O fim da amizade: tensões crescentes no Árctico

Perto de Kirkenes, cidade norueguesa localizada no Círculo Polar Árctico, encontra-se uma das poucas fronteiras russas abertas com o Espaço Schengen.

Kirkenes, uma cidade na costa do Mar de Barents, encontra-se no centro da luta geopolítica pelo controlo do Árctico. Ambos os lados da fronteira estão agora fortemente militarizados e repletos de actividades dos serviços de informação e segurança.

Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

Para a Rússia, esta área reveste-se de uma importância estratégica fundamental. A vizinha Península de Kola abriga não apenas a Frota do Norte da Rússia, mas também a mais recente geração de submarinos nucleares e cerca de mil ogivas nucleares.

Perto da fronteira fica a base aérea de Olenya, onde o exército ucraniano lançou recentemente um ataque bem sucedido com drones, destruindo vários bombardeiros estratégicos russos. A região é excepcionalmente rica em petróleo e gás natural, mas também é fortemente afectada pelas alterações climáticas. O derretimento acelerado do gelo já começou a afetar as rotas comerciais internacionais.

Kirkenes é um dos pontos geopolíticos e de segurança “quentes” do mundo.

Fronteira Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

Após o fim da Guerra Fria, a cidade norueguesa dedicou grandes esforços para se reinventar como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. No entanto, a agressão russa à Ucrânia, em Fevereiro de 2022, juntamente com as subsequentes sanções económicas, pôs um fim abrupto a essa ambição.

Apesar do declínio dramático das relações entre a Europa e a Rússia, uma pequena parte da população Kirkenes manteve-se favorável em relação à Rússia … Predominantemente por razões económicas. Antes da guerra na Ucrânia, os negócios estavam a crescer na cidade fronteiriça. Além disso, o legado histórico da União Soviética na região era demasiado forte para ser totalmente apagado pelos desenvolvimentos recentes.

Cerca de 600 cidadãos russos residem actualmente em Kirkenes e, na sua maioria, estão contra as políticas de Vladimir Putin. Vários — jornalistas, activistas, membros do movimento LGBT — fugiram para cá para evitar o recrutamento ou a perseguição por parte do regime russo. Quando os militares russos declararam a primeira grande onda de mobilização forçada, várias dezenas de russos escaparam para Kirkenes. Outra parcela menor da população russa da cidade apoia activamente o regime de Moscovo.

Kirkenes, uma capital espiã do Norte. / Foto: Boštjan Videmšek

Antes da guerra, sucessivos governos noruegueses atribuíram somas avultadas para o reforço da cooperação transfronteiriça com a Rússia na zona do Mar de Barents. Há 17 anos, ambos os lados da fronteira chegaram mesmo a ponderar construir uma “cidade gémea”, o que aumentaria os laços de Kirkenes com a cidade mineira russa de Nikel, no distrito de Pechegensky, e talvez até ajudasse a criar uma “área transnacional”.

Tais eram os sentimentos na época.

Assim, em Julho de 2008, Kirkenes acolheu uma reunião entre o ministro dos Negócios Estrangeiros norueguês, Jonas Gahr Støre, atual primeiro-ministro da Noruega, e Sergey Lavrov, que ainda desempenha as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros russo. O projeto foi interrompido na fase puramente teórica. No entanto, a relação global manteve-se estreita. A equipa de hóquei Kirkenes passou alguns anos a competir numa liga regional russa. E, todos os anos, membros de ambos os grupos de patrulhas de fronteira reuniam-se para um amistoso jogo de futebol.

Dito isto, várias das pessoas que entrevistei em Kirkenes alertaram para o facto de que partes da cooperação cultural foram ocasionalmente utilizadas indevidamente para fins de política externa. Ou, para ser mais direto, como ferramentas de propaganda direccionada.

Foto: Boštjan Videmšek

Legado soviético

“Sinto-me enlutado e também traído por antigos amigos”, confessou um médico reformado, Harald Sunde, ao lado de um monumento aos soldados soviéticos mortos, no centro de Kirkenes.

Além da sua longa e ilustre carreira médica, Sunde também é autor de dois livros sobre guerrilheiros noruegueses durante a Segunda Guerra Mundial. Quando Sergey Lavrov visitou Kirkenes pela última vez, em 2019, Sunde ofereceu-lhe um exemplar de um dos seus livros. Os dois cumprimentaram-se com um aperto de mão. Logo depois, o norueguês recebeu uma comenda especial do Ministério da Defesa russo.

No dia 1 de Março de 2022, uma semana após a “operação especial” na Ucrânia, Sunde fez uma visita ao consulado russo para a devolver.

“A invasão foi um enorme choque”, recordou, enquanto fitava a estátua da Segunda Guerra Mundial, erguida em 1952. “Até ao último minuto, esperava que Vladimir Putin não cumprisse as suas ameaças. O ataque russo à Ucrânia destruiu toda a confiança. E eu não acho que vai voltar tão cedo. Após três décadas a tentar construir uma comunidade amigável, temos agora um regime hostil do outro lado da fronteira. Os danos causados pelo rompimento dos laços são incalculáveis.”

Harald Sunde, médico e guia histórico de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

Durante a Segunda Guerra Mundial, Kirkenes e os seus arredores viram alguns dos combates mais ferozes no Árctico.

