A substituição do cabo do Elevador da Glória — que rompeu na passada quarta-feira, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas — foi executada no ano passado pela MNTC, empresa responsável pela manutenção dos ascensores de Lisboa desde Setembro de 2022, mas não existem garantias de que os seus técnicos possuíam as certificações exigidas por lei para inspeccionar e intervir em sistemas técnicos desta complexidade.
De acordo com a análise dos relatórios de manutenção disponibilizados pela Carris na sexta-feira passada, a MNTC usou quatro técnicos – João Antunes, Rafael Rosado, Sérgio Carvalho e Tiago Ribeiro. De acordo com as normas, quando uma empresa solicita o alvará EMIE à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) , tem de indicar pelo menos um técnico responsável pela execução (TRE) e, se aplicável, um técnico responsável pela exploração. Estes técnicos ficam associados ao registo da empresa e constam da sua ficha no processo de licenciamento.

Mas a empresa MNTC recusa responder às questões do PÁGINA UM sobre este assunto – aliás, apenas quebrou o silêncio por uma vez para indicar que estava a ser representada pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, mas sem adiantar contactos –, embora tudo indique que estes mesmos colaboradores já executariam tarefas de inspecção e manutenção ao longo do período de três anos de um contrato saído de um concurso público que vigorou entre Setembro de 2022 e 31 de Agosto de 2025.
A certificação EMIE não é um mero detalhe burocrático: trata-se de uma exigência destinada a assegurar que apenas profissionais qualificados, com provas dadas e reconhecidas pela autoridade reguladora, possam intervir em sistemas cuja falha representa risco directo para a segurança de passageiros. Por outro lado, a Lei n.º 65/2013 exige que empresas e técnicos de manutenção e inspecção de elevadores (EMIE, TRM, EIIE, directores técnicos e inspectores) tenham reconhecimento prévio da DGEG. Ora, nas três manutenções diárias de Setembro e na mensal, realizada no dia 1, um técnico de nome Tiago Ribeiro é sempre o mesmo que valida os relatórios.
Esta questão ganha ainda maior gravidade quando se sabe que o cabo de tracção — peça crítica do sistema dos elevadores — foi substituído no âmbito de contrato entre a Carris e a MNTC, por via de uma reparação intermédia realizada entre finais de Agosto e o início de Outubro do ano passado. Essa intervenção, que deveria ter sido acompanhada de rigorosos procedimentos de ensaio e registo documental, foi executada pela MNTC, conforme era obrigação prevista no caderno de encargos, sem que haja provas de que técnicos certificados tenham participado na sua montagem.

O PÁGINA UM solicitou formalmente à Carris que esclarecesse a data exacta da instalação, se foi elaborado algum relatório técnico, quem foram os engenheiros ou técnicos presentes na operação, se existem fotografias ou imagens que documentem o acto, e que tipo de testes foram realizados para aferir da resistência e da correcta colocação do cabo. Solicitou ainda a identificação do fornecedor e cópia da factura da compra do cabo.
Na resposta recebida, a Carris limitou-se a afirmar que “a substituição do cabo do Ascensor da Glória decorreu no âmbito da reparação intermédia realizada entre 26 de Agosto e 1 de Outubro de 2024” e que “os trabalhos foram acompanhados por técnicos da Carris”, acrescentando que “a documentação solicitada está na posse das entidades que conduzem a investigação no âmbito do inquérito em curso”.
Contudo, apesar da insistência do PÁGINA UM, a Carris não revelou se detém cópia desse relatório nem confirmou se a presença de técnicos próprios era suficiente para suprir a eventual falta de certificação da equipa da MNTC. A empresa municipal também se recusou a fornecer o nome do fornecedor do cabo, não enviou a factura nem revelou o respectivo custo, criando um manto de opacidade sobre uma operação que deveria ser transparente, sobretudo quando está em causa um acidente com 16 mortes e mais de uma dezena de feridos.

No passado sábado, em conversa com o PÁGINA UM, o presidente da Carris, Pedro Bogas, prometeu “máxima transparência”, incluindo a colocação de relatórios de inspecção no seu site. Ora, o relatório mais fundamental para desvendar eventuais falhas – a colocação do cabo, operação que nunca antes tinha sido realizada pela MNTC – é logo escondido, alegando-se ter sido enviado para a equipa de investigação.
Fontes ligadas ao sector da manutenção de sistemas de transporte vertical sublinham que a instalação de cabos de tracção deve ser acompanhada por engenheiros especializados, sujeita a procedimentos de tensionamento controlado e seguida de ensaios mecânicos que comprovem a correcta fixação.
A ausência de documentação acessível ao público e a falta de clareza sobre a qualificação dos técnicos da MNTC colocam novas interrogações sobre a forma como a Carris supervisionou os contratos de manutenção. Recorde-se que o caderno de encargos que vigorou até ao passado dia 31 de Agosto é completamente vago ao ponto de apenas exigir a realização de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais, sem especificar que tipo de ensaios ou medições deviam ser efectuados. A expressão usada — “verificação” — deixa em aberto se bastava uma inspecção visual ou se seriam obrigatórios testes com instrumentação.

A revelação de que o cabo foi instalado por técnicos sem certificação reconhecida pela DGEG torna-se ainda mais inquietante tendo em conta que este mesmo componente falhou menos de um ano depois da sua colocação, num acidente que se transformou na maior tragédia nos tempos recentes envolvendo um sistema de transporte público em Lisboa.
Apesar das tentativas de agora se debater o acidente numa perspectiva de responsabilidade política a ser ‘resolvida’ nas eleições autárquicas de Outubro, o PÁGINA UM continuará a pressionar a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa para que toda a documentação referente à substituição do cabo e à manutenção do Elevador da Glória seja tornada pública, incluindo relatórios técnicos, lista de intervenientes, fotografias, facturas e comprovativos de ensaio.
Entretanto, Pedro Bogas, presidente da Carris, mantém-se em incumprimento legal quanto à publicitação no Portal BASE do ajuste directo da manutenção dos ascensores iniciado este mês, que chegou a exibir aos jornalistas — numa conferência de imprensa — sob a forma de minuta sem assinaturas, forjada para parecer um contrato válido.

Apesar de o presidente da Carris insistir que tal publicação não é obrigatória para entidades dos “sectores especiais”, como os transportes, esta alegação cai por terra com a própria prática da empresa municipal. Ainda hoje, a Carris publicou dois contratos no Portal BASE, incluindo um concurso público para a manutenção de 123 autocarros MAN no valor de 430 mil euros e a aquisição de 15 mini-autocarros eléctricos para serviço urbano no valor de cerca de 4,4 milhões de euros.
O argumento de isenção legal, além de contrariado por juristas, fica assim desmentido pela evidência documental fornecida pela própria Carris. Aparentemente, Pedro Bogas considera que usufrui do direito de disponibilizar contratos não de acordo com a lei, mas com as suas vontades pessoais, que incluiu enganar jornalistas com uma minuta mal forjada, culpando depois os seus serviços por excesso de zelo em meter tarjas negras onde nem sequer existiam assinaturas.