CEJ: Ministra da Justiça “não se revê no tipo de perguntas e linguagem” do teste psicológico exigido aos futuros magistrados


O Ministério da Justiça diz que “não se revê no tipo de perguntas e linguagem” do inquérito usado pela empresa Think About, liderada pelo psicólogo e comentador da SIC Mauro Paulino, para aferir as capacidades psicológicas dos candidatos ao curso de juízes e magistrados do Ministério Público. E acrescenta que, como o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) “goza de autonomia administrativa”, não houve por assim, por parte do Governo, “qualquer intervenção no processo de selecção ou avaliação”.

A tomada de posição do ministério liderado por Rita Alarcão Júdice – chegada durante a noite desta terça-feira, e que também esclarece que, na verdade, houve cumprimento das 181 vagas prometidas em Fevereiro [ver Nota de Direcção no final] – constitui a primeira reacção governamental ao polémico concurso que, por causa do teste psicológico, atrasou a abertura das aulas em quase dois meses.

Rita Alarcão Júdice distancia-se das opções do CEJ,

As relações entre o CEJ e a tutela não têm sido fáceis, sobretudo após a não recondução de Fernando Vaz Ventura – associado ao Partido Socialista, desde que em 2012 foi proposto por esta força política para o Tribunal Constitucional, onde se manteve até 2021 –, que, como director, liderou todo o processo de candidaturas aos próximos cursos de magistrados, incluindo a escolha da empresa de Psicologia, com ‘poderes’ de excluir candidatos.

E a empresa não fez outra coisa que não dar ‘chumbo grosso’. Com efeito, apesar de o CEJ manter um inexplicável silêncio, o PÁGINA UM sabe agora que, de entre um total de 250 candidatos para o curso de magistrados judiciais e administrativos que tinham superado as provas orais (após aprovação nos exames escritos), mais de metade acabou reprovada pelas mãos dos psicólogos da Think About, que usa a pomposa denominação Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense, apesar de ter apenas dois empregados fixos, um dos quais Mauro Paulino, também como gerente.

A ‘chacina psicológica’ foi depois revertida por sete equipas de três psicólogos, com a intervenção da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP): mais de nove em cada dez candidatos reprovados pela empresa de Mauro Paulino foram ‘repescados’ pela segunda reavaliação. Os resultados foram conhecidos esta segunda-feira.

Fernando Vaz Ventura esteve entre 2012 e 2021 no Tribunal Constitucional e transitou no ano seguinte para a liderança do Centro de Estudos Judiciários, em ambos os cargos por indicação do Partido Socialista. Não foi reconduzido pela ministra social-democrata e encontra-se agora colocado no Supremo Tribunal de Justiça.

A causa principal para a inédita ‘avalanche de chumbos’ – e consequente ‘chuva de reclamações’ para uma segunda opinião – foi a aplicação de um inquérito denominado “Personality Assessment Inventory (PAI)”, constituído por 344 afirmações, às quais os candidatos tinham de responder se eram, no seu caso particular, falsas ou verdadeiras (em três graus).

Assim, frases como “Já pensei em algumas formas de me suicidar”, “Sou incapaz de controlar o meu consumo de drogas”, “Aproveitar-me-ia dos outros se fosse fácil”, “Faço muitas coisas perigosas só pela emoção que me causam” ou “Tenho planos de me converter, algum dia, numa pessoa famosa” foram perguntas que dificilmente se imaginariam colocadas a futuros juízes e procuradores — presumivelmente adultos instruídos, com formação jurídica, sem historial criminal nem perturbações comportamentais.

Mas a bizarria não se ficava por aí. O mesmo inventário questionava ainda se o candidato reconhecia que “Sou incapaz de controlar o meu consumo de drogas”, “O consumo de drogas provocou-me alguns problemas de saúde”, “Algumas pessoas já me disseram que tenho problemas com as drogas” ou “Já tive problemas económicos devido ao consumo de drogas” — formulações que fariam sentido num centro de desintoxicação, mas não num concurso público de selecção de magistrados.

Excerto do inquérito PAI usado nas provas psicológicas do CEJ.

Havia igualmente uma vertente quase caricatural na tentativa de detectar impulsividade ou descontrolo emocional, com itens como “Às vezes, expludo e perco o controlo sobre mim”, “Quando me enfureço, é muito difícil acalmar-me”, “Faço muitas coisas perigosas só pela emoção que me causam” ou “Quando estou a conduzir e me indigno com os outros condutores, faço para que deem conta disso”. E não faltavam formulações de tom paranóide ou delirante, como “Algumas pessoas fazem coisas para me deixar mal”, “Às vezes, misturo os pensamentos uns com os outros” ou “Certas partes do meu corpo ficaram sem sensibilidade, sem que eu saiba o porquê”.