O exército alemão ocupou Kirkenes em Junho de 1940, mantendo a cidade ocupada durante mais de quatro anos. No auge da ocupação, cerca de 30.000 soldados alemães estavam em Kirkenes ou arredores, usando a cidade como um ponto de observação para ataques a Murmansk. Kirkenes esteve perto de ser destruída por aviões soviéticos que lutavam contra as forças nazis, apenas para ser libertada pelo Exército Vermelho em Outubro de 1944.

Durante a Guerra Fria, o monumento aos soldados russos mortos em Kirkenes serviu como um forte elo nas relações locais Noruega-Rússia. Em ambos os lados da fronteira, o período foi suficientemente apreciado para ser apelidado de “a paz no Árctico”.

Sempre que visitava o monumento, encontrava-se estacionado junto a ele um carro pintado com as cores da bandeira ucraniana, ostentando slogans como “Parem Putin!” e “Parem a guerra!”. O carro pertencia a um cidadão russo.

Um carro com slogan anti-Putin está estacionado diariamente junto ao monumento dos soldados soviéticos. / Foto: Boštjan Videmšek

O centro de Kirkenes também ostenta uma estátua de bronze do falecido Thorvald Stoltenberg, pai do antigo ministro da Defesa norueguês e mais tarde secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Stoltenberg foi uma figura-chave na ligação entre os países do Árctico após o colapso da União Soviética. Fundou o Secretariado do Mar de Barents e liderou numerosos projetos destinados a estabelecer laços com a Rússia.

“Ele agora deve estar a virar-se no seu túmulo”, comentou Harald Sunde quando chegámos a esta segunda estátua.

O aficcionado por História, de 67 anos, também exerce funções na Câmara Municipal como representante do Partido Socialista. Ele acompanhou-me até a placa comemorativa colocada pela comunidade local perto da entrada do consulado russo, após a morte do líder da oposição russa, Alexei Navalny.

Homenagem a Alex Navalny em frente ao consulado russo, em Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

Enquanto caminhávamos pela rua da memória da cidade, repleta de lembranças nostálgicas, Sunde continuava a elencar as lojas e empresas forçadas a fechar devido às sanções. As ruas eram maioritariamente frequentadas por cidadãos idosos… O que não surpreendeu, dado que os jovens têm fugido da zona. A população total está visivelmente a diminuir. Neste dia de primavera chocantemente quente, alguns turistas estavam por ali, enquanto as gaivotas, voando baixo, gritavam histericamente, protegendo os seus descendentes. Bandeiras ucranianas podiam ser vistas em cada passo que dávamos.

As placas de sinalização de trânsito em Kirkenes estão escritas em três línguas diferentes: em norueguês, russo e sami. Desde 24 de Fevereiro de 2022, os políticos locais mantiveram um debate fervoroso sobre se as inscrições russas deveriam ser removidas. Recolheram-se assinaturas, iniciou-se uma petição… No entanto, o processo de remoção das inscrições não conseguiu reunir apoio suficiente.

“Antes da invasão, Kirkenes era um importante centro comercial para os russos de classe média que viviam em cidades perto da fronteira. Posteriormente, muitos negócios fecharam, muitos deles permanentemente. Eu esperava que as autoridades de Oslo ajudassem mais, dada a gravidade da crise”, relatou Sunde.

Fizemos uma breve paragem no abrigo subterrâneo onde os habitantes da cidade se esconderam durante os três anos de pesados bombardeamentos soviéticos na época da ocupação nazi. Pelo olhar que trocámos, ficou claro que ambos sentíamos que tudo o que é relacionado com a guerra deveria pertencer apenas a um museu.

Fronteira Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

O colapso da confiança

O facto de Kirkenes estar a voltar-se contra as políticas agressivas russas foi destacado durante a Conferência de Kirkenes, do ano passado. No seu discurso inicial, o presidente da Câmara Municipal de Sør-Varanger, Magnus Mæland, lamentou que, devido à invasão, as relações com a Rússia se tinham agravado nas gerações vindouras.

“Independentemente do resultado da guerra, a nossa confiança na Rússia sofreu um golpe substancial”, disse Mæland aos delegados, na reunião. “Kirkenes visa fornecer um porto seguro para aqueles que querem democracia e liberdade”.

Jonas Gahr Støre, primeiro-ministro norueguês, foi ainda mais directo. Na sua opinião, a situação na região era a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. “Temos de estar preparados para que a guerra acabe por chegar à Noruega, embora não haja uma ameaça imediata”, alertou Store, na Conferência de Kirkenes, em Maio.

Abrigo da Segunda Guerra Mundial, em Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

No dia de Junho, o edil Magnus Mæland decorou a fachada do prédio da autarquia de Kirkenes com uma grande bandeira arco-íris, usada na Noruega para homenagear a “marcha do orgulho LGBT” durante um mês inteiro. A menos de 100 metros de distância, no consulado russo, está pendurada a bandeira tricolor russa. Este é provavelmente o único lugar do mundo onde as duas bandeiras se encontraram tão próximas.

“Quando estávamos a hastear a bandeira arco-íris, comecei a reflectir sobre como estávamos a viver na fronteira entre um regime totalitário e uma sociedade democrática aberta”, disse-me o autarca conservador, de 41 anos, no seu espaçoso gabinete no centro de Kirkenes. Mæland tornou-se presidente da autarquia durante o Outono de 2023, um ano e meio após a invasão russa da Ucrânia. Desde então, ele não trocou uma palavra com o cônsul-geral russo de Kirkenes, Nikolay Konyigin. As relações oficiais foram completamente cortadas.

