Portugal punitivo: um dos países mais pacíficos do mundo… mas com um sistema penal hiperactivo?


Uma pequena nota introdutória, no sentido de informar que a presente crónica deve ser lida em conjunto com a anterior “Punir (e ver punir) sabe bem!”, e que ambas são parte de um ensaio contínuo que se pretende levar a efeito sobre algumas questões no âmbito da Justiça.

Como explicar que um dos países mais pacíficos do mundo apresente níveis tão elevados de encarceramento e prisão preventiva?

1. O Paradoxo da Paz Punitiva

Em 2025, Portugal voltou a figurar entre os países mais pacíficos do mundo, alcançando o 7.º lugar entre 163 países avaliados, no Global Peace Index do Institute for Economics & Peace, ficando apenas atrás de nações como a Suíça, Singapura, Nova Zelândia, Áustria, Irlanda e Islândia, e à frente de países como a Dinamarca, a Eslovênia, o Canadá e a Finlândia, para citar alguns.

A criminalidade violenta a nível nacional, por comparação com a realidade internacional, é diminuta, tendo inclusive, alguma dela, vindo a baixar, por exemplo, o número de homicídios voluntários consumados participados tem vindo em queda (em contraciclo com a realidade europeia), registando em 2024 um dos números mais baixos dos últimos tempos (89), as tensões sociais são moderadas, e a população expressa níveis de sentimentos de segurança adequados, mesmo com uma comunicação social muito activa e a poder contribuir para o aumento de uma percepção de insegurança.

De acordo com os dados do Eurostat, em termos de criminalidade participada anualmente, por cem mil habitantes, Portugal está, reiteradamente, por exemplo: nos homicídios voluntários/ intencionais, a baixo da Bélgica, da Bulgária, da Dinamarca, da Alemanha, da Grécia, da França, de Chipre, da Áustria, da Polónia, da Finlândia, da Suécia, da Islândia e da Noruega, em linha com Espanha e Países Baixos; na criminalidade sexual, a baixo da Bélgica, da Dinamarca, da Alemanha, da Estónia, da Irlanda, de Espanha, de França, do Luxemburgo, da Áustria, da Finlândia, da Suécia, da Islândia, da Noruega, e da Suíça.

Mesmo nos chamados crimes de roubo, Portugal encontra-se, a baixo da Bélgica, da Dinamarca, da Alemanha, da Irlanda, da França, de Itália, do Luxemburgo, dos Países Baixos, da Áustria, da Eslovênia, da Finlândia, da Suécia, da Islândia, da Noruega e da Suíça.

Contudo, estes indicadores de tranquilidade social contrastam de forma abrupta com outros dados do sistema penal português: a taxa de reclusos por 100.000 habitantes é de cerca de 116, um valor superior à média da União Europeia (103) e praticamente em linha com a média da OCDE (117), que é bastante elevada por integrar países com valores altos, como os Estados Unidos da América (614), Turquia (366), Costa Rica (343), Chile (281), Israel (217), Hungria (203), Polónia (199), Colômbia (198) e México (174), segundo a Prison Policy Initiative.

Por comparação temos: Espanha 113, França 109, Luxemburgo 107, Croácia 106, Itália 105, Chipre 103, Grécia 101, Bulgária 101, Kosovo 99, Áustria 99, Bélgica 97, Irlanda 91, Canadá 88, Eslovénia 86, Bósnia 83, Suécia 82, Arménia 79, Suíça 73, Dinamarca 69, Alemanha 67, Países Baixos 65, Noruega 54, Finlândia 51, Japão 36.

Para além disso, segundo os relatórios SPACE (SPACE I e SPACE II) do Conselho da Europa, Portugal é consistentemente um dos países com maior duração média das penas de prisão efectiva e com uma das mais altas taxas de recurso à prisão preventiva. Isto significa que, não apenas se prende mais do que a maioria dos parceiros europeus, como se prende por mais tempo e mais cedo, frequentemente antes do julgamento.

No tocante à duração média das penas de prisão aplicadas em Portugal, permite suscitar dúvidas sobre a proporcionalidade das sanções aplicadas, especialmente num país onde os índices de criminalidade grave são relativamente baixos. Assim sendo, que racionalidade penal legitima a manutenção de pessoas presas durante 5, 10 ou mais anos, em contextos onde a reinserção e a reabilitação raramente são mais que fórmulas retóricas?

