do meio-dia, deu ordens para destruir sistematicamente sessenta casas, estavam dispostas a todos os sacrifícios para poder por os filhos na escola. É horrível, mas mete-se pelos olhos dentro: a senhora não se informou com ninguém, porque a senhora só viu as barracas.O que é isto, mas o que é isto?

Barracas de pretos, ainda por cima?

Dos pretos mais escuros de todos?

Toda a gente sabe que os pretos são muito perigosos.

Sim, chefe. Eu vou já tirá-los dali e plantar imediatamente um Mac Donald’s naquele mesmo bosquedo, com um parque infantil à volta, para que eles não tenham ilusões de voltar.

A senhora é uma besta, é uma bruta, está completamente desinformada, os outros Portugueses parecem dar-lhe razão porque nem reagem à maldade que a senhora semeia no seu caminho uma vez que estão preocupadíssimos com maldades muitíssimo maiores do que uma primeira fossa asséptica destruída e dezenas de criaturas que dormem ao ar livre com os seus filhos, mas olhe lá uma coisa.

É que ao menos lembre-se do Antigo Regime e do terrível ditador António de Oliveira Salazar, a quem ficámos a dever o pesadelo da guerra em África e 48 anos de ditadura. Se não se lembra de nada, eu esclareço: ao menos o Dr. Salazar, quando ia destruir um bairro de barracas porque queria por naquele sítio preciso uma qualquer modernice, como por exemplo um pilar da Ponte Sobre o Tejo – olhe minha senhora, ao menos o doutor Salazar construía primeiro um bairro camarário para acolher os desalojados, e só depois é que mandava avançar os bulldozers,

Estamos em 2025, e a senhora, ao achar normal desalojar as pessoas sem lhes propor qualquer outra solução em troca, acaba de conseguir ser ainda mais reacionária e mais racista[13] do que o Dr. Salazar.

E, esta noite, eu sinto vergonha de ser Portuguesa.

***

Soluções precárias * Finalmente, depois do Bairro do Talude ir ficando mais e mais espezinhado ao longo da semana, o Tribunal de Loures acorda e manda suspender aquelas demolições infames. No entanto, nenhum juiz determina que é preciso oferecer a cada uma das famílias atingidas um quarto de hotel, ou pelo menos autorização para reerguer a sua casa em segurança, enquanto o processo está a ser estudado. Da mesma forma, ninguém fala de um banco de empregos. As pessoas continuam a dormir ao relento. A senhora autarca já não aparece na televisão aos berros – mas, pelo que se viu, isso não oferece a ninguém qualquer garantia de segurança.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



[1] O último Livro do Novo Testamento – e, por decorrência, de toda a Bíblia.

[2] As mesmas pessoas tão frias como as víboras que vão guiar um cordão de fugitivos ao longo de quatro dias num deserto escaldante cheio de caveiras e de coiotes, e só de estarem eles na liderança, com todos aqueles desgraçados totalmente dependentes nas suas mãos, sentem logo um prazer canalha em, ainda antes da partida, passar algumas camisinhas para as mãos das mulheres do grupo, advertindo-as de que de certeza que vão ser violadas, eles não querem chatices e portanto nem vão tentar atravessar-se à frente dos bandidos, mas elas que não deixem de pedir ao violador que primeiro meta a camisa. O que há mais ali naquele deserto são doenças sexualmente transmissíveis. Às tantas correu o boato de que os passadores estavam feitos com os violadores, e disparavam um morteiro para o ar a sinalizar “carne fresca” de cada vez que partiam com um grupo onde houvesse mulheres. A jornalista da CNN que foi para o deserto fazer uma reportagem na primeira pessoa, com a câmara escondida na roupa, confirmou tudo isto e ganhou um Grande Prémio de Jornalismo quando voltou para a América. Mas comeu por tabela. A sua violação envolveu mais do que um indivíduo, e foi tão brutal que destruiu a câmara. Por favor desculpem todos estes pormenores sórdidos, mas eu ainda estava no Massachusetts quando tudo isto aconteceu e era uma história grosseira com narração ofegante da miúda, muito provavelmente morta de medo, que se acompanhava passo a passo. A mim aquilo parecia-me tudo completamente desnecessário, e afligia-me porque dava uma boa medida do quanto as pessoas normais já andavam absolutamente fascinadas com os caminhos do Mal. A violação da jornalista “ao vivo” chegou a passar em câmara lenta. Mais tarde ela descobriu que contraíra sífilis naquele pesadelo do deserto (os violadores atacaram o grupo todas as noites, dizia ela que simplesmente pelo prazer da humilhação das mulheres; nenhum deles aceitou usar a camisa) e isto permitiu-lhe voltar a fazer várias presenças televisivas e aparecer em várias revistas, alertando sabiamente as outras mulheres da sua idade para este perigo que nunca se sabe onde está: os homens que o transportam consigo não trazem isso escrito na cara. Finalmente, escreveu um livro e fez um grande tour. Imagina-se que, finalmente, enriqueceu, e portanto ganhou alguma coisa com toda esta história tão vil.