“Logo após a invasão, o cônsul-geral começou a espalhar as formas mais extremas de propaganda russa. Como como a Rússia estava realmente a lutar contra nazis. Como todos no Ocidente se tornaram nazis. Como esta foi a continuação da Segunda Guerra Mundial”, disse Mæland.

Kirkenes (centro). / Foto: Boštjan Videmšek

Na sua opinião, a invasão foi um enorme choque para toda a região, e especialmente para Kirkenes. No entanto, também acredita que os seus eleitores foram rápidos a aceitar a nova realidade, uma vez que as relações entre as duas comunidades fronteiriças já começaram a deteriorar-se após a anexação russa da Crimeia, em 2014.

“O regime de Putin manipulou-nos como tolos”, afirmou Mæland. “A Europa revelou-se incrivelmente ingénua. Por aqui, vimos 31 anos de estreita colaboração com a Rússia. Somos uma cidade fronteiriça. Estamos interligados com os nossos vizinhos. Muitas das pessoas aqui ficaram tremendamente magoadas. Agora, toda a confiança extinguiu-se. O meu receio é que não renasça, pelo menos durante várias gerações.”

“Kirkenes é um hotspot geopolítico. É verdade que partilhamos com a Rússia uma fronteira muito mais curta do que a Finlândia ou a Suécia. No entanto, a nossa fronteira está localizada junto ao mar de Barents e à Península de Kola, onde a Rússia tem enormes capacidades nucleares. Toda a área é uma fortaleza russa”, adiantou o autarca.

Fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

Mæland explicou que Kirkenes fica a 15 minutos da fronteira russa e a apenas 30 minutos de carro do vale de Pechenga, onde está colocada a 200ª Brigada de Fuzileiros Motorizados Separados do exército russo – uma unidade que sofreu pesadas baixas na Ucrânia. “Mais duas horas de condução e você chega a Severomorsk, a sede da Frota do Norte Russa, também composta por submarinos com armas nucleares estratégicas. E então, a apenas 30 quilómetros dali, há a base aérea de Olenya, onde há poucos dias vários bombardeiros de última geração foram destruídos por drones ucranianos”.

Perguntei a Magnus Mæland se ele se sentia seguro, dado o que ele acabou de me dizer. “Sim”, respondeu ele. “Os nossos serviços de inteligência e segurança sabem exactamente o que está a acontecer. O mesmo vale para a polícia. O exército norueguês é extremamente competente. Estamos no controlo. Ao mesmo tempo, somos os olhos e os ouvidos da NATO. Somos importantes para a União Europeia e para os Estados Unidos. As armas nucleares do outro lado da fronteira nunca foram apontadas à Noruega. E não estão agora, tenho a certeza disso.”

Mæland está bem ciente de que o Árctico se tornou o novo campo de batalha para as superpotências. As razões são muitas: as alterações climáticas permitem novas rotas comerciais, os abundantes recursos naturais do Árctico (petróleo, gás natural, metais e minerais raros, peixe) e as fontes de energia renovável…

Magnus Mæland, presidente da Câmara Municipal de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

O presidente da Câmara de Kirkenes considera que tudo isto constitui uma boa razão para a Europa começar a construir uma nova base industrial. Na sua opinião, este seria o passo fundamental para a autossuficiência. Ao mesmo tempo, denuncia qualquer forma de dependência de regimes totalitários. Ele defende evitar rigorosamente o tipo de “ingenuidade globalizante” que tornou a Alemanha e vários outros países europeus quase totalmente dependentes do gás natural russo.

“A solução para tudo o que falamos está aqui, no alto do norte”, concluiu o jovem político norueguês. “Embora seja verdade que estamos a enfrentar as consequências mais dramáticas das alterações climáticas, o nosso canto do mundo será, no futuro, muito mais habitável do que outras partes do globo”.

Pesca pela Segurança

Kirkenes e dois outros portos menores do Árctico norueguês são os únicos portos onde navios de carga russos ainda estão autorizados a atracar. A maioria deles são barcos de pesca. No entanto, o Serviço de Segurança norueguês permanece vigilante. Vários navios de pesca que atracaram em Kirkenes nos últimos três anos e meio tinham a bordo equipamento moderno dos serviços de informações. Por exemplo, o  barco de processamento de peixe Arka-33, que atracou na cidade durante várias semanas, em 2023.

Estaleiro de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

Ben Taub, jornalista da revista The New Yorker, habilmente utilizou fontes do serviço de informação para provar que o Arka-33 estava a recolher informações. A embarcação pertencia a duas empresas russas com laços estreitos com empresas de segurança privadas e de um deputado russo que foi alvo de sanções internacionais.

No final de 2023, até oito barcos de pesca russos altamente modernos, tripulados por 600 marinheiros, estavam atracados no porto de Kirkenes. Nenhum deles estava presente durante o período da minha visita, embora um (registado em Murmansk) estivesse a ser reparado no estaleiro local. Na sua maioria, os marinheiros russos que atracam em Kirkenes têm passaportes manuscritos — de modo a não serem rastreáveis. Os serviços secretos noruegueses estão convencidos de que pelo menos alguns dos marinheiros são membros da Frota do Norte russa.

