A Pietà dos estafetas e o cortejo dos autómatos

Nunca fui, nem me considerei – e dificilmente serei – um cronista de viagens. Os verdadeiros narradores errantes, cuja tinta prolonga o passo, são de nascença e vocação, e partem com um guião mental que combina a minúcia de um alfarrabista com a ousadia de um trapezista: sabem onde hão-de pôr os olhos e onde hão-de pousar a pena.

Eu, pelo contrário, dou por mim a chegar aos lugares como quem entra num quarto mal iluminado — primeiro tacteio, depois tropeço, por fim encontro um canto onde me sento, resignado, à espera de que algo se revele. Por vezes, não tarda. Pura sorte de principiante.

Em Vilnius, bastou-me atravessar o rio para mergulhar na República de Užupis, essa utopia boémia onde um tal “ministro da felicidade” poderia perfeitamente ter assento no Governo.

Em Riga, foram umas patuscas casas, altivas e orgulhosas, que me deram matéria para especular sobre as dificuldades em não tingir uma fotografia.

Até em Tallinn, onde a medievalidade de postal poderia ser tema gasto, descobri o filão improvável das “perigosas maravilhas” de viajar com o ChatGPT — um companheiro que, para o bem e para o mal, nunca se cala e raramente se perde.

Mas Helsínquia pregou-me um embaraço, até porque a estadia seria curta. Duas noites, duas tardes e duas manhãs nesta cidade, sem qualquer preparação prévia nem nenhum ponto de partida. Na segunda tarde, deambulava perdido até que, por salvação divina, sola gratia muito a propósito, deparei-me com a luterana igreja de São João.

Erguida no final do século XIX, toda em tijolo vermelho e com duas torres esguias que se erguem como dedos de oração protestante, esta é uma peça notável do neogótico nórdico, onde a austeridade não dispensa uma luz diáfana que entra pelas janelas ogivais, como se Deus tivesse alugado o espaço a um arquitecto com predilecção por claridade.

Por sorte, apanhei a porta aberta, mostrei a carteira de jornalista, e lá entrei para a nave onde, para minha estupefacção, não se cantava o Ein feste Burg ist unser, do Martinho Lutero, mas antes o All of Me do John Legend. Mais tarde, na recepção disseram-me que se ensaiava para um casamento, mas aquilo que mais me fascinou, eventualmente para uma crónica, foi a austera atmosfera que me pareceu incongruente com um cesto de livros infantis e peluches — um contraste delicioso com as igrejas católicas, onde a pedagogia infantil raramente vai além de um crucifixo ameaçador e um sermão sobre o inferno.

Aqui, Deus não só é amor como, aparentemente, tolera ursos de peluche.

Reconfortado com a perspectiva de ter já um ponto de partida, segui até ao Ateneum, a dois passos da estação central ferroviária, onde, por entre as galerias, deparei-me com uma notável exposição sobre pintoras do século XIX intitulada Crossing Borders.

Mais do que a beleza e mesmo ousadia das telas, deparei-me com a minha ignorância: nunca me apercebera que, na época de um Delacroix, de um Monet, de um van Gogh, de um Renoir, de um Cézanne, houve não apenas mulheres que tiveram de se emancipar nas artes da pintura como ombreavam em qualidade estética e estilística com os seus pares masculinos.

Mas foi numa das salas com uma janela que dava para um pequeno jardim que encontrei uma imagem pungente da condição humana nestes tempos de imigração e de trabalho desumanizante. No pequeno relvado, jazia um adormecido entregador da Uber Eats, com a bicicleta ao lado, num cenário digno da pena de Zola ou de Dickens, enquanto em redor uma dezena de outros ciclistas — colegas ou concorrentes — aguardavam o próximo pedido.

Aquilo tinha a força de um ícone contemporâneo: o trabalhador anónimo, esmagado por uma economia que se alimenta da sua fadiga, observado por iguais que esperam a sua vez na mesma engrenagem. Uma Pietà laica, sem mãe e sem redenção, apenas com um algoritmo que decide quando se trabalha.

Com dois temas no bornal, podia já encerrar a missão. Mas decidi continuar a caminhada para ainda encontrar aberta a famosa Temppeliaukio, a igreja luterana escavada num rochedo granítico, uma das mais singulares obras do modernismo e do engenho finlandês. Ali, dizem, há uma acústica perfeita e uma luz a descer do tecto circular que convida à contemplação – e acredito, ou tenho fé, que sim – mas nada vi porque bati com a cabeça na porta.

Resignado, voltei para trás, e eis que não bato, porque ele se desviou, num entregador de comida robótico: uma pequena caixa sobre rodas, bandeira a com luzes e sensores, que seguia o seu caminho pelas ruas com a determinação de um carteiro que jurara entregar a correspondência nem que chovesse granizo.

Fiquei a observá-lo e depois persegui-o, vendo como se desviava dos transeuntes, contornava obstáculos, esperava pacientemente o verde nos semáforos e, onde não havia sinalização, lançava mão de uma prudência sobre-humana antes de atravessar. Até se cruzou com outros robots do mesmo jaez, saudando-os, imagino, com um discreto tilintar de bits.

Descobri depois que Helsínquia é uma das primeiras cidades europeias a permitir este tipo de entregas em pleno meio urbano. O fascínio é inevitável: é como assistir, em directo, à lenta substituição da nossa espécie até nas tarefas banais e pouco qualificadas que justificavam a nossa modesta utilidade.

E não pude deixar de lembrar uma passagem deliciosa de A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, do magnífico Laurence Sterne, escrito no século XVIII ainda nos primórdios da Revolução Industrial, na qual um personagem — creio que o tio de Tristram — declara que apoiaria qualquer invento capaz de criar uma máquina a vapor que se movesse sozinha, apenas para, no instante seguinte, exigir que se proibisse tal coisa, pois os efeitos seriam catastróficos para a economia e para a vida das pessoas.

A mesma contradição parece embutida no nosso tempo: desejamos o milagre tecnológico até ao dia em que percebemos que ele não nos deseja de volta.

Segui o “bicho” durante vinte minutos, quase como um naturalista do século XIX atrás de uma nova espécie. E, nesse trajecto, percebi que estas máquinas não são apenas ferramentas; são prenúncios. Anunciam uma era em que o trabalho humano será, não um direito ou um fardo, mas uma anomalia residual. A História já nos deu avisos: a Revolução Industrial, as linhas de montagem, a mecanização agrícola — em cada uma destas transições houve ganhos de produtividade e quedas brutais de relevância para aqueles que nelas trabalhavam.

Porém, agora o salto é qualitativamente distinto: não se trata de substituir o esforço físico ou a destreza manual, mas de replicar, em silício, lítio e algoritmo, as decisões e as interacções que dávamos por exclusivas da inteligência humana. O entregador que dormia no banco e o robot que se deslocava disciplinadamente pela cidade são, afinal, duas faces do mesmo futuro: uma que se extingue e outra que se instala.

E talvez, no fundo, o cronista de viagens — mesmo aquele que nunca o foi nem será — não precise de inventar nada. Basta-lhe estar no lugar certo, na hora certa, para perceber que a matéria de uma boa crónica não é o exotismo dos lugares, mas o instante em que se reconhece que se está a assistir, ao vivo e a cores, à construção de um mundo onde a inutilidade do homem já não é só uma tragédia — é um destino.