Já agora, ressalve-se um detalhe nada despiciendo: a miúda tinha uma cara engraçada, muito fresca, e um corpinho atlético bom para o deserto, tudo isto com tranças e missangas, de certa forma reminiscente da falecida sprinter Flo-Jo – porque claro, esta miúda era negra. Estava a ver aquela reportagem e a lembrar-me de que os americanos nunca mandariam uma estagiária loirinha, de nariz arrebitado e olhos tão azuis como o Pacífico, para aquele deserto que o Bem esqueceu.

[3] E basicamente qualquer outro monstro que funcione a sangue inventado pela Marvel no entretanto. Confesso que, nos últimos anos, não tenho conseguido acompanhar aquela profusão cada vez mais lamentavelmente comercial de criaturas.

[4] Parafraseando Simone Beauveoir.

[5] Eu, então, que conto todas as moedinhas, nem isso posso fazer.

[6] Note-se que, mesmo se exercermos alguma destas profissões, é preciso querermos ajudar para sairmos das nossas rotinas confortáveis e partirmos para a Faixa de Gaza, por exemplo, onde Israel está declaradamente a chacinar todos os palestinianos que encontrar no caminho, com o beneplácito de Donald Trump. E sabemos, logo à partida, que em troco da nossa ajuda podemos perfeitamente ser bombardeados e morrer, logo ali, de um momento para o outro. O Mal funciona assim, pelo que as nossas escolhas nunca são fáceis.

[7] Nunca saberemos por que razão.

[8] E, no caso de Putin, conseguir que ninguém saiba nada sobre a localização e o conteúdo dos seus offshores, e outras pilhagens abrigadas cuidadosamente em águas internacionais.

[9] A letra da celebérrima SÔDADE, a morna imortalizada pela voz de Cesária Évora, é sobre a tristeza dos escravos cabo-verdianos exportados das suas ilhas doces para a violência do trabalho nas roças de São Tomé, onde sabem que vão morrer de malária e de cansaço sem nunca mais voltar a ver quem amam.

[10] Disto eu fui testemunha desde os quatro anos, e agora lembro-me com toda a clareza. O navio LUANDA fazia escala em São Tomé, e havia sempre um dono muito rico de uma roça no meio da floresta que estava no cais à espera do meu Pai, que de uma forma ou de outra lhe tinha “salvado a vida” numa passagem pelo Hospital Militar. As roças destas pessoas, com aquele calor, serviam almoços elaboradíssimos, havia um quarteto vestido de branco com toda a gente a suar mas eles sempre muito disciplinados a tocar o que hoje compreendo ser uma tentativa de lounge music – e sim, e os roceiros gostavam era de insultar os “nativos” o mais alto possível, para mostrarem bem ao meu Pai quem é que mandava ali. Pelas costas disto tudo, eu e os membros do quarteto fazíamos caretas uns aos outros na maior das leviandades. Quando o LUANDA partisse para Lisboa, o português voltaria a ser o único branco da roça, e já não teria outra vez ninguém a quem mostrar a sua superioridade.