Um jurista contactado pelo PÁGINA UM, que pediu anonimato por temer represálias institucionais, expressa “profunda perplexidade” perante o teor das perguntas utilizadas no inventário psicológico aplicado pelo CEJ, classificando-o como “um questionário clínico travestido de avaliação administrativa”. Segundo o mesmo especialista, a aplicação deste tipo de inquérito “nem sequer é lícita”, por violar simultaneamente o princípio da legalidade — uma vez que nenhuma norma habilita o CEJ a recolher dados íntimos sobre saúde mental, consumo de drogas ou tendências suicidárias — e o princípio da proporcionalidade, já que tais perguntas “não são necessárias, adequadas ou pertinentes para aferir a aptidão de futuros magistrados”.

Além disso, acrescenta este jurista, a recolha de informação sensível desta natureza colide frontalmente com a Constituição e com o regime de protecção de dados pessoais, tornando o procedimento “materialmente inválido e juridicamente insustentável”. Os candidatos foram ‘coagidos’ a assinar um consentimento informado, isto porque se não concordassem em realizar o teste por ser intrusivo seriam automaticamente desqualificados. Não se conhece qualquer outro país que tenha aplicado este conhecido teste para seleccionar candidatos à magistratura.

Mauro Paulino, psicólogo e comentador da SIC: nove em cada 10 ‘chumbos’ que decretou foram depois revertidos numa segunda avaliação externa. Também é vogal do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Psicólogos.

Mais o mais incrível neste processo é que a empresa de Mauro Paulino – que nunca respondeu a nenhuma das 23 perguntas colocadas pelo PÁGINA UM – nunca pareceu achar estranho o resultado da sua avaliação. Ou sejam uma avaliação em que reprovava mais de metade de uma amostra de portugueses altamente seleccionada, composta por candidatos que já haviam superado exigentes provas escritas de Direito e de cultura geral, além de painéis de provas orais de diversas áreas do Direito perante júris qualificados.

Apesar disso, a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), liderada por Sofia Ramalho – chamada ao processo apenas na fase de reapreciação dos chumbos – divulgou nesta terça-feira uma nota pública que, não mencionando Mauro Paulino pelo nome, surge como uma defesa tácita da actuação da empresa e dos profissionais que conduziram a avaliação inicial.

Numa tentativa de marcar terreno e controlar danos reputacionais, a OPP sublinha que a “segunda avaliação psicológica (…) não resulta de qualquer irregularidade ou erro da primeira fase”, feita pela empresa de Mauro Paulino, acrescentando que se trata “de uma etapa de desenvolvimento habitual do método de selecção, que neste caso foi realizada com recurso a uma entrevista semi-estruturada”. Contudo, a instituição não explica qual a razão então para não recomendar ao CEJ a entrevista semi-estruturada, se a outra alternativa dá tantos erros – ou seja, exclui erradamente tantos candidatos.

Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos.

Aliás, a grande preocupação da Ordem dos Psicólogos – que omite, nesta sua informação, que Mauro Paulino é vogal do Conselho Jurisdicional, o seu órgão de disciplina e deontologia – centra-se na divulgação dos materiais de avaliação, como os inquéritos do PAI, que diz ser “uma violação deontológica e ética”, defendendo que “distorce o seu significado e pode comprometer a integridade futura dos instrumentos e dos próprios processos de avaliação”.

Por sua vez, a editora Hogrefe – que gere os direitos de autor da aplicação do PAI, na sua versão portuguesa feita por Mauro Paulino – veio ameaçar o PÁGINA UM com um processo judicial.

Por e-mail [ver aqui a troca de mensagens], a directora-geral, Magda Machado, diz que “face à gravidade da situação [a revelação do inquérito pelo PÁGINA UM por razões de interesse público], já estabeleci contacto com o departamento jurídico da Hogrefe Alemanha, com quem irei analisar directamente os danos causados à integridade e comercialização do instrumento e a necessidade de comunicar formalmente os factos à PAR Inc.”, a empresa norte-americana detentora do PAI original.

Sede do Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa. / Foto: D.R.

A responsável pela editora em Portugal adiantou mesmo ao PÁGINA UM que existia jurisprudência, citando partes de um suposto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) relativo ao Processo n.º 01463/18.6BELSB, que, na verdade, nunca existiu. Confrontada com esse facto, Magda Machado veio depois corrigir a sua primeira versão, indicando um acórdão de 2020, que até se encontra publicado no Diário da República.

Contudo, não só esse acórdão não tem a citação que indicou como a decisão dos juízes conselheiros é oposta aos argumentos da editora.

