Nova política de saúde ‘expulsa’ dos hospitais 1700 doentes não urgentes por dia

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A estratégia do Ministério da Saúde, apresentada como forma de “racionalizar o recurso às urgências”, está a produzir efeitos visíveis — e polémicos. Entre 1 de Janeiro e 31 de Agosto de 2025, menos 351.246 pessoas recorreram às urgências hospitalares face à média do período homólogo do triénio 2022-2024, de acordo com uma análise detalhada realizada pelo PÁGINA UM aos registos hospitalares. São, em média, 1.445 pessoas por dia que deixaram de ser atendidas nos serviços de urgência dos hospitais públicos portugueses.

O total de episódios caiu 8,3%, de uma média de 4.236.109 em 2022-2024 para 3.884.863 este ano. Comparando apenas com 2024, a diferença é ainda maior: menos 358.185 episódios. Contudo, os episódios que resultaram em internamento mantiveram-se praticamente estáveis, com uma redução residual de 0,6%, confirmando que a diminuição se concentrou sobretudo nos casos menos graves.

A redução mais drástica verificou-se nos casos não urgentes — pulseiras verdes, azuis e brancas do protocolo de Manchester — que globalmente caíram 24,6%, passando de 1.679.160 para 1.266.189 episódios. Foram menos 412.971 utentes, o que significa menos 1.700 pessoas por dia nas urgências.

Esta quebra massiva é explicada pela maior intervenção do SNS24, incluindo a introdução da triagem digital, mas também é consequência de fechos selectivos de urgências em vários hospitais e até do desvio de doentes para urgências privadas — como sucede no Hospital da Prelada, gerido pela Misericórdia do Porto, que passou a integrar o circuito de resposta a situações menos urgentes.

Apesar desta redução, os indicadores de desempenho tiveram melhorias apenas subtis: o tempo médio entre admissão e triagem manteve-se em 14 minutos, o intervalo entre triagem e primeira observação caiu de 55 para 49 minutos e a permanência média nos serviços passou de 271 para 268 minutos. Os episódios com permanência superior a seis horas diminuíram ligeiramente, passando de 1,027 milhões para 970 mil, uma quebra de 5,6%.

Indicadores de urgências hospitalares no período de Janeiro a Agosto nos anos de 2022 a 2025. Fonte: SNS. Análise: PÁGINA UM.

No detalhe das triagens, os casos de maior gravidade até aumentaram um pouco, embora sejam factores não controláveis numa perspectiva de curto prazo: as pulseiras vermelhas (doentes emergentes que exigem intervenção imediata) subiram 1,9% e as amarelas (doentes urgentes) 3,4%, enquanto as laranjas (doentes muito urgentes) caíram 3,9%.

Mas a maior quebra foi, efectivamente, nas verdes (doentes pouco urgentes, que podem esperar até 120 minutos pelo seu atendimento ou, eventualmente, serem encaminhados para outros serviços de saúde), que caíram de uma média de 1.515.692 para 1.115.889 casos, ou seja, 26,4%. As azuis (doentes não urgentes) caíram 16,2% e as brancas (doentes não urgentes associados a questões administrativas) 2,9%, em valores absolutos menos expressivos.

A análise feita pelo PÁGINA UM às principais Unidades Locais de Saúde (ULS) – aquelas que registaram mais de 100 mil episódios nas urgências entre Janeiro e Agosto do ano passado – mostra que a queda este ano foi generalizada, embora com diferenças regionais: descidas de 18% no Oeste, 17% em Coimbra, 14% no Entre Douro e Vouga, 12% no São João, 11% em Viseu-Dão-Lafões e 10% na Lisboa Central (São José) e no Baixo Vouga, enquanto no Algarve, Gaia-Espinho e Médio Tejo as reduções foram pouco significativas (1% ou 2%).

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Em termos absolutos, a ULS de Coimbra foi a que conseguiu uma maior redução, com menos 140 pessoas por dia a deslocarem-se às urgências. Seguem-se Oeste e Amadora-Sintra (menos 86/dia cada), Lisboa Central (menos 72), Entre Douro e Vouga (menos 76) e o São João (menos 61). Deste lote de 17 ULS, Gaia-Espinho só reduziu 11 atendimentos nas urgências por dia e o Médio Tejo somente quatro.

Quando se consideram apenas os casos não urgentes, a queda diária é, porém, ainda mais expressiva: a ULS de Lisboa Central teve menos 144 pessoas por dia, Oeste menos 97, Amadora-Sintra menos 86, Entre Douro e Vouga menos 94, Alto Minho menos 73, Baixo Vouga menos 68, Coimbra menos 38 e São João menos 32.

Outro aspecto que se destaca nesta análise do PÁGINA UM é o distinto peso da fatia dos não urgentes nas diferentes ULS. Se os episódios não urgentes (pulseiras verdes, azuis e brancas) ainda representaram este ano cerca de um terço (32,6%) do total das idas às urgências – quando no triénio de 2022-2024 se situava nos 39,6% –, ainda se detectam grandes ULS com um rácio acima de 40%: Amadora-Sintra (57,3%), Alto Minho (47,4%), Oeste (46,7%), Lisboa Norte (45,4%), Braga (43,8%) e Médio Tejo (42,1%).

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Mesmo assim, houve ULS que, face ao ano passado, reduziram de forma muito significativa o peso dos episódios não urgentes, como foram os casos da ULS de São João (passou de 38,6% para 19,8%), Entre Douro e Vouga (32,3% vs. 17,8%), Oeste (46,7% vs. 32,6%) e Alto Minho (47,4% vs. 33,6%). Ao invés, a proporção praticamente não se alterou na ULS do Algarve (diferença inferior a 0,1 pontos percentuais), de Gaia-Espinho (menos 0,7 pontos percentuais), do Médio Tejo (menos 0,9 pontos percentuais) e de Coimbra (menos 1,5 pontos percentuais).

Apesar de o Ministério da Saúde destacar que as medidas para uma melhor triagem visam libertar os hospitais para os casos mais graves, uma redução tão brusca do afluxo levanta questões sobre se se trata de uma racionalização ou de uma exclusão tácita de doentes, com risco de agravamento clínico para quem, por barreiras administrativas ou geográficas, não chega a ser atendido condignamente.