Em vários anos da última década, mais de 20% da população prisional portuguesa encontrava-se privada de liberdade sem condenação transitada em julgado, ou seja, por aplicação de medidas de coação, um número que coloca o país na faixa superior da Europa Ocidental.

Ora, esta realidade contraria o princípio basilar do direito penal democrático: a presunção de inocência. A prisão preventiva, que deveria ser excepcional e devidamente fundamentada, parece muitas vezes funcionar como instrumento antecipatório da punição, ou como meio de gestão processual perante atrasos e insuficiências do sistema judicial.

A taxa de encarceramento de Portugal ultrapassa inclusive a de alguns países com níveis de criminalidade e instabilidade significativamente superiores.

2. A Violação Sistemática das Garantias

A revisão crítica do uso da prisão, tanto preventiva como efectiva, deve ser uma prioridade para qualquer Estado que se pretenda verdadeiramente de Direito. Reduzir a taxa de reclusão e encurtar a duração das penas não significa leniência, mas sim compromisso com os princípios constitucionais da proporcionalidade, da legalidade e da dignidade da pessoa humana.

Portugal não precisa de prender mais. Precisa, sim, de julgar melhor, com mais imparcialidade, mais transparência, e menos medo de parecer brando quando estará, simplesmente, a ser justo.

A pergunta que se impõe é tão simples quanto inquietante: para que serve um sistema de justiça criminal severo num país objectivamente pacífico? Sobretudo, quando hoje é claro em todo o mundo, que uma maior punição não gera uma menor taxa de criminalidade, tendo sim, o efeito contrário.

A prisão, quando usada em excesso, não é apenas cara e ineficaz, é, sobretudo, injusta. A justiça criminal deve ser proporcional, cautelosa e centrada na dignidade humana. Num país como Portugal, continuar a prender tanto e por tanto tempo não é sinal de força institucional, mas de desajuste sistémico.

Está na altura de perguntar: será que a paz social que temos conquistado se constrói, ou se destrói, atrás das grades?

A Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa reforçar a presunção de inocência e o direito a estar presente no julgamento penal, continua por transpor devidamente em Portugal. Tanto assim que, em fevereiro de 2025, a Comissão Europeia formalmente instou Portugal a cumprir essa obrigação.

O incumprimento desta Diretiva contribui para práticas que comprometem gravemente os direitos fundamentais dos arguidos. Basta observar os comunicados regulares de alguns órgãos de polícia criminal, que frequentemente antecipam a culpa e descrevem os factos como provados (embora não o invoquem expressamente) antes mesmo de qualquer decisão judicial.

A Resolução do Parlamento Europeu de 28 de Fevereiro de 2024 sobre o Estado de Direito, destaca precisamente este tipo de preocupação com a efectividade das garantias processuais em vários Estados-Membros, entre eles Portugal.

Em paralelo, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa tem emitido sucessivas decisões criticando a sobrelotação prisional e o uso excessivo da prisão preventiva nos Estados-Membros, incluindo Portugal.

O que explica então este paradoxo? Mais uma vez se questiona: Como pode um país pacífico encarcerar tanto? A resposta não se encontra no crime, mas provavelmente na estrutura e mentalidade dos intervenientes do próprio sistema de justiça.

Portugal parece encarcerar mais, não porque haja mais crime, mas porque o sistema judicial opta, reiteradamente, pela privação de liberdade como a principal resposta. A prisão, inclusive a preventiva, parece ter-se tornado uma rotina institucional, e não uma excepção rigorosamente ponderada.

A resposta não é simples, mas começa a delinear-se ao analisarmos os dados do World Justice Project (Rule of Law Index 2024). Portugal obtém uma pontuação de 0.59 (de 0 a 1) no indicador de “Justiça Criminal”, longe dos países do topo como Finlândia (0.79), Países Baixos (0.76) ou Noruega (0.78). Em particular, surgem fragilidades nos subindicadores de imparcialidade do sistema judicial criminal (situando-se em 28.º lugar em 31 países no ranking regional, ou seja, quase em último lugar!), no respeito pelas garantias dos arguidos e a ausência de discriminação institucional.

Curiosamente, ou talvez não, este indicador/índex (que ano após ano tem avaliado de forma preocupante a justiça criminal portuguesa) não tem merecido qualquer destaque na comunicação social portuguesa, ao contrário de outros bem mais favoráveis ao populismo penal.