Nos últimos anos, todo o território norueguês do Árctico foi regularmente exposto a ataques dos serviços secretos de segurança russos. A maioria deles era de natureza eletrónica. O que se pode vislumbrar aqui é o núcleo de uma guerra híbrida que grassa em ambas as direções. O Serviço de Segurança da Polícia Norueguesa está a emitir alertas regulares sobre a possibilidade de sabotagem de ferrovias e oleodutos russos. Também se registaram numerosos casos de interferência de GPS.

A Rússia tem vindo a expandir as suas actividades de inteligência de segurança — ou, em inglês claro, espionagem — em todo o território do Mar de Barents, desde 2014. Isto é especialmente verdade para a Frota do Norte russa. Mas isso não é nada de excepcional nestas partes. É apenas a continuação da norma adoptada durante a guerra fria.

Rio fronteiriço. / Foto: Boštjan Videmšek

Desde o início da guerra, o tráfego total no porto de Kirkenes caiu 30%. O principal motivo? A Noruega já não permite que navios russos fiquem fundeados nos seus portos para reparação e manutenção.

Isso teve um impacto significativo na situação económica da cidade fronteiriça, onde grande parte da infraestrutura de serviços voltada para unidades navais russas foi construída após a Segunda Guerra Mundial. A referida infraestrutura era o principal empregador numa cidade extremamente remota, com todos os seus bares, restaurantes, oficinas mecânicas, hotéis e lojas.

Ao longo dos últimos meses, tem-se falado cada vez mais de uma possível reabertura da mina.

A verdadeira divisão

Bjarge Schwenke Fors é o chefe do Instituto de Barents de Kirkenes, uma organização de investigação local que opera sob a égide da Universidade do Árctico da Noruega em Tromsø.

Schwenke Fors está convencido de que a deterioração das relações transfronteiriças causou estragos económicos na região.

Bjarge Schwenke Fors, diretor do Instituto de Barents. / Foto: Boštjan Videmšek

Schwenke Fors relatou que, na sua opinião, o afecto da população local pela Rússia era, em grande parte, mítico. E apontou para os resultados de um recente estudo do Instituto Norueguês de Pesquisa Urbana e Regional, afirmando que apenas uma parte da comunidade russa de Kirkenes apoiou as autoridades de Moscovo.

“A verdadeira divisão não está entre aqueles que apoiam ou se opõem ao regime do Kremlin”, esclareceu Schwenke Fors. “É entre aqueles que estão a tentar pôr fim aos investimentos locais na zona do Mar de Barents, bem como qualquer investimento adicional nas relações com os russos … E aqueles que desejam que os investimentos continuem.”

Encontrei-me com o investigador norueguês na sede do Instituto de Barents. “O meu receio é que não consigamos regressar ao estado pré-invasão tão cedo”, advertiu Schwenke Fors. “Vai demorar várias gerações. O certo é que as relações aqui entraram numa nova época. A recuperação será certamente difícil. De várias formas, as duas comunidades permanecem estreitamente ligadas. Kirkenes é o lar de muitos russos, que são uma parte importante da comunidade. Assim como durante a Guerra Fria, quando a relação era propensa a muita oscilação. Mas, naquela altura, as coisas pelo menos costumavam ser bastante previsíveis. Hoje em dia, há apenas uma incerteza completa …”

Caminho para a fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

Schwenke Fors acredita que, após o fim da guerra na Ucrânia, as relações entre as duas comunidades terão de ser reconstruídas quase do zero. Principalmente devido a um sentimento de hostilidade cada vez maior.

A resposta local à abundante propaganda russa era bastante previsível. A suspeita e a russofobia começaram a penetrar até mesmo nos cidadãos de mente mais aberta do lado norueguês da fronteira. Nas palavras de Schwenke Fors, o projecto de criar uma identidade comum na região do Mar de Barents estava morto.

A identidade do Mar de Barents

Kirkenes fica na segunda maior e menos povoada província da Noruega, Finnmark. A cidade foi fundada no início do século XIX. Durante muito tempo, foi propriedade de uma empresa mineira privada que a utilizava para extrair minério de ferro. No auge da produção, a mina empregava 1500 trabalhadores. No entanto, durante os anos 80, a falta de encomendas e de opções alternativas de emprego provocou um grave declínio demográfico.

Foto: Boštjan Videmšek

A situação mudou após o colapso da União Soviética. Durante alguns anos, os moradores de Kirkenes e Nikel foram autorizados a viajar até 30 quilómetros de distância nos seus respectivos países vizinhos, com apenas um passe de fronteira.

O estatuto de isenção de impostos de Kirkenes significou que numerosos navios russos começaram a atracar no porto da cidade, trazendo um fluxo constante de comerciantes. Os noruegueses abriram uma cantina pública na cidade russa vizinha de Nikel.

Durante a primeira metade dos anos 90, observou-se um intenso tráfego nos dois sentidos, entre Kirkenes e Murmansk. Os cidadãos russos frequentavam o lado norueguês da fronteira porque podiam comprar muitas coisas actualmente indisponíveis na sua terra natal. Os noruegueses, por outro lado, gostavam de visitar o lado russo em busca de festas baratas movidas a álcool.

Durante os primeiros anos após o colapso da União Soviética, o lado russo da fronteira foi marcado por um grande caos. Estava em curso uma privatização de vale-tudo. Sindicatos criminosos assumiram o controle de Murmansk e de muitas cidades menores. A poluição industrial vivia o seu apogeu, em grande parte causada pelo mau manuseamento dos resíduos nucleares.

