Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

“Hoje vivemos realmente tempos muito estranhos.” Esta frase foi usada hoje por Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, numa conferência sobre segurança, mas sintetiza também, involuntariamente, o estado actual da promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

O evento em causa decorreu sob a chancela do ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como uma “iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV” — órgãos de comunicação social detidos pela Medialivre de Cristiano Ronaldo — em “parceria e apoio” da Câmara Municipal de Lisboa, mas que, afinal, não passa de um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, pago integralmente pela autarquia.

Quem assistiu hoje à conferência talvez pensasse que eram sinceras as palavras de Moedas nos agradecimentos à Medialivre “por ter escolhido este tema [a Segurança], um tema fundamental na sociedade”. Contudo, o que o edil lisboeta não disse — e também não foi dito por Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que discursou no arranque do evento — é que essa escolha temática veio devidamente contratualizada com dinheiros públicos.

A narrativa da “parceria” cai, aliás, por terra com o contrato celebrado anteontem pelo vereador Filipe Anacoreta Correia, eleito nas listas de Moedas, que prevê dois debates pagos: o de hoje, sobre segurança, e outro agendado para a próxima semana, dia 4 de Junho, sobre imigração. Um debate anterior, em Fevereiro, também inserido neste ciclo, não está abrangido por nenhum contrato conhecido.

Cada evento, segundo o contrato, rende assim à Medialivre 73.800 euros, incluindo a produção de conteúdos antes, durante e depois da conferência — desde peças de enquadramento até vídeos de resumo (wrap-ups) a serem difundidos pelos canais da empresa. Em troca, a Medialivre comprometeu-se a usar todos os meios humanos e materiais necessários, assumindo os encargos associados, inclusive os direitos sobre marcas e licenças. Entre os meios disponibilizados contam-se pelo menos três jornalistas com carteira profissional — prática que, para além de antiética, viola claramente o Estatuto do Jornalista.

Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, deu as ‘boas-vindas’ em conferência paga pela autarquia de Lisboa, e Daniela Polónia foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

A abertura do evento, com transmissão em directo nos canais digitais da Medialivre, foi conduzida por Daniela Polónia (CP 6296), jornalista e pivot da CMTV, que actuou como mestre de cerimónias institucional, anunciando os oradores e, em alguns casos, simultaneamente patrocinadores, no caso do “engenheiro Carlos Moedas”.

O próprio Carlos Rodrigues (CP 1575) deu as boas-vindas aos participantes, num momento de cumplicidade discursiva com Moedas. Os dois painéis seguintes — sobre policiamento comunitário e paradigmas da segurança urbana — foram moderados por João Ferreira (CP 802), também jornalista do grupo. De entre os participantes no debate, não esteve presente qualquer vereador da oposição — não houve, assim, lugar a polémica. Carlos Moedas teve, aliás, direito a um discurso, sem contraditório, de 22 minutos.

Mais do que um mero conflito de interesses, este é mais um caso flagrante de perda de equidistância jornalística e de instrumentalização de profissionais da comunicação para fins promocionais. O silêncio sobre a natureza comercial do evento — nenhuma menção explícita a patrocínio, prestação de serviços ou publicidade nos conteúdos divulgados — acentua o carácter enganador desta operação.

João Ferreira, jornalista há mais de 30 anos, e pivot da CMTV, ganha agora a vida também como prestador de serviços em contratos entre a Câmara Municipal de Lisboa e a sua empresa empregadora, a Medialivre.

A situação não é inédita, nem isolada — e está a surgir uma ‘normalização’ da mercantilização do jornalismo, em que já se duvida sobre se apenas algumas ou todas as notícias têm uma compensação financeira directa ou indirecta por parte dos interessados, o que mina a confiança dos cidadãos perante a imprensa. Ainda este mês, a ERC concluiu que dois eventos organizados pelo jornal Público — pagos pela Câmara de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas — configuravam publicidade, aplicando uma multa simbólica de 3.500 euros, bastante inferior ao valor dos contratos anómalos. O denominador comum com o evento da Medialivre: no caso do Público, além de jornalistas, o actual director do jornal da Sonae, David Pontes, teve participação activa na prestação de serviços.

Tal como agora com Carlos Rodrigues, a actividade de publicidade dos jornalistas do Público não foi assumida como prestação de serviços, nem respeitou o Estatuto do Jornalista. Mas os processos prescreveram para efeitos disciplinares, uma vez que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) não agiu atempadamente. O regulamento disciplinar dos jornalistas determina a prescrição ao fim de dois anos.

A passividade da CCPJ, aliada à lentidão crónica da ERC, tem criado um cenário de impunidade que favorece a mercantilização da profissão. O resultado é a banalização de práticas proibidas por lei, mas toleradas na prática pelos reguladores e pela classe jornalística.

Helena de Sousa, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social: perante a promiscuidade, o regulador das media pega em casos pontuais, tarde e a más horas, e agora começa a aplicar coimas simbólicas que funcionam como ‘taxas de promiscuidade’, porque o ‘crime’ compensa financeiramente.

Na conferência de Lisboa de hoje, até se assistiu, na sessão de encerramento, ao vereador social-democrata Rui Cordeiro agradecer ao Correio da Manhã o “convite” para participar num evento que, na verdade, foi pago pela própria Câmara. E os jornalistas servem de prestadores de serviços contratados por entidades externas, mascarando uma acção de comunicação política como um gesto de jornalismo independente. E tudo isto sob a cobertura de um contrato que, embora público, tenta disfarçar-se de parceria editorial.

Num país onde a ética jornalística é muitas vezes tratada como uma nota de rodapé, a promiscuidade está a ganhar estatuto de normalidade. De facto, como dizia Moedas, “vivemos tempos muito estranhos”. De facto, vivemos.

Este artigo teve um direito de resposta de Carlos Rodrigues, director-geral do Correio da Manhã e da CMTV, que pode ser lido aqui.