Se, há 20 anos, alguém dissesse que iríamos ver um político de direita a exigir o fim das burcas e que iria enfrentar a oposição de mulheres activistas de esquerda e extrema-esquerda, o resultado seria uma enorme gargalhada. Isso não faria sentido nenhum. Só se o mundo estivesse de cabeça para baixo.
Hoje, engolimos a seco ao ver manifestações pró-burca nas ruas de Lisboa enquanto mulheres são alvo de terrível repressão e violência em países onde a burca é a indumentária imposta à força por extremistas.

Entendo o que defendem as activistas: as mulheres devem ser livres de vestir o que quiserem, mas defender a burca é todo um outro tema. Isto só aconteceu porque as activistas, como muitos em Portugal, caíram num conhecido engodo. Caíram que nem “patinhas” na trama. É evidente que o tema da burca é mais um dos muitos que atraem atenção. É perfeito para acções de marketing grátis.
Só foi possível ver activistas de esquerda a desfilar nas ruas de Lisboa a defender que mulheres possam usar burca porque a Síndrome de Perturbação de Ventura (SPV) se espalhou e contamina hoje, mais do que nunca, o espaço de debate político – e de debate público.
O termo foi aplicado a outros casos envolvendo políticos nos Estados Unidos, desde Bush “júnior” a Obama e a Trump. Ventura é o caso português da “doença” que afecta comentadores, jornalistas e activistas, sobretudo de extrema-esquerda, mas não só.

O problema da SPV é que contamina todo e qualquer debate em torno de temas que exigem reflexão séria, racional e ponderada. Porque se Ventura é contra a burca, então os que sofrem de SPV fazem manifestações a exigir a burca! O mesmo acontece em muitos outros temas, sejam eles sobre questões sociais ou económicas.
Ora, isto beneficia amplamente Ventura e o Chega, que acabam por ver os seus temas de bandeira a dominar o espaço público. Aqueles que sofrem de SPV são como caixa de ressonância da máquina de marketing do Chega. São os seus lacaios. Sem os comentadores, jornalistas, políticos e activistas que sofrem de SPV, o Chega não seria hoje o segundo maior partido do país.
É marketing fácil e barato. É só o Chega colocar um cartaz a mencionar ciganos e esperar. Em pouco tempo, estão centenas de doentes com SPV a saltar aos gritos: “olhem ali aquele cartaz horrível do Chega”. Simples. Marketing puro.

Dirão: mas é marketing negativo. Não há isso de marketing negativo. Há apenas marketing. Os portugueses ouvem falar do Chega todos os dias. As caras dos líderes do Chega estão espalhadas por todos os noticiários nas TVs. Ficam na memória. Tornam-se conhecidos do público. Familiares.
Obviamente que quem não sofre de SPV consegue entender esta táctica que é usada — de forma consciente ou inconsciente — pelo Chega para se promover e ganhar espaço no debate público. Num mundo em que a disputa pela atenção é chave, quanto mais pessoas o Chega tiver a falar sobre o partido e seu líder melhor – mesmo que seja para criticar e denegrir.
O melhor são mesmo os ataques nas entrevistas a Ventura nas TVs e por comentadores. Ventura devia agradecer aos jornalistas e aos comentadores que fazem o favor de o atacar de tal forma que os momentos passam em loop, repetidamente, durante uma semana nos media e nas redes sociais. São conteúdos instantâneos e de borla. Não dão trabalho nenhum. É só cortar e editar, embalar e já está: um produto de marketing fresquinho para a montra do Chega.

Se o Chega quisesse debater a sério sobre os seus temas de bandeira, faria um cartaz a dizer ” Todos têm de cumprir a lei” ou “Isto é Portugal”. Mas não é isso que o Chega quer. O partido quer polémica e atenção. E é aí que entram os afligidos pela SPV.
Penso que ninguém defende que possa haver em Portugal quem ache que é especial e que não precisa cumprir a lei — desde que se tratem de leis justas e regras que respeitem a Constituição. Desobedecer é um dever apenas quando as circunstâncias o exigem, como quando há leis abusivas e lesivas de direitos fundamentais. De resto, todos têm de cumprir a lei.
Mas não é isso que o Chega quer debater. Quer estar nas luzes da ribalta. E consegue-o.
O desespero dos que sofrem de SPV leva a que haja quem defenda a extinção do Chega. Mais uma vez, isto faz as delícias de Ventura. Mais marketing de borla. Extinguir o segundo maior partido de um país europeu seria um caso fatal para a saúde da democracia em Portugal.

Como mulher e mãe de raparigas, não quero burcas em Portugal. Não só pelo que representam para as mulheres, retirando-lhes dignidade, mas por questões de segurança. Mas sei que o propósito deste tema ter sido colocado a votação no Parlamento foi outro. Ainda assim, saúdo a proibição da burca. E isso não faz de mim nem de ninguém um militante de direita ou do Chega. Porque me lembro do tempo em que seria normal mulheres de esquerda saírem para a rua para defender o fim da burca.
Hoje, se Ventura defende um tema, os que sofrem de SPV defendem o seu contrário.
Sendo adultos e inteligentes, racionais e com bom senso, seria bom percebermos todos as dinâmicas do marketing político quando debatemos leis e medidas. Seja no Parlamento seja no espaço mediático ou nas ruas.
Por outro lado, a SPV centra o debate em torno das propostas e da visão do Chega. O ideal será debater visões diversas não por ser “anti-Ventura”. A reacção ao Chega não deve ser a única motivação no debate de certos temas de relevo porque é limitador para uma reflexão séria.

Uso lenços e echarpes na cabeça quando está vento. E quando quero. Não porque algum homem me obriga sob pena de levar um enxerto de porrada. E é isso que a burca representa. Não é um símbolo religioso. É um símbolo de extremistas e de subjugação de mulheres, não importa quantas supostas defensoras de burca tirem da cartola para ir à TV dizer o contrário. Há limites para o que deve ser aceitável em Portugal, um país europeu que, nos tempos modernos, se tornou um campeão da inclusão e integração cultural e religiosa, mas um país com estatísticas terríveis de violência contra mulheres.
Separar a análise dos temas do dilema da SPV é crucial, se quisermos que o debate público e político em Portugal caminhe para o progresso e resulte na adopção de medidas que beneficiem a população e colmatem injustiças e problemas sociais e económicos. A cura para a SPV é focar no que cada um defende. Seja um partido, um comentador, um activista. De resto, há pontes que se podem fazer com o segundo maior partido do país? Tem de haver. Ou então, coloquem já uma burca na Revolução de Abril.