[11] Confesso que aqui me senti bastante parva, porque formação de Planeamento Familiar em Lisboa e organização de programas de PF entre as mulheres são-tomenses que fossem suficientemente palpitantes para elas terem vontade de lá ir foi uma das teclas em que eu bati mais, juntamente com o médico que me acompanhava, nas minhas missões voluntárias em São Tomé. Aqui acho importante acrescentar que, para meu grande desgosto, os meus filhos nunca quiseram ir lá comigo nas férias. Tinham medo de chegar lá, sair do avião, apanhar ali mesmo uma doença horrorosa, e morrer sem apelo nem agravo nem tempo para descer a escada até ao chão. O Pai deles também nunca quis vir comigo a África, fosse onde fosse, e o seu pânico americano baseava-se nas as mesmíssimas razões: “Clarinha, não, por favor. Não me obrigues a ir contigo a áfrica, um continente cheio de doenças que em dois ou três dias matam logo um gajo. Tu passaste lá a infância e meteste montes de formigas brancas fritas à boca  por isso é diferente, estás imunizada dos pés à cabeça.  Mas tem cuidado, a sério, não leves lá os nossos filhos.” Provavelmente a senhora autarca de Loures que tomou a palavra no tocante a expulsar dali aquela gente também está toda minada por preconceitos básicos deste tipo em relação a África, e acredita que a SIDA se transmite no vento, como uma constipação vulgar. Que vergonha.

[12] Mas que merda é esta, desculpem? Onde é que a criatura julga que vai entrar? Por junto, encontrou algumas pessoas imóveis, sentadas ou deitadas no chão. Passou-lhes olimpicamente por cima, toda muito bem protegida. Cabra.

[13] Mais fascista, como se dizia nos anos da Revolução, quando esta gaja parece ainda não ter nascido.

[1] Para quem não conhece mais este mimo da mitologia Clássica, Sísifo é um jovem que só poderá continuar a sua vida se conseguir empurrar um pedregulho anguloso e pesado até ao cimo da montanha que vai a subir. Todos os dias arrasta esse pedregulho à sua frente, com os habitantes da montanha a observar o esforço. Todos os dias consegue chegar lá a cima. Mas, todos os dias, demasiado cansado para encaixar o pedregulho num sítio que o retenha, pura e simplesmente há ali um momento em que abre os braços e deixa o fruto do seu esforço rolar pela encosta abaixo. Parece que a hipótese de ir construindo pontos de apoio para poder descansar todos os dias e continuar apenas no dia seguinte, quebrando o esforço – sei lá – numa semana, ao invés de um simples dia nem sequer lhe ocorre. Isto não é fossanguice, porque Sísifo quer apenas obedecer muito depressa às disposições dos deuses. Isto é apenas acreditar que um jovem pode fazer o que um deus faz. Isto é criancice – é um mito que ilustra muitos outros, daqueles relacionados com a omnipotência própria das crianças.

[2].”L’Homme de René Descartes“, ou “Tratado do Homem“, é uma obra inacabada de René Descartes, escrita na década de 1630 e publicada postumamente, primeiro em latim em 1662 e depois em francês em 1664. No tratado, Descartes descreve o funcionamento do corpo humano através de leis mecânicas, incluindo os músculos e os principais órgãos. Descartes tenta sobretudo explicar fenómenos invisíveis, tais como como a transmissão da dor e a dor fantasma, com ênfase nos

sentidos, e na perceção sensorial. Até à sua morte na corte da Rainha Cristina, na Suécia, Descartes tentou em vão juntar ao tratado a localização precisa da epífise, ou seja, o ponto onde a alma se liga ao corpo.

[3] EMBORA CONHEÇA OS CAMINHOS, EU NUNCA CHEGAREI A CÓRDOBA: Verso maravilhoso e premonitório de Frederico Garcia Lorca, cuja morte a caminho de Granada pela estrada que vem de Madrid (“Córdoba” seria uma figura de estilo para “Granada”, berço do poeta) ainda hoje se encontra por esclarecer. É certo que o poeta não se sentia seguro em Madrid, onde todos os seus amigos lhe imploraram que ficasse, exactamente por uma questão de maior protecção. Mas não se sabe se os receios de Lorca eram de cariz sexual (Lorca era homossexual, e não o escondia) ou político. Como, em ambos os casos, o cadáver de Lorca é seguido de lançamento para uma vala comum e consecutivo desaparecimento. Ou seja, setenta anos mais tarde, se a execução a tiro de um dos maiores poetas de Espanha veio de uma liga de cidadãos “dignos” que incluía membros da sua própria família, ou de uma organização sem perdões das forças fascistas que lhe montou uma cilada muito hábil no, continua a ser um mistério para todos nós. Tudo o que sabemos é que o homem de inspiração quase divina foi assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal. 

