Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto


O contraste não podia ser mais brutal. Em Novembro de 2022, a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) adjudicou à MNTC — a mesma empresa que desde 2019 assegura para a Carris a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória e do Elevador de Santa Justa — um contrato de quase 1,9 milhões de euros para garantir, durante 1826 dias (exactamente cinco anos), a manutenção de oito eléctricos históricos.

O contrato termina no final de Novembro de 2027, e a exigência imposta no caderno de encargos da STCP ao nível da manutenção e da segurança é de uma minúcia que faria inveja a qualquer operador ferroviário europeu. Bem diferente do que a Carris exigia à mesma MNTC: vistorias a “olhómetro”, lubrificação e pouco mais, com indicação de tarefas a desempenhar estranhamente ambíguas e tecnicamente vagas.

Eléctrico do Porto…

O plano de manutenção preventiva da STCP, analisado pelo PÁGINA UM, é um verdadeiro manual de engenharia: 136 itens, treze secções abrangendo carroçaria, chassis, bogies, rodados, motores de tracção, sistemas de suspensão, travagem, circuitos pneumáticos, comandos, circuitos eléctricos, areeiros e ensaios finais.

Neste último caso, estão previstos, quinzenalmente e após reparações de maior monta, ensaios completos ao carro: colocam-se pontos no controller e utiliza-se o freio de parque para confirmar, em condições reais, que o eléctrico acelera, trava e se imobiliza de forma segura, garantindo que os sistemas de tracção e de travagem funcionam correctamente antes de regressar ao serviço.

Está igualmente prevista, em base anual, a realização do ensaio de freio estático para medir os parâmetros dos cilindros de freio, do depósito e das válvulas do sistema, assegurando que a travagem cumpre as normas da UIC – União Internacional dos Caminhos-de-Ferro, entidade que estabelece padrões técnicos internacionais para garantir segurança e interoperabilidade no transporte ferroviário.

Yellow tram ascends a steep cobblestone street.
… e ascensores de Lisboa: mesma empresa de manutenção; exigências avassaladoramente distintas.

As tarefas de manutenção dos eléctricos da STCP estão distribuídas por sete periodicidades — diária, quinzenal, mensal, semestral, anual, intermédia (cinco anos) e geral (dez anos) — e são descritas com rigor quase cirúrgico: lubrificação de cavilhas e rodas de troley, verificação de estores, ensaios de magnetoscopia e ultrassons nos eixos, medições de esquadria de bogies segundo normas UIC, reapertos com torque controlado, equilibragem dinâmica de motores de tracção de acordo com a norma ISO 1940 G 2.5, ensaios estáticos e dinâmicos de travagem com registo de valores, purgas programadas do sistema pneumático, desmontagem e montagem de rodados, pintura com especificações RAL predefinidas, etc, etc.. Tudo tem de ser registado em fichas normalizadas, permitindo rastreabilidade, identificação de tendências de desgaste e planeamento de substituições antes da falha.

Agora desçamos para Lisboa — e, ironicamente, desçamos mesmo pela Calçada da Glória. Desde 2019 — e não desde 2022, como erradamente se escreveu inicialmente — , a MNTC ficou também responsável pela manutenção dos ascensores lisboetas. Mas aqui, por opção da Carris, o cenário é radicalmente diferente. O caderno de encargos imposto pela empresa municipal de Lisboa — que vigorou até 31 de Agosto e foi prorrogado por ajuste directo por mais cinco meses — parece mais uma lista de verificação do que um plano de engenharia.

Aquilo que exige — se se pode dizer que se trata de exigências — é, na generelidade dos casos, genérico e vago: verificar pantógrafos, baterias, cabos de tracção, purgar compressores, lubrificar roldanas. Não há referências nem explícitas, nem implícitas a ensaios não destrutivos, a medições calibradas ou a periodicidades diferenciadas de controlo que permitam detectar falhas latentes. Nada que garanta testes de segurança e de travagem.

Páginas 1 e 4 das cinco páginas do caderno de encargos da STCP que detalha as manutenções a executar pela MNTC nos eléctricos do Porto.

O caso do Elevador da Glória é paradigmático — e trágico. Os serviços de manutenção e segurança do funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional, não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada semana, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

Era tudo feito visualmente — ou, para usar a ironia que a tragédia quase não consente, com recurso à avançadíssima tecnologia do “olhómetro”. Apesar de a lei exigir ensaios após alterações de sistemas de segurança e comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), como o PÁGINA UM já salientou com base na lei, aparentemente nada disto alguma vez foi feito.

Pior ainda: aparentemente nunca ninguém se apercebeu de que os sistemas de freio dos ascensores eram incapazes de travar caso houvesse, como houve, colapso do encaixe do cabo no trambolho.

Especificações do caderno de encargos da Carris são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da Carris, apenas para a Bica e para o Elevador de Santa Justa existia referência expressa à contagem de arames partidos como critério de substituição de cabos. No caso da Glória e do Lavra, a exigência era apenas uma vaga “verificação”, sem norma técnica, sem especificação de método, sem obrigatoriedade de desmontagem ou uso de instrumentos de medição. Se a inspecção diária, semanal e mensal era apenas visual — como confirmam os registos da própria Carris — nada obrigava a que as inspecções semestrais fossem diferentes.

O PÁGINA UM ouviu especialistas que foram claros: existem hoje métodos de detecção precoce de falhas que são standard internacional em sistemas de transporte por cabo — ensaios de magneto-indução, capazes de detectar fios partidos no interior do cabo; correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente importantes na verificação da integridade da zona de ancoragem no trambolho, onde precisamente se deu a ruptura; medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos, procedimento previsto em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

Nada disto estava previsto no caderno de encargos, que, como parte integrante do contrato, foi aprovado pelo Conselho de Administração da Carris, presidido por Pedro Bogas. O contrato deixava ao critério da MNTC a decisão de realizar ou não ensaios complementares. Resultado: se a empresa não os fazia por iniciativa própria, nada a obrigava.

Manutenção em Lisboa: uma autêntica e trágica ‘balda’.

Esta omissão poderá ser determinante na atribuição de responsabilidades civis e criminais: o município de Lisboa, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista para um sistema que transporta milhares de pessoas por dia num declive acentuado, expondo os passageiros a um risco inconcebível.

Perante isto, o contraste entre Carris e STCP é avassalador e demonstra que o problema é de gestão e de exigência. No Porto, os eléctricos históricos têm direito a centenas de operações programadas, medições rigorosas, registos de torque, ensaios não destrutivos e análises de tendências de desgaste; em Lisboa, os ascensores tinham direito apenas a um olhar de relance e a um visto de conformidade. A mesma empresa, dois contratos, dois mundos.