3. Cultura Judicial e Pressão Mediática

O mais recente relatório do GREVIO (2025) – Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence  (que faz um trabalho muito meritório no âmbito da violência contra as mulheres e da violência doméstica) –, referente a Portugal, e que foi divulgado nos média portugueses, dá ênfase a algumas das fragilidades apontadas ao sistema judicial português no tratamento de casos de violência contra as mulheres, com decisões que reproduzem estereótipos, culpabilizam as vítimas ou minimizam a gravidade da violência.

Infelizmente (no sentido de que seria menos mau para o velho Continente se fosse só um problema do sistema português), quando comparado com os outros relatórios, revela que Portugal não se encontra particularmente desalinhado face a outros países europeus monitorizados.

Por exemplo, a Áustria, a Dinamarca e a Finlândia, ainda que com reformas legislativas significativas (como a consagração do consentimento como critério central no crime de violação), enfrentam dificuldades semelhantes no plano jurisprudencial: persistência de decisões lenientes, resistência à incorporação da dimensão de género, e aplicação desigual da lei. Mesmo Espanha, considerada uma referência no combate à violência de género, enfrenta casos pontuais de revitimização judicial.

Uma leitura transversal dos relatórios GREVIO evidencia que o problema não reside apenas na moldura penal ou no grau de punição, mas na cultura jurídica e no perfil hermenêutico dominante entre os magistrados. Na verdade, a tendência punitiva do sistema de justiça criminal português não se traduz automaticamente num sistema mais eficaz ou justo em matéria de violência baseada no género, antes pelo contrário, pode coexistir com práticas judiciais que perpetuam desigualdades, desconfiança e ineficácia protectiva.

Com efeito, a dissonância entre os dados de segurança objectiva e os indicadores de severidade penal pode ser interpretada como um sintoma de um sistema que não responde proporcionalmente ao nível real de criminalidade, mas sim a pressões internas – mediáticas, institucionais ou corporativas – que favorecem uma lógica de controlo social e demonstração de força.

Em linguagem foucaultiana, poderíamos dizer que o sistema penal português funciona menos como resposta a riscos concretos e mais como mecanismo simbólico de gestão “disciplinar”, com especial incidência, como não poderia deixar de ser, sobre grupos vulneráveis.

A situação portuguesa, de uma possível hipertrofia punitiva num contexto de baixa criminalidade real (desde logo em termos comparativos internacionais), pode ser interpretada à luz do que vários criminologistas chamam de punitivismo estrutural. Ou seja, uma cultura penal enraizada que, apesar das garantias constitucionais, favorece:

– A detenção como ferramenta de investigação processual, e não como último recurso cautelar;

– Um conservadorismo judicial, com preferência por medidas privativas de liberdade;

– Pressão mediática e populismo penal, que associam a severidade à eficácia;

– A manutenção de um sistema judicial fechado sobre si mesmo, onde a responsabilidade pelas decisões excessivas raramente é escrutinada, onde, contrariamente a outras realidades, a assunção do erro judiciário é quase inexistente, prevalecendo fortemente em termos jurisprudenciais o critério da segurança jurídica face à dignidade do indivíduo, quase ignorando a possibilidade de terem sido cometidos erros na sua condenação – existindo como que um mito da infalibilidade da justiça criminal portuguesa, sem qualquer fundamento que o justifique, acrescendo ainda, a ausência de cultura de prestação de contas pelas decisões cautelares abusivas.

Em suma, é um modelo que persiste, não porque os factos o justifiquem, mas porque as instituições não são desafiadas a evoluir.

A razão profunda deste desajuste pode residir na herança sociocultural e institucional do autoritarismo português. Como referiu o sociólogo António Barreto no seu artigo “É difícil viver em Portugal” em 29 de Julho de 2023 no Jornal Público, os mitos da excelência nacional escondem uma realidade mais incómoda: impunidade dos poderosos, ineficácia da administração da justiça e desprezo pelo princípio da equidade.

A transição democrática não desmantelou inteiramente o ethos punitivo do Estado Novo. Muitos dos seus mecanismos de controlo social mantiveram-se institucionalmente activos, e a práctica penal continua, em larga medida, marcada pela presunção de culpa e pelo privilégio das instituições sobre a lei (um verdadeiro primado das instituições).

Este quadro é agravado por um contexto social em que, segundo o mais recente Inquérito às Competências dos Adultos da OCDE, os níveis de compreensão crítica e de literacia (também jurídica) da população adulta estão abaixo da média europeia. Tal contexto favorece um discurso populista punitivo e dificulta o escrutínio dos abusos institucionais.