[4] SAPERE AUDE (OUSAR SABER) é a frase famosa cunhada por Immanuel Kant que define o espírito arrojado de querer estudar tudo e saber tudo característico do Período das Luzes, que marcou a Europa do século XVIII até ao terramoto de Lisboa em 1755.

[5] Estas Nações, aparentemente sobrepovoadas por criaturas que não sabemos com o que é que se parecem mas sabemos que estão associadas ao mal, foram criadas no âmbito das visões infernais contadas por São João Evangelista na sua velhice, quando se recolheu sozinho na ilha de Patmos e escreveu O APOCALISE, o último livro do Novo testamento.

[6] História verdadeira das incríveis desgraças da vida no mar, esta do século XVII e narrada por François Leguat. Leguat era um huguenote francês que em 1689 escapou de França com cerca de outros duzentos seguidores hugenotes, tentando escapar às perseguições e chacinas religiosas. Tinha-lhes sido prometida  a fértil e abundante ILHA DA REUNIÃO, mas afinal despejaram-nos, um ano mais tarde, num penhasco árido e sem lavoura possível chamada ROCHEDO DE RODRIGUEZ, quando da população inicial já só restavam oito. Ao fim de um ano, quando

[7] Está a falar connosco e tira e põe os óculos, tira e põe os óculos, e quando faz isso os olhos crescem e descem, crescem e descem, e tudo é bom de ver. Diga-me, Clara Pinto Correia: se só pudesse levar só uma outra pessoa para uma ilha deserta…

[8] Atenção mulheres! Se vos doerem os dentes e conseguirem aguentar até Belém, subam a Rua dos Jerónimos, entrem na Clínica dos Jerónimos (18 A/B à vossa direita, se forem a subir ao longo do estilo manuelino), façam um ar desesperado, e digam que pelo amor de Deus, têm que ser vistas imediatamente pelo Dr. Bruno. Podem dar o meu nome como referência. Mesmo que não vos doam os dentes, peçam-lhe que os veja pelo menos uma vez. Juro que vale a pena. Eu, que já corri o mundo, nunca tinha visto um dentista assim. Sabia que eu é que tinha descoberto o descoberto o centrossoma masculino na fertilização do mamífero! Até me vieram as lágrimas aos olhos.

[9] Esta figura de estilo não consta do mito. Sísifo só assumiria comportamentos de degradação semelhante se fosse um mero humano. Humano como a Mafaldinha – e toma lá que já ouviste, ó mais-que-perfeita sem vergonha.

[10] Adoro ouvir as conversas das pessoas.

[11] Ou  podia: não sabíamos.

[12] Esperem lá. A SENHORA? A criatura era da minha idade, caraças. Não era nenhuma SENHORA. Era um GAJA, como eu. Só que, conceda-se – como vim a saber pela autoestrada, era uma pobre GAJA de cabelo pintado, e de facto com vida de SENHORA. Tomava conta da sogra, que vivia lá em casa, e chamava-lhe “A MÃEZINHA”, Detalhes tramados.

[13] É que eu sei exactamente o que é o horror encerrado nestas práticas. Quando eram pequeninos, os meus filhos foram expostos a este género de nojo. “Mas eu nunca engoli, Mãe, eu vomitei sempre!” – era noite, estávamos os três enfiados na minha cama a falar do passado deles, e esta frase pequenina, nesta voz pequenina de menina, arrepiaram-me tanto, fizeram-me ficar tão tonta, que eu pensei que ia desmaiar. Abracei-os muito contra mim, cantei-lhes o LE TEMPES DES CERISES baixinho, devagarinho, com muito carinho, e lá se foi o desmaio.

[14] Auditório enfiado agora à pressa nesta história. Representa ums grande quantidade de gente de todos os quadrantes reunida sob o mesmo tecto.