Posto fronteiriço terrestre Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

Perto do final dos anos 80, a Península de Kola abrigava aproximadamente 20% de todos os reactores nucleares do mundo. O combustível nuclear em desuso continuou a derramar-se no Mar de Barents. Os resíduos nucleares que aguardavam armazenamento podiam ser vistos em frente a estaleiros navais e instalações industriais falidas.

Havia algo como a “Identidade de Barents”, ou era um mito — perguntei a Olga Povoroznyuk, antropóloga social da Universidade de Viena e membro  do Instituto Austríaco de Investigação Polar com experiência de investigação a longo prazo na Sibéria e no Árctico.

“Em 1993, os países do Mar de Barents – Rússia, Noruega, Suécia e Finlândia — criaram uma nova Região Euro-Árctica do Mar de Barents (o BEAR), uma região constituída pelas partes setentrionais da Finlândia, Noruega e Suécia, e a parte noroeste da Federação Russa, e onde vivem cerca de seis milhões de pessoas. A Declaração de Kirkenes, assinada nesse ano, lançou as bases para a cooperação. Esta importante iniciativa contribuiu muito para melhorar as relações internacionais e forneceu uma base para o desenvolvimento de uma identidade comum.”

Olga Povoroznyuk tem investigado o projeto InfraNorth, com foco na infraestrutura de transporte e sustentabilidade, e actualmente é co-líder do projeto ARCA sobre espaços verdes urbanos e adaptação climática no Árctico. Em Kirkenes, ela e seus colegas da InfraNorth têm se concentrado nos impactos locais do desenvolvimento de infraestrutura e nas visões do projecto de expansão do porto marítimo.

Mar Árctico. / Foto: Boštjan Videmšek

“No início do século, quando estava a terminar o meu doutoramento, a ideia de uma identidade comum de Barents recebeu muita atenção nos círculos académicos e políticos”, disse Olga Povoroznyuk, recordando uma época em que as relações regionais atingiram um pico em termos de proximidade.

E acrescentou: “a identidade regional partilhada foi tema de debates públicos e de imaginários futuros, apesar de o BEAR nunca se ter tornado uma região totalmente integrada do ponto de vista geopolítico”.

Segundo Povoroznyuk, as relações na região têm vindo a deteriorar-se, pelo menos, desde a crise da Crimeia em 2014. “O ano de 2022 tornou-se um ponto de viragem histórico, impactando enormemente a identidade regional. Onde antes havia uma cooperação estreita, agora só há muita desconfiança e frustração. As vidas de muitos residentes em Kirkenes e Sør-Varanger sofreram mudanças dramáticas com o declínio da mobilidade, do comércio e das trocas comerciais entre a Rússia e a Noruega. O desejo de forjar laços transformou-se num sentimento de perda e incerteza futura”.

Fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

Antes dos seus actuais projetos de investigação, Povoroznyuk passou alguns anos a investigar os tópicos de indigeneidade, identidade, desenvolvimento industrial e mudanças climáticas na Sibéria e outras zonas do Árctico. “As pessoas aqui, em Kirkenes, estão preocupadas”, disse. “Sentem que estão longe de estar suficientemente protegidas de uma potencial nova ameaça. Ao mesmo tempo, a população ainda é capaz de tirar partido de inúmeras memórias da coexistência pacífica da guerra fria. A situação emocional é, portanto, bastante ambivalente. A população de Kirkenes vê a possibilidade de a cidade ser transformada numa base militar como ‘o cenário apocalíptico’. Ninguém quer ver isso acontecer. Da mesma forma, ninguém quer que a situação escale ainda mais.”

De alguma forma, as suas palavras foram ecoadas por literalmente todos os meus interlocutores em Kirkenes e arredores.

Exposição Setentrional

O The Barents Observer é um jornal local que cobre todo o Árctico. Publicando o trabalho de colaboradores noruegueses e russos, o jornal online está disponível em ambas as línguas. O papel pode ser de natureza local, mas a qualidade de seus artigos está bem à altura dos padrões globais. Muitos dos que acompanham activamente a situação no extremo norte consideram-no um ponto de referência fundamental.

O seu compromisso com a verdade e a objectividade transformou o jornal num alvo constante de ataques e sanções da Rússia. No início do ano, as autoridades russas declararam a publicação como indesejada, enquanto a colaboração com o jornal foi transformada num acto criminoso com uma pena de prisão de seis anos — incluindo republicar o seu conteúdo online.

“Uma parte significativa dos materiais publicados tem uma orientação claramente anti-russa. É de salientar que estão a ser elaborados por cidadãos da Federação Russa que deixaram o país e estão incluídos no registo de agentes estrangeiros ou na lista de terroristas e extremistas”, refere um boletim público emitido pela Procuradoria-Geral da Federação Russa, a 7 de fevereiro. As autoridades russas também alegaram que os artigos do The Barents Observer visavam fomentar protestos nas partes do norte da Rússia, bem como aplaudir novas sanções contra a Federação Russa.

Caminho para a Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

Os jornalistas do jornal não ficaram, de modo algum, surpreendidos com a decisão do Kremlin. O jornal divulgou imediatamente uma declaração de compromisso firme com sua missão jornalística — principalmente o jornalismo de investigação publicado tanto em norueguês como em russo.