O punitivismo penal, em sociedades com baixos níveis de criminalidade, não é só injusto: é irracional. Não reduz a reincidência, não aumenta a segurança objectiva, e descredibiliza a ideia de justiça como bem comum. Temos um sistema que prende muito, prende cedo (preventivamente), e prende por muito tempo — não por necessidade, mas por inércia, ideologia e pressão simbólica.

Reiteramos, a verdadeira pergunta é, pois: como se justifica tanta prisão num país tão pacífico?

A resposta pode estar no desequilíbrio entre legalidade formal e prática institucional. É tempo de recentrar o sistema penal nos seus fundamentos constitucionais: proporcionalidade, reinserção, presunção de inocência e respeito pela dignidade humana. Até lá, continuaremos a viver o paradoxo de sermos campeões da paz… e da prisão.

Mais grave: como é que perante este cenário, e estes dados objectivos, continuamos a ouvir por parte das forças políticas e da justiça, uma necessidade de aumento da moldura penal de alguns crimes, a possibilidade de criação de novos tipos de crime, bem como, propostas de redução de algumas garantias dos arguidos? Como é possível tamanha contradição? Por vezes esquecemos que o direito criminal é a ultima ratio de resposta de um Estado Democrático de Direito, e que não serve seguramente para resolver problemas da sociedade, que podem e devem ser resolvidos de outra forma.

4. Punitivismo Cognitivo e Neurobiologia do Medo

Para além do contexto histórico, provavelmente a criminologia, a sociologia, a psicologia cognitiva e a neurobiologia possam explicar um pouco desta “perturbação homeostática” das estruturas sociais ligadas à justiça. Deixemos alguns apontamentos breves, que merecerão textos autónomos oportunamente.

Independentemente dos níveis de criminalidade existentes num determinado país, propalar aumentos de penas e redução de garantias é fórmula com sucesso garantido junto da opinião pública.

A razão é simples, o cidadão recebe este tipo de informação colocando-se no papel de vítima, ou seja, como beneficiário deste tipo de medidas, gerando um sentimento de reforço da sua segurança, pelo que, facilmente lhes adere.

Depois, com base nesse apoio popular criado artificialmente, bradam-se aos quatros ventos a necessidade de aumentar o limite máximo (e por vezes também o mínimo) de algumas pena de prisão, mesmo nas situações em que as penas efectivamente aplicadas não se aproximam do limite superior da moldura penal (ainda antes do cúmulo da pena), ignorando que as razões de política criminal que justificam a criminalização de comportamentos, ou a alteração das suas molduras penais, não são (não podem ser) o apoio popular nesse sentido com pré-activação para o efeito.

Mas esta forma de manipulação e aproveitamento das “massas”, que contribui para a criação e manutenção de uma cultura punitiva, não é um fenómeno exclusivo português. A política Law and Order de Donald Trump é um exemplo disso mesmo, chegando ao ponto de prometer penas mais pesadas e construção de novas prisões, com amplo apoio popular (e obrigando os Democratas a colocar o mesmo tema na agenda, com receio de perderem base eleitoral), num dos períodos com mais baixa taxa de criminalidade violenta dos EUA nas últimas décadas.

Muitos teóricos do estudo do populismo penal consideram que o apogeu dessa tendência (com forte contaminação no discurso de políticos de outros países onde se inclui Portugal) se dá exactamente com Trump, recuperando o slogan Law and Order fortemente utilizado por Barry Goldwater nos anos 60´s do século XX. Aliás, o próprio se autointitulou “the law and order candidate” (na campanha de 2016) e em 2020 “your presidente of law and order”.

No entanto, a realidade tem demonstrado que existe ampla divergência entre o discurso e a práctica (sobretudo no que diz respeito à protecção de grupos a que pertencem aqueles que se encontram mais próximos, de que é disso exemplo mais recentemente  a sua ordem executiva de 9 de Maio de 2025, intitulada Fighting Overcriminalization in Federal Regulations e a perseguição a Juízes que contrariem as suas ordens executivas).

David A. Graham, jornalista e editor sénior na revista The Atlantic, editou um livro em 2020, composto por uma coleção de artigos e ensaios que publicou durante a presidência de Trump, com um título bem sugestivo: “Trump Has Delivered Only Chaos”.

Importa referir que existem pessoas que geram e se alimentam do caos, e que não são apenas os motivos partidários que explicam o porquê de partilharem rumores políticos hostis nas redes sociais. Existe também um impulso psicológico profundo em certos indivíduos, designado como “necessidade de caos” (Need for Chaos), que os leva a querer destruir a ordem social e política estabelecida como forma de afirmação pessoal e ganho de estatuto, sendo, aparentemente, não uma perturbação ou um traço de personalidade, mas sim uma adaptação psicossocial em contextos de exclusão e frustração.

