Razões por que acho que os Anjos tinham (alguma) razão


Um prévio disclaimer: não me revejo como fã do humor da Joana Marques. Comentar a idiotice ou a excentricidade alheia é, para mim, uma enorme banalidade e um vácuo intelectual. Não consigo propriamente diferenciar aquela que é supostamente uma das mais célebres figuras do humor português dos youtubers amadores de há dez ou quinze anos atrás – que se limitavam a compilar vídeos de pessoas a caírem desamparadas ou em situações embaraçosas, adicionando postumamente o seu comentário.

Quando, no entanto, surgiu a notícia que uma humorista havia sido levada a Tribunal por um vídeo caricatural, não duvidei da total ausência de fundamento da ação. Muito me consternaria – como cidadão e advogado – que alguém (humorista renomada ou transeunte indiferenciado) pudesse ser condenado por satirizar uma atuação, nitidamente infeliz, de uma dupla musical.

Joana Marques

Por combinação de ócio e de alguma curiosidade académica, tendo obtido acesso integral à Sentença, pus-me a lê-la.

Eis que me deparei com algo que, subitamente, inverteu todas as minhas ideias preconcebidas acerca deste insuspeito caso. Dera-se por provado em Tribunal que não houve qualquer desafinação ou desarmonia da dupla e que, afinal, a dolorosa interpretação do Hino nacional resultara de um cúmulo de erros técnicos no som, sem qualquer culpa dos cantores! Provou-se ainda a crise de acne…

A dupla que teria dilacerado o Hino nacional numa cacofonia de sons dantescos teria, na realidade, sido vítima da equipa técnica do evento. A Sentença lista os inúmeros erros detetados e admitidos pela organização do evento, que dispensarei de elencar. O nó górdio da questão reside, pois, no facto de o famigerado vídeo satírico assentar numa realidade descontextualizada, atribuindo a “infâmia” da atuação aos cantores quando, segundo a factualidade provada, ela teria origem em problemas técnicos de som.

Anjos

Dir-se-á que o “estatuto de celebridade” acarreta consigo um nível acrescido de exposição aos holofotes, à satirização e à crítica; o que seria um atentado inquestionável à honra e privacidade de um cidadão anónimo pode ser relativizado se o alvo for alguém conhecido da praça pública. Esta tese é, para mim, um contrassenso.

Expor um caso de adultério de um vizinho será inconsequente fora do seu matrimónio, mas poderá descarrilar uma carreira política. Aqueles que mais têm a perder com ofensas à sua reputação e bom nome são, simultaneamente, os que menos meios terão para se defender da curiosidade predatória? Francamente, isto parece-me um enorme nonsense.

Não me irei alongar nesta problemática. A própria Sentença é bastante lacónica na sua fundamentação. A singularidade do caso reclamaria argumentos de maior introspeção, mas encontramos apenas observações superficiais.

green ceramic statue of a man

Algo, contudo, me parece certo. A cada um de nós, independentemente da sua condição social ou nível de exposição pública, assiste o direito à verdade: a conhecê-la e a exigir a sua reposição quando for truncada ou deturpada. Os limites do humor e da crítica são indefiníveis, mas afigura-se-me uma exigência civilizacional que não falseiem a realidade.

Acredito piamente que Joana Marques não estava de má-fé quando publicou a sua sátira (o Tribunal teve o mesmo entendimento). Justamente, quem vê a atuação é incapaz de concluir que o desaire ocorrido se deveu a erros técnicos. O problema não está na sátira em si, enquanto mero produto humorístico, mas no facto de ela ter por base uma realidade aparentemente falsa (a desafinação e falta de métrica dos cantores), dando-a por adquirida e construindo toda a ridicularização nesse pressuposto.

Existem sátiras que, tão desgarradas da realidade, ninguém acreditaria na sua autenticidade. Não é aqui o caso. Como referi, a própria Sentença muito me surpreendeu ao dar por provados os erros técnicos de backstage – hipótese essa que a comunicação social nunca chegou sequer a noticiar ou a aludir, muito embora fosse o cerne do libelo acusatório contra a humorista.

woman holding sword statue during daytime

Juridicamente, considero sem fundamento os pedidos indemnizatórios formulados. Quando muito, os mesmos teriam de ser dirigidos contra a organização do evento por não assegurarem as condições técnicas adequadas à atuação e, assim, por terem criado junto dos (tele)espetadores a ideia de um assassinato lírico.

Quanto ao primeiro pedido deduzido – de remoção da sátira nas redes sociais e retratamento público da humorista -, vejo-o como simples reposição da verdade que é devida a qualquer pessoa, como exigência básica da sua dignidade. No limite, seria razoável a condenação da humorista a adicionar um contexto ao vídeo, repondo a verdade junto de um público que, ecoando as piores características do português, se regozija com o achincalhamento, o “bota-abaixo” e o ódio gratuito.

Inicialmente, temia – como muitos – que uma condenação da Joana Marques significaria o retraimento da liberdade de expressão e de criação artística perante a cultura do respeitinho, que ainda hoje fustiga várias instituições portuguesas.

Confrontado com o rol de factos provados, fico com um receio ainda maior: que se reconheça a alguém (resta saber se a todos nós ou apenas a uma figura acarinhada da indústria portuguesa do entretenimento) o direito à projeção da mentira e da descontextualização, camuflando-o como uma sátira.

Um receio que suponho que qualquer um achará justificado – não fosse o caso de estarmos numa época onde facilmente se recorre à inteligência artificial para truncar palavras ou criar vídeos ou imagens com impressionante realismo, amiúde com propósito malicioso e enganador.

Daniel Bessa de Melo é advogado


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