O caso do ajuste directo de manutenção dos elevadores de Lisboa ganha novos contornos e aumenta as dúvidas sobre a veracidade das declarações prestadas ontem por Pedro Bogas, presidente da Carris, na conferência de imprensa realizada um dia após a tragédia no Elevador da Glória.
O documento entregue aos jornalistas não passava, afinal, de uma minuta, sem assinaturas e com informação rasurada, e aparentemente só hoje, após insistência deste jornal, foi enviada uma versão com assinaturas manuscritas dos dois administradores da empresa municipal: o presidente e a vice-presidente Maria Lopes Duarte. Mas pior ainda: a tarja colocada na minuta entregue ontem aos jornalistas não era mais do que uma simulação mal feita, sugerindo estar a proteger as identidades dos subscritores.

O polémico contrato, que a Carris alega ter sido assinado em 20 de Agosto para não deixar sem cobertura contratual os serviços de manutenção dos elevadores – uma vez que o anterior contrato de três anos expirou no dia 31 de Agosto – foi exibido aos jornalistas como prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores estava assegurada.
Porém, apesar de o PÁGINA UM não ter sido convocado, acabámos por ter tido acesso a esse documento da Carris, através de dois jornalistas de órgãos de comunicação social, um dos quais director de um jornal de grande dimensão.
Ora, o documento de ontem continha tarjas negras nas linhas de identificação das partes e sobre as áreas onde deveriam constar as assinaturas de dois membros do Conselho de Administração da Carris e do gerente da MNTC. Mas hoje, por insistência do PÁGINA UM, a Carris acabou por enviar o documento, salientando ser “cópia do contrato distribuído, ontem, na conferência de imprensa, onde é possível identificar os representantes da CARRIS e respectivas assinaturas”.

Porém, uma singela análise confirma diferenças evidentes entre aquilo que ontem foi mostrado aos jornalistas na conferência de imprensa e o documento enviado hoje ao PÁGINA UM: além de surgirem já os nomes dos representantes da Carris, as folhas são rubricadas no canto superior direito (como habitualmente em contratos já celebrados) e surgem visíveis as assinaturas dos administradores da Carris na última página, manuscritas – ou seja, houve a clara opção de não usar assinatura digital com timestamp, que deixaria uma ‘impressão digital’ do dia e da hora da assinatura.
Em todo o caso, a versão enviada hoje pela Carris ao PÁGINA UM mantém uma tarja sobre a assinatura do gerente da MNTC, que teria de existir de forma visível para o contrato ser válido. Aliás, em contratos públicos não se aplica qualquer protecção de identidade no âmbito do Regulamento Geral de Protecção de Dados.
Ora, a prova de que, na conferência de imprensa desta quinta-feira, a Carris entregou uma minuta forjada para parecer um contrato está no facto de o documento entregue aos jornalistas conter uma tarja negra no espaço que supostamente taparia as assinaturas dos administradores da Carris que é demasiado pequena. Com efeito, confrontando com o documento enviado hoje ao PÁGINA UM, a superfície dessa tarja negra mal taparia a assinatura de Pedro Bogas e jamais conseguiria tapar a assinatura da administradora Maria Lopes Duarte. Ou seja, ontem o contrato ainda não estaria assinado.

Esta discrepância aumenta as suspeitas sobre a real cronologia da celebração do ajuste directo, se é que foi mesmo assinado. O PÁGINA UM remeteu um pedido à MNTC, mas recebeu como resposta que está a ser representada agora pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, que não foi ainda possível contactar.
Saliente-se que, em muitos casos de contratação pública, apesar de ser uma prática contrária à transparência e às boas regras de gestão pública, muitos ajustes directos apenas acabam formalizados após um acordo verbal ou informal para início da prestação de serviços – sobretudo quando é o mesmo prestador de um contrato que terminou –, sendo depois datados com efeitos retroactivos para regularizar a situação.
Porém, no presente caso, a gravidade da tragédia do descarrilamento do Elevador da Glória – com 16 mortes e duas dezenas de feridos – torna esta questão muito mais sensível: se não existia contrato válido à data do acidente, as consequências jurídicas e indemnizatórias poderão ser colossais, uma vez que a Carris poderá ter operado os ascensores sem cobertura contratual de manutenção e inspecção.

O PÁGINA UM solicitou ainda à Carris o envio da acta da reunião do Conselho de Administração de 14 de Agosto, indicada no alegado contrato por ajuste directo como tendo deliberado a adjudicação. Até ao fecho desta edição, o gabinete de relações públicas da Carris não forneceu qualquer resposta a este pedido, mantendo a incerteza sobre se a deliberação foi efectivamente tomada nessa data e se foi respeitado o procedimento de contratação exigido pelo Código dos Contratos Públicos.
Este caso poderá, assim, evoluir para uma questão não apenas de gestão, mas de responsabilidade civil e criminal: a confirmação de que o contrato não estava assinado no dia do acidente pode implicar um vazio legal sobre quem tinha a obrigação de assegurar a manutenção dos equipamentos naquele momento, abrindo espaço para um cenário litigioso de proporções imprevisíveis.