Com efeito, aquilo que é consagrado nesse acórdão é que “os direitos de autor não existem para obstar à divulgação da obra criada – o que, na maioria dos casos, até seria ‘contra naturam’; ao invés, tais direitos visam impedir que outrem se aproveite da obra, porventura já conhecida e divulgada, apresentando-a falsamente como sua”.

E mais: os juízes conselheiros defenderam que os testes feitos pelos candidatos [neste caso para admissão à Polícia Judiciária] não poderiam ser considerados “documentos classificados ou sujeitos a segredo (industrial, comercial ou relativo à propriedade científica)”, porque isso “raiaria o absurdo, pois esses testes foram mostrados a todos os concorrentes que a eles se submeteram”.

Mauro Paulino (segundo à esquerda, que não respondeu às perguntas) e Magda Machado (ao centro); a directora-geral da Editora Hogrefe ameaçou o PÁGINA UM por revelar as perguntas de um inquérito aplicado de forma bizarra para a selecção de futuros juízes e magistrados do Ministério Público. Foto: DR.

E acrescentam que “a questão é, evidentemente, outra. A empresa proprietária do exame psicológico quer mantê-lo num relativo segredo para oportunamente o reutilizar. Mas o uso sucessivo daquela bateria de testes tende a diminuir o sigilo, inicialmente absoluto, de que eles gozavam – já que os examinandos podem memorizá-los, ao menos em parte, e difundir o seu teor”.

Os juízes afirmam ainda que “a repetição do mesmo exame em vários concursos propicia esse desgaste, tornando-o menos fiável”, mas que uma “recusa da certidão relativa aos testes não se funda num qualquer segredo intrínseco deles e oponível à peticionante – que até os viu e realizou”, mas sim para “evitar que a entrega de uma cópia dos testes propicie a sua divulgação pública, potenciando o relativo descrédito já inerente à utilização repetida do mesmo exame.” E concluem que a única parte que deve ser passível de não divulgação é a grelha de interpretação. Porém, obviamente, não apenas essa parte não foi revelada pelo PÁGINA UM como o interesse público em revelar a aplicação inadequada de um teste mereceria sempre a salvaguarda da liberdade de imprensa.

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NOTA DA DIRECÇÃO: O PÁGINA UM assume integralmente um erro publicado na notícia Polémica continua: Centro de Estudos Judiciários ‘marimba-se’ para despacho da ministra da Justiça“, publicada às 20h44 do dia 12, relativa ao número final de vagas preenchidas no concurso para o curso de formação de magistrados do Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Na referida notícia, afirmámos que o CEJ não teria preenchido as 181 vagas anunciadas pela ministra da Justiça em Fevereiro deste ano, sugerindo que apenas 149 candidatos haviam sido admitidos, apesar de existirem mais candidatos aprovados.

Importa esclarecer que o PÁGINA UM tomou todas as diligências razoáveis e possíveis, em tempo útil, para obter confirmação oficial antes da publicação da notícia, contactando tanto o CEJ (que desde a semana passada tem ignorado todos os nossos pedidos de esclarecimento) como o Ministério da Justiça, solicitando resposta urgente até às 18h00, precisamente para garantir rigor na informação a transmitir aos leitores.

Sem qualquer resposta até essa hora, e perante o silêncio absoluto das duas entidades, publicámos a notícia às 20h44, considerando que se tratava de assunto de elevado interesse público num processo que tem sido marcado por opacidade, irregularidades e atrasos. Todavia, às 21h41, recebemos finalmente a resposta do Ministério da Justiça, esclarecendo que as 181 vagas foram efectivamente preenchidas, uma vez que o concurso da magistratura dos tribunais administrativos e fiscais decorrera autonomamente do concurso para magistratura judicial e do Ministério Público, razão pela qual a análise directa da lista dos 149 admitidos não reflectia todas as admissões.

Em rigor, mesmo perante a ausência de informação oficial fornecida em tempo útil, o PÁGINA UM tinha a obrigação de efectuar uma verificação autónoma mais profunda, de modo a evitar uma leitura incorrecta dos dados e a consequente indução dos leitores em erro. Não o tendo feito com a diligência exigível, assumimos o erro sem reservas.

Por este motivo, pedimos sinceras desculpas aos nossos leitores.

O compromisso do PÁGINA UM é, como sempre, com o rigor, a transparência e a verdade factual. Continuaremos a desenvolver o nosso trabalho com independência e sentido crítico, reforçando os mecanismos internos de verificação para evitar que situações semelhantes se repitam no futuro, ainda mais cometidas pelo próprio director.

Pedro Almeida Vieira