Pessoas com este comportamento, com especial proliferação nas redes sociais, contribuem grandemente para a desinformação e a instabilidade social, que gera insegurança e serve de terreno fértil para políticas criminais punitivas, como suposta forma de repor a ordem social.

É exactamente este “caldo de cultura” vigente e transversal à grande maioria de países do eixo ocidental, onde se inclui o nosso, que potencia o populismo penal. Acresce o facto de existir uma crise grave de sustentabilidade dos meios de comunicação social ditos tradicionais (mas não só, veja-se que os algoritmos da redes sociais também funcionam no mesmo sentido), que os leva a optar pelo caminho mais fácil (na maioria das vezes), para obtenção de audiências e clickbaites, onde, obviamente, a punição e o gosto pela mesma tem lugar de destaque, como já tivemos a oportunidade de escrever na crónica anterior.

Em Portugal existe ainda a circunstância de termos uma prática de violação de segredo de justiça, que alguns designam por selectiva (conforme demonstrado pelo projecto que resultou na obra “Murder In Our Midst”, melhor citada em referências), e que em muito contribui para derrubar a presunção de inocência e conduzir a uma maior taxa de punição através do juízo paralelo feito pela opinião pública, que pressiona e contamina os tribunais.

O relatório da OCDE sobre a competência dos adultos portugueses, acima citado, é especialmente grave neste campo, porque articulado com alguns estudos científicos existentes, permite perceber que existe uma maior apetência pelo discurso punitivo de extrema direita, por ser aquele que é menos complexo, mais directo e que aparentemente parece dar respostas aos anseios populares de maior segurança.

Importa referir que, mesmo que em minoria, as pessoas insatisfeitas e ressentidas com o estado do país, têm uma muito maior capacidade de mobilização e agitação, do que uma maioria silenciosa.

Para compreendermos com maior profundidade os mecanismos que sustentam uma cultura punitiva em sociedades pacíficas, como é o caso de Portugal, é indispensável convocar também os contributos da neurobiologia do comportamento social e moral. O impulso para punir, sobretudo de forma ostensiva ou exemplar, não decorre apenas de opções políticas ou de falhas institucionais: ele é também resultado de disposições neuropsicológicas profundamente enraizadas, que interagem com o contexto cultural e mediático.

Já sabemos (ver primeira crónica) que a amígdala (uma coleção de neurónios em forma de amêndoa), é uma estrutura cerebral com especial relevância na percepção do medo e da ameaça, um género de sistema de alarme neural, hiperactiva em contextos de incerteza social, ainda que a ameaça objectiva seja residual ou até inexistente. Esta hiperactividade correlaciona-se com uma maior adesão a políticas securitárias e punitivas.

Sabemos também que a actividade do núcleo accumbens (é o principal componente do estriado ventral), ligado ao sistema de recompensa, é activado em sujeitos pela simples observação da punição de um “transgressor”, existindo um prazer neurobiológico no castigo.

Tudo isto, ajuda a explicar por que razão, mesmo perante níveis baixos de criminalidade, parte significativa da população continua a apoiar políticas penais mais severas: o castigo funciona como válvula de escape simbólica para frustrações acumuladas e ansiedades difusas.

Tendo presente que o cérebro humano foi moldado, em termos evolutivos, para punir violadores de normas, como forma de proteger a coesão do grupo, importa não esquecer que já não vivemos em bandos ou em tribos, e que este impulso adaptativo, poderá ser desajustado em sociedades modernas complexas, como as actuais, em que o devido processo penal deve obedecer a garantias racionais e não se deixar levar por reflexos emocionais, o que, infelizmente, ainda acontece demasiadas vezes.

Acresce que o cérebro humano funciona por previsão, com base na informação do interior do nosso corpo, onde se incluem as experiências passadas, juntamente com os dados sensoriais que nos chegam do mundo, calculando uma série de probabilidades do que possa ter acontecido, preparando-nos para agir. Acontece que muitas vezes as previsões não estão correctas. Tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos e saboreamos no mundo e sentimos no nosso corpo é totalmente construído na nossa cabeça.

