A Administração da Carris aceitou que a MNTC – a empresa que assegurou, nos últimos três anos, a manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e do Elevador de Santa Justa – concorresse ao concurso público lançado em 2022 sem sequer possuir, na altura, o obrigatório alvará EMIE, emitido pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que certifica a aptidão técnica para executar trabalhos de manutenção de instalações de elevação. Ou seja, nos últimos três anos, os elevadores de Lisboa estiveram literalmente nas mãos de uma ‘empresa novata’.
A exigência de alvará, prevista na lei para a esmagadora maioria das actividades económicas mais complexa, visa precisamente garantir que apenas empresas com competências reconhecidas e equipas qualificadas possam intervir em equipamentos de transporte vertical, cuja segurança depende de rigorosos procedimentos de manutenção.

Porém, de acordo com informação obtida pelo PÁGINA UM, a MNTC só viria a obter o alvará para o sector da manutenção de equipamentos de elevação no dia 29 de Junho de 2022 – cerca de três semanas depois de terminado o prazo de apresentação de propostas para o concurso, que fora aberto em 11 de Maio desse ano. Ou seja, à data da candidatura, a MNTC não tinha qualquer histórico ou experiência certificada no sector de manutenção de ascensores. Antes, a MNTC somente tinha contratos públicas para manutenção de piscinas e de revisão de veículos eléctricos.
Contudo, em 2022, a Administração da Carris, já então presidida por Pedro Bogas, acho que não era necessário que os concorrentes tivessem ainda certificação ou outra habilitação para apresentarem propostas. À data do concurso existiam, segundo os registos da DGEG, exactamente 100 empresas em Portugal com o alvará EMIE válido, pelo que não se pode alegar falta de oferta no mercado.
Apesar disso, a Carris permitiu que empresas sem alvará, e portanto com experiência nula, apresentassem propostas para a manutenção dos quatro ascensores públicos de Lisboa – equipamentos classificados como Monumentos Nacionais ou de elevado valor histórico e turístico.

O caderno de encargos do concurso não atribuía qualquer ponderação à experiência ou ao currículo técnico das concorrentes: o critério de adjudicação era exclusivamente o preço. Assim, numa decisão que hoje se revela catastrófica, a Carris escolheu a proposta mais barata, independentemente da falta de historial ou de capacidade comprovada do adjudicatário.
No concurso de 2022, cuja adjudicação foi decidida a 21 de Julho, a MNTC apresentou um preço de apenas 995.515 euros para um contrato de três anos, valor que representa cerca de 58% do preço base fixado pela Carris, que era de 1.728.000 euros. Ou, noutra perspectiva, 42% abaixo do preço base. A diferença foi esmagadora e tornou praticamente impossível às empresas com histórico e experiência competir em igualdade de circunstâncias.
Importa referir que a MNTC não foi a única empresa sem alvará que a Carris deixou concorrer. Entre as quatro concorrentes – MNTC, Gasfomento, GMF e Liftech –, apenas esta última detinha o alvará EMIE e experiência consolidada no sector.

A Liftech – que pertenceu até 2002 ao Grupo Efacec – é, de facto, uma referência na manutenção de ascensores, funiculares e teleféricos em Portugal, contando no seu portefólio com o funicular dos Guindais, no Porto, o teleférico da Penha, em Guimarães, o funicular de Viseu, o funicular de São João da Malta, na Covilhã, e o funicular de Santa Luzia, em Viana do Castelo, entre outros.
Em Lisboa, esta empresa foi ainda responsável pela instalação do funicular da Graça, gerido pela Carris e inaugurado no ano passado, tendo mesmo recebido o Prémio Valmor de Arquitectura. A Liftech foi também, pela sua experiência de reabilitação de equipamentos histórica, a responsável pela remodelação profunda do elevador de Santa Justa também em 2024. Tem ainda contratos relevantes com entidades públicas, incluindo a manutenção de elevadores nos bairros sociais da Gebalis, contrato esse renovado em Abril deste ano por 4,6 milhões de euros.
A opção da Carris, em 2022, de escolher exclusivamente com base no preço, sem qualquer valorização da competência técnica ou da experiência acumulada, é tanto mais grave quanto o caderno de encargos permitia que as “verificações” fossem meramente visuais.
Não havia qualquer obrigatoriedade de ensaios mecânicos ou testes não destrutivos aos cabos de tracção, limitando-se o contrato a prever que as empresas entregassem relatórios de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais – relatórios que, como se veio a verificar, se resumiam muitas vezes a registos com a palavra “OK”.

Aquilo que então parecia ser um bom negócio para a administração presidida por Pedro Bogas revelou-se ruinoso. O trágico descarrilamento do Elevador da Glória na passada quarta-feira, que provocou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos, tornou evidente que a opção por uma manutenção de preço mínimo pode ter comprometido a segurança.
O desastre resultou também em danos irreversíveis num dos veículos, na suspensão por tempo indeterminado da operação dos quatro ascensores de Lisboa – todos eles rentáveis e importantes para a mobilidade e o turismo da cidade – e numa crise reputacional grave para a Carris, para Lisboa e para o turismo de Portugal.

Convém ainda sublinhar que o processo de obtenção do alvará EMIE não é complexo: é um procedimento administrativo, praticamente automático para empresas já detentoras de certificação de qualidade ISO 9001, não exigindo auditorias nem verificações prévias da existência de técnicos qualificados para o serviço. Este dado reforça a estranheza de a MNTC só ter obtido o alvará depois de concorrer e não antes, bem como a permissividade da Carris em aceitar uma proposta de quem ainda não tinha sequer dado esse passo formal.
No final, o que deveria ser um procedimento de contratação pública destinado a assegurar a melhor relação qualidade-preço para um serviço de segurança crítica acabou por se transformar numa escolha baseada exclusivamente no preço, ignorando a qualificação e o histórico das empresas. Hoje, com um elevador destruído, quatro ascensores parados, dezenas de vítimas e danos reputacionais incalculáveis, a decisão de há dois anos revela-se um exemplo paradigmático do que acontece quando se confunde poupança com gestão eficiente.