O contrato de ajuste directo que o presidente da Carris, Pedro Bogas, apresentou esta tarde como alegada prova de que a manutenção e inspecção dos ascensores de Lisboa estava assegurada levanta sérias dúvidas de legalidade e, em qualquer caso, é juridicamente ineficaz por não ter sido publicado na plataforma pública de contratação.
Apesar de ter disponibilizado cópia do alegado contrato na conferência de imprensa — para a qual o PÁGINA UM não foi convocado —, o documento do ajuste directo com a empresa MNTC ostenta a data de 20 de Agosto, mas apresenta diversas anonimizações (isto é, ocultação de informação em documentos, normalmente através de tarjas pretas ou outros meios, com o objectivo de proteger dados pessoais ou sensíveis), incluindo nas assinaturas do próprio presidente da Carris e de uma das suas vice-presidentes.

Ora, numa parte considerável dos contratos da Carris desde 2024 disponíveis no Portal Base, os administradores utilizam assinatura digital com timestamp, de modo a confirmar, sem possibilidade de adulteração, o dia e a hora da assinatura. Em outros casos, em menor número, quando os contratos são assinados a caneta, nunca são colocadas tarjas pretas.
Além disso, a anonimização do documento disponibilizado aos jornalistas, abrangendo inclusive as assinaturas dos responsáveis da Carris, é incompreensível: o Tribunal Administrativo já tem decidido, em várias sentenças, que os nomes e assinaturas dos funcionários não estão abrangidos pela protecção do Regulamento Geral de Protecção de Dados.
Acresce um outro pormenor relevante, que deveria merecer até análise forense: a área anonimizada no documento mostrado pela Carris é significativamente mais pequena do que o espaço ocupado pelas assinaturas de Pedro Bogas e da outra administradora em contratos similares consultados pelo PÁGINA UM no Portal Base, quer quando usarem assinatura digital quer assinatura com caneta. Ou seja, a tarja preta aposta na cópia disponibilizada pelo presidente da Carris pode estar a tapar absolutamente nada.

Ao longo de todo o dia, o PÁGINA UM tentou obter a cópia integral do alegado contrato e outros esclarecimentos junto da Carris, mas a responsável pela comunicação da empresa municipal, Margarete Oliveira, nunca respondeu. Também foi feito um pedido para a MNTC enviar cópia do original deste contrato, mas não se obteve resposta.
Saliente-se que a MNTC tem, nesta hora complicada, vantagens em agradar à administração da Carris, uma vez que a empresa municipal é um dos seus principais clientes. De acordo com as contas de 2024, consultadas pelo PÁGINA UM, a MTC, que conta 28 empregados, teve uma facturação de 1.288.840 euros no ano passado, sendo que a Carris representou cerca de 26% das suas receitas.
Na conferência de imprensa, Pedro Bogas afirmou ainda que a Carris não estava obrigada a publicitar o contrato no Portal Base, alegando que a empresa municipal, por integrar o sector dos transportes, estaria isenta dessa obrigação. Contudo, tal alegação não corresponde à verdade.


O artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é claro ao estabelecer que a publicação dos contratos no Portal Base é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados sectores especiais, independentemente da flexibilidade procedimental ou dos limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.
A questão da eficácia contratual — e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente de ontem com o elevador da Glória — poderá ter implicações relevantes no processo de apuramento de responsabilidades pela tragédia que já provocou 16 mortos e mais de duas dezenas de feridos. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá invocar a inexistência de contrato válido de manutenção como incumprimento dos deveres contratuais, com impacto no valor da indemnização a pagar às vítimas e suas famílias.
Importa sublinhar que o regime dos sectores especiais, resultante das directivas europeias, apenas confere às entidades adjudicantes uma maior liberdade na escolha do procedimento (concursos públicos, concursos limitados ou negociação directa) e afasta a aplicação da Parte II do CCP para contratos de valor inferior a 5 milhões de euros, no caso de empreitadas, e a 400 mil euros, no caso de fornecimentos e serviços.

Porém, sempre que exista contrato celebrado, a obrigação de publicitação no Portal Base mantém-se, constituindo um requisito essencial de transparência e de controlo público da contratação.
A ausência de publicação do contrato — que deveria estar acessível na plataforma para permitir escrutínio — poderá ser uma peça central nas investigações em curso, não apenas para apurar se houve negligência contratual, mas também para determinar se o elevador da Glória circulou sem cobertura válida de manutenção, circunstância que poderá ter impacto decisivo no apuramento de responsabilidades civis e criminais.