Um dos problemas desta forma de funcionamento do cérebro, tendo em vista a acção (rápida, se necessário for), com os parâmetros da sobrevivência e preservação do corpo em lugar de destaque, é que com pouca informação disponível, saltamos rapidamente para conclusões. Ou seja, fazemos julgamentos intuitivos, rápidos, emocionais e punitivos com demasiada facilidade, dos quais, por vezes temos não só dificuldade de sair – coerência excessiva – como potenciam os vieses de confirmação.

Neste ponto último, António Damásio elucida-nos deste modo: “O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à ativação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória” (ob. citada em referências pág. 294).

O que acabámos de descrever é exactamente o que acontece no processo penal português, com o julgador a ter acesso a todos os elementos da acusação, quando a defesa ainda não compareceu nos autos. Razão pela qual, Morris B. Hoffman (ob. citada em referências) nos alerta para o facto do processo penal ser contranatura (no caso dos EUA pelo facto de a acusação ser a primeira a apresentar a sua argumentação e prova).

Não falando, pelo menos neste texto, o facto de termos as duas Magistraturas de “mãos dadas” desde o CEJ, quem acusa e quem decide… e o mais estranho é “ninguém” (sobretudo o legislador), achar nada de anormal em tal circunstância, mesmo com o princípio acusatório e da igualdade de armas com respaldo constitucional.

Facilmente se compreende que num clima de polarização mediática, excesso de carga sensorial e baixa literacia, as decisões colectivas (em obediência aos fenómenos de massas) tendem a ser dominadas por instintos de punição e exclusão, em vez de deliberativas e justas.

Em Portugal, onde os indicadores de literacia crítica e jurídica são baixos, e onde o discurso mediático, como vimos, tende a favorecer o sensacionalismo penal, este desvio intuitivo é ainda mais acentuado.

Pensamos pois, que é através destas condições gerais, misturadas com o nosso contexto histórico-social, que será possível compreender o porquê de um país tão pacífico como o nosso, ter níveis de punição e de reclusão tão elevados.

Se quisermos recentrar o sistema de justiça criminal nos seus fundamentos constitucionais e humanistas, é essencial reconhecer e conter o substrato neuroemocional que alimenta o punitivismo, bem como precisamos de mais informação objectiva, mais estudos empíricos, nomeadamente sobre os erros judiciários cometidos anualmente no sistema de justiça criminal português, de modo a finalmente (nem que seja por modo comparativo com outras latitudes), conseguirmos compreender o fenómeno (ou o mito) da infalibilidade da justiça criminal portuguesa… ou se se trata apenas de corporativismo e de modo de preservação do primado das instituições.

Uma coisa é certa: não é razoável fazermos reformas no âmbito penal e processual penal com base em meras percepções, ou emoções, sobretudo, por iniciativa daqueles que, mesmo fazendo parte do sistema, não são capazes de fazer o seu diagnóstico, e apontar as verdadeiras falhas do mesmo. Mas para isso, reiteramos que são necessários muitos mais dados e estudos de campo, que infelizmente não existem.

Conclusão: entre a lucidez constitucional e a ilusão punitiva

O caso português demonstra, de forma exemplar e inquietante, como um país objectivamente pacífico pode alimentar um sistema penal hiperactivo, desproporcional e estruturalmente disfuncional. A dissonância entre os dados objetivos de criminalidade e a intensidade das respostas punitivas revela um desequilíbrio profundo entre legalidade formal e prática institucional, potenciado por factores históricos, mediáticos, emocionais e até neurobiológicos.

A crítica aqui desenvolvida não se limita a denunciar estatísticas ou denunciar abusos. Ela pretende lançar as bases de uma transformação: uma justiça que não reaja por instinto, medo ou pressão simbólica, mas que decida com racionalidade, proporcionalidade e plena consciência constitucional.

Num tempo de ruído, polarização e simplificação populista, urge devolver à justiça criminal o seu verdadeiro lugar: última ratio de um Estado de Direito Democrático. Para isso, precisamos de mais dados, mais pensamento crítico, mais escrutínio público, e sobretudo, mais coragem para reconhecer os nossos próprios erros, e corrigi-los.

Até lá, continuaremos a viver o paradoxo de sermos, em simultâneo, campeões da paz… e da prisão.

Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.

Referências:

António Damásio, “A Estranha Ordem das Coisas, A vida, os sentimentos e as culturas humanas” (2017, Temas e Debates)

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Michael Bang Petersen, Mathias Osmundsen, Kevin Arceneaux, «The “Need for Chaos” and Motivations to Share Hostile Political Rumors», American Political Science Review (2023) 117, 4, 1486-1505, doi:10.1017/S0003055422001447

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