Estado laico mas pouco: Autarquias gastam mais de 11 milhões de euros em igrejas católicas desde 2020


Portugal orgulha-se, na sua Constituição, de ser um Estado laico e de garantir a separação entre as diferentes religiões e o Estado, mas quando se mergulha nos contratos públicos das autarquias, descobre-se que os municípios e freguesias continuam a ser dos maiores mecenas da Igreja Católica, sem qualquer polémica visível, mesmo quando os montantes são elevados.

De acordo com um levantamento exaustivo realizado pelo PÁGINA UM sobre contratos inseridos no Portal Base desde 2020 foram identificados, em obras superiores a 100 mil euros, um total de 63 contratos públicos, celebrados por 45 autarquias (Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia) e entidades intermunicipais, para reabilitação, conservação, restauro ou valorização de igrejas e conventos, atingindo um valor global superior a 11 milhões de euros.

Obras na igreja de São Francisco em Tomar foram pagas pela autarquia local. Foto: CMT.

Este número é ainda mais expressivo quando se considera que não se incluíram inúmeras intervenções exclusivamente em espaços exteriores (como adros) ou arranjos urbanísticos em redor de lugares de culto, nem as obras promovidas por irmandades, fábricas paroquiais ou misericórdias, nem as empreitadas conduzidas pelas Direcções Regionais de Cultura ou outras entidades do Estado central, que tenham também uma componente patrimonial e turísticas.

Também não se entrou em conta as intervenções em igrejas desafectadas ao culto e convertidas em salas de espectáculo ou museus, como sucedeu recentemente em Coimbra com a Igreja de São Francisco. Ou seja, o levantamento diz apenas respeito a obras de património religioso activo, onde se celebram missas e rituais, pagas directamente com verbas dos contribuintes.

O maior contrato identificado foi celebrado em Lisboa, a 24 de Janeiro de 2023, quando a empresa municipal Lisboa Ocidental adjudicou à Tecnorém uma empreitada no valor de 3,5 milhões de euros para construir de raiz a nova Igreja do Bairro da Boavista, embora neste caso esteja também incluído um centro social e paroquial, bem como a praça central do bairro. É um caso singular porque não se trata apenas de reabilitar o que existe, mas de edificar do nada uma nova igreja e um centro paroquial.

Maquete da igreja de São José no Bairro da Boavista, construída por uma empresa municipal de Lisboa.

Seguem-se, no ranking, a requalificação integral da Igreja de São João Baptista, em Tomar, contratada à Signinum em 15 de Janeiro de 2021 por 1,5 milhões de euros, e duas empreitadas sucessivas em Melgaço — em 2022 e em Agosto de 2025 — para a reabilitação do Convento de São Salvador de Paderna, que somam mais de 1,85 milhões de euros. Amares figura logo a seguir, com 946.707 euros para restaurar a Igreja de Bouro e revitalizar a casa paroquial para instalação de um núcleo interpretativo do mosteiro.

Mais abaixo na tabela, mas ainda com valores significativos, surgem Loulé (890.146 euros para a Igreja Matriz), Santarém (849.934 euros para estabilização da Igreja de Santa Iria da Ribeira de Santarém), Moura (duas obras que totalizam 1,16 milhões de euros), Baião (570.338 euros para a terceira fase de restauro do Mosteiro de Santo André de Ancede), Sardoal (657.325 euros para a sua igreja paroquial) e Cabeceiras de Basto (559.348 euros para a reabilitação do mosteiro de São Miguel de Refojos).

O levantamento do PÁGINA UM permitiu ainda perceber a evolução temporal destes investimentos: 2020 e 2021 foram os anos particularmente intensos, com 3,15 milhões e 4,12 milhões de euros em adjudicações respectivamente, coincidindo com o período da pandemia em que muitas autarquias aproveitaram fundos comunitários e planos de recuperação para lançar empreitadas.

Igreja de Paderne, em Melgaço. Foto: D.R,

Em 2022 registaram-se 3,02 milhões de euros em adjudicações associadas a reabilitações de igrejas, enquanto 2023, impulsionado pelo contrato da Boavista, foi o ano mais dispendioso, com 4,14 milhões de euros. O ano de 2024 apresenta uma quebra (1,69 milhões), mas 2025 volta a evidenciar crescimento, com 2,23 milhões contratados até Setembro.

Se os grandes municípios têm um papel de relevo, também as pequenas autarquias não ficam atrás. Em Tavira, a Câmara investiu 259.949 euros na Igreja Matriz de Santa Maria do Castelo. Em Tabuço, uma única empreitada de 263.900 euros permitiu restaurar simultaneamente três igrejas paroquiais (Granja do Tedo, Longa e Sendim). Em Pedrógão Grande, a intervenção na Igreja Matriz custou 385.797 euros. E até pequenas juntas de freguesias, como Tancos, investiram mais de 160 mil euros na valorização da sua igreja matriz.

No extremo oposto da escala, o contrato de menor valor encontrado foi em Sátão, onde a autarquia pagou 117.617 euros para conservar e restaurar a Igreja de Santa Maria, seguido da intervenção de 118.995 euros na Igreja das Carvalhiças (União de Freguesias de Vila e Roussas, no município de Melgaço). Estes números mostram que mesmo obras modestas — reparação de telhados, retábulos, pavimentos — têm custos significativos e absorvem recursos municipais.

Igreja matriz de Loulé, Foto: CML.

Além da dimensão financeira, este levantamento revela uma lista recorrente de empresas especializadas que dominam este mercado, como a Signinum, a Lusocol e a Monumenta, com contratos repetidos em vários pontos do país. Para estas empresas, o património religioso é uma fonte estável de encomendas, sustentada por financiamento público.

No final, a grande questão é política e não técnica: até que ponto é legítimo que autarquias, em nome da preservação patrimonial, financiem afinal a manutenção de templos de culto, beneficiando de forma desproporcionada a Igreja Católica face a outras confissões ou usos comunitários. Se o Estado – e por extensão as autarquias – é laico, olhando para as suas obras não aparenta.