Os graves erros e más práticas de Pedro Cavaco Henriques, cirurgião do Hospital de Faro, alvo de uma proposta de suspensão de apenas 40 dias por parte da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), são considerados inqualificáveis por médicos consultados pelo PÁGINA UM, ainda mais por terem sido cometidos em tão curto espaço de tempo (três meses) por um clínico com prática de mais de duas décadas em operações.
O PÁGINA UM, que teve acesso, em exclusivo, ao relatório da IGAS — enviado para a Unidade Local de Saúde do Algarve, para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público —, analisou em detalhe os quatro casos clínicos destacados no processo disciplinar, onde apenas estão referidos alguns dos episódios denunciados pela médica Diana Pereira, então a fazer internato no Hospital de Faro e que ficou chocada com o modus operandi de Pedro Henriques, o seu próprio orientador.

Apesar da gravidade dos quatro casos, estranhamente a IGAS não analisou o passado de intervenções deste médico, que ao longo dos anos mais recentes também colaborou com a ULS do Médio Tejo. Num relatório exaustivo e minucioso, destacam-se sobretudo execuções cirúrgicas tecnicamente incorrectas, imprudentes e contrárias às boas práticas, confirmando a violação das chamadas leges artis. E se, para o cidadão comum, a terminologia pode parecer distante, o que ali se lê é inequívoco: houve doentes que sofreram lesões, internamentos prolongados e riscos graves de vida que poderiam ter sido evitados.
O primeiro caso analisado remonta a 5 de Janeiro de 2023 e envolveu uma cirurgia complexa a um doente do sexo masculino realizada em dois tempos. No denominado tempo abdominal, realizado por outra equipa, não se registaram complicações, mas no tempo perineal — o que envolve o recto e o canal anal — o cirurgião Pedro Cavaco Henriques foi acusado de utilizar um dispositivo eléctrico para dissecar tecidos de forma “brutal”.
Não se tratou apenas de um testemunho isolado: os exames histológicos confirmaram lacerações e dissecções realizadas fora dos planos anatómicos adequados, e o relatório anatomo-patológico descreveu mesmo uma lesão iatrogénica, ou seja, causada pela própria cirurgia.

Já no segundo caso, envolvendo também um doente do sexo masculino, embora os autos não descrevam de forma detalhada o dia ou a sequência da intervenção, o processo foi sustentado quase exclusivamente em prova documental e pericial. Pareceres técnicos da Ordem dos Médicos e da IGAS convergiram no diagnóstico de que a cirurgia não respeitou as boas práticas e que as lesões sofridas pelo doente não foram complicações inevitáveis, mas sim consequência de execução técnica inadequada.
A defesa tentou desvalorizar o caso alegando que se tratava de um risco cirúrgico inerente, mas não conseguiu rebater as conclusões periciais. Uma das testemunhas arroladas não chegou a ser ouvida e outra optou por não comentar quando confrontada com os pareceres. O instrutor concluiu que nada abalava a acusação e manteve a nota de culpa.
O terceiro episódio disciplinar é particularmente sensível porque se tratou de uma emergência médica. A 31 de Março de 2023, Pedro Cavaco Henriques tentou colocar dois cateteres torácicos num doente com pneumotórax — situação em que o ar invade a cavidade torácica e provoca o colapso de um pulmão.

As duas tentativas falharam e o doente entrou em insuficiência respiratória, tendo de ser rapidamente transferido para o serviço de urgência, onde acabou estabilizado com drenagem torácica. A médica presente confirmou então a sequência de acontecimentos – e os erros de Pedro Cavaco Henriques – e a perícia médica apontou falha técnica do cirurgião, ainda que reconhecendo que o ambulatório tinha então falta de equipamentos, facto que terá dificultado o procedimento.
A defesa de Pedro Henriques ainda sustentou que não houve violação das leges artis e que a decisão de não insistir após as tentativas falhadas foi prudente, mas o perito da IGAS sublinhou que deveria ter sido pedido um raio-X logo após a primeira tentativa para confirmar a evolução da situação — algo que não foi feito. Também aqui a nota de culpa foi considerada procedente, ainda que com atenuação, dado que a carência de meios foi considerada um factor contribuinte.
O caso mais grave, porém, envolveu uma doente irlandesa, que deu entrada no Hospital de Faro no dia 2 de Abril de 2023 com apendicite aguda perfurada e peritonite. Pedro Cavaco Henriques decidiu fazer uma apendicectomia laparoscópica, isto é, a remoção do apêndice feita através de pequenas incisões no abdómen e com auxílio de uma câmara. Trata-se de um método menos invasivo e, em condições normais, mais rápido na recuperação.

Porém, no caso desta doente, a situação era de elevada gravidade: o apêndice estava perfurado e havia peritonite, ou seja, infecção disseminada na cavidade abdominal, o que torna a cirurgia muito mais difícil e arriscada. Nestas circunstâncias, é prática recomendada — e ensinada nas escolas de cirurgia — que o cirurgião converta o procedimento para cirurgia aberta (laparotomia), abrindo o abdómen para ter melhor acesso e visão directa dos órgãos.
Essa conversão não é sinal de erro técnico, mas sim de prudência clínica: permite reduzir o risco de lesões acidentais, limpar adequadamente a cavidade abdominal e tratar de forma mais segura o foco de infecção.
Ora, Pedro Cavaco Henriques decidiu manter a cirurgia por via laparoscópica, mesmo perante a dificuldade de visualização e o risco acrescido de complicações. Essa decisão — de continuar “às cegas” com instrumentos laparoscópicos — foi justamente o ponto mais criticado no relatório da IGAS, que concluiu que a manutenção desta via contribuiu de forma decisiva para as lacerações do intestino delgado.
Em fase de instrução do processo disciplinar, Pedro Henriques chegou a mostrar arrependimento, mas as consequências foram enormes: no dia seguinte, já com um quadro clínico preocupante, a doente teve de ser reoperada por outra equipa cirúrgica, que encontrou abundante pus na cavidade abdominal e múltiplas lacerações do intestino delgado. Foram necessárias suturas e a ressecção (remoção) de cerca de 20 centímetros de ansa intestinal (parte do intestino delgado) para reparar os danos. Estas lesões foram confirmadas como iatrogénicas, ou seja, causadas pela primeira cirurgia.

O perito de cirurgia geral foi taxativo ao referir que o protocolo operatório não mencionava manobras que poderiam ter prevenido as perfurações. A doente permaneceu internada cerca de um mês, recebendo alta apenas a 12 de Maio de 2023. Apesar de o arrependimento do cirurgião ter sido tido em conta como atenuante, o relatório final da IGAS concluiu pela violação grave das normas técnicas e reforçou que a decisão de manter a cirurgia por laparoscopia foi errada face ao elevado risco presente.
Lidos em conjunto, os quatro casos compõem um retrato inquietante da prática clínica de Pedro Cavaco Henriques, com erros repetidos e lesões evitáveis em doentes, alguns em situações de risco de vida. A suspensão de apenas 40 dias, aplicada como sanção disciplinar, aparenta assim ser curta face à gravidade dos factos e à convergência das conclusões periciais. Mas mostra também uma intervenção burocrática da IGAS: perante um médico que em apenas três meses cometeu quatro infracções desta gravidade, como as descritas, não seria prudente analisar o seu histórico?