De ‘This is not America’ até ‘Isto não é o Bangladesh’: deixem o Ventura ser grunho


Nos anos 80, enquanto a América de Reagan voltava a vestir-se de luzes patrióticas e a projectar sobre o mundo o esplendor da sua força moral, o camaleónico David Bowie compunha, em parceria com Pat Metheny, uma canção que soava como murmúrio de desencanto.

This Is Not America — parte da banda sonora do filme The Falcon and the Snowman (1985) — não era um protesto ruidoso nem um manifesto político. Era antes um espelho embaciado onde se reflectia a dúvida: a América que o mundo venerava ainda correspondia ao seu ideal fundador? Bowie, britânico e distante, oferecia uma elegia discreta à inocência perdida, um cântico melancólico sobre um país que se olhava ao espelho e já não se reconhecia.

Foto: DR

O filme que inspirou a canção, baseado em factos verídicos, narrava a história de dois jovens norte-americanos — um deles, o “falcão”, outro, o “homem de neve” — que vendiam segredos à União Soviética.

Era, portanto, um retrato do colapso moral dentro do próprio sistema, uma traição nascida não do ódio, mas da desilusão. Bowie captou esse clima de queda interior. “A little piece of you / the little peace in me / will die”, cantava ele, jogando com a homofonia entre piece e peace: uma parte de nós — e a nossa paz — morre quando o ideal se corrompe.

A frase que dá título à canção, This is not America, repetida como um mantra, não é uma negação geográfica, mas simbólica. É o lamento de quem observa um país perder a pureza das suas promessas e o brilho da sua crença em si mesmo. “Blossom fails to bloom this season”, escreveu Bowie — a flor não floresce nesta estação — como se dissesse que o sonho americano secou antes de dar fruto. Não há raiva nem panfleto: há desalento, uma espécie de tristeza civilizacional diante do abismo que separa o que se proclama do que se pratica.

Não se esperaria que o também camaleónico — mas num sentido puramente táctico — André Ventura tivesse a subtileza de Bowie para falar da decadência, neste caso, não da América, mas de Portugal.

O líder do Chega parece confundir provocação com pensamento, barulho com ideia, cartaz com ideologia. Os seus outdoors — sobretudo “Isto não é o Bangladesh” e também “Os ciganos têm de cumprir a lei” — são o reverso moral de This Is Not America: onde Bowie dizia “isto não é” para lamentar uma perda de valores, Ventura usa o mesmo gesto linguístico para excluir, dividir e afirmar uma identidade pela negação, usando ainda por cima um país terceiro.

O líder do Chega usa o patriotismo tosco de quem acredita que a pátria se constrói à custa de um inimigo simbólico, de um bode expiatório. E, todavia, numa democracia, a resposta a uma criatura assim não deve ser a tentação punitiva, mas o exercício sereno da liberdade — porque, se os tribunais se apressam em casos destes (quando tudo o resto é lento), apenas trocam a justiça pelo palco, e Ventura não podia pedir melhor iluminação.

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A deliberação recente da Comissão Nacional de Eleições, que remeteu para o Ministério Público as queixas sobre os cartazes de Ventura, evidencia precisamente esse risco. A CNE admitiu que as mensagens fazem referência a grupos étnicos, mas declarou-se sem competência fora do período eleitoral. A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) seguiu o mesmo caminho, enviando o caso para o Ministério Público. Ventura, como era previsível, reagiu recusando retirar os cartazes, invocando a liberdade de expressão e negando qualquer teor racista. Ou seja: conseguiu o que queria. A controvérsia não apaga a sua mensagem; amplifica-a.

A estratégia do Chega é tão velha quanto eficaz: chocar, provocar indignação e, logo a seguir, vestir a pele de vítima da censura. Quanto mais se fala dele, mais ele cresce — não pelas ideias (porque não as tem), mas pela reacção que provoca. A comunicação social cai no truque como um gato atrás do reflexo de um laser: noticia o cartaz, depois a queixa, depois a resposta de Ventura, depois as reações à resposta, depois os comentários sobre as reacções. Um ciclo infinito de propaganda gratuita. Ventura não precisa de comprar espaço publicitário: basta-lhe ser escandaloso. E o escândalo é, hoje, a moeda mais estável da política.

Por isso, a resposta certa a Ventura não é judicial — é política e, sobretudo, cultural e eleitoral. Não se combate o ruído com mais ruído, mas com indiferença activa: a que o deixa falar até que o eco se canse. A democracia não se defende punindo o disparate, mas mostrando que o disparate é livre, e que a liberdade é mais forte do que o insulto.

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Por vezes, há quem critique o PÁGINA UM por não abordar tantas vezes (como talvez se esperaria) as diatribes do Chega e de André Ventura. Mas isso deve-se, sobretudo, ao facto de eles já ocuparem um tempo de antena desmesurado noutros órgãos de comunicação — ávidos por mostrar tudo o que fazem, por transmitir as reacções, e as reacções das reacções, num ciclo autoalimentado de promoção involuntária.

Por mim, os cartazes de André Ventura sobre o Bangladesh e os ciganos deviam manter-se — mesmo que ele agora o quisesse retirar. Se ele quer ser grunho e mostrar que é grunho, então ninguém tem o direito, nem ele, de o fazer esquecer nas próximas eleições presidenciais. Porque, ao contrário de Bowie, Ventura não canta a decadência — é a decadência que se auto-proclama. E, às vezes, o melhor serviço à memória colectiva é deixar o retrato exposto, para que ninguém diga um dia, em tom de espanto: isto não era Portugal. Era — mas não vingou.