“O que aconteceu mostra que o regime repressivo russo estava ciente de que éramos bons no nosso trabalho. O jornalismo não é crime. Tentar impedir a liberdade de imprensa e sufocar a liberdade de expressão do público — agora, isso é um crime! Vladimir Putin construiu o seu domínio com base no medo. Por isso, continuaremos a demonstrar que não temos medo dele”, disseram-me Thomas Nilsen, editor e — juntamente com os jornalistas — coproprietário do The Barents Observer, na modesta sede do jornal.

Em Fevereiro deste ano, o The Barents Observer ganhou uma ação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra a autoridade de comunicação russa, que impediu os repórteres do jornal de entrar em território russo.

Nilsen acredita que uma cortina de ferro foi implementada ao longo da fronteira entre a Noruega e a Rússia. As pessoas estão cada vez mais assustadas. “Depois de a Rússia ter iniciado a sua guerra ilegal e brutal em solo europeu, percebemos que a ferramenta mais potente à nossa disposição era o jornalismo. Decidimos intensificar os nossos esforços.”

Vale a pena mencionar que Nilsen foi proibido de entrar em território russo dois anos antes de todos os outros repórteres do jornal.

A equipa doThe Barents Observer é composta por quatro jornalistas russos, que fugiram para Kirkenes da censura e perseguição, em 2022. Os quatro jornalistas são regularmente alvo de assédio por parte dos serviços de informação russos, mas continuam fiéis à sua profissão. Considerando que forças mal-intencionadas acompanham cada um de seus passos, não se podem dar ao lixo do menor deslize no padrão do seu trabalho.

“Toda a zona do Árctico está a tornar-se num importante tópico mundial. Aqui, em Kirkenes, onde as consequências da ruptura dos laços com a Rússia não são tão graves como alguns afirmam, todos os temas-chave da nossa situação estão presentes. A geopolítica, as alterações climáticas, a proximidade da guerra… O que aconteceu há poucos dias na base aérea de Olenya, do outro lado da fronteira, foi um aviso claro de quão perto está a guerra. Percebo muito bem que a nossa carga de trabalho de reportagem só tende a aumentar”, resumiu Thomas Nilsen sobre a situação, falando comigo entre fotografias de Mikhail Gorbachev e caricaturas emolduradas que retratam a perseguição russa a jornalistas, mesmo ao lado de uma sala memorial a Boris Nemtsov.

Campo de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

Um barril de pólvora geopolítico

No contexto da segurança nuclear, a praticamente desconhecida cidade norueguesa de Kirkenes situa-se numa das áreas mais sensíveis do mundo, em termos geoestratégicos — pelo menos tão sensível como, por exemplo, Caxemira.

Há mais de duas décadas que Vladimir Putin vê o Árctico como um importante campo de batalha geopolítico. A pressão russa sobre a região intensificava-se a cada ano. O mesmo se pode dizer da crescente pressão da NATO sobre a Noruega.

Desde 2005, a Rússia começou a reabrir mais de 50 antigas bases militares soviéticas na Península de Kola. De acordo com os meus interlocutores, pelo menos mil ogivas nucleares — o segundo maior arsenal nuclear da Rússia — estão agora localizadas num raio de 200 quilómetros. A Península de Kola acolhe também zonas de lançamento de ‘rockets‘ hipersónicos e a maior frota de navios quebra-gelo do mundo. Um dos quebra-gelo é alimentado por um reactor nuclear.

Ainda assim, mesmo com tamanha abundância de recursos, o recurso estratégico mais importante da Rússia na região do Mar de Barents são os seus submarinos nucleares supermodernos. Um único submarino pode transportar 16 ‘rockets‘ balísticos com ogivas nucleares, que podem ser disparados das profundezas do mar. Estes submarinos constituem a base da segurança estratégica russa e continuam a ser a prioridade absoluta de Moscovo. O mapa da Península de Kola parece, assim, um mapa da segurança geoestratégica russa.

Foto: Boštjan Videmšek

Aliás, em 30 de Outubro de 1961, o exército soviético desencadeou a maior detonação de uma arma nuclear da História. A explosão foi 3.000 vezes mais poderosa do que a de Hiroshima. A detonação ocorreu na ilha de Novaya Zemlya, no Mar de Barents. Soldados noruegueses no norte do país puderam observar o céu brilhante, mesmo estando a 1.000 quilómetros de distância da explosão.

Rápida militarização

A fronteira terrestre entre a Noruega e a Rússia mede 195,7 quilómetros de comprimento, a fronteira marítima 23,2 quilómetros. A única estação de travessia terrestre está localizada em Storskog, a cerca de 10 quilómetros de Kirkenes. A fronteira foi demarcada em 1826 e permaneceu praticamente inalterada até ao presente.

O posto fronteiriço de Storskog ganhou destaque entre 2015 e 2016, quando foi usado por vários milhares de refugiados e requerentes de asilo do lado russo para entrar na Noruega. Só nos últimos três meses de 2015, mais de 5.000 pessoas atravessaram a fronteira.

A maioria delas eram cidadãos sírios. Chegaram à Noruega de bicicleta e até de cadeiras de rodas, uma vez que era proibido atravessar a fronteira a pé. Os agentes dos serviços secretos noruegueses identificaram várias pessoas contratadas como agentes pelo Serviço Federal de Segurança da Federação Russa. Esta foi uma das razões pelas quais a fronteira foi fechada para refugiados, enquanto a Rússia foi colocada na lista de países seguros para refugiados. Veículos particulares com placas russas foram impedidos de entrar na Noruega em Maio de 2024.

Durante o tempo da minha visita, a travessia foi usada do lado russo por um par de autocarros que transportavam turistas chineses. As infraestruturas em torno da estação de travessia estão a deteriorar-se rapidamente.

Posto fronteiriço terrestre Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

O lado russo fortemente militarizado da fronteira é controlado pelo serviço de fronteira do Estado, enquanto o lado norueguês, cada vez mais militarizado, é patrulhado pela guarnição da região de Sør-Varanger.

Toda a zona fronteiriça está repleta de estruturas de serviços de informação e segurança — a mais imponente é um trio de enormes cúpulas de radar localizadas na vila piscatória de Vardø e controladas pelo exército norueguês. Nos últimos anos, este exército tem usado a zona para treinar membros de unidades especiais ucranianas.

Nikel é o primeiro maior assentamento do lado russo, marcado por uma série de chaminés altas. Não há muito tempo, quando a central ainda estava operacional, o ar e a água de ambos os lados da fronteira estavam fortemente poluídos.

Perto de Nikel, encontra-se o famoso buraco de mais de 12 quilómetros de profundidade — o buraco mais profundo conhecido no mundo. Foi criado por engenheiros soviéticos nos anos 70, com o objectivo de perfurar o seu caminho até ao núcleo da Terra.

Falharam.

Foto: Boštjan Videmšek

A Guerra Híbrida

“O Árctico está a testemunhar as consequências da agressão à Ucrânia. A Rússia está a promover activamente uma narrativa de militarização do Árctico pela NATO e há vários anos que tem vindo a reforçar as suas posições militares no Árctico, abrindo novos postos avançados e actualizando os antigos”, disse-me Kari Aga Myklebost, professora de História russa na Universidade do Árctico da Noruega, numa conversa telefónica.

Adiantou que a Rússia aumentou os seus esforços para criar uma imagem hostil do Ocidente a partir de 2022. Ao hastear bandeiras soviéticas e ao organizar aproximações de desfiles militares nos colonatos russos no arquipélago norueguês de Svalbard, no Mar de Barents, a Rússia está a tentar forçar a Noruega a reagir.

“A incidência da actividade simbólica russa aumentou acentuadamente após o ataque em grande escala à Ucrânia. A Rússia intensificou as comemorações públicas de 9 de Maio como o Dia da Vitória, colocando uma ênfase adicional no seu legado da Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que glorificou a actual guerra na Ucrânia. Este é o actual modo de operações híbridas da Rússia em Svalbard: a Rússia está estrategicamente a aproveitar a liberdade de expressão norueguesa e o uso de símbolos. O objectivo é provocar uma reação através da promoção de símbolos revanchistas, já que uma reacção mais incisiva abriria espaço para acusar a Noruega de discriminação contra a população russa. A partir de 2022, temos assistido a muitos desses casos em Svalbard”, explicou a professora Myklebost.

Na sua opinião, a Noruega desempenha um papel bastante importante nos planos a longo prazo da Rússia. “Sendo um pequeno país que faz fronteira com a Península de Kola, estrategicamente importante, e com o adjacente Mar de Barents, a Noruega é, com razão, muito cautelosa. O equilíbrio de poder é extremamente assimétrico e estas regiões são de elevada importância militar e estratégica para a Rússia. A Noruega está bem ciente de que a Rússia poderia potencialmente começar a aumentar a pressão sobre o arquipélago de Svalbard.”

Foto: Boštjan Videmšek

Após a queda da União Soviética, as autoridades norueguesas investiram muito no estabelecimento de relações com a Rússia através da fronteira no norte. Especialmente em Kirkenes e arredores. “Depois de 2022, a construção de relações foi interrompida. Em Kirkenes, as relações com a Rússia tornaram-se um tema bastante sensível.”

As comemorações da guerra, como o Dia da Vitória Russa, que costumava ser celebrado conjuntamente pela Noruega e pela Rússia em Kirkenes, tornaram-se controversas. De acordo com Myklebost, Moscovo — através de suas contínuas comemorações de guerra — mantém uma narrativa de unidade transfronteiriça na luta contra o nazismo alemão, bem como o neonazismo na Ucrânia hoje. “E isto é feito apesar do facto de muitos residentes de Kirkenes terem expressado muito claramente a sua desaprovação das comemorações russas, que tentam estabelecer uma ligação com a guerra na Ucrânia. O consulado russo simplesmente continua com suas provocações.”

Como uma das principais autoridades em geopolítica do Árctico, Myklebost está convencido de que Kirkenes, em si, não tem um valor estratégico muito alto para a Noruega, mesmo que seja importante para a NATO como um todo, devido à proximidade com a Rússia. Já para a Rússia, o caso não poderia ser mais diferente. “Tanto Svalbard como o Mar de Barents são de extrema importância para a Rússia. Em caso de conflito entre a Rússia e a NATO, a Rússia necessitaria de controlar a parte oriental da província de Finnmark, bem como o Mar de Barents, para garantir as suas capacidades estratégicas na Península de Kola e o livre acesso da sua frota setentrional ao Mar Atlântico. Isto envolveria também o controlo de Kirkenes, Svalbard e da parte ocidental do Mar de Barents. Os principais objectivos seriam assegurar as capacidades nucleares da Península de Kola e conceder livre navegação à Frota do Norte russa.”

O factor chinês

Há umas semanas, o director do porto de Kirkenes, Terje Jørgensen, afirmou que queria construir um novo terminal portuário, destinado a conectar a América do Norte, Europa e Ásia. O novo terminal iria servir, principalmente, navios de carga chineses, concedendo à China precisamente o que mais deseja. Ou seja, seria um passo importante na criação da chamada Rota da Seda Polar. Embora também tenha de se salientar que o cliché do ‘norte de Singapura’ faz parte do debate público em Kirkenes há tanto tempo que já está um pouco gasto.

“O facto é que o porto de Kirkenes precisa de investimentos e actividade. É por isso que o director expressou a sua abertura à colaboração económica com a China. A minha sensação pessoal é que o Governo norueguês não o permitirá, por razões de segurança”, argumentou Kari Aga Myklebost. A professora destacou os estreitos laços estratégicos da Rússia com a China, tendo os dois países realizado exercícios militares conjuntos no Árctico.

Kari Aga Myklebost. / Foto: D.R.

“A Noruega receia que a potencial infraestrutura portuária chinesa em Kirkenes possa ser utilizada para fins duplos. Ou para vários fins, em desacordo com os interesses nacionais noruegueses”, concluiu Myklebost.

Os serviços secretos noruegueses estão cada vez mais preocupados com as mudanças recentes na Casa Branca, bem como com os norte-americanos que se aproximam da Rússia enquanto estão “de olho” na aquisição da Gronelândia. O norte da Noruega foi apanhado no meio de uma convulsão geopolítica.

“A Noruega está a adaptar-se à evolução das circunstâncias. Por um lado, temos uma Rússia muito determinada e, por outro, a administração norte-americana extremamente imprevisível. Neste contexto, o Governo norueguês anunciou, em Maio, que tenciona suavizar as restrições impostas aos seus aliados há 70 anos, relativamente às actividades nas zonas fronteiriças com a Rússia. Esta é uma grande mudança, uma vez que as restrições foram em parte destinadas a enviar uma mensagem à Rússia,” disse Kari Aga Myklebost.

Tal como a Finlândia e a Suécia, a Noruega tem vindo a reforçar as suas capacidades defensivas nacionais com o objectivo de conter a Rússia. “Esta é a realidade. Por enquanto, simplesmente não estamos em posição de planear as nossas futuras relações com a Rússia. A situação é demasiado imprevisível.”

O Derretimento do Norte

Outro factor-chave que contribui para as tensões crescentes no Árctico são as alterações climáticas.

Nas últimas quatro décadas, cada década, em média, viu o derretimento de 13% do gelo de Verão. E a tendência só aumenta. A este ritmo, o Árctico poderá ficar livre de gelo até 2040 — uma previsão que se assemelha a uma declaração de guerra global. Ao mesmo tempo, o derretimento do gelo já está a abrir novas rotas comerciais. Alguns deles atravessam o Mar de Barents. Muito em breve, a Rota do Mar do Norte estará aberta durante todo o ano.

Todos os países do Árctico, excepto a Rússia, são membros da NATO. À aliança militar euro-atlântica juntaram-se recentemente os vizinhos há muito neutros da Noruega, a Suécia e a Finlândia. A Rússia, que controla mais de dois terços do Árctico por si só, estendendo-se por 5.600 quilómetros de comprimento, foi expulsa pelo Conselho do Árctico em 2022. Todos os contactos científicos foram igualmente cortados, causando danos incalculáveis à nossa compreensão comum das mudanças que varrem a região do Árctico.

white ice on water during daytime
Foto: D.R.

Antes do ataque russo à Ucrânia, as autoridades norueguesas planeavam transformar o porto de Kirkenes numa importante base logística que ligava a Europa à Sibéria ocidental. De suma importância, seria um terminal de petróleo e gás ligado à cidade finlandesa vizinha de Rovaniemi e, a partir daí, ao sistema ferroviário finlandês. Mas a invasão russa não foi o único factor que pôs fim ao ambicioso projecto. A Noruega também tinha expectativas excessivas em relação aos seus projectos de perfuração de gás terrestre no Mar de Barents.

A Noruega, que se apresenta actualmente como um dos países mais verdes do mundo, continua a procurar intensamente novas jazidas de petróleo e gás terrestre. Estima-se que o Árctico contenha cerca de 30% das reservas mundiais de gás terrestre.

De acordo com analistas petrolíferos, o Mar de Barents detém dois terços das reservas norueguesas de petróleo e gás terrestre. Em 2022, quando o sistema energético europeu entrou em pânico na sequência do ataque à Ucrânia, a Noruega abriu 93 novos locais de perfuração. Destes, 71 deles estavam localizados no ecossistema extremamente sensível do Mar de Barents. No período de 2022, o petróleo e o gás terrestre representaram 73% de todas as exportações norueguesas.

industry, conduit, petroleum, energy, loop, conduit, conduit, petroleum, petroleum, petroleum, petroleum, petroleum
Foto: D.R.

De acordo com dados do Departamento da Plataforma Continental, em Dezembro de 2023, a Noruega quebrou um recorde de seis anos em relação à quantidade de gás terrestre extraído num só mês (379 milhões de metros cúbicos). No final do ano passado, a Noruega exportava, em média, 1,85 milhões de barris de petróleo por dia para a União Europeia.

Os combustíveis fósseis continuam a ser uma das principais forças motrizes da guerra.